Mecanismos internos (ensaios sobre literatura), Coetzee
Copyright © 2007 by J. M. Coetzee
Copyright da introdução © Derek Attridge
                                                                                          Sumário
Todos os direitos reservados.

Tradução publicada mediante acordo com Peter Lampack Agency,
Jnc. 551 Fifth Avenue, Suite 1613, New York, NY 10176-0187, Estados Unidos.

Grafia atualizada            segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Jnller workillgs - Literary Essays 2000-2005

Capa
Kiko Farkas e Thiago Lacaz/ Máquina Estúdio

Preparação
Cados Alberto B,írbaro

Revisão
Erika Nakahata
Camila Saraiva


                                                                                          Créditos                                           7
      Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)                             Introdução                                         9
               (Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Coelzee, J. M.
    Mecanismos internos: ensaios sobre literatura (2000-2005) /                            1.   Italo Svevo                                 17
J. M. Coelzee ; inlrodução Derek Allridge ; tradução Sergio
Flaksman. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011.                                         2. Robert Walser                                 33
       Título original: Inner workings - Literary Essays 2000-20°5                        3. Robert Musil, O jovem Türless                  51
       Bibliografia
       ISBN   978-85-359-1808-3                                                           4- Walter Benjamin, Passagens                     62

       }. Literatura - História e crítica   I.   Attridge, Derek.   11.   Título.         5. Bruno Schulz                                   9°
                                                                                          6. Joseph Roth, os contos                        106
1l-00209                                                              CDD-809

                                                                                          7. Sándor Márai                                  122
Índice para catálogo sistemático:
1.   Literatura: História e crítica          809                                          8. Paul Celan e seus tradutores                  144
                                                                                           9. Günter Grass e o Wilhelm Gustloff            165
                                                                                          10. W. G. Sebald, After Nature                   180
[20n]
Todos os direitos desta edição reservados à                                               11.   Hugo Claus, poeta                          193
EDITORA               SCHWARCZ        LTDA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32                                                        12. Graham Greene, O condenado [Brighton Rock]   198
°4532-002         -    São Paulo -      SP                                                13. Samuel Beckett, os contos                    2°9
Telefone (n) 37°7-35°0
                                                                                          14- Walt Whitman                                 214
Fax (n) 37°7-35°1
www.companhiadasletras.com.br                                                             15.   William Faulkner e seus biógrafos          231
16. Saul Bellow, os primeiros romances                 251   Créditos
17. Arthur Miller, Os desajustados                     268
18. Philip Roth, Complâ contra a América               274
19· Nadine Gordimer          ,                         293
20. Gabriel García Márquez, Memórias de minhas putas
   tristes                                             308
21. V. S. Naipaul, Meia vida                           324


Notas                                                  347




                                                                 O ensaio sobre Arthur Miller foi publicado originalmente
                                                             em Writers atthe Movies [Escritores no cinema]' org. Jim She-
                                                             pardo Nova York: HarperCollins, 2000.
                                                                  O ensaio sobre Robert Musil foi publicado originalmente
                                                             como introdução a The Confusions ofYoung Torless [As confu-
                                                             sões do jovem Ti;irless]' trad. Shaun Whiteside. Londres: Pen-
                                                             gUIn, 2001.
                                                                  O ensaio sobre Graham Greene foi publicado originalmen-
                                                             te como introdução a Brighton Rock. Nova York: Penguin, 2004-
                                                                  O ensaio sobre Samuel Beckett foi tirado da introdução ao
                                                             quarto volume de Samuel Beckett: The Grave Centenary Edition.
                                                             Nova York: Grove, 2006.
                                                                  O ensaio sobre Hugo Claus foi publicado originalmente co-
                                                             mo apresentação à edição em brochura de Hugo Claus, Greetíngs:
                                                             Selected Poems, trad. John Irons. Nova York: Harcourt, 2006.
                                                                  Todos os demais ensaios foram originalmente publicados na
                                                             New York Review of Books.



                                                                                                                     7
Introdução




     Por que razão alguém pode sentir-se atraído pela leitura de
uma coletânea de resenhas de livros e apresentações      literárias
de um escritor conhecido acima de tudo por sua ficção? Os ro-
mances de   J.   M. Coetzee conquistaram   aclamação em todo o
planeta; dois deles receberam o Booker Prize, e foi por sua obra
de ficcionista que conquistou o prêmio Nobel de literatura em
2003. Alguns de seus livros combinam ficção e não ficção, e ele
emprega com frequência uma persona fictícia -       especialmen-
te uma escritora australiana chamada Elizabeth Costello - para
abordar certas questões importantes do momento atual. Em Me-
canismos internos, contudo, ele nos fala com sua própria voz, dan-
do prosseguimento a uma prolífica carreira de resenhista e críti-
co que já resultou na publicação de três coletâneas de ensaios.
     Existem dois incentivos óbvios para nos voltarmos da ficção
para a prosa crítica: a esperança de que estes textos mais diretos
possam lançar alguma luz sobre seus romances muitas vezes oblí-
quos, e a convicção de que um escritor que em suas obras imagi-
nativas se mostra capaz de penetrar até o cerne de tantas ques-

                                                            9
tões urgentes deve ter muito a oferecer quando escreve, por assim         te convidado a refletir sobre cada uma delas por vez, o leitor deste
dizer, com a mão esquerda. Em especial, há sempre o interesse             volume é estimulado a vê-Ias em relação umas com as outras.
em ver como um escritor de primeira linha trata os seus pares,                  A maioria dos capítulos que se seguem apresenta um re-
comentando não como um crítico de fora mas na qualidade de                trato do artista como o contexto para o livro ou os livros em dis-
alguém que trabalha com as mesmas matérias-primas. Há far-                cussão, que tomados em conjunto ilustram com riqueza de deta-
tos indícios de que a segunda expectativa tende a ser atendida. A         lhes a variedade e a imprevisibilidade das vidas dos escritores do
obra não ficcional e semificcional de Coetzee, encarada em seu            século xx. (Há entre eles um escritor do século XIX, Walt Whit-
conjunto, representa uma contribuição substancial e significati-          man, poeta fora do seu tempo mas ao mesmo tempo muito re-
va à discussão permanente sobre o lugar da literatura na vida dos         presentativo.) Os primeiros sete - !talo Svevo, Robert Walser,
indivíduos e das culturas. As entrevistas e os ensaios publicados         Robert Musil, Walter Benjamin, Bruno Schulz, Joseph Roth e
em Doubling the Point [Voltando ao ponto], os estudos sobre a             Sándor Márai - formam um aglomerado com lImitas inter-re-
literatura sul-africana e a censura em White Writing [Escrita bran-       lações: todos nasceram na Europa no final do século XIX e viven-
ca] e Giving Offense [Ofendendo], e as "lições" de Elizabeth Cos-         ciaram, na juventude ou na meia-idade, as reviravoltas da Pri-
tello investigam, entre muitos outros tópicos, a relação entre a          meira Guerra Mundial, tendo muitos deles ainda atingido, ou
arte e a política, a continuidade entre o estético e o erótico, as res-   atravessado, também a Segunda Guerra Mundial. Apesar das dis-
ponsabilidades do escritor e o potencial ético da ficção. O fato de       paridades de suas origens nacionais e étnicas (italiana, suíça, po-
os romances e memórias de Coetzee apresentarem questões se-               lonesa, galiciana e húngara), das diferentes línguas em que es-
melhantes é testemunho da integridade e da persistência de sua            creveram e das trajetórias muito diversas de suas biografias, há
concepção do papel do artista.                                            entre eles conexões claramente perceptíveis. Todos sentiram a ne-
     Em 2001 Coetzee publicou Stranger Shores [Margens estra-             cessidade de explorar, na ficção, a extinção do mundo em que
nhas], uma coletânea de ensaios datados de 1986 a 1999, em sua            tinham nascido; todos registraram as ondas de choque do novo
maioria publicados originalmente na New York Review ofBooks.              mundo que emergia. Suas origens burguesas não os isentaram das
Continuou a escrever regularmente para o mesmo periódico, e               tribulações do exílio, da destituição e, às vezes, da violência pes-
este livro é novamente composto quase todo de resenhas produ-             soal. Quatro deles eram judeus, e dois morreram em decorrên-
zidas segundo os padrões da revista, generosos e estritos ao mes-         cia da perseguição nazista. (Entre os sete, a única exceção a esse
mo tempo, juntamente com uma seleção de outros ensaios escri-             padrão é um dos judeus: !talo Svevo, que permaneceu arraiga-
tos quase sempre como introdução à reedição de obras literárias.          do em Trieste até a morte. O rumo diferente da sua vida pode ser
Embora os capítulos desses dois livros ostentem a aparência do            parcialmente explicado pelo fato de ter morrido em 1928; como
artigo ocasional, eles dão continuidade, num outro plano, à inves-        nos conta Coetzee, a viúva de Svevo passou escondida os anos da
tigação de Coetzee sobre o lugar e a finalidade da literatura - e,        guerra, e o neto dos dois, escondido com ela, acabou fuzilado
não se pode deixar de enfatizar, sobre seus prazeres, além dos seus       pelos nazistas em 1945.) O que emerge desse conjunto de ensaios
desafios. Enquanto o leitor das resenhas originais era basicamen-         é uma Europa em transição dolorosa, e uma série de obras lite-

     10                                                                                                                                11
rárias cuja originalidade   é vista corno a resposta necessária do   claramente o compromisso de Coetzee tanto com a arte quanto
artista a mudanças de tamanho alcance. Urna figura óbvia está        com a ética quando ele apresenta, ao final do capítulo sobre o
ausente (embora seja mencionado em conexão com vários dos            filme, um comentário especialmente revelador sobre a diferença
escritores abordados): Franz Kafka, cujas obras parecem apre-        entre a imagem fotográfica e a representação literária: os cavalos
sentar de forma concentrada muitas das paixões e dos percalços       selvagens cercados no filme estavam de fato aterrorizados.
explorados de maneira mais extensa por esses sete escritores.             O próprio Coetzee costuma ser visto corno um escritor nem
     Num segundo grupo, somos levados da crise da metade do          europeu nem americano: passou quase toda a vida de escritor na
século XX na Europa para o período que a sucedeu. Nesses estu-       África do Sul, e metade dos seus romances transcorre nesse país.
dos sobre Paul Celan, Günter Grass, W. G. Sebald e Hugo Claus        Hoje mora na Austrália, e um de seus romances mais recentes,
torna-se mais difícil discernir um padrão comum, na medida em        Homem lento, é ambientado em sua cidade adotiva, Adelaide.
que as histórias tanto nacionais quanto individuais divergem de      Os últimos três escritores da coletânea têm origens igualmen-
maneira mais acentuada, embora a sombria história recente da         te não metropolitanas, e também foram agraciados com o reco-
Europa permaneça um ponto ele referência constante.                  nhecimento mundial na forma do Prêmio Nobel de Literatura:
    A segunda metade do livro, Coetzee dedica basicamente            Nadine Gordimer, Gabriel García Márquez e V. S. Naipaul.
a obras em inglês. (Corno relata em Infância, foi criado falan-      Aqui, Coetzee assesta o foco em obras determinadas, em vez de
do inglês corno primeira língua, embora seus pais falassem o         enquadrar a vida dos autores: lemos estes seus ensaios não corno
africânder; também se sente à vontade com o holandês e o ale-        urna avaliação feita em retrospecto, mas corno expressão do seu
mão, corno sugerem seus comentários        sobre obras nessas lín-   compromisso com os contemporâneos.        Coetzee espera que sua
guas.) A atenção de Coetzee é capturada pela intensidade mo-         própria ficção seja avaliada à luz dos mesmos padrões de rigor
ral de Graham Greene, pela intensidade existencial de Samuel         que aqui aplica aos outros.
Beckett e pela intensidade homoerótica de Walt Whitman. E o              Ninguém poderia imaginar depois de ler apenas seus ro-
estudo sobre Whitman conduz a outro grupo, dessa vez de es-          mances, mas Coetzee é um resenhista ideal. Parece ter lido tudo
critores americanos, que tiveram dificuldades e oportunidades        que é relevante sobre o seu terna, muitas vezes inclusive os livros
de criação totalmente diversas das dos europeus. A biografia de      mais obscuros da obra de um autor; escreve com familiaridade
Faulkner, e as biografias escritas sobre Faulkner, são o terna de    fluente sobre o pano de fundo histórico, cultural e político, seja
outro capítulo, e a história dos anos desperdiçados escrevendo ro-   ele o Império Austro-Húngaro ou o Sul dos Estados Unidos; e
teiros por encomenda em Hollywood parece muito diversa da luta       ainda se dá à pachorra de resumir os enredos para que os leitores
para escrever contra um pano de fundo de nações em guerra. Nos       mais ocupados possam descobrir "o que acontece" da maneira
primeiros romances de Saul Bellow, no filme Os desajustados,         menos trabalhosa. Pouco se percebe do romancista de folga: os
de Arthur Miller e John Huston, e na fantasia histórica de Philip    floreios literários são poucos, e não se nota nenhum sinal daque-
Roth Complô contra a América, ternos mais três versões sem re-       la voz interna antes rabugenta que marca boa parte da ficção
toques dos Estados Unidos no século xx. É possível perceber          recente de Coetzee. (Podemos sentir, no entanto, a solidarieda-

     12                                                                                                                          13
de que lhe inspira a luta do escritor para manter-se fiel à sua vo-    moestava seu colega romancista por não ter se posto a serviço
cação apesar de tudo.) Coetzee não hesita em emitir julgamen-         . das demandas éticas e políticas da África do Sul daquela época.
tos, mas é um leitor generoso, aberto a uma ampla variedade de          Coetzee, que se manifestou ele próprio em tom severo em ava-
temas e estilos.                                                       liações anteriores da obra de Gordimer, mostra-se aqui generoso
      E quanto ao segundo motivo para ler estes ensaios, as possí-     ao reconhecer a busca da justiça como o princípio constante e
veis revelações sobre a obra ficcional do próprio Coetzee? Será        supremo da escritora; e ao assinalar que O engate, que ele classi-
que o leitor deste livro, voltando aos seus romances, irá desco-       fica de "um livro extraordinário", introduz uma nota espiritual
brir que de alguma forma se modificaram? Um efeito pode ser            inédita na obra da autora, parecendo recebê-Ia num campo em
descobrir oquanto lhe é inadequado o rótulo de escritor "sul-afri-     que já transitava, nem sempre com conforto, havia algum tem-
cano" (ou, nos dias que correm, "australiano"): a criação de Coet-     po. Pois, se existem vislumbres de transcendência nos romances
zee se dá a partir de um rico diálogo com escritores de várias         de Coetzee, eles não são sugestões de uma justiça possível, mas de
tradições. Em especial, seu fascínio evidente pelos romancistas        uma justiça animada, além de posta à prova, por uma deman-
europeus da primeira metade do século XX sugere que, embora            da mais obscura ainda, que a definição de "espiritual" se limita
jamais tenha morado na Europa continental, ele é, visto de certo       a indicar - uma demanda já prenunciada, desde Dostoiévski,
ângulo, um escritor profundamente europeu. Igualmente óbvio            por seus formidáveis antecessores europeus.
é seu interesse profundo pelas mais minuciosas questões da lin-
guagem: os ensaios sobre os escritores que não escreveram ori-                                                           Derek Attridge
ginalmente em inglês sempre trazem um exame detalhado do
ofício dos tradutores. E, para dar o exemplo de uma conexão mais
específica, os leitores de Infância ficarão intrigados com os co-
mentários sobre a criação de um alter ego autobiográfico por
Philip Roth em Complô contra a América.
     Entretanto, muitos leitores à procura de pistas sobre a cria-
ção literária do próprio Coetzee ficarão tentados a debruçar-se
sobre o único capítulo dedicado a outra romancista da África do
Sul, seus comentários ao romance O engate, escrito por Nadine
Gordimer em 2001. O questionamento       que Coetzee faz a Nadi-
ne Gordimer só pode ser lido como uma pergunta que também
coloca para si próprio: "Que papel histórico está disponível para
uma escritora como ela, nascida numa comunidade colonial tar-
dia?". Nadine Gordimer escreveu uma conhecida resenha sobre
Vida e época de Michael K, romance de Coetzee, em que ad-

    14                                                                                                                            15
1.   Italo Svevo




     Um homem -       um homem imenso, ao lado do qual você
se sente muito pequeno - decide convidá-Io para conhecer suas
filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro,
todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com
Z. Você vai visitá-Ias em casa e tenta travar uma conversa civili-
zada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua
boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são re-
cebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura pa-
lavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se
acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos
estrábicos. Você se apoia descuidado    em seu guarda-chuva;     o
guarda-chuva se parte ao meio; todos riem.
     Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que,
nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpre-
tá-Ios, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando
muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata
de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de
A consciência de Zeno, romance de Halo Svevo (1861-1928). Se

                                                           17
Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na me-          ticos alemães. Não obstante as vantagens que seu aprendizado
    dida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é reple-          alemão podia trazer a seus negócios no Império Austro-Húngaro,
    ta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usan-        acabaram por privá-Io de uma formação literária italiana.
    do como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação            De volta a Trieste, Svevo matriculou-se aos dezessete anos
    com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana,          no Instituto Superiore Commerciale. Seus sonhos de tornar-se
    ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas des-       ator tiveram fim quando foi recusado num teste devido à sua
    critas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud          elocução defeituosa do italiano.
    quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charu-                    Em 1880, Schmitz pai sofreu reveses financeiros e seu filho
tos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significa-          1   precisou interromper os estudos. Obteve um emprego na filial
dos secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas                em Trieste do Unionbank de Viena e, pelos dezenove anos se-
um cachimbo?
                                                                            guintes, trabalhou no banco. Fora do expediente, lia os clássicos
                                                                            italianos e a vanguarda europeia em geral. Zola tornou-se o seu
    "Italo Svevo" (Italo, o Suevo) é obviamente um pseudôni-                ídolo. Frequentava salons artísticos e escrevia para um jornal sim-
mo. O nome original de Svevo era Aron Ettore Schmitz. Seu avô               pático ao nacionalismo italiano.
paterno era um judeu vindo da Hungria e estabelecido em Tries-                   Entre os trinta e os quarenta anos, tendo experimentado      o
te. Seu pai começou a vida como mascate e acabou como um                    sabor de publicar um romance (Una vita, 1892 [Uma vida]) por
bem-sucedido comerciante de artigos de vidro; sua mãe vinha de              conta própria e vê-Io ignorado pelos críticos, e prestes a repetir a
uma família judaica de Trieste. Os Schmitz eram judeus pra-                 experiência com Senilidade (1898), Svevo casou-se com uma re-
ticantes, mas de observância não muito rígida. Aron Ettore ca-              presentante da proeminente família Veneziani, proprietários de
sou-se com uma convertida ao catolicismo, e por pressão dela aca-           um estabelecimento que revestia cascos de navios com uma subs-
bou se convertendo ele também (um tanto a contragosto, vale                 tância patenteada que retardava a corrosão e impedia o cresci-
dizer). A breve autobiografia publicada sob seu nome num mo-                mento de cracas. Svevo foi admitido na empresa, onde era en-
mento posterior da vida, quando Trieste se tornara parte da Itália          carregado da preparação da tinta a partir de uma fórmula secreta
e a Itália se tornara fascista, é bastante vaga quanto a seus ante-         e supervisionava os demais funcionários.
cedentes judaicos e não italianos. As memórias que sua mulher                    Os Veneziani já eram contratados por várias forças navais
Livia publicou a seu respeito - com uma certa tendência hagio-              de todo o mundo. Quando o Almirantado Britânico assinalou
gráfica, embora plenamente legíveis - são igualmente discretas              seu interesse, apressaram-se em abrir uma representação em Lon-
na matéria.' Em seus escritos, não se encontram personagens ou              dres, gerenciada por Svevo. Para aperfeiçoar seu inglês, Svevo
temas abertamente judaicos.                                                 teve aulas com um irlandês chamado James Joyce, que leciona-
        O pai de Svevo -   uma influência dominante em sua vida             va no curso Berlitz de Trieste. Depois do fracasso de Senilida-
-     mandou os filhos para um colégo interno de comércio na Ale-       f
                                                                        I   de, desistira de escrever a sério. Agora, porém, no novo professor,
manha, onde em suas horas vagas Svevo mergulhou nos român-                  encontrou alguém que gostava dos seus livros e entendia as suas

        18                                                                                                                               19
intenções. Animado, retomou o que chamava de suas garatujas,       mo uma espécie à parte, coexistindo às turras com os tipos sau-
 embora só voltasse a publicar alguma coisa na década de 1920.      dáveis e irreflexivos que poderiam ser definidos como os "mais
                                                                    aptos" do jargão darwiniano.    Com Darwin -       lido através de
      Predominantemente    italiana em sua cultura, a Trieste dos   uma lente schopenhaueriana      -   Svevo manteve uma teimosa
 tempos de Svevo ainda assim fazia parte do império dos Habs-       implicância a vida inteira. Seu primeiro romance pretendia tra-
 burgo. Era uma cidade próspera, o principal porto marítimo de      zer no título uma alusão a Darwin: Un inetto, "um inepto", ou
 Viena, onde uma classe média esclarecida tocava uma econo-         "mal-adaptado". Mas seu editor foi contrário, e ele acabou esco-
mia baseada na navegação, nos seguros e nas finanças. A imigra-     lhendo o bem mais inexpressivo Una vita. Num estilo exemplar-
ção levara para lá gregos, alemães e judeus; o trabalho braçal      mente naturalista,   o livro acompanha   a história de um jovem
era feito por eslovenos e croatas. Em sua heterogeneidade, Tries-   bancário que, quando finalmente se vê obrigado a admitir que
te era um microcosmo de um império etnicamente variado em           sua vida é desprovida de qualquer desejo ou ambição, toma a pro-
que eram cada vez maiores as dificuldades para manter sob con-      vidência correta do ponto de vista evolucionário, e se suicida.
trole inúmeros ressentimentos interétnicos. Quando esses ódios           Num ensaio posterior, intitulado "O homem e a teoria dar-
explodiram, em 1914, o império mergulhou na guerra, arrastan-       winiana", Svevo mostra Darwin por um viés mais otimista, que
do a Europa consigo.                                                acaba conduzindo às páginas de Zeno. Nossa sensação de nunca
     Embora acompanhassem Florença nas questões culturais,          estarmos à vontade no mundo, sugere ele, resulta de um certo
os intelectuais triestinos tendiam a mostrar-se mais abertos às     inacabamento da evolução humana. Para fugir a essa triste con-
correntes do norte que seus equivalentes   da Itália. No caso de    dição, há os que tentam adaptar-se a seu meio. Outros preferem
Svevo, primeiro Schopenhauer e Darwin, e mais tarde Freud, des-     o contrário. De fora, os inadaptados podem parecer formas rejei-
tacam-se como as principais influências filosóficas.                tadas pela natureza, mas, paradoxalmente, podem mostrar-se mais
     Como qualquer bom burguês do seu tempo, Svevo preo-            aptos que seus vizinhos bem-adaptados      para enfrentar o que o
cupava-se muito com sua saúde: o que constituiria a boa saú-        futuro imprevisível possa nos trazer.
de, de que modo podia ser adquirida, e como mantê-Ia? Em sua
obra, a saúde acabou assumindo uma ampla gama de sentidos,                A língua de casa de Svevo era o triestino, uma variante do
indo do físico e do psíquico ao social e ético. De onde vem a       dialeto veneziana. Para tornar-se escritor, ele precisava dominar
sensação insatisfeita, própria da humanidade, que nos diz que       o italiano literário, baseado no dialeto toscano. Mas jamais alcan-
não estamos bem e de que tanto desejaríamos ver-nos curados?        çou o domínio que almejava. Para aumentar suas dificuldades,
E essa cura, será possível? E se nos obrigar a nos conformarmos     tinha pouca sensibilidade para as qualidades estéticas da lingua-
com a maneira como as coisas são, será essa cura necessariamen-     gem, e especialmente nenhum ouvido para a poesia. Arreliava
te uma coisa boa?
                                                                    seu amigo, o jovem poeta Eugenio Montale, dizendo que lhe pa-
      Aos olhos de Svevo, Schopenhauer foi o primeiro filósofo a    recia um desperdício usar apenas uma parte da página em bran-
tratar as pessoas acometidas do mal do pensamento reflexivo co-     co quando pagara por toda ela. P. N. Furbank, um dos melhores

