Por Dolores Guerra e Rodrigo Borges Delfim
O final de janeiro e o começo do mês de fevereiro trouxeram para a já complexa situação da Palestina e seus habitantes dois fatos que dificultam ainda mais esse cenário. São eles: a entrada em vigor do veto de Israel à atuação da Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA); e a proposta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de reconstrução de Gaza sob controle de Washington e a realocação de 1,8 milhão de palestinos que residem no território para países vizinhos.
Ambos os fatos geraram reações da comunidade internacional, mas sobretudo a proposta feita pelo atual ocupante da Casa Branca. Para os palestinos, essas movimentações recentes ampliam a situação já precária dos palestinos na região. Além disso, deixa ainda mais distante o sonho de um Estado independente e que ajude a resolver a situação de deslocamento forçado vivida desde a guerra de 1948, que marcou a criação do Estado de Israel.
Embora o estabelecimento de um cessar-fogo entre Israel e o grupo Hamas tenha sido firmado em meados de janeiro, a violência segue em curso na região. Na Cisjordânia são frequentes os relatos de ataques contra palestinos, cometidos por milícias de colonos israelenses que vivem em assentamentos.
Estimativas indicam que 90% da população de Gaza (estimada entre 1,8 milhão e 2,2 milhões, dependendo da fonte) tenha ficado em situação de deslocamento forçado desde o começo do atual conflito, em 7 de outubro de 2023. Uma condição que a deixa ainda mais vulnerável a questões climáticas, como as fortes chuvas que atingiram a região nos últimos dias e alagaram tendas – são poucas as construções ainda de pé ou em condições mínimas de habitação em Gaza.
Início do veto à UNRWA
A legislação israelense que proíbe a atuação da Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) em Gaza, Jerusalém Oriental e na Cisjordânia entrou em vigor no último dia 30 de janeiro. O banimento da agência foi aprovado pelo Parlamento israelense, o Knesset, em novembro de 2024, por ampla maioria, e ratificado pela Suprema Corte de Israel, que negou o apelo de organizações internacionais e de entidades defensoras dos direitos humanos, como Adalah e Gisha.
A medida impede o contato da UNRWA com autoridades israelenses e resulta na evacuação de suas equipes internacionais para a Jordânia. A decisão compromete severamente as operações humanitárias da agência, que inclui serviços de saúde e educação, impactando diretamente a população palestina.
A petição apresentada pelas organizações Adalah e Gisha argumenta que as novas leis “violam os direitos humanos fundamentais e as obrigações de Israel de acordo com o direito internacional” e terão “consequências humanitárias catastróficas”. As leis rompem também com o Acordo de Cooperação de 1967 entre Israel e a ONU, que regula as atividades da UNRWA nos Territórios Ocupados Palestinos.
A UNRWA administra 380 escolas, atendendo 340 mil estudantes palestinos, e 65 centros de saúde que oferecem atendimento gratuito. Além disso, realiza ações de segurança alimentar e ajuda em situações de crises humanitárias, como abrigos para refugiados deslocados durante os ataques a Gaza. A agência depende das autoridades israelenses para a emissão de vistos de trabalho, permissões de passagem para veículos com ajuda humanitária e coordenação para levar recursos a Gaza.
As organizações Adalah e Gisha destacam que, sem a UNRWA, “nenhum outro organismo cumpriria tais tarefas”, o que configuraria uma “violação das obrigações de Israel como potência ocupante, incluindo seu dever de priorizar o bem-estar da população local no território ocupado como uma consideração central ao exercer sua autoridade”.
A proposta da lei no Knesset foi motivada pela alegação de que 12% dos profissionais da UNRWA estariam relacionados com organizações que Israel considera terroristas, alegando que esses funcionários teriam prestado apoio durante os atos de 7 de outubro de 2023. Israel defende a dissolução da entidade e que os palestinos por ela assitidos passem para o mandato de outra agência das Nações Unidas, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR).
