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domingo, fevereiro 23, 2025

Como a criminalização da migração pode se infiltrar em argumentos progressistas contra a colonização da Palestina

Quem expulsou os judeus foram os romanos e os palestinos são originários da Palestina. E a existência de palestinos e judeus no mesmo território não precisam ser coisas mutuamente exclusivas

Por Flávia Odenheimer
Do ProMigra

Duas das principais pautas da política internacional após a posse do presidente dos Estados Unidos em janeiro deste ano são a migração e a Palestina. Desde o envio de imigrantes para bases militares e a deportação em massa de residentes irregulares nos Estados Unidos até o plano de limpeza étnica de Gaza com a expulsão dos palestinos para outros países árabes, as ações de Trump refletem o fascismo latente dos últimos tempos e que está em clara emersão. E sempre que há fascismo, ainda bem, há luta e resistência. 

É fundamental àqueles que as compõem saber apontar aquilo que reproduz lógicas de opressão dentro delas. Esse texto é uma tentativa de mostrar, a partir de um caso específico, como o discurso de criminalização da migração pode estar imbuído nos argumentos contra os sistemas de opressão, questionando e complexificando a fala comum de que o problema da ocupação e dos assentamentos na Palestina é que “os judeus não são de lá”.

O sionismo é um projeto colonial cujo objetivo claro é tomar a terra de Israel e, retirando o povo palestino e promovendo imigração em massa, criar uma maioria judaica no terrítório, estabelecendo um Estado judeu que supostamente seria a única forma de o povo judeu estar em segurança – a falácia inicial. Este processo se deu a partir da limpeza étnica em 1948 conhecida como Nakba, catástrofe em árabe, que segue até hoje com a ocupação e os assentamentos na Cisjordânia e com o cerco e o genocídio em Gaza. Além disso, dentro do território israelense há um sistema de apartheid no qual pessoas palestinas têm menos direitos do que pessoas judias de qualquer lugar do mundo.

Entendendo “Terra de Israel” e “Estado de Israel”

É importante notar que Terra de Israel e Estado de Israel são coisas completamente diferentes. A primeira é uma designação milenar da região, dada à terra onde vivia o povo de Israel, sendo Israel o nome que recebe o patriarca Jacó. Não é um território com fronteiras definidas e não é uma instituição, é apenas a terra sagrada. O povo judeu sempre teve e tem uma conexão muito grande com este lugar.

A segunda é uma invenção do movimento sionista que subverte essa relação do povo judeu com a terra para colonizá-la. O sionismo se utiliza dessa conexão e a deturpa para que o sentimento coletivo seja de que o objetivo do povo judeu sempre foi ter um Estado seu na Terra de Israel. O povo palestino é colocado como quem realmente “roubou a terra” e a criação do Estado seria uma “retomada”. Quando na verdade quem expulsou os judeus foram os romanos e os palestinos são originários da Palestina. E a existência de palestinos e judeus no mesmo território não precisam ser coisas mutuamente exclusivas. A Terra de Israel é sagrada para o povo judeu. O Estado de Israel é a deturpação dos valores judaicos. 

Pensando em genealogias milenares, o povo judeu se originou em algum momento da terra de Israel. Isto não significa que todas as pessoas judias têm uma ancestralidade direta com pessoas originárias da região, mas sim que existe uma origem de lá enquanto povo. O que é crucial na história toda é que isso não justifica absolutamente nada. 

A partir da destruição do segundo templo no ano 70, se inicia a diáspora e as comunidades começam a entrelaçar as tradições judaicas com as culturas dos países onde estão. Uma parte do povo judeu continua na Palestina e tem suas histórias e tradições conectadas tanto com a sua religião quanto com a sua cultura local. E, apesar das tentativas de apagamento da existência desta identidade, são judeus palestinos, porque judeu e palestino não são categorias opostas. 

Criminalização da migração

O problema não é que os judeus “não sejam da Palestina”. Não que os ashkenazim (judeus da europa central e do leste) não sejam europeus, porque são. Não que os judeus de quaisquer outras partes do mundo não sejam de onde são, porque são. Mas é prejudicial pautar como se todos os judeus não fossem da região, simplificando a questão, e, principalmente, colocar que o problema da questão toda é o “ser estrangeiro”.

Isso se cruza com o discurso da criminalização da migração. Esse ver o “estrangeiro” como alguém que não pode estar lá, que veio de outro lugar e por isso não pertence. Colocar o “estrangeiro” como um ser prejudicial, que vem para tomar a terra, que vem para roubar empregos, ou benefícios, ou espaço. 

O problema não é não ser da terra, é estar colonizando, expulsando pessoas, demolindo casas, destruindo comunidades, é o discurso de “a terra é nossa porque nós somos os verdadeiros habitantes originais”. Migrar é um direito. O foco da questão nunca deveria estar na migração em si, mas em como ela está acontecendo e ao que ela está atrelada. 

O povo judeu viveu um genocídio e os ashkenazim estavam em uma situação absolutamente fragilizada na Europa. A migração da maioria foi por necessidade. E o movimento sionista se aproveitou disso para fortalecer o seu projeto de construção do Estado judeu na Palestina. Projeto que pressupõe que haja uma maioria judaica no território – ou, para alguns, que ele seja exclusivamente judeu.

Não importa que a justificativa dos próprios sionistas para a construção desse Estado seja a justificativa falaciosa de que podem estar lá porque são “originários”, o contra argumento não pode se basear em um discurso enraizado em uma opressão. A luta contra o projeto sionista é fundamental. A luta contra a criminalização da migração é fundamental. E também o é entender os nossos discursos e o que os nossos argumentos realmente estão defendendo.

Sobre a autora

Flávia Odenheimer é licenciada em matemática, professora na educação básica e mestranda na Universidade de São Paulo, pesquisando a temática de educação de pessoas migrantes e em situação de refúgio. Já trabalhou com a comunidade da Eritreia dentro do Estado de Israel e com refugiados palestinos na Cisjordânia ocupada.

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