    20                                                                                                                          21
tradutores de Svevo [para o inglês], rotula sua prosa de "uma       escrever em italiano. [... ] Com cada palavra toscana que em-
 espécie de italiano 'comercial', quase um esperanto - uma lin-      pregamos, nós mentimos!") Aqui, Svevo trata a passagem de um
 guagem bastarda e desgraciosa, totalmente desprovida de poesia      dialeto a outro, do triestino em que foi alfabetizado ao italiano
 ou ressonância".2 Logo depois do seu lançamento, Una vita foi       em que escrevia, como inerentemente traiçoeira (traditore tra-
 criticado por seus erros gramaticais, por seu uso indiscriminado    duttore). Só em triestino ele podia dizer a verdade. A questão que
do dialeto e pela pobreza geral da sua prosa. E muito foi dito na    tanto os não italianos quanto os italianos devem ponderar é se
mesma linha sobre Senilidade. Quando Svevo ficou famoso, e           existiriam de fato verdades triestinas que Svevo sentia jamais con-
Senilidade foi, pois, reeditado, ele concordou em reler o texto      seguir traçar na página em italiano.
e corrigir seu italiano, mas sem aplicar muito esforço à tarefa.
De si para si, parecia duvidar de que meras alterações editoriais         A origem de Senilidade foi um caso amoroso que Svevo man-
pudessem produzir algum efeito.                                      teve em 1891-2 com uma jovem, como diz delicadamente um
     Até certo ponto, a controvérsia quanto ao domínio do italia-    dos seus críticos, de profissão indeterminada, que mais tarde se
no por Svevo pode ser ignorada como uma questão que só in-           transformaria   em equestrienne de circo. No livro, ela se chama
teressa aos italianos, irrelevante para estrangeiros que o leem em   Angiolina. Emilio Brentani, o protagonista, vê Angiolina como
tradução. Para o tradutor, porém, o italiano de Svevo coloca uma     uma inocente que ele irá instruir nos aspectos mais sutis da vida
substancial questão de princípio. Será que seus defeitos, numa ga-   enquanto ela, em contrapartida, irá dedicar-se ao seu bem-estar.
ma que vai do uso de preposições erradas ao emprego de um fra-       Mas é Angiolina quem, na prática, dá as lições; e a iniciação que
seado arcaico ou livresco e a um estilo em geral laborioso, devem    ela proporciona a Emilio nas evasões e nas baixezas da vida eró-
ser reproduzidos ou corrigidos em silêncio? Ou, para formular        tica bem valeria o dinheiro que ela o faz gastar a rodo, não esti-
a questão na forma inversa, como é que, sem lançar mão de uma        vesse ele envolvido demais no autoengano da sua fantasia para
prosa deliberadamente truncada, o tradutor poderá transmitir         absorvê-Ia devidamente. Anos depois de Angiolina ter fugido com
uma ideia do que Montale chama de "esclerose" do mundo de            um escriturário de banco, Emilio irá relembrar o tempo que pas-
Svevo, impregnada em sua própria linguagem?                          sou com ela filtrando-o por uma névoa rosada (Joyce sabia de cor
     Svevo não era indiferente ao problema. Sua recomendação         as maravilhosas últimas páginas do livro, banhadas em clichês
ao tradutor de Zeno para o alemão foi traduzir seu italiano por      românticos e ironia impiedosa, e chegou a recitá-Ias para Svevo).
um alemão gramaticalmente correto, mas sem embelezar ou me-          A verdade é que esse caso amoroso fora senil desde o início, no
lhorar seu texto.
                                                                     sentido único que Svevo dá à palavra: nada tinha de juvenil ou vi-
      Svevo costumava definir o triestino, em tom de desprezo,       tal, mas antes subsistindo desde o início graças à mentira egoísta.
como um dialettaccio, um dialeto menor, ou uma linguetta, uma              Em Senilidade, o autoengano é um estado da existência deli-
sublíngua, mas não estava sendo sincero. Muito mais convin-          berado mas não reconhecido. A ficção que Emilio constrói para si
cente é Zeno quando deplora que os estrangeiros "não sabem o         mesmo quanto a quem ele é, quanto a quem é Angiolina e quan-
que representa para aqueles de nós que falam dialeto [il dialetto]   to ao que os dois fazem juntos é ameaçada pelo fato de Angiolina

    22
                                                                                                                                23
dormir promiscuamente     com outros homens e mostrar-se incom-      a fim de livrar-se da "infamia" (a desonra, mas também o horror)
petente, indiferente ou maliciosa demais para escondê-Ia. Ao la-     do toque desse homem, mergulha imediatamente        na cama com
do de A sonata Kreutzer e No caminho de Swann, Senilidade é          outro. O texto de Svevo quase não é metafórico: com um segun-
um dos grandes romances do ciúme sexual masculino, explo-            do ato sexual Angiolina tentaria limpar-se ("nettarsí") dos vestí-
rando o repertório técnico legado por Flaubert a seus sucessores     gios que Volpini deixara nela. De Zoete omite a limpeza: Angio-
para entrar e sair da consciência de uma personagem com um           lina "busca refugiar-se daquele enlace infame".4
mínimo de incômodo e emitir juízos sem parecer fazê-Io. A ma-             Noutros pontos, De Zoete simplesmente elide ou sinteti-
neira como Svevo mostra as relações entre Emilio e seus rivais é     za trechos que -   com ou sem razão -     julga não terem contri-
especialmente perceptiva. Emilio quer e ao mesmo tempo não           buição para o sentido do texto, ou serem coloquiais demais para
quer que seus amigos cortejem sua amante; quanto mais clara-         funcionarem em inglês. Também acontece de superinterpretar,
mente consegue visualizar Angiolina com outro homem, mais            acrescentando o que ela acha estar acontecendo entre as per-
intensamente ele a deseja, a ponto de chegar a desejá-Ia porque      sonagens quando o próprio original se cala. As metáforas comer-
ela esteve com outro homem. (A presença de correntes homos-          ciais que caracterizam a relação entre Emilio e as mulheres às
sexuais no triângulo do ciúme foi evidentemente    assinalada por    vezes se perdem. Numa ocasião, De Zoete interpreta o sentido
Freud, mas só anos depois de Tolstói e Svevo.)                       de uma delas de maneira catastroficamente errada, atribuindo a
     As traduções-padrão [para o inglês] de Senilidade e Zeno        Emilio a decisão de forçar Angiolina a uma relação sexual ("ele
são até aqui as de Beryl de Zoete, uma britânica de ascendên-        a possui"), quando o protagonista só pretendia esclarecer quem
cia holandesa e conectada ao grupo de Bloomsbury cuja faceta         seria seu proprietário ("ele é seu possuidor").
mais famosa é ter sido uma das pioneiras mundiais no estudo da            A nova tradução de Senilidade, de autoria de Beth Archer
dança balinesa. Na apresentação da sua nova tradução de Zeno,        Brombert, constitui um avanço considerável. Invariavelmente,
William Weaver discute as soluções de De Zoete e sugere, com         recupera as metáforas submersas que De Zoete prefere ignorar.
a delicadeza possível, que bem pode ter chegado a hora de tirá-Ias   Seu inglês, embora claramente datado do final do século xx, tem
de circulação.                                                       uma formalidade que reflete de certa forma uma era anterior. Se
     A tradução de Senilidade publicada por De Zoete em 1932,        alguma crítica pode ser feita é que num esforço excessivo para
com o título As a Man Grows Older [Enquanto um homem en-             mostrar-se atualizada ela emprega expressões que tendem a enve-
velhece], é particularmente datada. Senilidade fala muito de sexo;   lhecer em pouco tempo.5
o sexo usado como arma na batalha entre os sexos, o sexo como             Os títulos de Svevo sempre representaram     uma dor de ca-
mercadoria negociada. Embora sua linguagem nunca seja exa-           beça para seus tradutores e editores. Como título, Una vita é
tamente imprópria, Svevo tampouco pisa em ovos em torno da           simplesmente banal. Por recomendação de Joyce, Senilidade
questão. A versão de De Zoete, porém, é de um decoro excessi-        foi lançado em inglês com o título As a Man Grows Older, em-
vo. Por exemplo, Emilio pensa nos feitos sexuais de Angiolina e      bora o romance nada tenha a ver com o envelhecimento. Beth
imagina que ela deixa a cama do rico mas repulsivo Volponi, e,       Brombert reverte a um título de trabalho anterior, Emilio's Car-

    24                                                                                                                          25
nival [A orgia de Emilio], apesar de na edição revista em italiano        cia como industrial à Confederação      Fascista das Indústrias. E
Svevo se ter recusado a abrir mão de Senilidade: "Eu teria a sen-         sua mulher foi participante ativa do "Fascio das Mulheres"J
sação de estar mutilando o livro ... Esse título foi o meu guia, era           Se ficou moralmente    comprometido     devido à sua associa-
ele que me orientava".fi                                                  ção com os Veneziani, Svevo/Schmitz pelo menos não escondia
                                                                          isso de si mesmo, a julgar pelo que escrevia. Basta lembrar do
     A carreira literária de Svevo se estende por quatro décadas          velho do conto "La novella deI buon vecchio e della bella fan-
turbulentas da história de Trieste, mas ainda assim muitíssimo            ciulla" [A história do bom velho e da moça bonita]' escrito em
pouco dessa história se reflete, direta ou indiretamente,      em sua     1926 mas ambientado    durante a Primeira Guerra: "Todos os si-
obra ficcional. A partir do que contam os dois primeiros livros,          nais da guerra lhe lembravam, dolorosamente, que, graças a ela,
ambientados na Trieste da década de 1890, jamais se poderia               ele ganhava tanto dinheiro. A guerra lhe trouxera riqueza e hu-
imaginar que àquela época a classe média italiana de Trieste vi-          milhação ... Já estava acostumado ao remorso causado por seu
via entregue a uma febre típica do Risorgimento, reivindicando            sucesso nos negócios, e continuava ganhando dinheiro a despei-
a união com a pátria-mãe. E, embora as confissões de Zeno te-             to do seu remorso".8
nham sido supostamente escritas durante a guerra de 1914-8, o                 A atmosfera moral desse texto tardio pode ser mais sombria,
conflito só vai lançar alguma sombra sobre a obra em suas últi-           e a autocrítica, mais corrosiva, do que encontramos no essencial-
mas páginas.                                                              mente cômico Zeno, mas isso é apenas uma questão de grau de
     Graças aos contratos com o governo de Viena, a família Ve-           sombra ou potencial de corrosão. De Sócrates a Freud, a filoso-
neziani ganhou muito dinheiro com a guerra. Ao mesmo tempo,               fia ética do Ocidente subscreveu ao Conhece-ti a ti mesmo délfi-
seus membros apresentavam-se em Trieste como irredentistas                co. No entanto, de que serve conhecer a si mesmo se, seguidor
apaixonados, partidários da incorporação ao solo italiano de to-          do caminho apontado por Schopenhauer, um indivíduo acre-
dos os territórios sob domínio estrangeiro. John Gatt-Rutter, bió-        dita que o caráter se baseia num substrato de vontade, e duvida
grafo de Svevo, classifica essa atitude de "farsa hipócrita", e acredi-   que a vontade queira mudar?
ta que o próprio Svevo foi no mínimo conivente com a encenação.
Gatt-Rutter critica acerbamente as posições políticas de Svevo                 Zeno Cosini, o herói do terceiro romance de Svevo, sua
durante a guerra e depois da tomada do poder pelos fascistas em           obra-prima da maturidade, é um homem de meia-idade, confor-
1922. Como muitos triestinos da classe alta, os Veneziani apoia-          tavelmente casado, próspero, ocioso, vivendo de uma renda que
ram Mussolini. O próprio Svevo parece ter acatado o novo regime           recebe do negócio fundado por seu pai. Por um capricho, a fim
de um modo que Gatt-Rutter define como "de perfeita má-fé",               de ver se consegue curar-se de seja lá qual for o seu problema,
considerando o fascismo um mal menor que o bolchevismo. Em                submete-se à psicanálise. Preliminarmente, seu terapeuta, o dr. S.,
1925, na pessoa de Ettore Schmitz,  ele aceitou uma comenda               pede-lhe que escreva suas memórias da maneira como lhe ocor-
menor do Estado pelos serviços que prestou à indústria nacional.          rerem. Zeno obedece, produzindo cinco capítulos da extensão
Embora nunca se tenha tornado um fascista de carteira, perten-            de um conto cada, cujos temas são: o fumo; a morte do seu pai;

     26                                                                                                                              27
seu namoro; um dos seus casos amorosos; uma das suas socieda-        Zeno tem dúvidas quanto aos poderes terapêuticos da psicanáli-
des comerciais.
                                                                    . se, assim como tem suas dúvidas diante da própria ideia da cura;
      Decepcionado com o dr. S., que considera obtuso e dogmá-        no entanto, quem se atreveria a dizer que o paradoxo que aca-
tico, Zeno para de manter suas notas sistemáticas. Visando inde-     ba adotando ao final da sua história -   de que a suposta doença
nizar-se pelos honorários perdidos, o dr. S. publica o manuscrito    é parte da condição humana, de que a verdadeira saúde consiste
de Zeno. E eis o que constitui o livro que temos à nossa frente:     em aceitar quem você é ("ao contrário das outras moléstias ... não
as memórias de Zeno mais a narrativa que lhe serve de moldu-         existe cura para a vida") - não instiga ele próprio uma interro-
ra, sobre como elas foram escritas, "uma autobiografia, mas não      gação cética e zenoniana?lO
a minha", como diz Svevo numa carta a Montale. E Svevo ainda              A psicanálise era uma espécie de mania na Trieste da época
explica como sonhava aventuras para Zeno, plantava-as em seu         em que Svevo trabalhava em Zeno. Gatt-Rutter cita um professor
próprio passado e depois, ignorando deliberadamente a divisa en-     triestino: "Aderentes fanáticos à psicanálise [... viviam trocando
                                                                                                                      :1




tre a fantasia e a memória, "'lembrava-se' delas".9                  histórias, interpretações de sonhos e lapsos significativos, produ-
     Zeno é um fumante compulsivo que quer parar de fumar,           zindo eles próprios seus diagnósticos amadores" (p. 306). O pró-
embora sem força de vontade suficiente para consegui-Io de fa-       prio Svevo colaborou numa tradução da Interpretação dos sonhos,
to. Não duvida que fumar lhe faça mal, e sonha com os pul-           de Freud. Apesar das aparências, não achava que Zeno fosse um
mões cheios de ar fresco - as três grandes cenas de morte em         ataque contra a psicanálise em si, só contra suas pretensões cura-
Svevo, uma em cada romance, mostram pessoas que morrem               tivas. A seu ver, não era um seguidor de Freud mas um seu igual,
arquejando e lutando desesperadas para respirar -, mas ainda         dedicado também por seu lado a investigar o inconsciente e o
assim revolta-se contra a cura. Desistir do cigarro, sabe ele em     domínio do inconsciente sobre a vida consciente; considerava
algum nível instintivo, é reconhecer a primazia de pessoas como      seu livro fiel ao espírito cético da psicanálise da maneira como
a sua mulher e o dr. S., que, com a melhor das intenções, gosta-     era praticada pelo próprio Freud, embora não por seus discípu-
riam de transformá-Io num cidadão comum e saudável, subtrain-        los, e chegou a enviar um exemplar a Freud (que entretanto não
do-lhe assim os poderes que cultiva: o poder de pensar, o poder      acusou o recebimento). E de fato, visto de uma perspectiva mais
de escrever. Com um simbolismo tão grosseiro que nem mesmo           ampla, Zeno é mais que uma simples aplicação da psicanálise a
Zeno consegue deixar de rir, o cigarro, a caneta e o falo acabam     uma vida ficcional, ou que um mero questionamento       cômico da
representando uns aos outros. O conto "La novella deI buon           psicanálise. É uma exploração das paixões, inclusive as mais mes-
vecchio e della bella fanciulla" termina com o velho morto em        quinhas, como a cobiça, a inveja e o ciúme, na tradição do roman-
sua escrivaninha, uma caneta presa entre os dentes cerrados.         ce europeu, paixões para as quais a psicanálise acaba sendo ape-
    Dizer que Zeno é ambivalente     sobre o fumo e, portanto,       nas um guia muito parcial. A doença da qual Zeno quer e não quer
sobre a possibilidade de cura de sua doença indefinida não passa     ser curado é, no fim das contas, não menos que o mal du síiJele
de um arranhão na superfície do ceticismo corrosivo porém en-        da própria Europa, uma crise da civilização a que tanto a teoria
graçado de Svevo quanto à nossa capacidade de aprimoramento.         freudiana como A consciência de Zeno procuram responder.

    28
                                                                                                                                 29
':' ':' *
                                                                    em vez de mais atualizados teóricos da psique, na verdade ela
                                                                    atribui os males do marido a uma predisposição de caráter. E
    A consciência de Zeno [La coscienza di Zeno] é mais um          essa sua intervenção leva Zeno e seus amigos a longas conversas
dos títulos difíceis de Svevo. "Coscienza" pode significar o que    de muitas páginas sobre o fenômeno        do malato immaginario
modernamente se chama de "consciência"; mas também pode             em contraposição ao malato reale ou malato vero: não pode uma
significar o que em inglês se chama de "self-consciousness" [a      doença provinda da imaginação ser mais grave que uma doença
"consciência de si mesmo" ou "o embaraço"]' como na frase           "verdadeira" ou "real", embora não seja genuína? E Zeno leva
de Hamlet "A consciência nos converte a todos em covardes"          a interrogação ainda mais além quando pergunta se, em nosso
[Conscience does make cowards of us all]. No livro, Svevo alterna   tempo, o mais doente de todos pode não ser o sano immaginario,
o tempo todo entre os dois significados, de um modo que o in-       o homem que se imagina são.
glês moderno não tem como imitar. Evitando o problema, De               Toda a disquisição é conduzida com muito mais precisão
Zoete deu à sua tradução de 1930 o título de Confessions ofZeno.    e humor no italiano de Svevo do que seria possível num inglês
Em sua nova tradução, William Weaver capitula ante a ambi-          circunlocutório.   Aqui, De Zoete está um passo à frente de Wea-
guidade e usa Zeno's Conscience.                                    ver ao desistir do inglês e recorrer ao francês: "malade imaginaire"
    Weaver publicou traduções, entre outros escritores italia-      para "malato immaginario".
nos, de Luigi Pirandello,   Cado Emilio Cadda, EIsa Morante,
Italo Calvino e Umberto Eco. Sua tradução de Zeno numa pro-              Publicado às expensas do próprio Svevo em 1923, quando
sa inglesa devidamente comedida e discreta é do melhor padrão.      contava 62 anos de idade, Zeno foi resenhado em algumas publi-
Num detalhe, porém, é a própria língua inglesa que trai o seu       cações, mas nunca por algum dos líderes da opinião crítica. Um
trabalho. Zeno costuma contrastar muito o malato immaginario        resenhista triestino declarou ter sido pressionado a ignorar o livro,
com o sano immaginario, traduzidos por Weaver como "imagina-        posto que, fosse o que fosse, era um insulto evidente à cidade.
ry sick man" e "imaginary healthy man". (pp. 171, 176; capítulo 6        Em nome dos velhos tempos, Svevo enviou um exemplar
do original) No entanto, "immaginario", aqui, não corresponde       para Joyce em Paris. Joyce mostrou o livro a Valéry Larbaud e
estritamente ao inglês "imaginary", mas a "self-imaginedly", e um   outras figuras influentes da cena literária francesa. A reação foi
malato immaginario não é, no sentido próprio, um imaginário         de entusiasmo. Callim'ard encomendou uma tradução, com a
homem doente ("ímaginary sick man"), mas um homem que se            condição de serem feitos certos cortes; uma revista literária pu-
imagina doente ("a man who imagines himself sick").                 blicou todo um número sobre Svevo; o PEN clube organizou um
    O malato immaginario de Zeno vem da mesma origem que            banquete em homenagem a Svevo em Paris.
o malade imaginaire de Moliere, e é sem dúvida Moliere que a            Em Milão, foi publicada uma nova apreciação positiva da
mulher de Zeno tem em mente quando, depois de ouvi-Io falar         obra de Svevo, assinada por Montale. Senilidade foi relança-
durante horas sobre os seus males, explode numa risada e diz-lhe    do em versão revista. Os italianos começaram a ler amplamente
que ele não passa de um malato immaginario. Ao invocar Moliere      Svevo; uma nova geração de romancistas adotou-o como patro-

    3°                                                                                                                            31
no. A direita reagiu com hostilidade. "Na vida real, Italo Svevo          2. Robert Walser
tem um nome semita - Ettore Schmitz", escreveu La Sera, e
sugeriu que toda aquela onda em torno de Svevo fazia parte de
uma vasta conspiração judaica."
    Envaidecido com o sucesso inesperado de Zeno, exultante
com sua nova fama, Svevo pôs-se a trabalhar numa série de tex-
tos cujo tema comum era o envelhecimento         e os apetites insacia-
dos da velhice. Talvez pretendesse usá-los num quarto romance,
uma continuação    de Zeno. Em inglês, podem ser encontrados,
em traduções de P. N. Furbank e outros, nos volumes 4 e 5 da
edição uniformizada em cinco volumes das obras de Svevo pu-
blicada na década de 1960 pela U niversity of California Press nos
Estados Unidos e por Secker & Warburg na Grã-Bretanha, mas
hoje fora de catálogo. Já é mais que tempo de uma reedição.
     a volume   5 contém ainda uma tradução da peça teatral La                 No dia de Natal de 1956, a polícia da cidade de Herisau, no
Rígenerazíone [Regeneração]'    obra tardia. Svevo nunca perdeu           leste da Suíça, recebeu um telefonema: um grupo de crianças
o interesse pelo teatro, e escreveu inúmeras peças ao longo dos           tinha tropeçado no corpo de um homem que morrera congela-
anos, mesmo enquanto trabalhava para os Veneziani. Só uma                 do num campo nevado. Chegando ao local, primeiro os policiais
delas, Terzetto sjJezzato [a triângulo partido], foi encenada du-         tiraram algumas fotos e depois removeram o corpo.
rante a sua vida.                                                              a morto logo foi identificado:
                                                                                                           era Robert Walser, de 78 anos,
     Svevo morreu em 1928 de complicações provocadas por um               que desaparecera de um hospital psiquiátrico local. Na juventu-
acidente automobilístico sem importância. Foi enterrado no ce-            de, Walser conquistara certa reputação, na Suíça e também na
mitério católico de Trieste com o nome de Aron Hector Schmitz.            Alemanha, como escritor. Alguns de seus livros ainda estavam
Livia Veneziani Svevo, reclassificada como judia, passou os anos          em catálogo; outro fora publicado a seu respeito, uma biografia.
da guerra, juntamente com a filha do casal e o terceiro filho des-        Ao longo de um quarto de século passado de hospício em hospí-
ta, escondida dos esquadrões de purificação. Esse terceiro filho          cio, entretanto, sua obra acabara secando. Longas caminhadas
foi morto pelos alemães por ocasião do levante triestino de 1945.         pelo campo - como aquela em que finalmente faleceu - ti-
A essa altura, seus dois irmãos mais velhos já tinham morrido na          nham se transformado na sua principal distração.
frente russa, lutando pela Itália e pelo Eixo.                                 As fotografias da polícia mostram um velho de sobretudo e
                                                                          botas estendido na neve, com os olhos muito abertos e o maxilar
                                                                (2002)    distendido. Essas fotos foram ampla (e descaradamente)   reprodu-
                                                                          zidélSna literatura crítica sobre Walser que vem florescendo des-

     32                                                                                                                             33
de a década de 1960.1 A suposta loucura de Walser, sua morte         pelo nome de "Monsieur       Robert". Em pouco tempo, todavia,
solitária e o esconderijo postumamente encontrado de escritos        descobriu que poderia sustentar-se com os proventos do que es-
secretos tornaram-se os pilares sobre os quais se erigiu toda uma    crevia. Seus textos começaram a aparecer em revistas literárias
lenda que tem em Walser um gênio escandalosamente negligen-          de prestígio; passou a ser admitido nos círculos artísticos mais
ciado. E o repentino crescimento do interesse por Walser tor-        sérios. Mas o papel de intelectual da metrópole não lhe era fácil.
nou-se também parte do escândalo. "Eu me pergunto", escreveu         Algumas doses de bebida e ele tendia a mostrar-se grosseiro e
Elias Canetti em 1973, "se, entre todos os que constroem uma         agressivamente provinciano. Aos poucos foi se retirando da so-
vida acadêmica confortável, segura e regular a partir da existên-    ciedade, refugiando-se numa vida solitária e frugal em modes-
cia de um escritor que viveu na miséria e no desespero, existe       tos conjugados. E nesse cenário escreveu quatro romances, dos
um único que sinta vergonha de si mesmo."2                           quais três sobreviveram: Os irmãos Tanner (1906), Der Gehülfe
                                                                     [O factótum) (1908), e Jakob von Gunten (1909). Em todos eles
     Robert Walser nasceu em 1878 no cantão de Berna. Foi o          os temas foram extraídos das experiências do autor; mas no caso
sétimo de oito irmãos e irmãs. Seu pai, treinado no ofício de        de Jakob von Gunten - merecidamente o mais conhecido dos
encadernador, mantinha uma papelaria. Aos catorze anos, Ro-          três - essas vivências são assombrosamente transmutadas.
bert foi tirado da escola e começou a trabalhar como aprendiz
num banco, onde cumpria exemplarmente seus deveres de es-                 "Aqui se aprende muito pouco", observa o jovem Jakob von
criturário até o dia em que, sem aviso, dominado pelo sonho de       Gunten ao final do seu primeiro dia no Instituto Benjamenta,
tornar-se ator, abandonou   o emprego e fugiu para Stuttgart. Lá     onde se matriculou como estudante. Um único livro é usado,
fez um teste, que resultou num fracasso humilhante: foi reprova-     O que pretende a Escola Benjamenta para Rapazes?, e uma úni-
do por se mostrar muito rígido e inexpressivo. Abandonando as        ca matéria é lecionada, "Como um menino deve se comportar".
ambições cênicas, decidiu tornar-se - "com a ajuda de Deus"          Os professores da escola são inertes como mortos. E toda a ati-
- poeta.> Andou de emprego em emprego, sempre escrevendo             vidade efetiva de ensino cabe à srta. Lisa Benjamenta, irmã do
poemas, pequenos textos em prosa e pequenas peças teatrais em        diretor. O próprio sr. Benjamenta não sai nunca do seu gabinete,
verso ("dramolets") para a imprensa periódica, não sem algum         onde conta e reconta seu dinheiro como um ogro de conto de
sucesso. Logo foi contratado pela Insel Yerlag, editora de Rilke e   fadas. Na verdade, a escola parece um mero embuste.4
Hofmannstahl, que publicou seu primeiro livro.                            Ainda assim, tendo deixado o que define como "uma me-
    Em 1905, pensando no progresso de sua carreira literária,        trópole muitíssimo pequena" em troca de uma cidade grande
acompanhou seu irmão mais velho, ilustrador de livros e cenó-        - cujo nome não é revelado mas só pode ser Berlim -, Jakob
grafo teatral de sucesso, numa viagem a Berlim. Por medida de        não tem a menor intenção de recuar. Procura se dar bem com os
prudência, matriculou-se ao mesmo tempo numa escola de for-          seus colegas; não se incomoda de usar o uniforme da Benjamen-
mação de criados domésticos, e trabalhou por algum tempo co-         ta; além disso, adora ir ao centro da cidade para andar de elevador,
mo mordamo numa casa de campo, onde usava libré e atendia            o que o faz sentir-se um filho pleno da era moderna (p. 40).

