Happiness Molecule, João Louro
Apresentação da obra Happiness Molecule, João Louro
30 de Julho de 2024, Dunas Golf Course | Terras da Comporta
Apresentar uma obra de arte é um exercício desafiante mas também aparentemente inútil por uma simples razão: é impossível registar em poucas palavras todas as emoções e declinações que uma obra de arte desperta em cada um de nós.
Por muito que nos queiramos colocar na pele do artista, veremos sempre a sua obra pelos nossos olhos, com as nossas circunstâncias, e acredito que o alvo procurado pelo artista raramente coincide com aquele que encontramos.
A arte tem, de facto, este poder singular de sobressaltar a nossa imaginação, de expandir o nosso campo de visão e compreensão das coisas, transportando-nos para outros mundos, colocando-nos perante o que não vivemos ou julgamos não saber, guiando frequentemente o nosso olhar para o que nunca teve o tempo ou a atenção de ver. E nem sempre esse ponto de chegada é, mais uma vez, o mesmo que foi imaginado pelo artista.
Mais árdua se torna esta tarefa quando conhecemos o artista e com ele temos uma relação de amizade e cumplicidade. Ou seja, quando julgamos saber o que ele pensa e como ele pensa e isso nos trai, intimando a simplificar o que, por natureza, é complexo.
Creio que deixei clara a exigência da missão que o José Cardoso Botelho me confiou e que muito agradeço.
Gostaria de aproveitar este momento para expressar-lhe, também, a minha admiração por ser um dos grandes empresários em Portugal mas também um dos poucos que tem a sensibilidade e a visão de entender o valor que a Arte e a Cultura acrescentam a uma projecto empresarial. E por valorizar a Arte como um espaço de liberdade face a uma sociedade intrusiva e a um Estado que, não raras vezes, incomoda e condiciona os indivíduos.
Tentarei, portanto, dizer o que penso sobre a obra de João Louro, ou melhor, o que vejo nela, sendo que não sou um crítico de arte ou um académico.
As palavras que se seguem são de alguém que acredita que a arte, apesar de operar num plano diferente da realidade, nos revela a beleza ou, pelo menos parte, da beleza das coisas e do mundo.
Toda a obra de João Louro é um incessante movimento de depuração. Não há nela espaço para o supérfluo, para o excesso. Tudo o que o artista quis dizer e transmitir, está lá na medida certa, na conta exata.
Há aqui uma vontade clara, para não dizer uma imposição, de conduzir o nosso olhar para um ponto.
Há um jogo permanente do artista com quem vê a sua obra, escondendo, suprimindo, riscando, reduzindo o campo de visão, procurando a vertigem de quem olha para o buraco da fechadura e não pelo buraco da fechadura.
Uma busca obsessiva do ‘jardim da beleza verdadeira’ de que falava Charles Baudelaire, da clareira que se revela depois de uma longa caminhada através da mais profunda escuridão.
É, então a obra de João Louro um beco sem saída, uma frase terminada que não convoca o seu espectador a encontrar nela uma nova entrada que possa conduzir a uma outra clareira, íntima e pessoal, que só ele, espectador, possa reconhecer?
Numa excelente entrevista à não menos excelente revista Pórtico, João Louro esclarece-nos: «Criar uma fissura para chegar a uma clareira, é um objectivo que persigo (…). Essa fissura, tal como a antevejo, só é possível quando o artista dá um carácter novo à obra, deixando-a por concluir e preparando-a para um acrescento de conteúdo. Esta interferência é também obra, isto é, o artista ao deixar a obra aberta na sua emissão, já não há só fruição do espectador, mas também acção (…). Isso é aceite e procurado pelo artista e cria um movimento contrário, o da diminuição do seu protagonismo a favor da importância do espectador/fazedor.»
Ou seja, não é apenas o espectador que se permite ser vítima da obra da arte, é também esta que ganha um outro sentido quando é olhada e vivida pelo espectador.
