Por Svetlana Ruseishvili
Logo após a posse de Donald Trump, sua administração lançou uma ofensiva contra a imigração irregular. A reação veio rapidamente, incluindo charges satíricas na internet. Em uma delas, o presidente e a primeira-dama aparecem em um restaurante, sentados diante de pratos vazios, expressando descontentamento com a demora no serviço. O salão está deserto; não há funcionários. Do lado de fora, agentes do ICE levam algemados o garçom, o cozinheiro e a faxineira. A mensagem é clara: sem trabalhadores imigrantes, a economia para.
A ilustração capta uma contradição aparente da política migratória repressiva de Trump. Dados demonstram que a economia dos Estados Unidos depende fortemente da mão de obra imigrante. Caso o governo concretizasse sua meta de deportar mais de um milhão de indocumentados, o impacto econômico seria severo: queda no PIB, redução da arrecadação fiscal e aumento nos preços de bens e serviços. Migrantes representam 14% dos trabalhadores da agricultura, 12% da construção civil e 7% do setor de turismo. Serviços essenciais, como limpeza e assistência domiciliar, são sustentados por essa força de trabalho.
Se os custos econômicos da repressão migratória são tão evidentes – sem mencionar seus impactos sociais, como a segregação urbana e o agravamento de problemas de saúde pública –, por que Trump insiste nessa agenda? Uma explicação imediata seria o cumprimento de promessas de campanha: a retórica anti-imigração foi central em sua plataforma eleitoral. Outra possibilidade é o reforço da ideologia nativista, que tem fortalecido lideranças políticas em várias partes do Norte Global. Também é plausível que as deportações sirvam como um teatro político midiático, cuja intensidade diminua conforme as eleições se distanciem. Afinal, no seu primeiro mandato, Trump deportou menos migrantes do que Barack Obama e menos que Joe Biden posteriormente.
No entanto, mais do que uma simples contradição entre discurso e prática, a política de deportações pode ser interpretada como um mecanismo sofisticado de controle social e econômico. Em vez de uma ação voltada exclusivamente para remover imigrantes indesejados, trata-se de uma estratégia de disciplinamento da força de trabalho migrante – o que se pode chamar de “deportabilidade”. Esse conceito descreve não apenas a deportação em si, mas a ameaça constante de remoção, que impõe vulnerabilidade aos trabalhadores migrantes, tornando-os mais suscetíveis à exploração econômica.
A Produção Estatal da Deportabilidade
A análise da produção estatal da ilegalidade e da deportabilidade migrante fornece um olhar mais profundo sobre os mecanismos dessa política. As deportações, mais do que um instrumento de remoção em massa, constroem a figura do imigrante indesejável. Esse processo opera sob uma roupagem tecnocrática e administrativa, mas possui raízes políticas claras. Primeiramente, o Estado define a ilegalidade por meio de regulamentações jurídicas e regimes de controle de fronteiras. O ato de atravessar uma fronteira não é, por si só, um crime. Nos Estados Unidos, é possível levar sua vida cotidiana com documentos que não acusam o seu status migratório ou de cidadão. Assim, milhões de pessoas conseguem residir, trabalhar e estudar livremente no país por décadas, como mostra a série documentária “Living Undocumented”. É propriamente o policiamento migratório que transforma os migrantes residentes em “estrangeiros ilegais”, “criminosos” ou “invasores”, de acordo com vocabulário estigmatizante do Trump.
Portanto, a condição da deportabilidade coloca os migrantes em uma posição de extrema vulnerabilidade. Sob ameaça e estigmatização, são os empregos precários, mal remunerados e invisibilizados que se oferecem para eles. O medo da deportação impede reivindicações trabalhistas e limita sua capacidade de organização política. O sociólogo franco-argelino Abdelmalek Sayad descreveu essa condição como uma “tripla sujeição”: ao trabalho, à invisibilidade política e à provisoriedade.
A deportabilidade, no entanto, não é apenas uma ameaça latente; ela precisa ser continuamente reforçada no imaginário coletivo. O pesquisador Nicholas De Genova denomina esse fenômeno de “espetacularização da fronteira”. Imagens de migrantes sendo detidos, crianças separadas dos pais e centros de detenção superlotados não são meros subprodutos da política migratória – são parte fundamental de sua engrenagem. O objetivo não é maximizar deportações, mas sim consolidar uma atmosfera de medo e insegurança, desestimulando qualquer tentativa de mobilização por direitos e minando bases para solidariedade entre os trabalhadores.
Deportabilidade como Estratégia de Controle Econômico
A criminalização da migração irregular é, em última instância, uma ferramenta de despossessão. Do ponto de vista da teoria social crítica, o proletariado é caracterizado pela ausência de meios próprios de subsistência, dependendo exclusivamente da venda de sua força de trabalho. Enquanto trabalhadores nativos contam, ao menos em parte, com a proteção da cidadania, imigrantes indocumentados são completamente excluídos desse amparo.
No século XX, a ampliação da cidadania nacional trouxe conquistas importantes para os trabalhadores. Contudo, essa mesma ampliação aprofundou a divisão entre cidadãos e não cidadãos, criando uma hierarquia que se reflete diretamente no mercado de trabalho. Quanto menor o acesso a direitos, mais precária será a posição ocupada pelo trabalhador migrante. Assim, a guerra contra a imigração irregular não é apenas uma guerra contra estrangeiros – é uma guerra contra os trabalhadores mais precarizados, aqueles duplamente despojados: de seus meios de produção e de sua cidadania.
Construindo Resistência
Para enfrentar essa nova forma de exploração do trabalho, é essencial fortalecer a consciência de classe. A deportabilidade fragmenta a classe trabalhadora, separando migrantes de nativos e documentados de indocumentados. Enxergar as deportações como parte de uma estratégia político-econômica mais ampla permite a construção de uma resistência unificada, superando divisões artificiais.
Além disso, um movimento transnacional de regularização migratória deve ser impulsionado, articulado com organizações trabalhistas. A ilegalidade, afinal, não é um fenômeno espontâneo, mas uma construção estatal que permite a exploração sistemática da mão de obra migrante e a redução geral dos salários no mercado de trabalho.
A compreensão de que a deportabilidade é, antes de tudo, uma ferramenta da guerra do capital contra o trabalho é fundamental para a formulação de estratégias eficazes de resistência. A luta não deve se limitar à contestação da retórica anti-imigração, mas precisa questionar as próprias estruturas que produzem a desigualdade.
Sobre a autora
Svetlana Ruseishvili é socióloga migrantóloga e professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
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