    34                                                                                                                            35
Jakob von Gunten alega ser um diário mantido por Jakob                 Quanto ao sr. Benjamenta,      hostil a Jakob num primeiro
durante sua permanência no Instituto. Contém principalmen-            . momento, logo acaba manipulado ao ponto de suplicar ao rapaz
te suas reflexões sobre o tipo de formação que recebe ali - uma        que se torne seu amigo, deixando a escola para trás e saindo para
educação   na humildade    -   e sobre o estranho par de irmãos        correr o mundo em sua companhia. Jakob declina com modos
responsável por ela. A humildade lecionada pelos irmãos Benja-         afetados: "Mas como irei comer, senhor diretor? ... Seu dever é
menta não é da variedade religiosa. A maioria dos rapazes que se       me conseguir um emprego decente. Tudo que quero é um em-
formam na escola aspira ao ofício de criado ou mordomo, e não          prego". Ainda assim, na última página do seu diário, Jakob anun-
à santidade. Mas Jakob é um caso à parte, um aluno para quem           cia que mudou de ideia: decidiu abandonar a pena e partir para
as lições de humildade adquirem uma ressonância interior su-           o desconhecido na companhia do sr. Benjamenta. Ao que o lei-
plementar. "Como tenho sorte", escreve ele, "de não ver em mim         tor só pode reagir pensando: Com um companheiro        desse cali-
nada digno de ser respeitado ou observado! Ser pequeno e per-          bre, Deus proteja o sr. Benjamenta! (p. 172)
manecer pequeno." (p. 155)                                                  Como personagem literária, Jakob von Gunten não deixa de
      Os irmãos Benjamenta são um par misterioso e, à primeira         ter seus precedentes.   No prazer que sente em criticar seus pró-
vista, intimidador. E Jakob decide assumir a tarefa de desven-        ,prios motivos, lembra o Homem do Subterrâneo de Dostoiévski
dar o mistério dos dois. E passa a tratá-l os não com respeito, mas    e, por trás deste, o Jean-Jacques Rousseau das Confissões. Mas
com a autossuficiência atrevida das crianças acostumadas a ter        -   como afirma a primeira tradutora de Walser para o francês,
suas travessuras perdoadas e julgadas adoráveis. Combina a des-        Marthe Robert - há também em Jakob algo do herói dos contos
façatez com uma autodepreciação evidentemente insincera, rin-          tradicionais populares alemães, o rapaz que invade o castelo do
do à socapa da sua insinceridade e confiando que a candura de-        gigante e emerge vitorioso. Franz Kafka admirava a obra de Wal-
sarmará qualquer crítica, e não se incomodando muito quando           ser (Max Brod registra com quanto encantamento Kafka lia em
isso não acontece. A palavra que desejaria aplicar a si mesmo, a      voz alta as passagens mais engraçadas de Walser). Barnabas e Je-
palavra que gostaria que o mundo aplicasse a ele, é endiabrado.       remias, os "assistentes" demoniacamente obstrutivos do agrimen-
Um diabrete é um espírito malicioso; mas é também um demô-            sor K. em O castelo, têm seu protótipo em Jakob.
mo menor.                                                                   Em Kafka também podemos perceber alguns ecos da prosa
     Logo Jakob começa a adquirir uma certa ascendência so-           de Walser, com sua lúcida organização sintática, suas justaposi-
bre os irmãos Benjamenta. A srta. Benjamenta dá-lhe a enten-          ções casuais do elevado com o banal, e sua lógica paradoxal as-
der que se afeiçoou a ele, que em resposta faz de conta que           sustadoramente convincente. Aqui temos Jakob numa disposição
não entendeu. Na verdade, ela acaba revelando que o que sen-          reflexiva:
te por ele pode ser mais que simples carinho: talvez seja amor.
Jakob responde com um longo discurso evasivo repleto de sen-                Usamos uniformes. Ora, usar um uniforme nos humilha e ao
timentos respeitosos. Rejeitada, a srta. Benjamenta definha e aca-          mesmo tempo nos exalta. Parecemos gente sem liberdade, o que
ba morrendo.                                                                é possivelmente uma desgraça, mas também ficamos bem em

     36                                                                                                                          37
nossos uniformes, o que nos distingue da desgraça profunda des-   e seu gosto por pregar peças maliciosas nos outros -        todos es-
     sas pessoas que andam pelas ruas com suas próprias roupas, mas    ses traços, vistos em conjunto,     apontam para o tipo de peque-
     sujas e esfarrapadas. Para mim, por exemplo, usar um uniforme     no-burguês     do sexo masculino     que, num tempo de confusão
     é muito agradável porque eu nunca sabia, antes, que roupa devia   social mais intensa, podia sentir-se atraído pelos camisas pardas
     usar. Mas nisso, também, permaneço por enquanto um mistério       de Hitler. (p. 124)
     para mim mesmo.
                                                                            Walser nunca foi um escritor declaradamente        político. Ain-
                                                                       da assim, seu envolvimento emocional com a classe de que pro-
Qual é o mistério em si mesmo ou acerca de si mesmo que
                                                                       vinha, a classe dos pequenos comerciantes,        dos funcionários     e
Jakob acha tão instigante? Num ensaio sobre Walser especial-
                                                                       dos professores primários, era profundo. Berlim lhe acenava com
mente notável por basear-se num conhecimento muito incom-
                                                                       uma oportunidade       clara de escapar a suas origens sociais e tras-
pleto da sua obra, Walter Benjamin sugere que as pessoas mos-
                                                                       ladar-se, como fez seu irmão, para a intelligentsia cosmopolita
tradas por Walser são como personagens de um conto de fadas
                                                                       dos déclassés. Walser tenta o mesmo caminho, mas fracassa, ou
que chegou ao fim, personagens      que a partir desse momento
                                                                       desiste, preferindo retomar aos braços da Suíça provinciana. Mas
passam a viver no mundo real. Todas são marcadas por "uma
                                                                       nunca perdeu de vista -       na verdade, nunca lhe foi permitido
superficialidade sistematicamente dilacerante e desumana", co-
                                                                       perder de vista -     as tendências iliberais e conformistas da sua
mo se, tendo sido libertadas da loucura (ou de um feitiço), de-
                                                                       classe, e a intolerância que esta sempre manifestou diante de pes-
vessem agir com muita cautela por medo de serem novamente
engolfadas pelo delírio.5                                              soas como ele próprio, os sonhadores e vagabundos.
    Jakob é uma criatura tão estranha, e o ar que respira no Ins-
tituto Benjamenta, tão rarefeito, tão próximo da alegoria, que é            Em 1913 Walser deixou Berlim e voltou para a Suíça "um
difícil imaginá-Io como uma personagem representativa de qual-         escritor ridicularizado e sem sucesso" (em suas próprias palavras
quer elemento da sociedade. Entretanto, o cinismo de Jakob quan-       autodepreciativas).6 Alugou um quarto num hotel que não servia
to à civilização e aos valores em geral, seu desprezo pela vida        bebidas, na cidade industrial de Biel, perto da sua irmã, e passou
mental, suas convicções simplistas sobre o modo como o mundo           os sete anos seguintes vivendo precariamente,        de textos curtos
realmente funciona (é comandado pelas grandes empresas para            para suplementos      literários. Fora isso, fazia longas caminhadas
explorar o homem comum), sua elevação da obediência à qua-             pelos campos e ainda cumpriu seu serviço na Guarda Nacional.
lidade de mais alta das virtudes, sua determinação de não fazer        Nas coletâneas de sua poesia e prosa curta que continuavam a
nada à espera do chamamento do destino, sua alegação de des-           ser publicadas, cada vez falava mais da paisagem social e na-
cender de nobres e guerreiros (ao mesmo tempo em que a eti-            tural da Suíça. Além dos três romances mencionados, escreveu
mologia que ele próprio indica para o nome Von Gunten - von            ainda mais dois. O manuscrito do primeiro, Theodor, foi perdi-
unten, "de baixo" - sugere o contrário), bem como o prazer que         do pelos seus editores; o segundo, Tobold, foi destruído pelo pró-
encontra no ambiente exclusivamente masculino do internato             prio Walser.

    38                                                                                                                               39
Depois da Primeira Guerra Mundial, o gosto do público pe-         da, e Walser preferiu permanecer      internado.   Em 1933, sua fa-
lo tipo de literatura que respondia pelos rendimentos de Walser,       . mília o transferiu para o asilo de Herisau, onde ele recebia uma
textos descartáveis de caráter excêntrico e beletrístico, reduziu-se     pensão e preenchia seu tempo com tarefas simples como colar
muito. Ele vivia afastado demais da sociedade alemã mais ampla          sacos de papel e separar feijões. Permanecia em plena posse das
para manter-se a par das novas correntes de pensamento; quanto          suas faculdades; continuava a ler jornais e revistas populares; mas,
à Suíça, o público leitor local era pequeno demais para susten-         depois de 1932, não escreveu mais. "Não estou aqui para escre-
tar um corpo significativo de escritores. Embora se orgulhasse da       ver, estou aqui para ser louco", disse ele a um visitante.lO Além
sua frugalidade, Walser acabou precisando fechar o que chama-           disso, o tempo dos líttérateurs tinha ficado para trás.
va de "minha pequena oficina de peças em prosa" J Seu precá-                 (Anos depois da morte de Walser, um dos funcionários do
rio equilíbrio mental começou a falhar. Sentia-se cada vez mais         asilo de Herisau afirmou que via Walser escrevendo sistemati-
oprimido pelos olhares de censura dos vizinhos, pela exigência          camente durante seus plantões. No entanto, mesmo que isso se-
de respeitabilidade que o cercava. Deixou Biel, mudando-se pa-          ja verdade, nenhum manuscrito de data posterior a 1932 chegou
ra Berna, onde assumiu um cargo no Arquivo Nacional; mas ao             aos nossos dias.)
cabo de poucos meses foi demitido por insubordinação. Vivia
mudando de residência. Bebia muito; sofria de insônia, ouvia vo-             Ser um escritor, uma pessoa que usa as mãos para transfor-
zes imaginárias, tinha pesadelos e ataques de ansiedade. Tentou         mar pensamentos em traços no papel, era difícil para Walser no
o suicídio, fracassando porque, como admitiu com desconcertan-          mais elementar dos níveis. Na juventude, ele tinha uma letra ní-
te sinceridade, "nem um laço eu consegui fazer certo". 8                tida e bem desenhada de que se orgulhava muito. Os manuscri-
      Ficou claro que não podia mais morar sozinho. Vinha de            tos que conhecemos desses dias - as versões finais de seus textos
uma família que, na terminologia da época, era degenerada: sua          - são verdadeiros modelos de bela caligrafia. A caligrafia, entre-
mãe sofria de depressão crônica; um dos seus irmãos se suicida-         tanto, foi uma das primeiras áreas em que as perturbações psíqui-
ra; outro morrera num hospício. Pressionaram uma de suas irmãs          cas de Walser se manifestaram. Em algum momento entre os seus
a recebê-Io em casa, mas ela recusou. E assim ele permitiu que          trinta e os seus quarenta anos de idade (ele é vago quanto à da-
o internassem no sanatório de Waldau. "Acentuadamente depri-            ta), começou a sofrer de cãibras psicossomáticas na mão direita.
mido e gravemente inibido", afirma seu primeiro relatório mé-          Atribuía o problema a uma animosidade        inconsciente   contra a
dico. "Deu respostas evasivas às perguntas quanto a estar farto         caneta como instrumento de trabalho, e só conseguiu superá-Ias
da vida."9                                                              quando finalmente abandonou a caneta em favor do lápis.
    Em avaliações posteriores,     os médicos de Walser discor-              Escrever a lápis era tão importante que Walser batizou o pro-
dariam quanto à natureza do seu problema, se é que problema             cesso de "sistema do lápis" ou "método do lápis"." E o método
havia, e chegariam mesmo a insistir com ele para que voltasse           do lápis significava bem mais que o mero uso de um lápis. Quando
a morar no mundo exterior. No entanto, a rotina da instituição          passou a escrever a lápis, Walser também mudou radicalmente
parece ter-se transformado numa base indispensável para sua vi-         sua caligrafia. Ao morrer, deixou cerca de quinhentas folhas de

    4°                                                                                                                              41
papel cobertas de fora a fora de linhas de delicados sinais cali-        terrupto, introvertido, movido a sonho, que se tornara indispen-
gráficos diminutos, desenhados a lápis, uma letra tão difícil de         sável para a sua postura criadora.
ler que num primeiro momento seu inventariante julgou ter à
sua frente um diário escrito num código secreto. Mas Walser não               A mais longa das obras tardias de Walser é Der Riiuber, es-
mantinha um diário, nem essa escrita é um código. Seus ma-               crita em 1925-6, mas decifrada e publicada apenas em 1972. A
nuscritos tardios foram na verdade compostos em alemão lite-             história é tão rala que chega a ser insubstancial. Narra os envol-
rário, mas com tantas abreviações idiossincráticas que, mesmo            vimentos sentimentais de um homem de meia-idade conheci-
para os editores mais familiarizados com ela, sua decifração ine-        do simplesmente    como o Ladrão, um homem sem ocupação
quívoca nem sempre é possível. E foi só em rascunhos produ-              que consegue subsistir à margem da sociedade cultivada de Ber-
zidos pelo "método do lápis" que as inúmeras obras tardias de
                                                                         na graças a um legado modesto.
Walser, entre elas seu romance Der Riiuber [O Ladrão] (24 folhas
                                                                              Entre as mulheres que o Ladrão persegue com muita reser-
de microescrita, correspondentes     a cerca de 150 páginas impres~
                                                                         va, há uma garçonete chamada Edith; entre as mulheres que com
sas), chegaram até nós.
                                                                         reserva pouco menor perseguem a ele estão várias proprietárias
     Mais interessante que decifrar a letra propriamente dita é a
                                                                         de imóveis que o querem, seja para as suas filhas ou para elas
questão do que o método do lápis permitia a Walser mas a cane-
                                                                         próprias. A ação culmina numa cena em que o Ladrão sobe ao
ta não era mais capaz de produzir (embora ele ainda fosse ca-
                                                                         púlpito e, perante uma vasta assembleia, reprova Edith por pre-
paz de usar a caneta quando apenas transcrevia, ou para escrever
                                                                         ferir um rival medíocre a ele. Enfurecida, Edith dispara um re-
cartas). A resposta parece ser que, como um desenhista com um
                                                                         vólver contra ele, ferindo-o de raspão. Segue-se uma torrente de
bastão de carvão entre os dedos, Walser precisava desencadear
                                                                         comentários   animados. Quando a poeira baixa, o Ladrão está
um movimento regular e rítmico da mão antes de conseguir en-
                                                                         colaborando com um escritor profissional para contar o seu lado
trar num estado de espírito em que o devaneio, a composição e
o fluxo do instrumento de escrita se tornavam uma coisa só. Num          da história.

texto intitulado "Bleistiftskizze" [Esboço a lápis], datado de 1926-7,        Por que ele deu o nome "o Ladrão" [der Riiuber] a esse con-
ele menciona a "bem-aventurança singular" que o método do lá-            quistador inseguro? A palavra remete, claro, a "Robert", o nome
pis lhe permitia." "Ele me acalma e me anima", disse noutra oca-         do próprio Walser. Um quadro de Karl Walser, irmão de Robert,
sião.'3 Esses textos de Walser avançam não de acordo com a lógi-         nos fornece mais uma pista. Na aquarela de Karl, Robert, aos
ca nem acompanhando uma narrativa, mas segundo mudanças                  quinze anos, aparece vestido como seu herói predileto, Karl
de humor, fantasias e associações: por temperamento, ele é me-           Moor, da peça da juventude de Schiller Die Riiuber [Os ladrões,
nos um pensador que persegue uma argumentação             ou mesmo       1781]. O Ladrão da história de Walser, entretanto,   não é um sal-
um contador de histórias seguindo a linha de uma narrativa que           teador heroico como o de Schiller, mas um plagiário desonesto
um autêntico beletrista. O lápis e a notação estenográfica de sua        que se limita a roubar o afeto de algumas jovens e as fórmulas da
invenção lhe permitiam um movimento manual produtivo, inin-              ficção popular.

     42                                                                                                                             43
Por trás do Ladrão, ou Robert/Rauber,    assoma uma figura,          Ele estava sempre [00.] só como um pobre cordeirinho perdido.
o autor nominal do livro, que o trata ora como um protegido, ora          As pessoas o perseguiam para ajudá-lo a aprender como se vive.
como um rival, ora como um simples fantoche a ser conduzido               Ele dava uma impressão tão vulnerável. Parecia a folha que um
de situação em situação. Esse diretor de cena o critica por cuidar        menino separa do tronco com um golpe de vara só porque sua
mal das suas finanças, por sair com moças da classe operária e,           singularidade a torna conspícua. Noutras palavras, ele atraía a
de maneira geral, por comportar-se como um Tagedíeb, um ocio-             perseguição. (p. 40)
so ou "ladrão de dias", em vez de proceder como um bom bur-
guês suíço, muito embora, admite ele, precise estar sempre to-            Como Walser também observa, com igual ironia mas ín
mando cuidado para não confundir a si próprio com Robert/            propría persona, numa carta do mesmo período: "Às vezes me
Rauber. Seu caráter lembra muito o do rival, zombando de si          sinto devorado, ou melhor, parcial ou totalmente consumido,
mesmo enquanto cumpre suas rotinas sociais sem sentido. De           pelo amor, pela preocupação     e pelo interesse de meus tão ex-
                                                                     celentes concidadãos" .14
tempos em tempos sente uma pontada de ansiedade quanto ao
                                                                          Der Riiuber nunca foi preparado para publicação. Na ver-
livro que está escrevendo debaixo dos nossos olhos -     porque a
                                                                     dade, em nenhuma de suas muitas conversas com seu amigo e
obra progride devagar, porque seu conteúdo é trivial, por causa
da vacuidade do seu herói.                                           benfeitor durante seus anos de internação, Carl Seelig, Walser
                                                                     sequer mencionou a existência da obra. Ela se baseia em epi-
     Fundamentalmente,      Der Riiuber "trata" apenas da aven-
                                                                     sódios mal disfarçados da sua vida; ainda assim, precisamos de
tura da sua própria composição. Seu encanto reside nas suas sur-
                                                                     muita cautela se quisermos considerá-Ia um texto autobiográ-
preendentes   reviravoltas e mudanças de direção, no seu trata-
                                                                     fico. Robert/Rauber só encarna um dos aspectos de Walser. Em-
mento delicadamente      irônico das fórmulas do jogo amoroso, e
                                                                     bora haja referências a vozes persecutórias, e embora ele sofra do
em sua exploração flexível e inventiva dos recursos da língua ale-
                                                                     que, no jargão psiquiátrico e psicanalítico, é chamado de delírio
mã. A figura do seu autor, alvoroçado diante da multiplicidade
                                                                     de referência - suspeitando que haja significados ocultos, por
de fios narrativos que precisa administrar depois que o lápis em     exemplo, na maneira como os homens assoam o nariz na sua
suas mãos entra em movimento, lembra acima de tudo Laurence          presença -, o lado mais melancólico e mais autodestrutivo do
Sterne, o Sterne tardio, mais suave, livre da malícia e dos duplos   Walser real mantém-se sistematicamente fora do quadro.
sentidos.
                                                                         Num episódio crucial, Robert/Rauber procura um médico
    Os efeitos de distanciamento   produzidos pela identidade de     e, com grande franqueza, lhe descreve seus problemas sexuais.
autor que se destaca da personagem de Robert/Rauber, e por um        Nunca sentiu o desejo de passar a noite com uma mulher, diz,
estilo em que o sentimento é admitido desde que coberto por um       mas acumula "estoques assustadores de potencial amoroso", tan-
véu fino de paródia, permitem a Walser momentos em que con-          to que "toda vez que saio para a rua, começo imediatamente a
segue falar de maneira pungente sobre seu próprio desamparo -        me apaixonar". O estratagema que imaginou para alcançar a fe-
ou seja, de Robert/Rauber -    às margens da sociedade suíça:        licidade é inventar histórias envolvendo o objeto do seu desejo

    44                                                                                                                           45
em que ele próprio se transforma no [indivíduo] "subordinado,                  A engenhosidade     do neologismo "emborboletado"       (em in-
obediente, sacrificado, dissecado e tutelado". Na verdade, con-           glês "embutterflíed") para "umschmetterlíngelt"     é admirável, as-
fessa, às vezes acha que no fundo é uma garota. Ao mesmo tem-             sim como o talento de Bernofsky para adiar o impacto da frase
po, contudo, também tem um menino dentro de si, um menino                 até sua última palavra. Mas a frase também serve para ilustrar
que se comporta mal (sombras de Jakob von Gunten). A reação               um dos problemas mais exasperantes dos textos microescritos
do médico é eminentemente sensata. O senhor parece se conhe-              de Walser. A palavra aqui traduzida como "jovem aristocrata",
cer muito bem, diz ele -    não tente mudar. (pp. 105-6)                  "Herrentochter", é decifrada por outro dos editores do original de
    Noutra passagem notável Walser simplesmente            deixa o lá-    Walser como "Saaltochter", que no alemão da Suíça quer dizer
pis correr (deixa o censor dormir) e conduzi-Io, a partir dos pra-        "garçonete". (A mulher em questão, Edith, é sem dúvida uma
zeres da vivência imaginária de uma vida interior feminina, a             garçonete, nem de longe uma aristocrata.) Se não podemos ter
uma participação de intenso erotismo na experiência de um casal           certeza do texto, será possível confiar na sua tradução?
de amantes operísticos, para os quais a bem-aventurança de ex-                 Aqui e ali, Walser propõe desafios a cuja altura Bernofsky
ternar seu amor na forma de canto e a bem-aventurança do amor             não consegue responder. Não tenho certeza de que a expressão
propriamente   dito são uma coisa só. (p. 101)                            em inglês "scalawaggíng hís way through [the) arcades" ["zigue
                                                                          zaguendo em meio aos arcos"] evoque exatamente a imagem
    Christopher   Middleton foi um dos pioneiros do estudo da             que Walser pretendia, a de um menino que mata aula. Uma das
obra de Walser, e um dos grandes mediadores da literatura ale-            viúvas com quem Rauber/Robert flerta é caracterizada como eín
mã moderna para o mundo de língua inglesa. Sua exemplar                   Dummchen; e pelas duas páginas seguintes Walser opera mudan-
tradução de Jakob von Gunten foi lançada em 1969. Em sua tra-             ças em todos os aspectos da palavra "Dummchen". Bernofsky em-
dução de 2000 para Der Rduber, intitulada The Robber, Susan               prega sistematicamente "nínny" [aproximadamente "pateta", ou
Bernofsky sai-se igualmente bem do desafio da obra posterior de           "tola"] para "Dummchen", e "nínníhood" [mais ou menos "pate-
Walser, especialmente no caso dos jogos do autor com as forma-            tice"] para "Dummheít". Mas "nínny" tem conotações claras de
ções derivadas que o alemão permite tão bem.'5                            incompetência mental e até mesmo de idiotice, ausentes das pa-
    Num ensaio acerca de alguns dos problemas que Walser apre-            lavras em Dumm- em alemão, e de qualquer modo é vocábulo
senta para o tradutor, Bernofsky nos dá como ilustração a seguin-         raro no inglês de hoje. Nem "nínny" nem nenhuma outra palavra
te passagem:                                                              única em inglês poderia ser usada para traduzir sistematicamen-
                                                                          te "Dummchen", que às vezes tem o sentido de "dummy" [mais
    Ele estava sentado no tal jardim, entrelaçado de cipós, emborbo-      aproximadamente "imbecil", pessoa que é estúpida ou tapada-
    letado de melodias, e arrebatado pela radicalidade do seu amor        sentido mais forte no inglês americano que no britânico], às ve-
    pela mais linda jovem aristocrata a jamais baixar dos céus do abri-   zes de "nítwít" ["bobo"], e às vezes de "cabeça-oca". (pp. 42, 26-27)
    go paterno para a apreciação do público de modo a, com seus                Walser escrevia em alemão literário (Hochdeutsch), a lín-
    encantos, desferir no peito de um Ladrão uma fatal estocacla.,6       gua que as crianças suíças aprendem na escola. O alemão literá-


