Espaço de liberdade, de segurança e de justiça: aspetos gerais
Os tratados conferem uma grande importância à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Em 2009, foram introduzidos diversos elementos novos e importantes: um processo decisório mais eficaz e democrático em resposta à supressão da antiga estrutura em pilares; prerrogativas acrescidas para o Tribunal de Justiça da UE; e um novo papel para os parlamentos nacionais. Os direitos fundamentais são reforçados pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, juridicamente vinculativa.
Base jurídica
O artigo 3.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia (TUE) enuncia os principais objetivos da UE no que se refere ao espaço de liberdade, segurança e justiça (ELSJ):
O Título V do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) – artigos 67.º a 89.º – é consagrado ao ELSJ. Para além das disposições gerais, este título contém capítulos específicos sobre:
- Políticas relativas aos controlos nas fronteiras, ao asilo e à imigração;
- Cooperação judiciária em matéria civil;
- Cooperação judiciária em matéria penal;
- Cooperação policial[1].
A Dinamarca não participa na adoção pelo Conselho das medidas previstas no Título V do TFUE (Protocolo n.º 22 – «cláusula de não participação» – isenta a Dinamarca de participar nas medidas previstas). Não obstante, o acervo de Schengen tem vido a ser aplicado desde 2001, numa base intergovernamental. No que diz respeito à cooperação judiciária em matéria civil e às regras que regulam a competência dos tribunais em litígios de natureza civil ou comercial entre particulares residentes em Estados-Membros diferentes (Regulamento «Bruxelas I»), o Reino da Dinamarca e a UE celebraram, em 19 de outubro de 2005, um acordo relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do acordo, sempre que sejam adotadas alterações, a Dinamarca deve comunicar à Comissão a sua decisão de aplicar ou não o conteúdo dessas alterações. A Irlanda só participa na adoção e na aplicação de medidas específicas na sequência de uma decisão de «participação voluntária» (Protocolo n.º 21).
Para além destas disposições, convém fazer referência a outros artigos, indissociáveis da criação de um ELSJ. É o caso, nomeadamente, do artigo 6.º do Tratado UE, relativo à Carta dos Direitos Fundamentais e à Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais[2], do artigo 8.º do TFUE, relativo à luta contra a desigualdade, do artigo 15.º, n.º 3, do TFUE, relativo ao direito de acesso aos documentos das instituições, do artigo 16.º do TFUE, relativo à proteção de dados de caráter pessoal[3], e dos artigos 18.º a 25.º do TFUE, relativos à não discriminação e à cidadania da União[4]. No entanto, o TFUE introduziu também uma série de «cláusulas-travão» para os casos em que um Estado-Membro considere que um projeto de legislação possa prejudicar aspetos fundamentais do seu sistema de justiça penal (artigo 82.º, n.º 3, do TFUE) e regras mínimas comuns relativas à definição de infrações penais e sanções para crimes particularmente graves com dimensão transfronteiriça (artigo 83.º, n.º 3, do TFUE). Na prática, o que se passa é o seguinte: um projeto de diretiva é apresentado ao Conselho Europeu e o processo legislativo ordinário é suspenso. Em caso de consenso, o Conselho Europeu remete, no prazo de quatro meses, o projeto ao Conselho, que porá termo à suspensão do processo legislativo ordinário.
Objetivos
Os objetivos do ELSJ são precisados no artigo 67.º do TFUE:
- «A União constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros.
- A União assegura a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas e desenvolve uma política comum em matéria de asilo, de imigração e de controlo das fronteiras externas que se baseia na solidariedade entre Estados-Membros e que é equitativa em relação aos nacionais de países terceiros. Para efeitos deste título, os apátridas são equiparados aos nacionais de países terceiros.
- A União envida esforços para garantir um elevado nível de segurança, através de medidas de prevenção da criminalidade, do racismo e da xenofobia e de combate contra estes fenómenos, através de medidas de coordenação e de cooperação entre autoridades policiais e judiciárias e outras autoridades competentes, bem como através do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal e, se necessário, através da aproximação das legislações penais.