Esta tensão ou paradoxo do artista conceptual ou minimalista que deixa a porta entreaberta para uma invasão do espectador, criando um campo aberto, está muito presente na obra de João Louro.
Em História do Crime, um dicionário de 100 mil vocábulos, apresentado pelo artista numa exposição no MAAT em 2018, em que os significantes são alterados, o espectador é desafiado a apagar tudo aquilo que aprendeu, criando aquilo que poderíamos definir como uma ilusão de óptica da linguagem.
A palavra, todos sabemos, tem um papel fulcral na obra de João Louro. É nela que encontra uma força incomensurável, um poder atómico. A palavra que ele esculpe, rasura, separa, disseca como o cientista que olha para a lamela do seu microscópio.
Ao contrário de Rui Chafes, um amigo comum, que escreve segredos, queimando-os de seguida e guardando as suas cinzas em caixas de ferro, João Louro atribui à palavra, ao símbolo, ao átomo, o significado da caixa de ferro onde se guarda aquilo que é essencial e mais precioso.
No entanto, os aparentemente diferentes caminhos de João Louro e de Rui Chafes conduzem-nos, ao mesmo destino: o lugar em que a Arte se despoja de tudo o que não é essencial, em que não há espaço para adornos, mas apenas para o olhar do espectador e, se nesse olhar houver tempo superior à combustão de um fósforo, para a sua imaginação.
Chegamos, pois, à questão essencial: o que faz esta obra, esta molécula da felicidade, num campo de golfe?
O que pensou o artista quando pensou nesta associação?
A resposta óbvia é a corelação comprovada cientificamente entre a felicidade e o prazer e a prática do desporto.
Uma consulta rápida da já referida História do Crime, o tal dicionário aleatório de significantes improváveis, confirma esta teoria. Felicidade aparece aqui como significando sexta-feira, um dia que nos remete para o início do fim-de-semana e para o lazer.
Já a Serotonina, prosseguindo a consulta deste oráculo de João Louro, significa a cor do céu ao nascer e ao pôr do sol.
Mais uma vez, este exercício acerta no alvo: ninguém questiona que este maravilhoso campo de golfe propiciará momentos únicos de contemplação quando o sol nasce e quando se deita, e também no espaço que medeia entre estes momentos.
Mas tentemos outra explicação, à luz do que já dissemos sobre João Louro e sobre a sua obra. Ao criar esta peça para este lugar, ter-se-á o artista colocado na pele do jogador de golfe, caminhando solitariamente pelo campo, em busca de uma recompensa, da tacada perfeita, de uma clareira metafórica que simboliza o caminho para a felicidade? Será que nesse caminho, o jogador se despoja de todas as suas inquietações e sobressaltos da vida quotidiana e encontra um momento de introspeção e reflexão que tem andado arredado da sua vida?
É esse também o papel da Arte. O de nos levar a outros lugares. E, se há um elogio que possamos fazer à obra de João Louro, e podemos fazer muitos, é a de nos conduzir a esse caminho de introspecção, tornando-nos o jogador de golfe que caminha pelo ’green’ em busca da jogada perfeita.
Eis-nos, pois, no papel de jogador de golfe, perante a obra de arte de João Louro, questionando se o que vemos são os átomos que constituem a molécula da felicidade ou as bolas de golfe que batemos e se levantam no ar. Ou se são ambas, símbolo e acção, palavra e os múltiplos sentidos que lhe atribuímos, evidenciando aquilo que a Arte traz à nossa vida: a felicidade de ver além do que o olhar permite.
Suspeito que João Louro conhece e concordará com as palavras de um outro artista, Lawrence Weiner: «A realidade na existência de um artista é questionar as respostas».
Porque é exatamente isso que, em síntese, o artista nos propõe neste campo de golfe: que o jogo prossiga no ‘green’, mas, também, entre a obra e o espectador, colocando perguntas e questionando respostas.
Provando, se necessário fosse, que a Arte pode e deve estar em múltiplos lugares.
E por que não num campo de golfe?
Miguel Coutinho