    46                                                                                                                                 47
l:~ ,;, ,;,
rio difere em inúmeros detalhes linguísticos, e ainda no tempe-
ramento, do alemão suíço que é a língua materna de três quartos
do povo suíço. Escrever em alemão literário -        a única escolha       Der Rduber é mais ou menos contemporâneo,       em sua com-
possível para Walser, se pretendia ganhar alguma coisa com sua         posição, do Ulysses de Joyce e dos derradeiros volumes de Em
pena - acarretava automaticamente uma postura cortês e so-             busca do tempo perdido de Proust. Caso tivesse sido publicado
cialmente refinada, atitude que não o deixava confortável. Em-         em 1926, poderia ter afetado o curso da moderna literatura ale-
bora tivesse pouco tempo para uma literatura regional (Heimat-         mã, inaugurando e até legitimando como tema as aventur~s da
líteratur)suíça, dedicada a reproduzir o folclore helvético e a        identidade que escreve (ou sonha) e da linha de tinta (ou lápis)
celebrar costumes populares obsolescentes, Walser, depois de           cheia de meandros que emerge ao correr da mão. Mas não foi
sua volta ao país natal, começou a introduzir deliberadamente          assim. Embora um projeto de reunir os textos de Walser tenha
o alemão suíço em seus textos, e de maneira geral tentava soar         sido iniciado antes da sua morte, foi só depois que começaram a
distintamente suíço.                                                   aparecer os primeiros volumes de uma edição mais criteriosa de
      A coexistência de duas versões da mesma língua no mesmo          suas Obras Reunidas em 1966, e depois de chamar a atenção
espaço social é um fenômeno pouco familiar ao mundo metro-             de leitores na Inglaterra e na França, que Walser atraiu uma am-
politano de língua inglesa, e cria problemas insolúveis por quem       pla atenção na Alemanha.
traduz esses textos para o inglês. A resposta de Bernofsky aos usos         Hoje Walser é valorizado principalmente por seus roman-
do dialeto por Walser -      que não se limitam à inclusão ocasional   ces, muito embora estes só constituam um quinto da sua produ-
de uma palavra ou expressão local, mas produzem todo um co-            ção total e o romance não tenha sido propriamente     o seu forte
10l·idosuíço de sua linguagem que é difícil atribuir precisamente      (as quatro obras de ficção mais longas que deixou pertencem na
a um ou outro elemento - é, candidamente, a de ignorá-los, ou          verdade à tradição menos ambiciosa da novela). Walser está mais
pelo menos não fazer qualquer esforço em favor de sua reprodu-         à vontade em formas mais breves. Contos como "Helbling" (1914)
ção. Como diz ela com razão, traduzir os momentos em que o             ou "Kleist in Thun" (1913), em que nuances aquareladas de sen-
alemão de Walser é mais suíço lançando mão de algum diale-             timento são esquadrinhadas com a mais ligeira das ironias e a
to regional ou social do inglês produziria apenas uma falsifica-       prosa responde a lufadas ocasionais de sentimento com a sensi-
ção cultural. 17                                                       bilidade das asas de uma borboleta, mostram Walser no seu me-
    Tanto Middleton quanto Bernofsky escrevem apresentações            lhor. Seu único tema verdadeiro foi sua vida pouco movimen-
muito instrutivas das suas traduções, embora a esta altura o texto     tada mas, a seu modo, muito pungente. Cada um dos seus textos
de Middleton esteja desatualizado em relação aos estudos sobre         em prosa, sugeriu ele em retrospecto, pode ser lido como um
Walser. Nenhum dos dois recorre a notas explicativas. A ausên-         capítulo de uma "narrativa longa, realista e sem enredo", um "li-
cia de notas é sentida especialmente em The Robber, salpicado          vro recortado ou desmembrado do eu [Ich-Buch]" .•8
de fartas referências à literatura, inclusive os confins mais obs-          Mas terá sido Walser um grande escritor? Se no final das
curos da literatura suíça.                                             contas ainda hesitamos em qualificá-lo de grande, assinala Ca-

      48                                                                                                                        49
netti, é só porque nada poderia ser-lhe mais estranho que a gran-
deza.'9 Num poema tardio, Walser escreveu:                          3. Robert Musil, O jovem Torless
    Não desejaria a ninguém que fosse eu.
    Só eu sou capaz de me suportar.
    Saber tanto, ter visto tanto, e
    Não dizer nada, ou quase nada.20


                                                          (2000)




                                                                         Robert Musil nasceu em 1880 em Klagenfurt, na província
                                                                    austríaca da Caríntia. A mãe, proveni~nte da alta burguesia, era
                                                                    uma mulher muito nervosa e interessada pelas artes, o pai, um
                                                                    engenheiro empregado no governo imperial que, mais adiante,
                                                                    acabaria recompensado por seus serviços com um título menor
                                                                    de nobreza. O casamento era "progressista": Musil pai aceitava
                                                                    sem reclamar uma ligação entre sua mulher e um homem mais
                                                                    jovem, Heinrich Reiter, iniciada logo após o nascimento de seu
                                                                    filho. Reiter acabaria indo morar com o casal Musil, num ménage
                                                                    à trais que persistiria por um quarto de século.
                                                                         O próprio Musil era filho único. Mais jovem e menor que
                                                                    seus colegas de escola, cultivava uma força física que conser-
                                                                    varia pela vida inteira. A atmosfera em casa parece ter sido tem-
                                                                    pestuosa; a pedido da mãe - e, diga-se de passagem, com o
                                                                    consentimento entusiástico do próprio menino -, ele foi in-
                                                                    ternado aos onze anos numa Unterrealschule militar nos arredo-
                                                                    res de Viena. De lá transferiu-se em 1894 para a Oberrealschule
                                                                    em Mahrisch-Weisskirchen perto de Brno, capital da Morávia,

    5°                                                                                                                        51
onde passou três anos. Essa escola tornou-se o modelo para o        cantou-se com MaIlarmé e Maeterlinck, rejeitando o credo na-
 "W." de O jovem Torless.                                            turalista segundo o qual a obra de arte precisava refletir fiel-
      Decidindo    não seguir uma carreira militar, aos dezessete    mente ("objetivamente") a realidade que já existia. Buscou apoio
 anos Musil ingressou na Technische Hochschule em Brno, onde         filosófico em Kant, Schopenhauer e (especialmente) Nietzsche.
 se entregou a intensos estudos de engenharia, desdenhando as        Em seus diários, criou para si mesmo a persona artística de "Mon-
 humanidades e o tipo de estudante atraído por elas. Seus diários    sieur le vivisecteur", um homem dado a explorar os estados de
 da época revelam-no preocupado com o sexo, mas de um modo           consciência e as relações afetivas com um bisturi intelectual. Prá-
 incomumente      consciente.   Relutava em aceitar o papel sexual   ticava imparcialmente suas técnicas de vivissecção, em si mes-
que os costumes da sua classe prescreviam para os rapazes, a sa-     mo e nos seus familiares e amigos.
ber, que espalhasse a sua semente com prostitutas e jovens tra-            Apesar de suas emergentes aspirações literárias, Musil con-
balhadoras até que chegasse a hora de um casamento adequado.         tinuava a preparar-se para a carreira de engenheiro. Passou com
Embarcou numa relação com uma moça tcheca chamada Her-               distinção nos exames e mudou-se para Stuttgart como assisten-
ma Dietz que trabalhara na casa da sua avó; enfrentando a resis-     te de pesquisa na prestigiosa TechnÍsche HochsGlwle. Mas o tra-
tência da mãe, e correndo o risco de perder seus amigos, insta-      balho científico começou a entediá-Io. Enquanto ainda escrevia
lou-se com Herma primeiro em Brno e depois em Berlim.                artigos técnicos e trabalhava num aparelho que inventara para
     Ligando-se a Herma, Musil deu um passo importante no            ser usado em experimentos de óptica (mais tarde patentearia o
sentido de romper o magnetismo erótico que sua mãe exercia           instrumento, na esperança não muito realista de conseguir viver
sobre ele. Por alguns anos, Herma continuou a ser o foco da sua      do que a invenção rendesse), embarcou num primeiro roman-
vida emocional. A relação do casal - mais objetiva da parte de       ce, O jovem Torless. Começou também a preparar o terreno pa-
Herma, mais complexa e ambivalente da parte de Robert - se-          ra uma guinada acadêmica.     Em 1903, abandonou      formalmen-
ria mais tarde a base para o conto "Tonka", publicado na coletâ-     te a engenharia e partiu para Berlim disposto a estudar filosofia
nea Três mulheres (1924).                                            e psicologia.
    Em conteúdo intelectual, a educação que Musil recebeu                 O jovem Torless ficou pronto no início de 1905. Depois que
em suas escolas militares foi decididamente inferior à oferecida     foi recusado por três editoras, Musil encaminhou o original pa-
nos Cymnasia clássicos. Ainda em Brno, começou a frequentar          ra ser comentado pelo respeitado crítico berlinense Alfred Kerr.
concertos e conferências sobre literatura. O que começou como        Kerr deu apoio a Musil, sugeriu revisões e resenhou o livro em
um projeto de alcançar seus contemporâneos de melhor forma-          termos entusiasmados quando foi lançado, em 1906. Apesar do
ção logo se transformou numa absorvente aventura intelectual.        sucesso de O jovem Torless, entretanto, e apesar da marca que
Os anos de 1898 a 1902 marcam uma primeira fase de aprendi-          começava a deixar nos círculos artísticos de Berlim, Musil sen-
zado literário. O jovem Musil se identificava especialmente com      tia-se inseguro demais quanto ao seu talento para se comprome-
os escritores e intelectuais da geração que florescera na década     ter com toda uma vida de produção literária. Continuou seus es-
de 1890 e tanto contribuíra para o movimento modernista. En-         tudos de filosofia, obtendo o grau de doutor em 1908.

    52                                                                                                                           53
A essa altura já conhecera      Martha Marcovaldi, mulher de       ramente por seu editor e uma confraria de admiradores, Musil
origem judaica sete anos mais velha que ele, separada do segun-         dedicou todas as suas energias a O homem sem qualidades.
do marido. Com Martha - ela própria artista e intelectual, to-              O primeiro volume apareceu em 1930, sendo recebido com
talmente au courant do feminismo da época -          Musil estabele-    tamanho entusiasmo tanto na Áustria quanto na Alemanha que
ceu uma relação íntima e eroticamente        intensa que durou pelo     Musil - no geral um homem antes modesto - achou que po-
resto da sua vida. Os dois se casaram em 1911 e fixaram resi-           deria ganhar o Prêmio Nobel. Já o segundo volume foi mais
dência em Viena, onde Musil aceitou a posição de arquivista na          difícil de escrever. Convencido pelas lisonjas do seu editor, mas
Technische Hochschule.                                                  cheio de apreensões, permitiu que um fragmento extenso fosse
     No mesmo ano, Musil publicou um segundo livro, Uniões,             publicado em 1933. Em segredo, começou a temer jamais con-
contendo as novelas "O aperfeiçoamento de um amor" e "A ten-            seguir chegar ao fim da obra.
                                                                             A mudança de volta para o ambiente intelectualmente        mais
tação da silenciosa Veronika". Essas obras foram compostas com
                                                                        animado de Berlim logo foi interrompida pela ascensão dos na-
uma obsessividade      cuja base era obscura para o autor; embo-
                                                                        zistas ao poder. Musil e a mulher transferiram-se de volta para
ra curtas, sua composição e revisão ocuparam Musil, dia e noite,
                                                                        Viena, onde encontraram uma atmosfera carregada de maus
por dois anos e meio.
                                                                        presságios. Musil começou a sofrer de depressão e problemas
     Na guerra de 1914-8, Musil serviu com distinção na frente
                                                                        de saúde generalizados. Em seguida, a Áustria foi absorvida pelo
italiana. Depois da guerra, perturbado      pela sensação de que os
                                                                        Terceiro Reich em 1938, e os Musil se retiraram para a Suíça,
melhores anos da sua vida criativa lhe escapavam, esboçou nada
                                                                        que deveria ser apenas uma escala intermediária a caminho de
menos do que vinte novas obras, entre elas uma série de roman-
                                                                        um refúgio que lhes fora oferecido pela filha de Martha nos Es-
ces satíricos. Uma peça teatral, Die Schwéirmer [Os visionários,
                                                                        tados Unidos. A entrada deste país na guerra, todavia, pôs fim a
1921], e a coletânea   de contos Três mulheres conquistaram     prê-
                                                                        todo o plano. Juntamente com dezenas de milhares de outros
mios. Foi eleito vice-presidente     do ramo austríaco da Organiza-     exilados, Musil e a mulher ficaram sem saída.
ção dos Escritores Alemães. Apesar de não amplamente        lido, in-       "A Suíça é famosa pela liberdade que lá se pode ter", obser-
gressara no mapa literário.                                             vou Bertolt Brecht. "O problema é que para tanto você precisa
     Em pouco tempo, os romances satíricos que planejara fo-            ser turista." O mito da Suíça como país do asilo foi muito preju-
ram abandonados ou absorvidos por um projeto mestre: um ro-             dicado pela maneira como o país tratou os refugiados durante
mance em que a camada mais alta da sociedade vienense, in-              a Segunda Guerra Mundial, quando sua prioridade principal,
diferente às nuvens negras que se acumulavam          no horizonte,     acima de qualquer consideração humanitária, era evitar qualquer
pondera com todo o vagar sobre a forma que deve assumir sua             antagonismo com a Alemanha. Assinalando que suas obras ti-
próxima festa autocongratulatória.     O romance tinha a intenção       nham sido banidas na Alemanha e na Áustria, Musil pediu asilo
de apresentar uma visão "grotesca" (nas palavras de Musil) da           argumentando    que não havia outro lugar no mundo de língua
Áustria às vésperas da Guerra Mundial.' Sustentado financei-            alemã onde pudesse ganhar a vida como escritor. Embora lhe

     54                                                                                                                            55
permitissem   que ficasse residindo no país, ele nunca se sentiu        políticas herdadas do Iluminismo não eram adequadas à nova
 em casa na Suíça. Era pouco conhecido        no país; não tinha ta-     civilização de massa que vinha crescendo nas cidades.
 lento para a autopromoção; e era desdenhado pelo mecenato da                 Para Musil, o traço mais obstinadamente retrógrado da cul-
 Suíça. Ele e a mulher sobreviviam graças à generosidade de uns          tura alemã (da qual a cultura austríaca fazia parte - ele não le-
 poucos outros. "Hoje eles nos ignoram. Mas depois que morrer-           vava a sério a ideia de uma cultura austríaca autônoma) era sua
 mos irão se gabar de nos ter dado asilo", declarou amargamente          tendência a manter o intelecto e o sentimento em compartimen-
 Musil a Ignazio Silone. Sentia-se deprimido demais para avan-           tos separados, para em seguida entregar-se à estupidez irrefletida
 çar em seu romance. Em 1942, aos 61 anos de idade, depois de            das emoções. Encontrava mais claramente essa divisão entre os
 uma sessão de exercícios vigorosos numa cama elástica, teve um          cientistas com quem trabalhou,     homens de intelecto levando
 derrame e morreu.2                                                      uma vida emocional a seu ver rudimentar. A educação dos sen-
     "Ele achava que ainda tinha muitos anos pela frente", dis-          tidos por um refinamento da vida erótica lhe parecia conter al-
se a viúva. "O pior é que um volume inacreditável de material            guma promessa de elevar a sociedade a um plano ético mais
-   esboços, anotações,    aforismos, capítulos de romance,       diá-   alto. Ele deplorava os papéis rígidos que se estendiam inclusive
rios -   fica para trás, e só ele poderia organizar esses escritos."     ao território da intimidade   sexual, impostos tanto às mulheres
Ante a recusa de editoras comerciais, a viúva publicou por sua           quanto aos homens pelos costumes burgueses. "Nações inteiras
conta um terceiro volume do romance, constituído de fragmen-             da alma se perderam    e naufragaram    em consequência   disso",
                                                                         escreveu ele.4
tos numa ordem não muito rigorosa.3
                                                                              Devido à concentração que exibe em sua obra, a partir de
     Musil pertenceu a uma geração de intelectuais de fala ale-          O jovem Torless, nos funcionamentos mais obscuros do desejo
                                                                         sexual, Musil costuma ser visto como um freudiano. Mas ele não
mã que viveu especialmente de perto as etapas sucessivas do des-
                                                                         reconhecia essa dívida. Não gostava da moda da psicanálise, re-
moronamento     da ordem europeia entre 1890 e 1939: primeiro, a
                                                                         provava sua reivindicação de ampla abrangência e seus padrões
crise premonitória nas artes, encarnada na primeira onda do mo-
                                                                         nada científicos de argumentação e prova. Preferia a psicologia
vimento modernista; em seguida, a guerra de 1914-8 e as revolu-
                                                                         da variedade que, ironicamente, qualificava de "rasa" - ou seja,
ções propiciadas pela guerra, destruindo instituições tanto tra-
                                                                         a psicologia empírica e experimental.5
dicionais quanto liberais; e finalmente os anos desgovernados do
                                                                             Tanto Musil quanto Freud na verdade faziam parte de um
pós-guerra, culminando    com a tomada do poder pelo fascismo.
                                                                         movimento maior do pensamento europeu. Ambos se mostra-
O homem sem qualidades -      um livro até certo ponto ultrapassa-
                                                                         vam céticos quanto ao poder da razão para servir de guia à con-
do pela própria história enquanto era escrito -     propunha-se     a
                                                                         duta humana; ambos formularam diagnósticos sobre a civilização
diagnosticar esse colapso, que Musil cada vez mais julgava ter-se        centro-europeia do fin-de-siecle e seus males; e ambos decidiram
originado na incapacidade demonstrada pela elite liberal euro-           explorar o continente sombrio da psique feminina. Para Musil,
peia em reconhecer,    depois de 1870, que as doutrinas sociais e        Freud era antes um rival que uma referência.

    56
                                                                                                                                   57
o guia preferido   de Musil no território do inconsciente era   abrem em nós. O único vislumbre que nos é concedido de Tür-
Nietzsche. Em Nietzsche Musil encontrava uma abordagem das           less mais adiante na vida sugere que ele não se transformou ne-
questões éticas que ia além de uma simples polarização entre o       cessariamente num homem mais sensato ou melhor, e sim ape-
bem e o mal; o reconhecimento de que a arte pode ser ela pró-        nas num homem mais prudente.
pria uma forma de exploração intelectual; e um modo de filo-              Mais perto do final da sua vida, Musil negava que O jovem
sofar, mais aforístico do que sistemático, que convinha perfei-      Torless tratasse de experiências da sua própria juventude ou mes-
tamente ao seu temperamento cético. A tradição do realismo           mo da adolescência em geral. Ainda assim, as figuras em que fo-
ficcional nunca fora forte na Alemanha; à medida que Musil se        ram inspirados Basini e seus algozes Beineberg e Reiting podem
desenvolvia como escritor, sua ficção se tornava cada vez mais       ser facilmente identificadas em meio aos rapazes que Musil co-
ensaística na estrutura, fazendo acenos apenas precários na dire-    nhecera em Mahrisch-Weisskirchen,        enquanto uma das confu-
ção da narrativa realista.
                                                                     sões mais profundas de Türless -    quanto à natureza dos seus sen-
                                                                     timentos em relação à própria mãe -      é espelhada nos diários da
     Die Verwirntngen des Zoglings Torless (Verwirrungen são         juventude do próprio Musil. A distância entre o sangfroid da apa-
perplexidades, estados perturbados da mente; Zogling é um ter-
                                                                     rência externa de Türless e as forças que fervilham dentro dele,
mo bastante formal, com ressonâncias de classe alta, para um
                                                                     entre a operação bem calibrada da escola durante o dia e as sinis-
aluno de internato) se constrói em torno de uma história de vio-
                                                                     tras flagelações noturnas do sótão, tem seu paralelo na distância
lência sádica numa academia de rapazes da elite. Mais especi-
                                                                     entre a fachada burguesa bem-arrumada       apresentada pelos pais
ficamente, é o relato de uma crise que um dos rapazes, Türless
                                                                     de Türless e o que o filho, consternado, sabe que deve ocorrer
(seu primeiro nome jamais é revelado), atravessa em decorrên-
                                                                     em particular.
cia de ter participado da promoção deliberada     e destrutiva do
                                                                          A metáfora principal que Musil utiliza para capturar essas
colapso de um colega, Basini, que tem a infelicidade de ser sur-
                                                                     incomensurabilidades      (o que o próprio Türless chama de "in-
preendido   no ato de roubar. A exploração da crise interior de
                                                                     comparabilidades")     vem da matemática. Entre os números intei-
Türless, crise moral, psicológica e em última instância epistemo-
                                                                     ros e as frações de números inteiros -   que reunidos constituem
lógica, apresentada em grande parte a partir da consciência do
próprio rapaz, constitui a substância do romance.                    os chamados números racionais -,      e de algum modo entrelaça-
    No final, o próprio Türless tem um colapso e é discretamen-      dos com eles pelas operações do raciocínio matemático, existem
te removido da escola. Olhando em retrospecto, ele sente que         os infinitamente mais numerosos números irracionais, núme-
conseguiu resistir à tormenta e sair inteiro. Mas não fica claro     ros que não podem ser representados como números inteiros. Os
até que ponto devemos confiar em sua autoavaliação, pois ela         adultos, tendo à frente os professores de Türless, parecem não ter
parece basear-se na decisão de que a única maneira de sair-se        a menor dificuldade em admitir a coabitação do racional com o
bem no mundo é evitar o exame muito próximo dos abismos que          irracional, mas para Türless esta última dimensão encontra-se
as experiências extremas, especialmente as experiências sexuais,     vertiginosamente fora do seu alcance.

    58                                                                                                                           59
Concluindo   o seu depoimento      no inquérito sobre o caso   caminho, será que a procura do artista deve incluir dar vazão a
 Basini, Türless afirma ter encontrado    uma solução para a sua     seus impulsos mais sombrios, para ver aonde o levam? A arte sem-
 confusão mental ("eu sei que na verdade estava enganado") e ter     pre vale mais que a moral? A obra da juventude de Musil nos
 chegado a salvo no início da vida de jovem adulto ("Não tenho       propõe essa questão, mas só responde da maneira mais incerta.
 mais medo de nada. E sei: as coisas são as coisas, e continuarão        Musil nunca chegou a renegar O jovem Torless. Ao contrá-
 a sê-lo para sempre"). Os professores reunidos passam longe de      rio, continuava a avaliar com uma surpresa favorável o que con-
compreender o que ele tenta dizer-lhes: ou nunca tiveram expe-       seguira realizar, inclusive no plano técnico, quando tinha uma
riências como a dele ou então as reprimiram com energia. Tür-        idade tão tenra. Sua metáfora principal, com sua decorrência de
less é fora do comum na meticulosidade com que enfrenta _            que o nosso mundo real, racional e cotidiano não tem bases reais
ou é levado a enfrentar - suas trevas interiores; achemos nós ou     e racionais, estende-se a O homem sem qualidades, em que Mu-
não que ele se trai ao adotar mais tarde a pose do esteta absorto    sil compara o espírito em que os irmãos Ulrich e Agathe em-
em si mesmo, sem dúvida ele encarna, em sua juventude con-           preendem sua "viagem ao limite do possível", uma arriscada
fusa (confusão, Verwirnmg, é uma palavra que Musil emprega           exploração do limite até onde podem ir os sentimentos    que se
sempre com ironia), a figura do artista dos tempos modernos, vi-     encontra no cerne do livro, à "liberdade com que a matemáti-
sitando os rincões mais distantes da experiência e de lá nos tra-    ca às vezes recorre ao absurdo para chegará verdade"J A obra de
zendo seu relato.6
                                                                     Musil, do começo ao fim, é contínua: o registro cada vez mais
     A despeito do amoralismo    que faz de O jovem Torless um       evoluído do confronto entre um homem de sensibilidade suma-
produto evidente da sua época, as questões morais suscitadas por     mente inteligente e a época que o viu nascer, tempos que ele
sua história permanecem conosco. Beineberg, o mais intelec-          classifica, em tom amargo mas justo, de "malditos".8
tualmente inclinado dos colegas de Türless, tem uma justifica-
tiva nitzschiana em versão vulgar, protofascista, para o tormento                                                              (2001)
infligido a Basini: eles três pertencem a uma nova geração, a que
as regras antigas não se aplicam mais ("a alma está mudada");
quanto à compaixão, ela é um dos impulsos mais rasteiros do ho-
mem, e suas imposições precisam ser suplantadas. Türless não é
Beineberg. Ainda assim, sua perversidade peculiar - a de fazer
Basini falar sobre o que fizeram com ele - não é nada moral-
mente superior às chibatadas    aplicadas pelos outros dois; en-
quanto no ato homossexual que pratica com Basini ele faz o pos-
sível para não demonstrar qualquer ternura para com o garoto.
    Num mundo em que não existem mais regras ditadas por
Deus, em que agora é ao filósofo-artista que cabe mostrar-nos o

    60                                                                                                                        61
4· Walter Benjamin, Passagens                                              o que    estaria na mala, e onde foi parar, só podemos espe-
                                                                      cular. Gershom Scholem, amigo de Benjamin, sugere que a obra
                                                                      perdida era a versão mais recente do ainda inacabado Passa-
                                                                      gen-Werk, conhecido em inglês como The Arcades Project.'"
                                                                      ("Para os grandes escritores", escreveu Benjamin, "as obras aca-
                                                                      badas pesam menos que os fragmentos em que trabalham por
                                                                      toda a vida.") Mas foi devido a seu esforço heroico de salvar seu
                                                                      manuscrito das fogueiras do fascismo e transportá-Io para o que
                                                                      via como a segurança da Espanha e, mais tarde, dos Estados
                                                                      Unidos, que Benjamin se transformou num ícone do intelectual
                                                                      do nosso tempo.2
                                                                           Claro que a história acaba bem. Uma cópia do manuscrito
                                                                      das Passagens deixada em Paris fora guardada na Bibliotheque
                                                                      Nationale por Georges Bataille, amigo de Benjamin. Recupera-
     A história tornou-se tão conhecida     que praticamente   não    do ao final da guerra, foi publicado em 1982 nas condições em
precisa ser lembrada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, a     que estava, ou seja, em alemão com grandes trechos em fran-
data, 1940. Walter Benjamin, em fuga da França ocupada, pro-          cês. E agora a magnum opus de Benjamin nos chega em tradu-
cura a mulher de um certo Fittko, que conhecera num campo de          ção integral para o inglês, feita por Howard Eiland e Kevin Mc-
refugiados. Pelo que entendeu, conta ele, Frau Fittko saberá con-
                                                                      Laughlin, e estamos finalmente em posição de perguntar: por
duzir a ele e a seus companheiros, através dos Pireneus, até a Es-    que tanta preocupação com um tratado sobre o comércio lojista
panha neutra. Partindo com o grupo à procura da rota mais ade-        na Paris do século XIX?
quada, Frau Fittko percebe que Benjamin carrega consigo uma
mala pesada. Será a mala realmente necessária, pergunta ela?               Walter Benjamin nasceu em Berlim em 1892, numa família
Contém um original, ele responde. "Não posso correr o risco de        de judeus assimilados. Seu pai era um bem-sucedido leiloeiro de
perdê-Ia. Precisa ser salvo... É bem mais importante do que eu.'"     arte com investimentos no mercado de imóveis; os Benjamin
     No dia seguinte, eles atravessam as montanhas. Benjamin,         eram, por praticamente qualquer padrão, bastante ricos. Ao final
que tem o coração fraco, precisa fazer pausas de poucos em pou-       de uma infância doentia e superprotegida, Benjamin foi enviado,
cos minutos. Na fronteira, são todos detidos. Seus papéis não         aos treze anos, para um internato progressista no interior, onde
estão em ordem, diz a polícia espanhola; precisam voltar para a       caiu sob a influência de um dos diretores, Gustav Wyneken. Por
França. Em desespero, Benjamin toma uma dose letal de morfi-          alguns anos depois de sair da escola ainda permaneceu                  ativo no
na. A polícia faz uma lista dos pertences do falecido, e essa rela-
ção não faz qualquer referência a um manuscrito.                      * Passagens. Trad. Irene Aron. Belo Horizonte:   UFMG, 2006. (N. E.)