- A União facilita o acesso à justiça, nomeadamente através do princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil.»
Realizações
A. As principais novidades introduzidas pelo Tratado de Lisboa
1. Um processo decisório mais eficaz e mais democrático
O Tratado de Lisboa suprime o terceiro pilar, que assentava na cooperação intergovernamental, generalizando, deste modo, o método comunitário no ELSJ. Regra geral, os textos legislativos são agora adotados segundo o processo legislativo ordinário descrito no artigo 294.º do TFUE. O Conselho delibera por maioria qualificada e o PE, na qualidade de colegislador, pronuncia-se no âmbito do processo de codecisão.
2. Um novo papel para os parlamentos nacionais
O artigo 12.º do TUE e os Protocolos n.os 1 e 2 precisam o papel dos parlamentos nacionais na UE. Os parlamentos nacionais dispõem de oito semanas para examinar todos os projetos de atos legislativos à luz do princípio da subsidiariedade. Até ao final desse prazo, não pode ser tomada qualquer decisão a nível da UE relativamente a esse projeto de ato legislativo. No que diz respeito ao ELSJ, caso um quarto dos parlamentos nacionais o solicite, esse projeto deverá ser sujeito a uma reavaliação (artigo 7.º, n.º 2, do Protocolo n.º 2).
Pode ser interposto um recurso de anulação junto do Tribunal de Justiça, caso um ato legislativo viole o princípio de subsidiariedade.
Os parlamentos nacionais participam na avaliação da Eurojust e da Europol (artigos 85.º e 88.º do TFUE).
3. Prerrogativas acrescidas para o Tribunal de Justiça da UE[5]
O Tribunal de Justiça pode, doravante e sem quaisquer restrições, ser chamado a estatuir, a título prejudicial, sobre todos os aspetos do ELSJ. No fim de um período transitório de cinco anos a contar da data de entrada em vigor do Tratado de Lisboa (ou seja, 1 de dezembro de 2014), os atos adotados ao abrigo do tratado precedente no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal também poderão ser objeto desse recurso. O mesmo sistema se aplica aos recursos por incumprimento submetidos ao Tribunal de Justiça (Protocolo n.º 36).
4. Papel reforçado da Comissão
A possibilidade de a Comissão interpor recursos por incumprimento contra os Estados-Membros pelo não respeito das disposições em matéria de ELSJ constitui uma importante novidade que lhe confere um novo poder para zelar pela correta aplicação dos textos legislativos.
5. Intervenção potencial dos Estados-Membros na avaliação da implementação de políticas em matéria de ELSJ
O artigo 70.º do TFUE determina que o Conselho, por proposta da Comissão, pode adotar medidas através das quais os Estados-Membros, em colaboração com a Comissão, procedem a uma avaliação objetiva e imparcial da execução de políticas em matéria do ELSJ por parte das autoridades dos Estados-Membros.
B. Papel programático do Conselho Europeu
Paralelamente às modificações introduzidas pelos sucessivos Tratados, há que referir o papel particularmente importante do Conselho Europeu na evolução e no progresso registados nos diferentes domínios do ELSJ.
Em outubro de 1999, o Conselho Europeu de Tampere reuniu-se em sessão extraordinária consagrada à criação de um ELSJ, explorando plenamente as possibilidades proporcionadas pelo Tratado de Amesterdão.
Em novembro de 2004, o Conselho Europeu adotou um novo programa de ação quinquenal, o Programa da Haia.
Em 10 e 11 de dezembro de 2009, o Conselho Europeu adotou o programa de Estocolmo. Este programa plurianual para o período 2010-2014 visa os interesses e as necessidades dos cidadãos e de outras pessoas pelas quais a UE seja, de algum modo, responsável.
O Tratado de Lisboa reconhece formalmente o papel proeminente do Conselho Europeu na «[definição d] as orientações estratégicas da programação legislativa e operacional no espaço de liberdade, segurança e justiça» (artigo 68.º do TFUE).