No entanto, a agência da ONU nega veementemente as acusações e publicou um relatório em dezembro de 2024 em seu site oficial para desmentir cada uma delas. Além do afastamento preventivo ainda em janeiro de 2024 de dez funcionários acusados de envolvimento nos ataques, a ONU designou duas comissões para investigação das acusações de Israel: uma da própria ONU e outra de um grupo independente, liderada pela ex-ministra das Relações Exteriores da França Catherine Colonna.
Em abril, o relatório da comissão liderada pela diplomata apontou que Israel não apresentou provas de suas acusações contra os funcionários da UNRWA em geral, mas fez uma série de recomendações para melhoria dos controles internos da agência. Meses depois, em agosto, a ONU anunciou a demissão formal de nove funcionários da UNRWA por suspeita de laços com o Hamas e procurou evitar que o fato representasse uma generalização em relação ao trabalho da agência.
Ainda no começo de 2024, nos dias seguintes à acusação de Israel de apoio ao terrorismo por parte da UNRWA, 16 países chegaram a suspender o repasse de recursos à agência, incluindo alguns de seus maiores doadores, como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. O impacto financeiro nas contas da agência era estimado em pelo US$ 450 milhões até outubro passado, segundo a ONU. Seis países ainda não retomaram esses repasses: Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Holanda, Áustria e Lituânia.
A proposta de Trump para Gaza
Apenas dois dias depois da entrada em vigor do veto de Israel à UNRWA nos territórios palestinos, veio a fala do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que propôs que os residentes atualmente em Gaza sejam deslocados para outros países do Oriente Médio, como Egito e Jordânia, e que Washington assumiria o território – totalmente destruído pela guerra iniciada em 7 de outubro. O republicano disse ainda que transformaria Gaza “na Riviera do Oriente Médio” – Trump fez fortuna como empresário ligado ao setor imobiliário.
Até o final do ano passado, os Estados Unidos afirmavam ser contra o deslocamento forçado de palestinos. O então presidente Joe Biden defendia a criação do Estado da Palestina e um acordo para convivência pacífica com Israel. Uma diretriz que se alterou com a volta de Trump à Casa Branca.
A lei internacional proíbe tentativas de transferência forçada de populações. Ou seja, a proposta de Trump configura expulsão e limpeza étnica dos palestinos de suas terras.
A relatora especial das Nações Unidas para os territórios ocupados, Francesca Albanese, chamou a ideia de Trump de “ilegal, imoral e completamente irresponsável”. “O que ele é propõe é absurdo. Trata-se de incitação para cometer deslocamento à força, o que configura crime internacional”, complementa a representante da ONU.
“Qualquer transferência forçada ou deportação de pessoas de território ocupado é estritamente proibida”, reforçou o Escritório de Direitos Humanos da ONU em Genebra à agência de notícias Reuters.
Em nota conjunta, os ministros das Relações Exteriores da Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Catar e Egito “rejeitaram firmemente quaisquer ações que ameacem esses direitos, incluindo expansão de assentamentos, despejos forçados, demolições de casas, anexação de terras ou deslocamento de palestinos por meio de expulsão direta, ou migração forçada”.
Países europeus como França, Reino Unido e Alemanha também rechaçaram a ideia. O Brasil seguiu a mesma linha.
A proposta de Trump foi saudada por ministros do gabinete de Benjamin Netanyahu, apoiado por grupos de extrema-direita em Israel que rejeitam qualquer tipo de diálogo em relação à Palestina. Pelo contrário, defendem uma expansão ainda maior dos assentamentos na Cisjordânia – já condenados pela comunidade internacional – e de retomada dessas instalações em Gaza.
Estudos indicam a existência de reservas de gás natural e de petróleo na costa de Gaza, o que poderia estar movivando o interesse dos Estados Unidos em ter controle sobre o território palestino.
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