    62
                                                                                                                                              63
movimento juvenil de Wyneken, baseado num credo antiautori-            cante. "Toda vez que senti um grande amor, sofri uma mudan-
tário e de volta à natureza; só romperia com ele em 1914, quando       ça tão fundamental      que me vi perplexo", escreveu Benjamin em
Wyneken declarou seu apoio à guerra.                                   retrospecto. "Um amor autêntico sempre me fazia ficar parecido
      Em 1912 Benjamin matriculou-se como estudante de filolo-         com a mulher que eu amava."3 Nesse caso, a transformação acar-
gia na Universidade de Friburgo. No entanto, não achou o am-           retou uma reorientação política. "O rumo das pessoas pensantes
biente intelectual de lá a seu gosto, e ingressou na militância em     e progressistas em pleno uso dos seus sentidos leva a Moscou, e
favor de uma reforma educacional. Quando começou a guerra,             não à Palestina", declarou-lhe Asja Lacis em tom peremptório.4
evitou o serviço militar primeiro simulando problemas médicos
                                                                       Todos os vestígios de idealismo em seu pensamento,         para não
e depois mudando-se para a Suíça neutra. Lá permaneceu até
                                                                       falar do seu flerte com o sionismo, precisavam ser postos de lado.
1920, ensinando filosofia e preparando uma dissertação de dou-
                                                                       Seu dileto amigo Scholem já tinha emigrado para a Palestina,
torado para a Universidade de Berna. Sua mulher se queixava da
falta de vida social.                                                  acreditando que Benjamin viria em seguida. Benjamin arranjou
                                                                       uma desculpa para não ir, e continuou inventando novas descul-
     Benjamin sentia-se tão apegado às universidades, assinalou
                                                                       pas até o fim.
seu amigo Theodor Adorno, quanto Kafka às companhias de se-
                                                                            O primeiro fruto da ligação entre Benjamin e Asja Lacis foi
guro. Apesar de suas desconfianças, porém, Benjamin cumpriu
                                                                       um artigo a quatro mãos para o Frankfurter Zeítung. Tratando
todos os rituais necessários para obter a Habílítatíon (o douto-
                                                                       aparentemente    da cidade de Nápoles, num nível mais profundo
rado superior) que lhe permitiria tornar-se catedrático, subme-
                                                                       fala de um ambiente urbano de tipo diferente, que o intelectual
tendo sua dissertação, sobre o teatro alemão da época barroca, à
                                                                       berlinense explora pela primeira vez: um labirinto de ruas onde
Universidade de Frankfurt, em 1925. Surpreendentemente,    a dis-
sertação não foi aceita. Ficou a meio caminho das cadeiras de          as casas não têm número e as fronteiras entre a vida particular e
literatura e de filosofia, e faltou a Benjamin um patrono acadê- .     a vida pública são porosas.
mico disposto a encaminhar seu caso. (Quando foi publicada em               Em 1926, Benjamin viajou até Moscou para um encontro
1928, a dissertação foi tratada com atenção e respeito pela crítica,   com Asja Lacis, que não o recebeu de muito boa vontade (es-
apesar das queixas de Benjamin afirmando o contrário.)                 tava envolvida com outro homem); em seu registro da visita,
     Com o fracasso dos seus planos acadêmicos, Benjamin en-           Benjamin fala de sua própria infelicidade, além de especular
cetou uma carreira de tradutor, radialista e jornalista free-lancer.   se deveria ou não se filiar ao Partido Comunista e submeter-se
Entre os trabalhos que lhe encomendaram estava uma tradução            à respectiva linha partidária. Dois anos mais tarde, ele e Asja se
da Recherche de Proust; completou três dos sete volumes.               reencontraram    por algum tempo em Berlim. Moravam juntos, e
                                                                       juntos compareciam       às reuniões da Liga dos Escritores Proletá-
      Em 1924, Benjamin visitou Capri, na época a estação de fé-       rios-Revolucionários.    A ligação entre os dois acabou por preci-
rias preferida dos intelectuais alemães. Lá conheceu Asja Lacis,       pitar um processo de divórcio em que Benjamin se comportaria
diretora teatrallituana e comunista militante. O encontro foi mar-     com notável crueldade em relação à sua mulher.

    64                                                                                                                              65
Na viagem a Moscou, Benjamin manteve um diário que                   Por muitos anos depois de conhecer Lacis, Benjamin ainda
mais tarde revisaria para publicação. Benjamin não falava rus-      repetia as verdades comunistas - "a burguesia [...] está conde-
so. E em vez de recorrer a intérpretes, lançava mão do que mais     nada ao declínio devido às suas contradições internas, que se
tarde chamaria de seu "método fisionômico", lendo Moscou de         tornarão fatais com o desenvolvimento" - sem na verdade ja-
fora para dentro, evitando qualquer abstração ou juízo, apresen-    mais ter lido Marx.6 "Burguês" era a ofensa que reservava a um
tando a cidade de tal maneira que "toda a factualidade já é teo-    determinado tipo de espírito - materialista, desprovido de curio-
ria" (a frase vem de Goethe).5                                      sidade, egoísta, puritano e, acima de tudo, conformado na satis-
    Algumas das afirmações de Benjamin sobre a experiência          fação consigo mesmo - que lhe despertava uma hostilidade
"mundialmente    histórica" que viu em curso na União Soviética     visceral. Proclamar-se comunista era uma escolha de lado, mo-
- por exemplo, sua ideia de que com uma penada o Partido ti-        ral e histórica, contra a burguesia e suas próprias origens burgue-
nha de fato rompido a ligação entre o dinheiro e o poder - ho-      sas. "Uma coisa [... ] nunca será plenamente resolvida: termos
je soam ingênuas. Ainda assim, seu olho permanece aguçado.          falhado em abandonar nossos pais", escreve ele em Rua de mão
Muitos dos novos moscovitas ainda eram camponeses, observa          única, a coletânea de anotações de diários, sonhos, aforismos, mi-
ele, levando uma vida de aldeia subordinada a um ritmo de al-       niensaios e fragmentos satíricos, inclusive observações corrosivas
deia; as distinções de classe podem ter sido abolidas, mas no in-   sobre a Alemanha de Weimar, com que se proclamou um inte-
terior do Partido desenvolvia-se um novo sistema de castas. Uma     lectual independente   em 1928. (V.l, p. 446) Não ter abandonado
cena de um mercado de rua captura a posição da religião, re-        em tempo a casa paterna significava uma condenação a passar o
duzida à humildade: um ícone à venda ladeado por dois retra-        resto da vida evitando Emil e Paula Benjamin: em sua reação à
tos de Lênin, "como um prisioneiro entre dois policiais". (v. 2,    ansiedade dos seus pais em se assimilarem à classe média alemã,
pp. 32,26)                                                          Benjamin lembra muitos outros judeus de fala alemã de sua ge-
     Embora Asja Lacis seja uma constante presença coadju-          ração, entre eles Franz Kafka. O que incomodava os amigos de
vante no "Diário de Moscou", e embora Benjamin sugira que as        Walter Benjamin em seu marxismo era que parecia haver nele
relações sexuais entre eles eram problemáticas, quase não conse-    algo de forçado, de puramente reativo.
guimos formar uma ideia da presença física da mulher. Como               Os primeiros textos de Benjamin marcados pelo discurso de
escritor, Benjamin não tinha talento para descrever as outras       esquerda são uma leitura deprimente.    Existe uma deriva para o
pessoas. Nos escritos da própria Lacis encontramos uma impres-      que só pode ser definido como estupidez deliberada ao longo das
são muito mais nítida de Benjamin: seus óculos comparados a         rapsódias que compõe sobre Lênin (cujas cartas teriam "a doçu-
pequenos refletores, suas mãos desajeitadas.                        ra de uma grande epopeia", diz Benjamin num texto que não foi
                                                                    republicado pelos editores de Harvard), ou então a repetição dos
     Pelo resto da vida, Benjamin    se diria comunista   ou sim-   terríveis eufemismos do Partido: "O comunismo não é radical.
patizante. Mas quão profunda terá sido sua ligação com o co-        Por isso, não tem a intenção de simplesmente    abolir as relações
munismo?                                                            familiares. Limita-se a submetê-Ias à prova a fim de determinar

     66                                                                                                                        67
quanto podem ser transformadas.      E especula: poderá a família     reta" com o "progressismo" da técnica, e apelar mais uma vez à
ser desmontada, de maneira que seus componentes          possam ser    evocação dos encantos da engenharia: o escritor, tanto quanto o
socialmente reaproveitados?"J                                          engenheiro, é um especialista técnico e assim precisa ser ouvido
      Essas palavras saíram da crítica a uma peça de Bertolt Brecht,   nas questões técnico-literárias. (v. 2, pp. 769, 770)
que Benjamin conheceu por intermédio de Lacis e cujo "pensa-                 Uma argumentação rudimentar a esse ponto não era fácil
mento em bruto", um pensamento despojado dos ornamentos                para Benjamin. Será que sua decisão de seguir a linha do Partido
burgueses, atraiu Benjamin por algum tempo. "Esta rua tem o            não lhe causava certo desconforto, na mesma época em que a
nome de rua Asja Lacis por causa daquela que, como uma en-             perseguição de Stálin aos artistas estava no auge? (A própria Asja
genheira, abriu-a através do autor", diz a dedicatória de Rua de       Lacis se tornaria uma das vítimas de Stálin, passando anos da sua
mão única. A comparação tenciona funcionar como um elogio.             vida num campo de trabalho.) Um texto curto escrito no mesmo
O engenheiro é o homem ou a mulher do futuro, aquele que,              ano, 1934, pode nos dar uma pista. Aqui Benjamin escarnece dos
impaciente diante da parolagem excessiva, armado do conhe-             intelectuais que "transformam em ponto de honra permanecer
                                                                       íntegros, até o fim, em todas as questões", recusando-se a enten-
cimento prático, age de maneira decisiva transformando a paisa-
                                                                       der que, a fim de obter sucesso, precisam apresentar rostos di-
gem. (Stálin também admirava os engenheiros. E acreditava que
                                                                       ferentes a diferentes públicos. Eles são, compara ele, como um
os escritores deviam ser engenheiros da alma humana, encarre-
                                                                       açougueiro que se recusasse a desmanchar uma carcaça, fazen-
gados de "reciclar" a h umanidade de dentro para fora.)
                                                                       do questão de só vendê-Ia numa única peça. (v. 2, p. 743)
    Dos escritos mais conhecidos de Benjamin, "O autor como
                                                                           Como devemos entender esse texto? Estará Benjamin lou-
produtor", composto em 1934 como discurso para o Instituto de
                                                                       vando em tom irônico uma integridade intelectual antiquada?
Estudos sobre o Fascismo em Paris, mostra mais claramente a
                                                                       Estará apresentando uma confissão velada de que ele próprio,
influência de Brecht. Em questão, a surrada discussão da esté-
                                                                       Walter Benjamin, não é quem pode parecer? Estará examinan-
tica marxista: o que é mais importante, a forma ou o conteúdo?
                                                                       do a questão prática, embora amarga, das pressões vividas pelo
Benjamin propõe que uma obra literária só pode ser "politica-          escritor? Uma carta a Scholem (a quem nem sempre, entretan-
mente correta" caso também seja "literariamente correta". "Po-
                                                                       to, costuma contar toda a verdade) sugere a última leitura. Nela
liticamente correto" é, claro, um mero chavão; na prática, signifi-    Benjamin defende seu comunismo como "a tentativa óbvia e de-
cava que estava de acordo com a linha do Partido. "O autor como
                                                                       liberada de um homem, que se vê completa ou quase comple-
produtor" é uma defesa da ala esquerda da vanguarda modernis-          tamente privado de qualquer meio de produção, de proclamar
ta, tipificada para Benjamin pelos surrealistas, contrários à linha    seus direitos a ele". Noutras palavras, ele adere ao Partido pelo
literária do Partido, com sua preferência por histórias realistas      mesmo motivo que deve impelir qualquer proletário: porque o
de compreensão    fácil impregnadas   de enfática mensagem pro-        gesto atende a seus interesses materiais. (v. 2, p. 853)
gressista. Para defender sua visão, Benjamin se sente obrigado a
apontar o hoje esquecido romancista soviético Serguei Tretiakov             No momento em que os nazistas chegam ao poder, mui-
como um exemplo da convergência da "tendência política cor-            tos dos companheiros de Benjamin, entre eles Brecht, já tinham

    68
                                                                                                                                 69
interpretado corretamente   os sinais e deixado a Alemanha. Ben-
                                                                     mo seus líderes lhes pediam para ser. O fascismo combinava a
 jamin, que já se sentia de qualquer maneira deslocado na Ale-       força da grande arte do passado -     o que Benjamin chama de
manha havia muitos anos, e que viajava para passar um bom            "arte aurática" - com o poder multiplicador dos novos meios
tempo na França ou em Ibiza sempre que podia, logo partiu            de comunicação "pós-auráticos", acima de tudo o cinema, para
também. (Seu irmão mais moço, Georg, foi menos prudente:             criar os seus novos cidadãos fascistas. Para os alemães comuns, a
preso por atividades políticas em 1934, morreu em Mauthausen         única identidade disponível, aquela com que se deparavam com
em 1942.) Instalou-se em Paris, onde levava uma existência pre-      insistência nas telas, era uma identidade fascista, com figurinos
cária contribuindo para jornais alemães sob uma série de pseu-       fascistas e posturas fascistas de dominação ou obediência.
dônimos alemães de aparência ariana (DetlefHolz, K. A. Stemp-              A análise de Benjamin do fascismo como teatro suscita vá-
flinger), ou então vivendo de favores. Com o início da guerra,       rias questões. Estará de fato a política enquanto espetáculo no
foi detido como estrangeiro inimigo. Libertado graças aos esfor-     cerne do fascismo alemão, em lugar do ressentimento e dos so-
ços do PEN clube da França, fez arranjos imediatos para partir       nhos de revanche histórica? Se Nuremberg era a política este-
para os Estados Unidos, e em seguida encetou sua viagem fatal        ticizada, não seriam os grandes desfiles de Primeiro de Maio e
rumo à fronteira espanhola.                                          outras tentativas de espetáculo   organizadas por Stálin formas
     As ideias mais aguçadas de Benjamin sobre o fascismo, o         equivalentes de esteticização da política? Se a genial idade do fas-
inimigo que o privou de sua casa, da carreira e em última instân-
                                                                     cismo estava em apagar a linha que separa a política dos meios de
cia da própria vida, tratam do meio usado pelo movimento pa-         comunicação, onde estará o elemento fascista na política condu-
ra convencer o povo alemão: converter-se em teatro. Essas ideias
                                                                     zida pelos meios de comunicação de massa das democracias oci-
aparecem com mais plenitude em "A obra de arte na era de sua         dentais? Não existem variedades diferentes de política estética?
reprodutibilidade   técnica" (1936), mas já eram anunciadas des-          Menos questionável que a sua análise do fascismo é o que
de 1930, na resenha de um livro organizado por Ernst Jünger.         Benjamin tem a dizer sobre o cinema. Sua avaliação de que o
     É lugar-comum observar que os grandes comícios de Hitler        cinema tem um potencial de ampliar a experiência é profético:
em Nuremberg, com sua mescla de declamação, música hipnó-.           "O cinema [...] derrubou as paredes do [nosso] mundo-presídio
tica, coreografia de massas e iluminação dramática, tinham como      com a dinamite do décimo de segundo, e agora, em meio a seus
modelo as montagens de Wagner em Bayreuth. O que é original          escombros e ruínas espalhados por uma vasta área, podemos via-
nos textos de Benjamin é sua afirmação de que a política apre-       jar calma e aventurosamente".8 E essa visão é surpreendente por-
sentada como um teatro grandioso, e não como discurso e de-          que já em 1936 sua teoria do cinema estava ultrapassada. Ele
bate, não se limitava a explicar o fascínio do fascismo, mas era o   atribuía um valor excessivo à montagem, no que concordava
fascismo em essência.
                                                                     com Serguei Eisenstein (e só com ele), subestimando a rapidez
    Tanto nos filmes de Leni Riefenstahl quanto nos cinejornais      com que as pIa teias do cinema passariam a dominar uma gra-
exibidos em todos os cinemas do país, as massas alemãs podiam        mática mais extensa da narrativa cinematográfica. E não fazia
contemplar aquelas imagens em que elas próprias figuravam co-        qualquer menção ao prazer visual: para ele, o cinema consistia

    7°
                                                                                                                                 71
em assistir a montagens surpreendentes que, pelo impacto, des-              Em "A obra de arte", a ideia de aura é estendida, de manei-
  pertariam novas maneiras de ver as coisas (e aqui, novamente,          ra bastante descuidada,      das antigas fotografias às obras de arte
  pode-se perceber claramente a influência de Brecht).                   em geral. O fim da aura, diz Benjamin, será mais que compen-
       O conceito-chave de Benjamin (embora ele sugira em seu            sado pelo potencial emancipatório       das novas tecnologias de re-
 diário que tenha sido criado na verdade pela livreira e editora         produção. Será o cinema a substituir a arte aurática.
 Adrienne Monnier) para descrever o que sucede com a obra de                  Mesmo os amigos de Benjamin acharam a ideia da aura
 arte na era de sua reprodutibilidade   técnica (principalmente      a   difícil de aceitar em sua versão ampliada.       Brecht, para quem
 era da câmera - Benjamin pouco fala da imprensa) é a "perda             Benjamin explicou o conceito durante longas visitas à casa do
 da aura". Até meados do século XIX, diz ele, persistia uma rela-        dramaturgo    na Dinamarca,      escreve o seguinte no seu diário:
 ção intersubjetiva de certo tipo entre a obra de arte e seu espec-      "[Ben jamin] diz: quando você sente o olhar de alguém pousado
 tador: o espectador olhava e a obra de arte, por assim dizer, de-       em você, mesmo que seja nas suas costas, você responde (!), e
 volvia o seu olhar. E era essa reciprocidade que clefinia a aura:
                                                                         a expectativa de que tudo que você contempla          também olha
 "Perceber a aura de um fenômeno [significa] atribuir-lhe a capa-        para você cria a aura [... ] tudo muito místico, apesar das suas
 cidade de, por sua vez, olhar para nós".9 Em torno da aura existe,
                                                                         atitudes antimÍsticas.     E é assim que a abordagem materialista
 assim, algo de mágico, derivado de laços antigos, hoje em vias de
                                                                         é adaptada! É assustador".lO Outros amigos não se mostraram
 desaparição, entre a arte e o ritual religioso.                         mais entusiasmados.
      Benjamin fala pela primeira vez de aura em sua "Pequena
                                                                              Ao longo da década de 1930, Benjamin esforça-se para de-
história da fotografia" (1931), em que tenta explicar por que (a seu
                                                                         senvolver uma definição devidamente materialista da aura e da
ver) os primeiros retratos fotográficos que conhecemos - os in-
                                                                         perda da aura. O filme é "pós-aurático", diz ele, porque a câme-
cunábulos da fotografia, por assim dizer - são dotados de uma
                                                                         ra, sendo um aparelho, não enxerga. (Uma afirmação questio-
aura, que já se perdeu nas fotografias da geração seguinte. Uma
                                                                         nável: não há dúvida de que os atores reagem à câmera como se
explicação que propõe para esse estado de coisas é a de que, à
                                                                         ela olhasse para eles.) Numa revisão posterior, Benjamin suge-
medida que as emulsões fotográficas foram sendo aperfeiçoa-·
                                                                         re que o fim da aura pode ser situado no momento da história
das e os tempos de exposição, reduzidos, o que se capturava nos
                                                                         em que as massas urbanas se tornaram tão numerosas que as pes-
negativos deixou de ser a interioridade de um indivíduo que se
preparava para ser retratado, mas um instante isolado da vida            soas -   os passantes -    pararam de trocar olhares. Em Passagens,
corrente do fotografado. Outra sugestão que ele faz é de que a           ele vai além e transforma a perda da aura em parte de um de-
primeira geração de fotógrafos tinha uma formação em artes plás-         senvolvimento    histórico mais amplo: a percepção desencanta-
ticas, enquanto os das gerações seguintes eram meros artesãos.           da de que a singularidade,     inclusive a singularidade da obra de
Outra ainda é de que alguma coisa teria acontecido com os re-            arte tradicional, transformou-se em mercadoria como outra qual-
tratados entre as décadas de 1840 e 1880, algo que teria a ver com       quer. A indústria da moda, dedicada à fabricação de produtos
o agrosseiramento da burguesia.                                          artesanais únicos -       que chama de "criações" -     destinados a

    72                                                                                                                                 73
serem copiados e reproduzidos numa escala maciça, é quem mos-         tremeados de reflexões acerca da natureza da autobiografia, e no
tra aqui esse novo caminho.                                           final trata mais das vicissitudes da memória -   é forte a presen-
     Em pouco tempo, Benjamin moderaria seu otimismo quan-            ça de Proust - que de fatos concretos ocorridos na infância de
to ao potencial libertador da tecnologia. Em 1939, já comparava       Benjamin. Ele recorre a uma metáfora arqueológica para expli-
o ritmo do projetor de cinema ao ritmo da correia transportado-       car por que se opõe à autobiografia como a narrativa de uma vi-
ra ele uma fábrica. Mesmo o seu ensaio de 1936, "O narraelor", já     da. O autobiógrafo deve olhar para si mesmo como um arqueó-
mostra uma mudança em sua atitude. A memória é a principal            logo, diz ele, cavando cada vez mais fundo nos mesmos poucos
responsável pela preservação ela tradição, diz ele, e a narração de   lugares, à procura dos restos sepultados do passado.
histórias é sua principal forma de transmissão; mas o processo             Ao lado do "Diário de Moscou" e da "Berliner Chronik",
de privatização da vida que caracteriza a cultura moderna tende       os volumes 1 e 2 contêm vários outros textos curtos autobiográfi-
a mostrar-se fatal para as histórias assim contadas. Contar histó-    cos: uma narrativa bastante literária de como ele foi abandona-
rias teria sido artificialmente confinado aos romances, uma cria-     do por uma amante; registros de suas experiências com o haxi-
ção da tecnologia da impressão e da burguesia.                        xe; a transcrição de sonhos; fragmentos de diários (Benjamin se
                                                                      preocupava com o suicídio em 1931 e 1932); e um diário de Pa-
     Benjamin não se interessava especialmente      pelo romance      ris, trabalhado para publicação, incluindo a visita a um bordel
enquanto gênero. A julgar por sua ficção, publicada nas Seleeted      masculino frequentado por Proust. Entre as revelações mais sur-
Wrítíngs [Obras escolhidas], de Harvard, não tinha um grande           preendentes: uma admiração por Hemingway ("que nos ensina
talento de narrador. Seus textos autobiográficos trazem momen-         como pensar direito através da escrita correta") e uma antipatia
tos intensos e descontínuos.   Seus dois ensaios sobre Kafka, que      por Flaubert (que acha "arquitetônico demais"). (v. 2, p. 472)
podem ser proveitosamente      complementados pela longa carta
escrita a Scholem em 12 de junho de 1938, tratam Kafka antes                Os fundamentos da filosofia da linguagem ele Benjamin fo-
como professor e autor de parábolas do que como propriamente           ram lançados ainda no início da sua carreira. Embora suas ideias
um romancista. Mas a hostilidade mais persistente de Benjamin          sobre a linguagem tenham permanecido notavelmente estáveis,
reserva-se à história narrativa. "A história se decompõe em ima-       seu interesse arrefeceu durante sua fase mais política, tornando
gens, e não em narrativas", escreveu ele. A história narrativa nos     a emergir apenas no final ela década de 1930, quando voltou a
impõe a causalidade e a motivação externa; devia-se dar às coisas      explorar o pensamento místico judaico. Seu ensaio fundamen-
a oportunidade de falarem por si mesmas.H                              tal na área, "Sobre a linguagem enquanto tal e a linguagem do
     "Uma infância em Berlim em torno de 1900", o texto auto-          homem", data de 1916. Aqui, acompanhando        Schlegel e Nova-
biográfico mais interessante de Benjamin, permaneceu inédi-             lis, bem como o que aprendera com Scholem sobre o misticis-
to durante a sua vida. Apesar de seu título, a "Berliner Chronik"       mo judaico, Benjamin afirma que a palavra não é um signo, um
[Crônica berlinense] que ele escrevera antes não se construía cro-      substituto para outra coisa, mas o nome de uma releia. Em "A
nologicamente,   mas como uma montagem de fragmentos, en-               tarefa do tradutor" (1921), ele tenta dar corpo à sua noção da