C. Instituição de organismos específicos para a gestão do ELSJ: as agências
Foram criadas diferentes agências, de forma a contribuir para a gestão de políticas numa série de domínios importantes do ELSJ: Europol, para a cooperação policial; a Agência da União Europeia para a Formação Policial (CEPOL); a Eurojust, para a cooperação judiciária penal; a Agência dos Direitos Fundamentais da UE (FRA), que se ocupa dos direitos fundamentais e da luta contra a discriminação; o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA); a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex), responsável pela coordenação dos controlos nas fronteiras externas; a Agência da União Europeia para o Asilo(EUAA); a Procuradoria Europeia (EPPO)[6] e a Agência Europeia para a Gestão Operacional de Sistemas Informáticos de Grande Escala no ELSJ (eu-LISA).
Papel do Parlamento Europeu
O Parlamento dispõe de uma série de instrumentos e poderes que lhe permitem desempenhar plenamente o seu papel:
- Competência legislativa, na medida em que, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2009, o Parlamento Europeu é colegislador no quadro do processo de codecisão, o que passou a ser a regra geral, embora com algumas exceções. Estas incluem medidas destinadas a garantir «a cooperação administrativa entre os serviços competentes dos Estados-Membros» (artigo 74.º do TFUE), que ainda estão sujeitas a um «processo legislativo especial» com o Conselho a deliberar sobre uma proposta da Comissão ou de um quarto dos Estados-Membros, e após consulta do Parlamento. Além disso, aplica-se um processo legislativo especial (o Conselho que delibera por unanimidade após consulta do Parlamento) às medidas que definem as condições e limitações da cooperação policial (artigo 89.º do TFUE) ou às disposições relativas aos passaportes, bilhetes de identidade e às autorizações de residência (artigo 77.º, n.º 3, do TFUE);
- Competência orçamental, cabendo ao Parlamento Europeu, em conjunto com o Conselho, definir o orçamento da UE para programas no domínio do ELSJ, bem como os orçamentos operacionais e administrativos das agências acima referidas;
- Escrutínio das atividades das agências da UE que operam neste domínio de intervenção, por exemplo, mediante o envio de delegações aos Estados-Membros ou às fronteiras externas da UE, para identificar problemas e verificar de que forma é que a legislação da UE está a ser aplicada;
- A possibilidade de interpor recurso junto do Tribunal de Justiça no âmbito de um recurso de anulação, que o Parlamento Europeu exerceu, nomeadamente, para requerer e obter a anulação de determinadas disposições de atos legislativos;
- O poder de iniciativa política através da adoção de relatórios ditos de iniciativa e de resoluções sobre os temas que o Parlamento decida abordar;
As principais prioridades destacadas constantemente pelo Parlamento nos últimos anos podem resumir-se da seguinte forma:
- Reconhecimento e consideração da importância crescente do ELSJ no desenvolvimento da UE;
- Abolição do terceiro pilar e integração dos domínios da cooperação policial e da cooperação em matéria de justiça penal nos processos e na legislação da UE, de modo a permitir ao Parlamento Europeu desempenhar plenamente o seu papel democrático no processo legislativo;
- Abandono da regra da unanimidade no Conselho, para facilitar o processo decisório;
- Garantia de um equilíbrio justo entre a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos residentes e os requisitos de segurança e de luta contra o terrorismo, assegurando que esse equilíbrio se reflita na legislação e na sua aplicação;
- Reforço da proteção e promoção dos direitos fundamentais, nomeadamente através da adoção da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, juridicamente vinculativa, e da criação de uma Agência dos Direitos Fundamentais, bem como através da criação da Comissão de Inquérito para Investigar a Utilização do Software Espião de Vigilância Pegasus e Equivalentes, que avaliou a forma como a utilização de software espião contra cidadãos da UE afetou os processos democráticos e os direitos individuais dos cidadãos na União.
Udo Bux / Pablo Abril Marti / Mariusz Maciejewski