                                                                                                                                   75
     74
Ideia, apelando para o exemplo de Mallarmé e de uma lingua-             pondem ao mundo de acordo com ele. À medida que essa fa-
 gem poética liberada da sua função comunicativa.                        culdade mim ética foi-se deteriorando     ao longo da história, a
     Não fica claro como essa concepção simbolista da lingua-            linguagem escrita transformou-se no seu mais importante repo-
 gem pode reconciliar-se com o materialismo histórico posterior          sitório. Daí o interesse constante de Benjamin pela grafologia,
 de Benjamin,    mas este sempre afirmava que uma ponte podia            o estudo da caligrafia como "movimento expressivo" do caráter.
 ser construída entre os dois, por mais "tensa e problemática" que       (v. 2, p. 399)
 pudesse ser.12 Em seus ensaios literários da década de 1930, ele             Em ensaios escritos em datas posteriores a 1933, Benjamin
 sugere que aparência essa ponte poderia ter. Em Proust, em Kaf-
                                                                         esboça uma teoria da linguagem baseada na mimese. A lingua-
 ka e nos surrealistas, diz ele, o mundo deixa de ter uma signifi-       gem adâmica era onomatopaica,      diz ele; os sinônimos em dife-
 cação no sentido "burguês" e recupera seu poder elementar e
                                                                         rentes línguas, embora possam não soar parecidos nem ter uma
 gestuaI. O mundo como gesto é "a forma suprema em que a ver-
                                                                         aparência semelhante (a teoria pretende funcionar tanto para a
 dade pode apresentar-se a nós numa época desprovida de dou-
                                                                         linguagem falada como para a escrita), teriam semelhanças "as-
 trina teológica" .1)
                                                                         sensoriais" ["nonsensuous"]   com aquilo que significam, como
    Nos tempos de Adão, a palavra e o gesto de nomear eram a
                                                                         as teorias "místicas" ou "teológicas" da linguagem sempre reco-
mesma coisa. De lá para Cé1, a linguagem teria sido submetida a
                                                                         nheceram. (v. 2, p. 696) Assim, as palavras pain, Brot e xleb, em-
uma queda duradoura, de que BabeI foi apenas o primeiro está-
                                                                         bora diferentes na superfície, assemelham-se      num nível mais
gio. A tarefa da teologia     é recuperar as palavras, em seu poder
                                                                         profundo na medida em que corporificam a Ideia de pão. (Con-
mimético original, dos       textos sagrados em que foram preser-
                                                                         vencer-nos de que essa sua afirmativa é profunda, e não uma
vadas. A tarefa da crítica    é substancialmente similar, pois as lin-
guagens decaídas ainda        podem, na totalidade de suas inten-        simples inanidade, demanda o máximo dos poderes de Benja-

ções, indicar-nos de que lado se encontra a linguagem pura. Daí          min.) A linguagem, o desenvolvimento       supremo da faculdade

o paradoxo da "função do tradutor": que uma tradução possa               mimética, traria em si um arquivo dessas semelhanças assenso-
transformar-se em algo mais elevado do que seu original, na me-          riais. E a leitura teria o potencial de se transformar numa espécie
dida em que aponta para a linguagem anterior a BabeI.                    de experiência onírica que nos dá acesso a um inconsciente hu-
     Benjamin escreveu ainda vários textos sobre a astrologia,           mano comum, o lugar da linguagem e das Ideias.
essenciais para seus escritos sobre a filosofia da linguagem. A ciên-         A maneira como Benjamin aborda a linguagem diverge in-
cia astrológica que temos hoje, diz ele, é uma versão degene-            teiramente do entendimento    da ciência linguística do século xx,
rada de um antigo corpo de conhecimentos         oriundo de tempos       mas lhe confere um acesso privilegiado ao mundo do mito e da
em que a faculdade mimética, muito mais forte do que hoje, per-          fábula, especialmente   ao "mundo lamacento"      de Kafka que, a
mitia haver correspondências reais e imitativas entre as vidas           seu ver, é primevo e quase pré-humàno. (v. 2, p. 808) Uma leitura
dos seres humanos e os movimentos das estrelas. Hoje são só as           intensiva de Kafka deixaria marcas indeléveis nos últimos escri-
crianças que preservam um poder mimético comparável, e res-              tos, pessimistas, do próprio Benjamin.

    76
                                                                                                                                     77
);t   Y,(    *
                                                                            quisa Social, que fora transferido por Adorno e Horkheimer de
                                                                            Frankfurt para Nova York e lhe pagava um estipêndio).
         A história das Passagens é, grosso modo, a seguinte.                    De Adorno, Benjamin recebeu críticas tão severas que deci-
        No final da década de 1920, Benjamin imaginou uma obra              diu deixar o projeto temporariamente de lado e extrair um livro
  inspirada pelas antigas passagens de Paris. Ela teria a ver com a         sobre Baudelaire da massa de material que acumulara para ele.
  experiência urbana; seria uma versão da história da Bela Ador-            Parte desse livro saiu em 1938 como "A Paris do Segundo Impé-
  mecida, um conto de fadas dialético narrado de maneira surrea-            rio em Baudelaire", ainda composto pelo método da monta-
  lista pela montagem de textos fragmentários.            Como o beijo do   gem. Novamente, Adorno mostrou-se crítico: os fatos eram apre-
 príncipe, destinava-se a despertar as massas europeias para a ver-         sentados para falar por si mesmos, disse ele; não havia teoria
                                                                            suficiente. Benjamin produziu uma nova revisão, "Sobre alguns
 dade da sua vida sob o capitalismo. Teria cerca de cinquenta pá-
 ginas; nos preparativos para escrevê-Ia, Benjamin começou a                temas em Baudelaire" (1939), que teve recepção mais calorosa.
                                                                                 Baudelaire era central a Passagens porque, na visão de Ben-
 copiar citações de suas leituras sob títulos como Tédio, Moda,
                                                                            jamin, foi Baudelaire, nas Flores do mal, o primeiro a revelar a
 Poeira. À medida que alinhavava o texto, porém, ele não parava
 de crescer com novas citações e notas. Benjamin discutiu seus              cidade moderna como tema para a poesia. (Benjamin parece não
                                                                            ter lido Wordsworth que, cinquenta anos antes de Baudelaire, es-
 problemas com Adorno e Max Horkheimer, que o convenceram
                                                                            crevera sobre o sentimento de fazer parte da massa de transeun-
 de que não poderia escrever sobre o capitalismo sem um melhor
                                                                            tes numa rua de Londres, bombardeado de todos os lados por
 conhecimento     de Marx. A ideia da Bela Adormecida perdeu o
 seu brilho.                                                                olhares, atordoado pelos cartazes publicitários.)
                                                                                 Ainda assim, Baudelaire expressava a sua experiência da ci-
     Em 1934, Benjamin formulou um novo plano, mais ambi-
                                                                            dade sob a forma de alegoria, um modo literário fora de moda
cioso do ponto de vista filosófico: usando o mesmo método de
                                                                            desde o Barroco. Em "Le Cygne", por exemplo, alegorizava o
montagem, iria reconstituir a superestrutura cultural da França
                                                                            poeta como uma nobre ave, um cisne, que caminha a passos
do século XIX, a partir das mercadorias e do seu poder de se trans-
                                                                            grotescos pelo calçamento do mercado, incapaz de abrir as asas
formarem em fetiches, do qual adquirira consciência a partir da             e alçar voo.
leitura de História   e consciência           de classe, de Georg Lukács.        Por que Baudelaire usa a alegoria? E Benjamin recorre ao
Conforme suas notas se tornavam mais volumosas, ele as orga-                Capital de Marx para responder a essa pergunta. A transforma-
nizava de acordo com um elaborado sistema de arquivamento                   ção do valor de mercado em única medida do valor, diz Marx,
baseado em 36 "convolutas" (do alemão Konvolut, pilha, arqui-               reduz toda mercadoria a um simples signo -          o signo do preço
vo) com palavras-chave e referências cruzadas. Com o título de              pelo qual é vendida. Sob o império do mercado, as coisas se re-
"Paris, capital do século XIX", escreveu um resumo do material              lacionam ao seu valor efetivo tão arbitrariamente quanto, por
que reunira até então, e apresentou tudo a Adorno (na ocasião,              exemplo, na emblemática     barroca uma caveira tem a ver com a
Benjamin estava em alguma medida ligado ao Instituto de Pes-                sujeição do homem ao tempo. Os emblemas retomam assim ines-

    78
                                                                                                                                         79
peradamente ao palco histórico na forma de mercadorias, que           no sentido convencional. Tiedemann o compara aos materiais
  sob o capitalismo deixam de ser o que parecem, mas, como ad-          de construção de uma casa. Na casa hipoteticamente construí-
  vertiu Marx, começam a apresentar "[inúmeras] sutilezas meta-         da, esses materiais seriam organizados pelo pensamento de Ben-
 físicas e nuances teológicas". (Areades Projeet, p. 196) A alegoria,   jamin. Temos acesso a boa parte desse pensamento na forma das
 afirma Benjamin, é exatamente o modo de expressão correto pa-          interpolações de Benjamin, mas nem sempre conseguimos ver
 ra uma era das mercadorias.                                            como o pensamento encaixaria ou abordaria esses seus materiais.
      Enquanto trabalhava no livro sobre Baudelaire (que nunca                N uma situação assim, diz Tiedemann, poderia parecer me-
 ficou pronto - o manuscrito seria publicado postumamente co-           lhor publicar apenas as palavras do próprio Benjamin, deixando
 mo Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo), Ben-         de fora as citações. Mas a intenção de Benjamin, por mais utópi-
 jamin continuava a tomar notas para as Passagens e a acumular          ca que fosse, era de, em algum ponto do processo, remover dis-
 novas convolutas. O que foi recuperado depois da guerra no es-         cretamente os seus comentários do todo, deixando que o mate-
 conderijo da Bibliotheque Nationale foram cerca de novecentas          rial citado arcasse sozinho com o peso integral da estrutura.
 pélginas de textos copiados, especialmente de escritores do sécu-
 lo XIX, mas também de contemporâneos de Benjamin, reunidos                  As passagens de Paris, diz um guia de viagem de 1852, são
 sob vários títulos, com comentários entremeados, além de uma           "bulevares internos [...] cobertos de vidro, corredores revestidos
                                                                        de mármore que se estendem por vários quarteirões de edifícios
grande variedade de planos e sinopses. Esses materiais foram pu-
                                                                        [...] Dos dois lados [...] encontramos as lojas mais elegantes, de
blicados em 1982, editados por Rolf Tiedemann, com o título
                                                                        maneira que cada uma dessas galerias é uma verdadeira cidade,
de Passagen-Werk. O Areades Projeet de Harvard usa o texto de
                                                                        um mundo em miniatura". (Areades Projeet, p. 31) Essa arqui-
Tiedemann, mas omite boa parte de seu material de apoio e
                                                                        tetura arejada de vidro e aço logo foi imitada em outras cidades
aparato editorial. Traduz todas as passagens em francês para o in-
                                                                        do Ocidente. E o apogeu das passagens se sustentaria até o fim do
glês e acrescenta notas muito úteis, bem como uma fartura de
                                                                        século, quando acabaram eclipsadas pelas lojas de departamen-
ilustrações. É um belo volume: a maneira como lida com os com-
                                                                        tos. Para Benjamin, esse declínio fez parte da lógica implacável
plexos mecanismos de remissão de Benjamin é um verdadeiro
                                                                        da economia capitalista; ele não antevia seu retorno, em fins do
triunfo de engenhosidade   tipográfica.
                                                                        século xx, na forma dos shopping eenters urbanos.
    A história das Passagens, uma história de procrastinação e                O livro das Passagens nunca pretendeu ser uma história eco-
começos em falso, de peregrinações por labirínticos meandros            nômica (embora parte da sua ambição fosse ter o efeito de um
de arquivos em busca de uma exaustividade típica do tempera-            corretivo para toda a disciplina da história econômica). Um dos
mento de colecionador, de um terreno teórico cambiante, de crí-         primeiros esboços sugere algo que lembra muito mais "Uma in-
ticas que provocaram respostas rápidas demais e, de maneira ge-         fância em Berlim":
ral, de quanto Benjamin não sabia muito bem o que pensava,
significa que o livro que chegou até nós é radicalmente incom-               Sabemos de lugares na antiga Crécia onde havia caminhos que
pleto: incompleto   na sua concepção      e não exatamente   escrito         desciam ao submundo. Nossa existência consciente também é uma

    80
                                                                                                                                   81
terra que, em certos pontos ocultos, tem passagens que conduzem    base no princípio da montagem, justapondo fragmentos textuais
     para o mundo inferior - uma terra repleta de lugares inconspí-     do passado e do presente na expectativa de que arrancassem faís-
     cuos de onde emergem os sonhos. Durante o dia todo, sem sus-       cas uns dos outros e se iluminassem mutuamente. Assim, por
     peitar de nada, passamos por esses pontos sem nos darmos conta,    exemplo, se o item 2.1 da Convoluta L, referindo-se à abertura
     mas assim que o sono chega logo enveredamos de volta, às apal-     de um museu de arte no palácio de Versalhes em 1837, fosse lido
     padelas, para tornarmos a nos perder em seus escuros corredores.   em conjunção com o item 2-4 da Convoluta A, que acompanha
     Durante o dia, o labirinto de habitações urbanas lembra a cons-    a transformação das galerias cobertas em lojas de departamen-
     ciência; as passagens [... desembocam despercebidas nas ruas. À
                            1
                                                                        tos, idealmente a analogia "o museu está para a loja de departa-
     noite, porém, por baixo da massa tenebrosa das casas, sua escu-    mentos como a obra de arte para a mercadoria" iria acender-se
     ridão ainda mais densa se destaca como uma ameaça, e o cami-       na mente do leitor. (Arcades Project, pp. 37,408)
     nhante noturno passa às pressas por elas - a menos, porém, que          Segundo Max Weber, o que distingue os tempos modernos
     o tenhamos encorajado a enveredar pela alameda estreita. (Arca-    é a perda da fé e o desencanto. Benjamin tem uma visão diferen-
     des Profeci, p. 84)                                                te: acredita que o capitalismo adormeceu as pessoas e que elas
                                                                        só irão despertar de seu feitiço coletivo quando conseguirem fa-
     Dois livros serviram de modelo a Benjamin: Un paysan de            zê-Ias entender o que lhes aconteceu. A inscrição da Convoluta
Paris [Um camponês de Paris], de Louis Aragon (traduzido para           N vem de Marx: "A reforma da consciência consiste apenas em
o inglês com o título de Nightwalker em 1970, e como Paris Pea-         [...] despertar o mundo de seu sonho acerca de si mesmo". (Arca-
sant em 1971), com seu afetuoso tributo à Passage de l'Opéra, e         des Project, p. 456)
Spazieren in Berlin [Passear em Berlim], de Franz Hoessel, que                 Os sonhos da era capitalista estão encarnados em mercado-
concentra o foco na Kaisergalerie e no poder que esta tem de            rias. Em seu conjunto, constituem uma fantasmagoria, que mu-
invocar uma era passada. Sua obra seria informada pela teoria da        da constantemente de forma de acordo com as marés da moda e
memória involuntária de Proust, mas o sonho e o devaneio se-            é exibida a multidões de adoradores enfeitiçados como a concre-
riam mais historicamente    específicos que em Proust. Pretendia        tização dos seus desejos mais profundos. E a fantasmagoria sem-
capturar a experiência "fantasmagórica" dos passeios parisienses        pre esconde a sua origem (que residiria no trabalho alienado). A
em meio às mercadorias em exibição, uma experiência ainda               fantasmagoria, em Benjamin, é portanto um pouco como a ideo-
mais fácil de recuperar em seu tempo, quando "as passagens se            logia em Marx - uma trama de mentiras públicas sustentada
espalham pela paisagem metropolitana       como cavernas em que          pelo poder do capital -, porém mais parecida com um mundo
se abrigam os restos fósseis de um monstro extinto: o consumidor         dos sonhos de Freud operando num nível coletivo e social.
da era pré-imperialista do capitalismo, o último dinossauro da
Europa". (Arcades Project, p. 540)                                            "Não preciso dizer nada. Basta mostrar", diz Benjamin; e
     A grande inovação de Passagens seria a sua forma. Como o            noutro ponto: "As ideias estão para os objetos como as constela-
ensaio sobre Nápoles e o Diário de Moscou, ele funcionaria com           ções para as estrelas". Se o mosaico de citações for construído da

     82                                                                                                                             83
maneira correta, um padrão deverá emergir, um padrão que é             te, aberto para exame, "a dialética imobilizada". "Só as imagens
 mais do que a soma das suas partes, mas não tem existência inde-       diaIéticas são imagens genuínas". (Arcades Project, p. 462)
 pendente delas: eis a essência da nova forma de literatura histó-            E não passa daí a .teoria, embora engenhosa, a que apela o
 rico-materialista que Benjamin julgava estar praticando.14             livro profundamente antiteórico de Benjamin. Para o leitor ain-
      O que contrariava Adorno no projeto de 1935 era quanto            da não convencido pela teoria, entretanto, o leitor para quem as
 Benjamin se mostrava convicto de que uma simples coLIgem de            imagens dialéticas nunca chegam a adquirir toda a vida que de-
 objetos (no caso, citações fora de contexto) fosse capaz de sus-       veriam assumir, o leitor talvez irreceptivo à narrativa grandiosa
 tentar-se por conta própria. Benjamin, escreveu ele, encontra-         do longo sono do capitalismo seguido pelo raiar do socialismo, o
 va-se "na encruzilhada entre a mélgica e o positivismo". Em 1948,      que as Passagens têm a oferecer?
 Adorno teve a oportunidade de ver todo o corpo das Passagens, e             A mais sumária das listas conteria o seguinte:
 tornou a manifestar suas reservas diante da precariedade da teo-            (1) um tesouro de informações curiosas sobre a Paris do iní-
 rização da obra.15                                                     cio do século    XIX   (por exemplo, homens sem nada de melhor a
     A resposta de Benjamin a esse tipo de crítica baseava-se na        fazer costumavam ir ao necrotério contemplar corpos nus);
noção de imagem dialética, que ele buscava na emblemática do                  (2) citações instigantes, colhidas por um espírito perspicaz e
                                                                        idiossincrático que percorreu milhares de livros no decorrer de
Barroco -    ideias representadas    por imagens -     e na alegoria
                                                                        muitos anos (Tiedemann relaciona cerca de 850 títulos que são
baudelairiana,   em que a interação de ideias era substituída pela
                                                                        concretamente   citados), alguns deles da autoria de escritores
interação de objetos emblemáticos.      A alegoria, sugeriu ele, po-
                                                                        que julgamos conhecer bem (Marx, Victor Hugo), outros de es-
dia assumir o papel do pensamento       abstrato. Os objetos e as fi-
                                                                        critores menos conhecidos que, considerando o que se apresenta
guras que povoam as galerias -      jogadores, prostitutas, espelhos,
                                                                        aqui, mereceriam voltar à cena - como Hermann Lotze, autor
poeira, estátuas de cera, bonecos mecânicos -        são (para Ben-
                                                                        de Mikrokosmos     (1864);
jamin) emblemas, e as interações entre eles geram significados,
                                                                             (3) uma infinidade de observações sucintas, lustradas até
significados alegóricos que prescindem da intrusão da teoria.
                                                                        adquirir um intenso fulgor aforístico, sobre uma variedade dos
Ainda na mesma linha, fragmentos de texto colhidos no passa-
                                                                        assuntos favoritos de Benjamin. "A prostituição pode reivindicar
do e dispostos no campo carregado do presente histórico conse-
                                                                        ser vista como um 'trabalho' no momento em que o trabalho se
guem comportar-se como os elementos que compõem uma ima-
                                                                        transforma em prostituição." "O que torna as primeiras fotogra-
gem surrealista, interagindo espontaneamente com o resultado
                                                                        fias tão incomparáveis talvez seja que elas apresentam a imagem
de produzir energia política. ("Os acontecimentos     que cercam o      mais antiga que se conhece do encontro entre a máquina e o ho-
historiador e dos quais ele participa", escreveu Benjamin, "irão        mem"; (Arcades Project, pp. 348,678)
estar presentes na sua apresentação como um texto escrito em
                                                                            (4) a oportunidade de vislumbrar as experiências de Benja-
tinta invisível.")16E no processo os fragmentos constituem a ima ..     min com um novo modo de ver a si mesmo: como um colecio-
gem dialética, o movimento dialético congelado por um instan-           nador de "palavras-chave num dicionário secreto", compilador

    84
                                                                                                                                    85
de uma "enciclopédia mágica". De uma hora para outra, Benja-         vida lendo sobre a história econômica, ele era notavelmente        ig-
min, leitor esotérico de uma cidade alegórica, apresenta uma         nOl"ante sobre aquelas partes do mundo onde o capitalismo do
proximidade do seu contemporâneo      Jorge Luis Borges, fabulista   século XIX mais floresceu, especialmente a Grã-Bretanha e os
de um universo reescrito. (Areades Projeet, pp. 211, 2°7) O que os   Estados Unidos. Em sua discussão sobre a loja de departamen-
aproxima é, obviamente, a Cabala, sobre a qual Borges se debru-      tos, ele deixa de perceber uma diferença crucial entre os grands
çou por longo tempo e para a qual Benjamin volta sua atenção à       magasins de Paris e as lojas de departamentos       de Nova York e
medida que se enfraquece a sua fé na revolução proletária.           Chicago: enquanto os primeiros erguiam barreiras contra uma
    A certa distância, a magnum opus de Benjamin lembra curio-       clientela de massas, as últimas julgavam ser seu papel educar os
samente outra imponente ruína da literatura do século xx, os         fregueses da classe trabalhadora nos hábitos de consumo da clas-
Cantos de Ezra Pound. As duas obras resultam de anos de lei-         se média. Também não dá a devida importância ao fato de tanto
turas profusas. Ambas se compõem de fragmentos e citações, e         as galerias quanto as lojas de departamentos preocuparem-se aci-
aderem à estética alto-modernista   da imagem e da montagem.         ma de tudo em atender aos desejos das mulheres, ao mesmo tem-
Ambas têm veleidades econômicas, e economistas como figuras          po em que faziam o possível para dar forma a esses desejos e até
inspiradoras (Marx num caso, Gesell e Douglas no outro). Os          criar outros novos.
dois autores investem em corpos arcaicos de conhecimento cuja
relevância para o tempo em que vivem tendem a superestimar.               A gama de interesses representados nos primeiros dois vo-
Nenhum dos dois sabe a hora de parar. E ambos foram final-           lumes das Seleeted Writings de Benjamin é vasta. Junto aos tex-
mente consumidos pelo monstro do fascismo, Benjamin tragica-         tos examinados neste ensaio, encontramos ainda uma seleção
mente, Pound de maneira vergonhosa.                                  de seus textos mais antigos, de um idealismo bastante declarado,
    Foi o destino dos Cantos ter excertados vários dos textos de     sobre a educação; vários ensaios de crítica literária, entre eles
antologia, e o resto (Van Buren, os Malatesta, Confúcio etc.) dis-   dois longos textos sobre Goethe: o primeiro uma interpretação
cretamente abandonado. E o destino das Passagens pode ser com-       das Afinidades eletivas, o outro uma revisão magistral da carreira
parável. Pode-se antever uma edição condensada para estudan-         de Goethe; surtidas sobre vários tópicos filosóficos (lógica, me-
tes, retirada principalmente das Convolutas B ("Moda"), H ("O        tafísica, estética, filosofia da linguagem,   filosofia da história);
colecionador"), I ("O interior"), J ("Baudelaire"), K ("Cidade       ensaios sobre pedagogia, sobre os livros infantis, sobre os brin-
dos sonhos"), N ("Sobre a teoria do conhecimento") e y ("Foto-       quedos; um envolvente texto pessoal sobre colecionar livros, e
grafia"), em que as citações seriam reduzidas a um mínimo e a        uma variedade de textos de viagem e tentativas ficcionais. O en-
maior parte do texto sobrevivente seria do próprio Benjamin. O       saio sobre as Afinidades eletivas destaca-se como um desempe-
que não seria uma coisa de todo má.                                  nho particularmente    estranho: uma extensa ária, em prosa su-
    Mesmo no terreno que ele próprio escolhe, há muitos mo-          persutil, quase mandarim, sobre o amor e a beleza, o mito e o
tivos para se condenar Benjamin. Para alguém que, embora não         destino, que adquire uma alta intensidade pelas semelhanças
fosse exatamente historiador da economia, passou anos da sua         secretas que Benjamin via entre o enredo do romance e um tra-

    86                                                                                                                             87
gicômico quadrilátero amoroso erótico em que ele e sua mulher          texto são incluídas no livro, por motivos que não ficam claros.
 se viram envolvidos.
                                                                        Traduções existentes de textos alemães citados por Benjamin são
      O terceiro e o quarto volumes das Selected Wrítíngs contêm        usadas, embora sejam traduções claramente abaixo do padrão.'7
 os resumos de 1935, 1938 e 1939 das Passagens; "A obra de arte"
 em duas versões; "O narrador"; "Uma infância em Berlim"; as                  O que foi Walter Benjamin: um filósofo? Um crítico? Um
 "Teses sobre o conceito de história"; e uma série de cartas funda-
                                                                        historiador? Um mero "escritor"? A melhor resposta talvez seja
mentais para e de Adorno e Scholem, entre elas a importante             a de Hannah Arendt: ele foi "um dos inclassificáveis [... ] cuja
carta de 1938 sobre Kafka.
                                                                        obra nem se enquadra na ordem existente nem cria um gênero
     As traduções, feitas por várias pessoas, são excelentes de fora    novo".,8
a fora. Se algum dos tradutores merece ser destacado é Rodney                Sua abordagem típica - em que sempre começa a falar de
Livingstone, por sua eficiência discreta em dar conta das mu-
                                                                        seu tema não diretamente, mas de viés, avançando passo a passo
danças bruscas de estilo e tom que marcam o desenvolvimento
                                                                        de argumento em argumento, todos formulados com perfeição
de Benjamin como escritor. As notas explicativas são quase do           - é tão reconhecível à primeira vista quanto inimitável, depen-
mesmo alto padrão, mas não chegam a tanto. As informações               dendo de uma agudeza intelectual, de uma erudição apresen-
sobre as figuras referidas por Benjamin são às vezes anacrônicas        tada com leveza e de um estilo de prosa que, depois que ele de-
(Robert Walser) ou incorretas: as datas de nascimento e morte
                                                                        sistiu de se ver como professor-doutor Benjamin, tornou-se uma
de Karl Korsch, em quem Benjamin se apoiava muito para sua              verdadeira maravilha de precisão e concisão. Subjacente a seu
interpretação de Marx (Korsch foi expulso do Partido Comunis-           projeto de chegar à verdade do nosso tempo está o ideal de Goe-
ta Alemão por suas opiniões independentes),       são apresentadas      the, de apresentar os fatos de tal maneira que os fatos se cons-
como 1892 e 1939, quando são na verdade 1886 e 1961 (v. 2, p. 790       tituam em sua própria teoria. As Passagens, qualquer que seja
nota 5)· Há erros de grego e de latim, e o francês é às vezes mal-      nosso veredicto a seu respeito - ruínas, fracasso, projeto impos-
tratado: chamar um bando de padres de soutane de "corvos civi-
                                                                        sível-, sugerem um modo novo de escrever sobre uma civiliza-
lizados" passa ao largo da intenção do autor - melhor seria dizer
                                                                        ção, usando como material seus restos, em vez de suas obras de
"corvos domesticados" ("cívílísed crows" vs. "domestícated   crows").   arte: a história vista de baixo para cima, e não de cima para bai-
(v. 2, p. 354, nota 35) Afirmativas misteriosas - por exemplo, so-      xo. E seu apelo (nas "Teses") por uma história que se centralize
bre a "difusão sinistra do culto aos andarilhos" na Alemanha da
                                                                        no sofrimento dos vencidos, em vez de focar as conquistas dos
década de 1920 - são deixadas sem explicação. (v. 1, p. 454)            vencedores, prenuncia profeticamente    a maneira como a histo-
    Algumas práticas gerais observadas por editores e tradutores
                                                                        riografia começou a se ver em nosso tempo.
também são questionáveis. Benjamin tinha o hábito de escre-
ver parágrafos imensos, que se prolongavam por várias páginas: o                                                                    (2001)
tradutor deveria certamente sentir-se autorizado a dividi-l os em
partes menores. Às vezes duas versões preliminares       do mesmo

    88
                                                                                                                                   89
cados por uma estética mística mas coerentemente idealista, Lojas
 5. Bruno Schulz                                                      de canela (1934) e Sanatório (1937) são obras únicas e surpreen-
                                                                      dentes, que parecem ter surgido do nada.
                                                                           Bruno Schulz nasceu em 1892, terceiro filho de pais judeus
                                                                      da classe mercantil, e recebeu o nome do santo católico do dia.
                                                                      Sua cidade natal, Drohobycz, era um centro industrial menor
                                                                      numa província do Império Austro-Húngaro que, depois da Pri-
                                                                      meira Guerra Mundial, voltaria a fazer parte da Polônia.
                                                                           Embora houvesse uma escola judaica em Drohobycz, Schulz
                                                                      foi mandado para o Cymnasium polonês. (Joseph Roth, na cida-
                                                                      de próxima de Brody, estudou num Cymnasium alemão.) As lín-
                                                                      guas que usava eram o polonês e o alemão; não falava o iídiche
                                                                      das ruas. No colégio, destacava-se nas artes, mas sua família o
                                                                      dissuadiu de seguir a profissão de artista. Matriculou-se para es-
     Numa das suas memórias mais remotas da infância, o jo-           tudar arquitetura na escola politécnica de Lwow, mas em 1914,
vem Bruno Schulz está sentado no chão, cercado pela admira-           quando a guerra foi declarada, precisou interromper os estudos.
ção de vários membros de sua família, enquanto rabisca um "de-        Devido a um problema cardíaco não foi convocado para o exér-
senho" atrás do outro em velhas folhas de jornal. Entregue a seu      cito. De volta a Drohobycz, iniciou um programa intensivo de
arrebatamento criador, a criança ainda vive uma "era da genial i-     autoformação, lendo e aperfeiçoando sua habilidade de dese-
dade", ainda tem um acesso desprovido de censura ao domínio           nhista. Reuniu uma série de obras com temas eróticos intitulada
do mito. Ou pelo menos é isso que pensaria o homem em que             Xif?ga Balwochwalcza [O livro da idolatria] e tentou vender có-
essa criança se tornou; todo o seu esforço da maturidade seria no     pias, com alguma insegurança e sem muito sucesso.
sentido de recuperar o contato com esses seus poderes iniciais, e           Incapaz de ganhar a vida como artista e, depois da morte do
"amadurecer infância adentro".'                                       pai, encarregado de sustentar uma família inteira com problemas
     Esses esforços resultariam em dois corpos de obras: gravuras     de saúde, aceitou o cargo de professor de arte numa escola local,
e desenhos que hoje provavelmente não teriam muito interesse          emprego em que permaneceria até 1941. Embora respeitado pe-
caso seu criador não se tivesse tornado famoso por outros cami-       los alunos, achava a vida escolar estupidificante e escreveu carta
nhos; e dois livros curtos, coletâneas de contos e flagrantes sobre   atrás de carta implorando às autoridades que lhe concedessem
a vida interior de um menino no interior da Galícia, na Europa        licenças para se dedicar à sua obra artística, súplicas que, a bem
Central, que o elevou ao primeiro plano da literatura polone-         da justiça, nem sempre foram recebidas com ouvidos moucos.
sa dos anos do entreguerras. Ricos em fantasia, sensuais em sua            Apesar de seu isolamento na província, Schulz conseguia
apreensão do mundo vivo, elegantes no estilo, espirituosos, mar-      expor suas obras nos centros urbanos e travar correspondência

    9°                                                                                                                           91
com espíritos afins. Em suas milhares de cartas, cerca de 156 das   terra em que nasceu. Partiu para a cidade que em retrospecto
  quais sobreviveram, ele despejava boa parte da sua energia cria-    definiria como "a mais exclusiva, autossuficiente e exibicionista
  dora. ]erzy Ficowski, biógrafo de Schulz, define-o como o últi-     cidade do mundo" na esperança dúbia de conseguir organizar
 mo expoente notável da arte epistolar na Polônia.2 Todos os indí-    ali uma exposição de suas obras de arte, mas fez poucos contatos
 cios sugerem que os textos que compõem Lojas de canela vieram        e acabou voltando de mãos vazias.'
 à luz em cartas à poetisa Debora Vogel.                                    Em 1939, nos termos do acordo de partilha da Polônia entre
      Lojas de canela foi recebido com entusiasmo pela intellí-       nazistas e soviéticos, Drohobycz foi absorvida pela Ucrânia sovié-
 gentsia polonesa. Em visitas a Varsóvia, Schulz era celebrado        tica. Sob o domínio dos sovietes não havia oportunidades para
 nos salões artísticos e convidado a escrever para revistas literá-   Schulz como escritor ("Não precisamos de Prousts", disseram-lhe
 rias; em sua escola, recebeu o título de "professor". Ficou noivo    sem rodeios). No entanto, encomendaram-lhe     a produção de qua-
 de ]ózefina SzeliI1ska, judia convertida ao catolicismo, e, embo-    dros de propaganda política. Ele continuou a ensinar até que, no
 ra ele próprio não se tenha convertido, retirou-se formalmente       verão de 1941, a Ucrânia foi invadida pelos alemães e todas as
 da comunidade    religiosa judaica de Drohobycz. Sobre a noiva,      escolas foram fechadas. As execuções de judeus começaram de
 escreveu: "[Ela] constitui a minha participação na vida. Graças      imediato, e em 1942 as deportações em massa.
 a ela sou uma pessoa, e não apenas uma aparição ou gnomo ...               Por algum tempo, Schulz conseguiu escapar do pior. Teve
Ela é a pessoa que me é mais próxima na terra". (Ficowski, p. 112)    a sorte de ser adotado por um oficial da Gestapo com pretensões
Ainda assim, o noivado chegou ao fim depois de dois anos.             artísticas, adquirindo assim a posição de "judeu necessário" e a
     A primeira tradução para o polonês do Processo de Kafka foi      preciosa faixa para o braço que o protegia cada vez que os judeus
publicada em 1936 com o nome de Schulz, mas a tradução fora           eram reunidos para deportação. Pela decoração das paredes da
feita de fato por SzeliI1ska.                                         residência do seu patrono e do cassino dos oficiais, ele era pago
     Sanatório, o segundo livro de Schulz, foi em sua maior par-      em rações de alimentos. Enquanto isso, empacotou seus quadros
te reunido a partir de textos anteriores, alguns deles ainda hesi-    e manuscritos em fardos e os entregou à guarda de amigos não
tantes e amadorísticos. Schulz tendia a falar mal do livro, embo-     judeus. Benfeitores de Varsóvia lhe contrabandearam    dinheiro e
ra, na verdade, uma parte de seus contos esteja à altura do padrão    conseguiram papéis falsos, mas antes que ele conseguisse reunir
de Lojas de canela.
                                                                      a coragem para deixar Drohobycz estava morto, cercado e fuzila-
     Sobrecarregado com suas aulas e responsabilidades familia-       do na rua durante um dia de anarquia promovido pela Gestapo.
res, ansioso com os desdobramentos políticos na Europa, em fi-             Em 1943, não restava mais nenhum judeu em Drohobycz.
nais da década de 1930 Schulz declinava para um estado de
depressão que lhe impunha dificuldades para escrever. Nem ter              No final da década de 1980, à medida que a União Soviética
sido premiado com os Lauréis de Ouro da Academia Polonesa             se desfazia, chegou ao acadêmico polonês ]erzy Ficowski a notí-
de Literatura o deixou animado. E nem mesmo uma viagem de             cia de que uma pessoa anônima com acesso aos arquivos da KGB
três semanas a Paris, sua única surtida substancial para além da      encontrara um dos pacotes de Schulz, e se dispunha a entregá-Io

    92                                                                                                                           93
a ele por um certo preço. Embora a informação não desse em          dos nos Estados Unidos, tem reservas quanto às traduções exis-
  nada, serviu de base para a insistente esperança de Ficowski de     tentes de Schulz para o inglês, assinadas por Celina Wieniewska
 que escritos perdidos de Schulz ainda pudessem ser recupera-         e publicadas em 1963; foi por elas, sob o título coletivo de The
 dos. Entre esses textos estão um romance inacabado, Messias, de      Street of Crocodíles [A rua dos crocodilos], que Schulz passou a
 que temos notícia porque Schulz chegou a ler trechos para al-        ser conhecido no mundo de língua inglesa.5 As traduções de Ce-
 guns amigos, e as anotações que vinha escrevendo na época da         lina Wieniewska merecem críticas por vários motivos. Primeiro,
 morte, memorandos de conversas com judeus que tinham visto           baseiam-se em textos imprecisos: uma edição confiável e bem
 em primeira mão as operações dos esquadrões de fuzilamento e         estudada dos escritos de Schulz só seria publicada em 1989. Se-
 de transportes, que pretendia usar como base para um livro sobre     gundo, há ocasiões em que a tradutora emenda em silêncio o
 as perseguições. (Um livro do tipo exato que Schulz planejava        texto de Schulz. No texto "A Second Autumn" [Um segundo
 foi publicado em 1977 por Henryk Grynberg.4 O próprio Schulz         outono], por exemplo, Schulz decide dizer que a cidade onde
 figura como personagem secundário no primeiro dos relatos de         vive Robinson Crusoé é Bolechow, uma cidade próxima de Dro-
 Grynberg.)
                                                                      hobycz. Quaisquer que tenham sido os motivos de Schulz para
      Na Polônia, Jerzy Ficowski (falecido em 2006) era conhe-        não indicar sua própria cidade, cabe à sua tradutora respeitá-Ios.
 cido como poeta e estudioso da vida dos ciganos. Sua reputação       Mas Celina Wieniewska troca "Bolechow" por "Drohobycz". (p.
 deve-se acima de tudo, porém, à sua obra sobre Bruno Schulz.
                                                                      190) Terceiro, e mais sério de todos: há vários momentos em que
 Desde a década de 1940, Ficowski revirou incansavelmente       to-   Celina Wieniewska faz cortes na prosa de Schulz para torná-Ia
da a Polônia, a Ucrânia e outras partes do mundo, contra todos        menos prolixa ou adornada, ou universaliza alusões especifica-
os obstáculos, burocráticos e materiais, à procura do que restava     mente judaicas.
de Schulz. Sua tradutora, Theodosia Robertson, o define como              A favor de Celina Wieniewska deve-se dizer que suas tradu-
um arqueólogo, o principal arqueólogo dos restos artísticos de        ções são boas de ler. Sua prosa tem uma riqueza, uma elegância
Schulz. (Ficowski, p. 12) Regions of the Great Heresy [Regiões        e uma unidade de estilo raras. Quem se dedicar à tarefa de retra-
da grande heresia] é a tradução que Theodosia Robertson fez da
                                                                      duzir Schulz irá achar difícil escapar da sua sombra.
terceira edição revista (1992) da biografia de Ficowski, a que ele
próprio acrescentou dois capítulos - um sobre o romance per-               Como guia a Lojas de canela, não podemos fazer melhor
dido Messias e outro sobre o destino dos murais que Schulz pin-       do que recorrer à sinopse escrita pelo próprio Schulz quando
tou em Drohobycz no último ano da sua vida -, além de uma
                                                                      tentava despertar o interesse de uma editora italiana pelo livro.
cronologia detalhada   e uma seleção das cartas de Schulz que         (Seus planos não deram em nada, assim como os planos de tra-
chegaram até nós.
                                                                      duzi-Io para o francês e o alemão.)
    Ao longo da sua tradução, Theodosia Robertson decidiu re-
                                                                           Lojas de canela, diz ele, é a história de uma família contada
traduzir todos os trechos citados da obra de Schulz. Isso porque,     não no modo biográfico ou psicológico, mas no modo do mito.
concordando com outros estudiosos da literatura polonesa sedia-       Assim, pode-se dizer que o livro tem uma concepção pagã: como

    94
                                                                                                                                 95
entre os antigos, o tempo histórico do clã se perde no tempo mi-    a dominar sua imaginação: uma carruagem que emerge com as
  tológico dos ancestrais. Mas nesse livro os mitos não provêm do     lanternas acesas de uma floresta escura, e um pai que caminha
  coletivo. Emergem das névoas da infância remota, das esperan-       pela escuridão, dizendo palavras reconfortantes    para a criança
  ças e dos medos, das fantasias e premonições - o que em outro       encolhida em seus braços, embora a criança só consiga escutar
  ponto ele define como "os balbucios do delírio mitológico" _        os sons sinistros da noite. A origem dessa primeira imagem, diz
  que formam a sementeira do pensamento mítico. (p. 370)              ele, é obscura para ele; a segunda vem da balada de Goethe
       No centro da família em questão está ]acob, comerciante de     "Der Erlkanig" [O rei dos elfos], que o afetou até o fundo da al-
  profissão, mas preocupado com a redenção do mundo, missão a         ma quando sua mãe a leu para ele aos oito anos de idade.
  que se dedica através de experiências de mesmerismo, galvanis-           Imagens como essas, continua ele, sempre nos são apre-
  mo, psicanálise e outras artes mais ocultas oriundas do que cha-    sentadas no início da vida. E constituem "uma capital eterna do
 ma de Regiões da Grande Heresia. ]acob vive cercado de gente         espírito". Para o artista, demarcam os limites dos seus poderes de
 estúpida que não tem a menor compreensão de seus empreen-            criação: todo o resto da sua vida consiste em explorá-Ias, inter-
 dimentos metafísicos, comandada por sua arqui-inimiga, a criada      pretá-Ias e tentar dominá-Ias. Depois da infância ninguém des-
 Adela.
                                                                      cobre nada de novo, só dá voltas e mais voltas pelo mesmo terre-
      Em seu sótão, ]acob cria, a partir de ovos que importa dos      no num esforço sem possibilidade de desenlace. "O nó em que
 quatro cantos do mundo, esquadrões de aves mensageiras - con-        a alma se vê atada não é um nó falso que se desfaça quando suas
 dores, águias, pavões, faisões, pelicanos - cuja existência física   pontas são puxadas. Pelo contrário, ele aperta cada vez mais." E
 ele às vezes parece à beira de compartilhar. Com suas vassouras,     da nossa contenda com esse nó emerge a arte. (p. 368)
 porém, Adela espalha suas aves aos quatro ventos. Derrotado,              Quanto ao significado mais profundo de Lojas de canela,
 amargurado, ]acob começa a encolher e a secar, metamorfo-            diz Schulz, normalmente não é de bom alvitre para um escritor
 seando-se finalmente numa barata. De vez em quando ele reas-         submeter sua obra a um excesso de análise racional. Seria o mes-
 sume sua forma original a fim de fazer sermões a seu filho sobre     mo que pedir a um ator que abandonasse a sua máscara - o que
. temas como fantoches, manequins de alfaiate e o poder, detido       poria fim à peça. "Numa obra de arte, o cordão umbilical que a
  pelo heresiarca, de trazer o lixo à vida.
                                                                      liga à totalidade dos nossos pensamentos ainda não foi cortado,
      Esse sumário não foi o fim dos esforços de Schulz para ex-      o sangue do mistério ainda circula; as extremidades dos vasos
plicar o que pretendia com Lojas de canela. Para os olhos de um       sanguíneos desaparecem na noite circundante       e dela retornam
amigo, o escritor e pintor Stanislaw Witkiewicz, Schulz ampliou       repletas de um fluido escuro." (pp. 368-9)
seu relato, produzindo um texto de análise introspectiva de força          Ainda assim, se instado a fornecer uma explicação, ele di-
e acuidade notáveis que resultou num credo poético.                   ria que o livro apresenta uma certa visão primitiva e vitalista do
      Começa rememorando imagens da sua própria "era da ge-           mundo, em que a matéria se encontra num estado de fermen-
nialidade", sua infância mitologizada, "quando tudo resplande-        tação e germinação permanentes. Não existe matéria morta, nem
cia com cores divinas". (p. 319) Duas dessas imagens continuam        a matéria jamais permanece     numa forma fixa. "A realidade só

    96
                                                                                                                                 97
assume certas formas por uma questão de aparência, como piada         te em "contorcer-se e estender-se para formar mil conexões, co-
 ou uma forma de brincadeira. Uma pessoa é humana e outra é            mo a cobra cortada da lenda cujos pedaços procuram uns pelos
 uma barata, mas a forma não penetra na essência, é apenas um          outros no escuro". O pensamento sistemático, devido à sua na-
 papel que a personagem adota naquele momento, uma pele ex-            tureza, mantém os pedaços da cobra separados a fim de exami-
 terior que logo adiante descarta ... [AJ migração das formas é a      ná-Ios; o poeta, com seu acesso à "semântica arcaica", permite
 essência da vida." E vem daí a "aura invariável de ironia" que se     que as partes das palavras tornem a encontrar seu lugar nos mitos
 encontra neste mundo: "o simples fato de uma existência indivi-       de que se constitui todo conhecimento. (pp. 371-3)
 dual isolada tem a sua ironia, é uma peça que nos pregam".                 Com base em duas obras ficcionais, ambas preocupadas
      Para essa visão de mundo Schulz não se sente obrigado a          com a experiência do mundo por uma criança, Schulz muitas
apresentar uma justificação ética. Lojas de canela, especialmen-       vezes é visto como um escritor naíf, uma espécie de artista popu-
te, opera a uma profundidade "pré-moral". "O papel da arte é ser       lar urbano. Como suas cartas e ensaios demonstram, porém, era
uma sonda que mergulha no que não tem nome. O artista é um             um pensador original com poderes notáveis de autoanálise, um
aparelho destinado a registrar os processos que ocorrem naquele        intelectual sofisticado que, a despeito das suas origens provincia-
estrato profundo em que os valores se formam." No nível pessoal,       nas, conseguia cruzar espadas em termos de igualdade com con-
porém, ele admite que suas histórias emergem de e representam          frades como Witkiewicz e Witold Gombrowicz.
"meu modo de viver, meu destino pessoal", um déstino marcado                Numa dessas trocas, Gombrowicz conta a Schulz uma con-
por "uma solidão profunda, um isolamento da substância da vi-          versa com uma desconhecida, a mulher de um médico, que lhe
da cotidiana". (pp. 369, 370)                                          diz que, na sua opinião, o escritor Bruno Schulz é "ou um ma-
      O ensaio "Mityzacja rzeczywistosci" [A mitologização da          níaco pervertido ou um poseur, mais provavelmente um posem".
realidade]' escrito um ano mais tarde, em 1936, apresenta de           Gombrowicz desafia Schulz a se defender por escrito, acrescen-
maneira sucinta o pensamento de Schulz sobre a tarefa do poe-          tando que devia ver nesse desafio um caráter tanto substantivo
ta, pensamento por sua vez antes mítico que sistemático em seu         como estético: para sua resposta, precisava encontrar um tom que
modo de operação. A procura do conhecimento, diz Schulz, é             não fosse nem arrogante nem desafiador, nem elaborado nem
no fundo uma jornada em que se tenta recuperar um estado ori-          solene. (p. 374)
ginal, unitário, do ser, um estado do qual sofremos uma espé-               Em sua resposta, Schulz ignora a tarefa que Gombrowicz
cie de queda, resultando fragmentado. O método de atuação da           lhe propõe, preferindo abordar a questão de maneira oblíqua. O
ciência é - com paciência e método e usando a indução - pro-           que, pergunta-se ele, faz com que Gombrowicz, e os artistas em
curar reunir novamente esses fragmentos. A poesia tem a mesma          geral, concentrem-se   tanto, e até encontrem    tanto prazer, nas
finalidade, mas atua "de maneira intuitiva, dedutiva, por atalhos      expressões mais hipócritas e estúpidas da opinião pública? (Por
ousados e grandes aproximações". O poeta -        ele próprio uma      que, por exemplo, Gustave Flaubert passou meses e anos cole-
criatura mítica envolvida numa busca mítica -     trabalha no nível    cionando bêtises, asneiras, e as publicou no Dicionário das ideias
mais básico, o nível da palavra. A vida interior da palavra consis-'   feitas?) "Você não fica admirado", perguntou ele a Gombrowicz,

    98                                                                                                                             99
"diante da [sua] simpatia e solidariedade involuntárias para com     recriação, ou talvez a fabulação, de uma consciência      infantil,
algo que, no fundo, é estranho e hostil a você?". (p. 377)           povoada de terror, obsessão e glória enlouquecida; sua metafí-
     A simpatia inconfessa com a opinião popular desajuizada,        sica é a metafísica da matéria. Nada de semelhante se encontra
sugere Schulz, vem de modos atavísticos de pensar que são im-        em Kafka.
postos a todos nós. Quando algum desconhecido prefere achar               Para a tradução do Processo feita por Józefina Szeliúska,
que ele, Schulz, é um poseLlr sem importância, "uma verdadeira       Schulz escreveu um posfácio notável por sua sensibilidade e seu
multidão sombria e desarticulada    ergue-se em você [Gombro-        poder aforístico, mas ainda mais impressionante por sua tentati-
wicz]' como um urso treinado ao som da flauta de um cigano".         va de atrair Kafka para a órbita schulziana, e transformar Kafka
  isso por causa da maneira como a própria psique é organiza-
1-1:
                                                                     num Schulz avant Ia Iettre.
da: como uma multidão de subsistemas superpostos, alguns mais             "O método de Kafka, o da criação de uma realidade doppeI-
racionais, outros menos. Daí a "natureza confusa, múltipla" do       ganger, ou substituta, era virtualmente sem precedente", es-
nosso pensamento em geral. (pp. 377,378)                             creve Schulz. "Kafka enxerga a superfície realista da existência
                                                                     com uma precisão incomum,       e conhece de cor, como se fosse
       Schulz também é comumente visto como um discípulo, ou         um código de gestos, toda a mecânica exterior dos aconteci-
epígono, ou mesmo um imitador do seu contemporâneo mais              mentos e situações, de que maneira eles se encaixam e se entre-
velho Franz Kafka. As semelhanças entre sua história pessoal e a     laçam, mas para ele isso tudo não passa de uma epiderme solta
de Kafka são de fato notáveis. Ambos nasceram durante o reinado
                                                                                                                                             ,I


                                                                     sem raízes, que ele desprega como uma membrana delicada e               li


                                                                                                                                              li


do imperador Francisco José I, em famílias de judeus da classe       usa para recobrir seu mundo transcendental,      enxertando-a     na
mercantil; ambos eram doentios e tinham dificuldades com os          sua realidade."
                                                                                                                                             il
relacionamentos   sexuais; ambos trabalhavam com dedicação em             Embora o processo que Schulz descreve aqui não chegue              'il

empregos regulares; eram ambos assombrados pelas figuras pa-         ao fundo do que faz Kafka, até onde ele vai está admiravelmen-         Ili;i
                                                                                                                                             III



ternas; os dois tiveram morte prematura, deixando complicadas e      te definido. Mas Schulz ainda continua: "A atitude [de Kafka]
problemáticas heranças literárias. Além disso, acredita-se (erro-    diante da realidade é radicalmente    irônica, traiçoeira e profun-
neamente) que Schulz foi tradutor de Kafka. Finalmente, Kafka        damente mal-intencionada - a relação de um prestidigitador
escreveu uma novela em que um homem se transforma num in-            com o seu material bruto. Ele só simula a atenção com o deta-
seto, enquanto Schulz escreveu relatos em que um homem se            lhe, a seriedade e a precisão elaborada da sua realidade a fim de
transforma não só num inseto depois do outro, mas também num         comprometê-Ia ainda mais integralmente". De certo ponto em
caranguejo. (O avatar crustáceo de Jacob, o pai, é atirado na água   diante, Schulz deixa o verdadeiro Kafka para trás e começa a
fervente por uma cozinheira, mas depois disso ninguém conse-         descrever outro tipo de artista, o artista que ele próprio é ou gos-
gue comer a massa gelatinosa em que ele se transforma.)              taria de ser aos olhos dos outros. E é uma medida.da sua confian-
     Os comentários de Schulz sobre sua obra literária deviam        ça em sua força que ele possa ter tentado mudar Kafka, moldan-
deixar claro como esses paralelos são superficiais. Sua meta é a     do-o à sua própria imagem. (p. 349)

       100                                                                                                                       101
* ):' *
                                                                     nante como aquele! Como seria melhor ser súdito do fogoso ar-
                                                                     quiduque Maximilianol
      o mundo       que Schulz cria em seus dois livros é notavel-
                                                                          "A primavera" é o conto mais longo de Schulz, aquele em
 mente impermeável à história. A Grande Guerra e as convulsões
                                                                     que se percebe seu esforço mais intenso para desenvolver uma
 que a sucederam      não lançam nenhuma     sombra sobre ele; não   linha narrativa -   noutras palavras, para se transformar num con-
 há sinal, por exemplo, de que os filhos do camponês descalço,       tador de histórias de tipo mais convencional. Sua base é a histó-
 que no conto "Estação morta" é escarnecido pelos caixeiros ju-      ria de uma procura; o jovem herói empreende          a busca de sua
 deus, décadas mais tarde possam voltar à mesma loja, saqueá-Ia      amada Bianca (Bianca das pernas nuas e finas) num mundo ins-
 e surrar os filhos e as filhas dos caixeiros.
                                                                     pirado pelo álbum de selos. Como narrativa, o conto é previsí-
     Há sinais de que Schulz sabia não ser possível viver para       vel; depois de algum tempo, declina e se transforma num pasti-
 sempre apenas com o capital acumulado na infância. Descre-
                                                                     che de drama de costumes, e em seguida perde o interesse.
 vendo seu estado de espírito numa carta de 1937, ele diz ter a           Mas a meio caminho, assim que começa a perder o interes-
 impressão de estar sendo puxado para fora de um sono pesado.        se pela história que está inventando,    Schulz volta o olhar para
 "A peculiaridade   e a natureza incomum dos meus processos in-      dentro e se lança numa densa meditação de quatro páginas sobre
teriores me fecharam hermeticamente,       tornaram-me insensível,   seus próprios processos de composição literária que só se pode
irreceptivo às incursões do mundo. Agora estou me abrindo para       imaginar escrita num transe, uma rapsódia especulativa que de-
o mundo ... Tudo ficaria bem não fossem [o] terror e o encolhi-
                                                                     senvolve pela última vez a imagem da sementeira subterrânea
mento interno, como que diante de uma missão arriscada que           da qual o mito deriva seus poderes sagrados. Venha comigo pa-
pode levar sabe Deus até onde." (p. 408)
                                                                     ra debaixo da terra, diz ele, até o lugar das raízes onde as palavras
     O conto em que ele mais claramente se volta para o mundo        se decompõem e retomam às suas etimologias, o lugar da anam-
mais amplo e o tempo histórico é "A primavera". O jovem nar-         nese. E depois viaje ainda mais para dentro, até o fundo, até "as
rador encontra seu primeiro álbum de selos, e nesse álbum em
                                                                     bases obscuras, em meio às Mães", o reino das histórias que ain-
chamas, no desfile de imagens de terras de cu ja existência ele      da não nasceram. (p. 140)
jamais suspeitara - Hyderabad, Tasmânia, Nicarágua, Abraca-               Nessas profundezas distantes, qual é a primeira narrativa que
dabra -, a ardente beleza de um mundo para além de Droho-            desdobra suas asas quando deixa o casulo do sono? E descobri-
bycz de repente se revela. Em meio a essa plenitude mágica ele       mos que é Um dos dois mitos fundadores da existência espiritual
encontra os selos da Áustria dominados pela efígie de Francisco      do próprio Schulz: a história do rei Elfo, a história da criança
José, imperador da prosa (aqui a voz do narrador não consegue        cujo pai não tem o poder de o defender dos doces perigos das
mais fingir que seja de uma criança), um homem ressecado e
                                                                     trevas -   noutras palavras, a história que, ouvida da boca da mãe,
tedioso acostumado à atmosfera das chancelarias e das delega-        anunciou ao jovem Bruno que seu destino o obrigaria a abando-
cias de polícia. Que ignomínia, ser de um país com um gover- .       nar o seio dos progenitores e ingressar nos domínios da noite.
    102
                                                                                                                                  1°3
narrador à infantilidade estendendo-lhe    uma das pernas e apre-
      Schulz era incomparavelmente bem dotado como explora-
dor da sua própria vida interior, ao mesmo tempo a vida interior           sentando-lhe   o pé para ser adorado. A ficção e a criação pictóri-
recuperada da sua infância e o seu próprio funcionamento cria-             ca pertencem ao mesmo universo; alguns dos desenhos destina-
tivo. Da primeira vêm o encanto e o frescor das suas histórias;            vam-se a ilustrar essas histórias. Mas Schulz nunca afirmou que

do segundo, o seu vigor intelectual. Mas ele tinha razão quando            sua produção visual, com suas ambições limitadas, estivesse à
sentia que não poderia viver para sempre com o que tirava desse            altura do que escrevia.
poço. De algum lugar ele precisaria renovar as fontes da sua ins-                O livro de Ficowski traz uma seleção dos desenhos e obras

piração: a depressão e a esterilidade do final da década de 1930           gráficas de Schulz. Seleção mais rica pode ser encontrada em
podem ter vindo precisamente da conclusão de que seu capital               sua edição das Obras reunidas. Todos os desenhos sobreviventes
se esgotava. Nos quatro contos que temos e foram escritos depois           de Schulz estão disponíveis em reprodução num belo volume
de Sanatório, um deles escrito não em polonês, mas em alemão,              bilíngue publicado pelo Museu Literário Adam Mickiewicz.ó
não há sinal de que essa renovação já tivesse ocorrido. Se para o
                                                                                                                                        (2°°3)
seu Messias ele tinha conseguido encontrar novas fontes, é algo
que provavelmente - malgrado a insistente esperança de Ficows-
ki - nunca viremos a saber.


     Schulz era um artista plástico de algum talento nos limites
de uma certa faixa técnica e emocional. A série Xi?ga Balwoch-
walcza [O livro da idolatria]' em particular, registra uma obses-
são masoquista:   homens curvados e nanicos, entre os quais o
próprio Schulz é reconhecível, rastejam aos pés de moças impe-
riosas com pernas longas e nuas.
     Por trás do desafio narcisista das moças de Schulz, pode-se
detectar a Maja despida de Goya. A influência do expressionis-
mo também é forte, especialmente de Edvard Munch. Há sinais
do belga Félicien Rops. Curiosamente, em vista da importância       ,~.,
                                                                    'li
dos sonhos para a obra ficcional de Schulz, os surrealistas não     "
deixaram qualquer marca em seus desenhos. Em vez disso, à me-
dida que ele amadureceu, um elemento de comédia sardônica
tornou-se cada vez mais forte.
    As moças dos desenhos de Schulz são coerentes com Adela,
a criada que governa a casa de Lojas de canela e, reduz o pai do

    104                                                                                                                                105
para resistir aos exércitos da Rússia, da Sérvia e da Itália nas suas
6. J oseph Roth, os contos                                             fronteiras, e fez-se em pedaços.
                                                                            "A Austro-Hungria     não existe mais", escreveu Sigmund
                                                                       Freud para si mesmo no Dia do Armistício, em 1918. "Não quero
                                                                       viver em nenhum outro lugar [...] Vou continuar vivendo apenas
                                                                       com o torso, e fazer de conta que é o corpo inteiro."! Freud fala-
                                                                       va por muitos judeus de cultura austro-germânica. O desmem-
                                                                       bramento do Velho Império, e a redefinição do mapa da Euro-
                                                                       pa oriental para criar novas pátrias baseadas na etnicidade, quase
                                                                       sempre operou principalmente em detrimento dos judeus, pois
                                                                       não havia território que eles pudessem indicar como ancestral-
                                                                       mente próprio. O antigo Estado imperial supranacionallhes era
                                                                       conveniente; a divisão do pós-guerra foi para eles uma calamida-
                                                                       de. Os primeiros anos do novo Estado austríaco, destituído e pra-
     No apogeu de um reinado que começou em 1848 e durou               ticamente inviável, com crises de escassez de alimentos seguidas
até 1916, Francisco José, imperador da Áustria e rei da Hungria,       por níveis de inflação que consumiram toda a poupança da clas-
reinou sobre cerca de 50 milhões de súditos. Desses, menos de          se média, além da violência nas ruas entre as forças paramilitares
um quarto tinha o alemão como língua materna. Mesmo no ter-            da esquerda e da direita, só intensificaram seu desconforto. Hou-
ritório austríaco propriamente dito, metade dos habitantes tinha       ve quem começasse a encarar a Palestina como um lar nacional;
origem eslava de algum tipo - fossem tchecos, poloneses, ucra-         outros se voltaram para o credo supranacional do comunismo.
nianos, sérvios, croatas ou eslovenos. Cada uma dessas naciona-              A nostalgia diante de um passado perdido e a ansiedade pe-
lidades étnicas aspirava a se transformar num Estado-Nação       in-    rante um futuro sem abrigo estão no cerne da obra da maturida-
dependente, com todos os deveres e privilégios que acompanham           de do romancista austríaco Joseph Roth. Roth lembrava-se com
essa posição, inclusive uma língua e uma literatura nacionais.          carinho da monarquia austro-húngara       como a única pátrIa que
     O erro do governo imperial, podemos ver hoje em retros-            jamais tivera. "Eu amava essa nação", escreveu ele num prefácio
pecto, foi encarar com excesso de ligeireza essas aspirações, e crer    para Radetzkymarsch [A marcha Radetzky]. "Ela me permitia ser
que os benefícios da filiação a um Estado esclarecido, próspero,        patriota e cidadão do mundo ao mesmo tempo, e entre todos os
pacífico e multiétnico acabariam superando o impulso do sepa-           povos da Áustria também um alemão. Eu amava as virtudes e
ratismo e a pressão dos preconceitos antigermânicos (ou, no caso        os méritos dessa pátria, e hoje que ela desapareceu amo inclu-
dos eslovacos, antimagiares). Quando a guerra - precipitada             sive seus defeitos e fraquezas."z Radetzkymarsch é a obra-prima
por um espetacular ato terrorista perpetrado por nacionalistas          de Roth, um grande poema de elegia à Áustria dos Habsburgo
étnicos -   irrompeu em 1914, o Império viu que era fraco demais        composto por um súdito de um território distante do império;

     106                                                                                                                             1°7
~- r
                                                                  I .   ;
uma grande contribuição à literatura em língua alemã de um es-
critor que mal fazia parte da comunidade das letras alemãs.         I        colegas eram judeus: para jovens judeus do Leste, uma educa-
                                                                             ção alemã abria as portas do comércio e da cultura dominante.
                                                                                 Em 1914, Roth se matriculou na Universidade de Viena. A
     Moses Joseph Roth nasceu em 1894 em Brody, uma cidade
de porte médio a poucos quilômetros da fronteira russa, no terri-
tório imperial da Calícia ou Calitsia. A Calícia tornara-se parte
do Império Austríaco em 1772, depois do desmembramento         da
                                                                    I        capital austríaca, a essa altura, abrigava a maior comunidade ju-
                                                                             daica da Europa central, cerca de 200 mil almas reunidas no que
                                                                             consistia, na verdade, em uma espécie de gueto voluntário. "Já é
                                                                             difícil ser um Ostjude", um judeu do Leste, conta Roth; mas
                                                                             "não existe destino pior que o de um Ostjude perdido em Viena."


                                                                    I
                                                                    1
Polônia; era uma região pobre densamente habitada por ucrania-
                                                                             Os Ostjuden, além do antissemitismo, precisavam enfrentar ain-
nos (conhecidos na Áustria como rutênios), poloneses e judeus.
                                                                             da a distância com que eram tratados pelos judeus ocidentais.3
A cidade de Brody fora um dos centros da Haskalah, o ilumi-
                                                                                  Roth era um excelente aluno, especialmente de literatura
nismo judaico. Na década de 1890, dois terços de sua população


                                                                    iI
                                                                             alemã, embora menosprezasse       quase todos os professores, que
cram judeus.
                                                                             achava pedantes e servis. E,sse desdém se reflete em seus primei-
     Nas partes do império onde se falava o alemão, os judeus da
                                                                             ros escritos, que descrevem o sistema educacional público como
Calícia eram relativamente    malvistos. Ainda jovem, enquanto



                                                                    I
                                                                             o domínio de carreiristas ou então de pessoas pouco inteligentes,
começava a vida em Viena, Roth tendia a camuflar suas origens,
                                                                             modestas e sem inspiração.
alegando ter nascido em Schwabendorf, uma cidade de maioria
alemã da região (invenção que aparece inclusive em seus papéis
oficiais). Seu pai, segundo ele, seria (conforme o caso) dono de
fábrica, oficial do Exército, alto funcionário do governo, pintor
                                                                    I   t
                                                                                 Como trabalho de meio expediente, dava aulas particulares
                                                                             para os filhos de uma condessa, e no processo adquiriu maneiris-
                                                                             mos de dândi como beijar a mão das senhoras, portar bengala e
                                                                             usar monóculo. Começou a publicar poemas.
ou ainda um aristocrata polonês. Na verdade, porém, Nahum               I,        Sua formação, que parecia destiná-lo a uma carreira acadê-
Roth trabalhava em Brody como agente para uma firma de co-                    mica, foi infelizmente interrompida pela guerra. Superando suas
merciantes alemães de cereais. Moses Joseph nunca chegou a                    inclinações pacifistas, alistou-se em 1916, abandonando    ao mes-
conhecê-lo: em 1893, pouco depois de se casar, Nahum sofreu                   mo tempo o nome Moses. As tensões étnicas eram tão fortes no
algum tipo de colapso mental numa viagem de trem para Ham-                    exército imperial que foi transferido de sua unidade de língua
burgo. Foi levado para um sanatório, e de lá passou às mãos de                alemã; passou 1917-8 numa unidade de língua polonesa na Ca-
um rabino milagreiro. Nunca mais se recuperou, e nunca retor-                 lícia. Seu período de serviço militar permitiu novos acréscimos
nou a Brody.                                                            j'    fantasiosos à sua biografia, entre eles histórias de que chegara ao
    Moses Joseph foi criado pela mãe na casa dos pais desta,                  oficialato e fora prisioneiro de guerra na Rússia. Anos mais tarde,
judeus prósperos e assimilados. Frequentou uma escola da comu-                ainda temperava suas conversas com palavras do jargão militar.
nidade judaica onde a língua de instrução era o alemão, e depois                   Depois da guerra, Roth começou a escrever para a impren-
entrou para o Cymnasium      alemão de Brody. Metade dos seus                 sa, e logo conquistou admiradores entre os vienenses. Antes da

    108                                                                                                                                  1°9
guerra, Viena era a capital de um grande império; agora, era urna            datou-se a urna viagem à Rússia. Seu hábito de (nas suas pala-
  cidade empobreci da, com 2 milhões de habitantes, num país que               vras) "tratar de maneira irônica certas instituições, certos hábitos
  mal chegava aos 7 milhões. À procura de melhores oportunida-                 morais e certos costumes do mundo burguês" não devia, alega-
  des, Roth e a mulher com quem acabara de se casar, Friederike,               va, ser usado para desqualificar sua capacidade de escrever so-
 mudaram-se para Berlim. Lá ele escrevia para jornais liberais,                bre a Rússia e as "duvidosas consequências" da Revolução Russa.
 mas também para o esquerdista Vorwéírts, assinando seus textos                Sua série de despachos fez grande sucesso; seguiram-se repor-
 corno "Der rote Joseph": Joseph, o Vermelho. Logo lançou o pri-               tagens sobre a Albânia, a Polônia e a Itália. Ele se orgulhava da
 meiro de seus Zeitungromane,    "romances de jornal", assim cha-              sua obra jornalística. "Não me limito a escrever os chamados
 mados não só porque tinham os mesmos ternas de suas matérias                  comentários espirituosos. Eu rascunho os grandes traços da épo-
 jornalísticas, mas também porque o texto era dividido em partes               ca [... ] Sou um jornalista, não um repórter; sou um escritor, não
 curtas e ágeis. A teia de aranha (1923) trata, profeticamente, da             um mero autor de artigos segundo as fórmulas correntes."6
 ameaça moral e espiritual da direita fascista. Foi publicado três                  O tempo todo, ele continuava a escrever ficção. Em 1930,
 dias antes do primeiro putsch de Hitler.                                      publicou seu nono romance, Já - Romance de um homem sim-
        Em 1925, Roth foi nomeado correspondente          em Paris do          ples. A despeito -   ou talvez por causa -   do seu final sentimental,
                                                                               digno de um conto de fadas - um envelhecido Mendel Singer,


                                                                          I
 Frankfurter    Zeitung,   o mais importante   jornal liberal da época,
 com um salário que fez dele um dos jornalistas mais bem pagos                 esgotado pelos golpes da má sorte e imerso na penúria dos corti-
 da Alemanha. Mudara-se para Berlim disposto a urna carreira de                ços de Nova York, acaba resgatado pelo filho idiota que abando-



                                                                          I
escritor alemão, mas na França descobriu que no fundo era fran-                nara no Velho Mundo, um filho que, sem ele saber, transforma-
cês -      "um francês do Leste".4 Ficou maravilhado com o que de-             ra-se num músico de fama mundial-,   Já transformou-se num

finia corno a qualidade sedosa das mulheres francesas, especial-               sucesso internacional (Roth confessava que não teria consegui-
mente as que viu na Provence.                                                  do escrever o final sem recorrer à bebida). Depurando o livro dos
        Mesmo na sua juventude, Roth já dominava um alemão lú-                 seus elementos judaicos, Hollywood transformou-o em filme com
cido e flexível. Agora, usando Stendhal e Flaubert -         especial-         o título de Sins of Man [Pecados do homem]. Dois anos mais
mente o Flaubert de Un Canlr simple [Um coração simples] _                     tarde, seguiu-se o livro mais ambicioso de Roth, Radetzkymarsch.
corno modelos, aperfeiçoou seu estilo da maturidade, de urna                   E publicaria ainda mais seis romances durante a sua vida, todos
exatidão característica. (Falando de Radetzkymarsch,       Roth obser-         de escala menor, além de inúmeros contos.
vou: "Der Leutnant Trotta, der bin ich" [O tenente Trotta, ele                      Radetzkymarsch,  sem dúvida o maior dos romances de Roth,
sou eu], ecoando conscientemente as palavras de Flaubert, "Ma-                 e o único em que trabalhou sem muita pressa, acompanha o des-
dame Bovary, c'est moi".)5 Chegou a cogitar instalar-se na Fran-               tino de três gerações da família Trotta, todos servidores da Co-
ça e começar a escrever em francês.
     Ao final de um ano, porém, o Frankfurter Zeitung decidiu
substituí-l o em seu escritório parisiense. Decepcionado, candi-
                                                                          I    roa: o primeiro Trotta é um simples soldado elevado à nobreza
                                                                               menor por um ato de heroísmo; o segundo é um alto administra-
                                                                               dor de província; e o terceiro, um oficial do exército cuja vida se

     110


                                                                          I,
                                                                          TA




                                                                          'I
                                                                          ~
                                                                                                                                              111
desperdiça em futilidades à medida que a mística dos Habsbur-         na Alemanha e na Áustria; quando os nazistas assumiram o con-
go perde a força sobre ele, e que morre na Grande Guerra sem          trole, seria uma das escolhidas para ser submetida à eutanásia.
deixar descendentes.                                                       Em 1933, Roth deixa a Alemanha de uma vez por todas e,
     A trajetória dos Trotta reflete a história do Império. O ideal   depois de passar algum tempo vagando pela Europa, torna a
do serviço desinteressado, encarnado no Trotta intermediário,         instalar-se em Paris. Traduções da sua obra vinham sendo publi-
deixa de manifestar-se em seu filho não porque o Império tenha        cadas em uma dúzia de línguas; segundo praticamente qualquer
fracassado em alguma instância objetiva, mas devido à mudança         critério, tornara-se um escritor de sucesso. No entanto, sua vida
                                                                      financeira era um caos. Além disso, já fazia algum tempo que
geral de atmosfera que torna insustentável o antigo idealismo (a
                                                                      bebia muito, e em meados da década de 1930 se tornara alcoóla-
mesma mudança de ares que é o ponto de partida para a dissec-
                                                                      tra. Em Paris, montou sua base num pequeno quarto de hotel e
ção da antiga Áustria em O homem sem qualidades de Robert
                                                                      passava os dias no café do térreo, escrevendo, bebendo e rece-
Musil). O mais jovem dos Trotta, nascido na década de 1890,
                                                                      bendo amigos.
pode ser o representante da geração de Roth e Musil ("Der Leut-
                                                                           Hostil tanto ao fascismo como ao comunismo, Roth procla-
nant Trotta, der bin ich"), mas é seu pai, obrigado no fim da
                                                                      mou-se católico e envolveu-se em intrigas políticas monarquistas,
vida não só a engolir a vergonha dos fracassos do filho como ain-
                                                                      mais especificamente em esforços para restaurar Otto von Habs-
da a descobrir - como descobre, com uma humildade como-
                                                                      burg, sobrinho-neto do último imperador, no trono austro-hún-
vente -   que as crenças a que sempre foi devotado saíram de
                                                                      garo. Em 1938, diante da ameaça de anexação pela Alemanha,
moda, a figura mais trágica do livro, mostrando o quanto Roth é
                                                                      viajou para a Áustria como representante dos monarquistas com
mais complexo como artista crítico do que como o apologista dos       a missão de tentar convencer o governo a entregar a chancelaria
Habsburgo em que mais tarde iria transformar-se.
                                                                      a Otto. Foi obrigado a bater em retirada ignominiosa, sem sequer
     Nos livros de Roth, é entre os súditos mais marginais que o      ter obtido uma audiência. De volta a Paris, passou a defender a
Império encontra seus mais fiéis seguidores. Os Trotta, seus aus-     criação de uma Legião Austríaca para libertar a Áustria pela força.
tro-húngaros exemplares, não são alemães, mas eslovenos na ori-            Oportunidades de mudar-se para os Estados Unidos surgi-
gem. Tendo declarada extinta uma linhagem do clã, Roth de-            ram, mas ele as deixou passar. "Por que você bebe tanto?", per-
cide inventar um distante primo Trotta por intermédio do qual         guntou-lhe um amigo preocupado. "E você, acha que vai esca-
pode empreender,   em Díe Kapuzínergruft (1938; traduzido para        par? Você também vai ser exterminado", respondeu-lhe Roth.7
o inglês como The Emperor's Tomb), uma continuação        bastante    Morreu num hospital parisiense em 1939, ao cabo de vários dias
inferior da Radetzkymarsch, sua história ficcional da decadência      de delíríum tremens. Tinha 44 anos.
do ideal imperial, transformado no cinismo e na decadência da
Viena do pós-guerra.                                                        Embora Roth tenha feito experiências intermitentes no gê-
    Enquanto isso, Friederike Roth sucumbira à doença mental           nero do conto, sua reputação    no mundo de língua inglesa de-
e fora hospitalizada. Passou a década de 1930 internada em asilos      via-se até há pouco aos seus romances, sobretudo Radetzkymarsch.

    112                                                                                                                           113
Então, em 2001, seus contos foram publicados numa tradução de         Left and The Legend of the Holy Drinker (Nova York, Ovedook
 Michael Hofmann,       com uma apresentação     em que Hofmann        Press, 1992).
 afirma que Roth, nos seus melhores textos, é um contista tão gran-         A primeira evidente obra-prima da coletânea é "Station-
 de quanto Anton Tchekhov.8
                                                                       master Fallmerayer" [O chefe da estação Fallmerayer] (1933)'
        O título The Colleeted Stories ofJoseph Roth [Contos reuni-    Fallmerayer é um homem tranquilo e autossuficiente de um ti-
 dos de Joseph Roth] parece conter uma promessa, e nada am-            po que encontramos com frequência na obra de Roth, cumprin-
 bígua: que nos está sendo apresentada a totalidade dos contos de      do fielmente mas sem muito sentimento os deveres do amor, do
 Roth. Mas o que são exatamente contos? Em vez de tentar es-
                                                                       casamento e da paternidade. E aí intervém o destino. Um aciden-
 tabelecer critérios formais -    uma tarefa condenada    ao fracas-
                                                                       te de trem ocorre perto da cidade do interior da Áustria onde ele
so -, Hofmann, com muita sensatez, toma como sua província             é chefe de estação. Uma das passageiras, a condessa Walewska,
toda a prosa ficcional de Roth para além dos seus romances. Nos        uma russa (e um traço irritante dessas traduções é o uso das con-
tomos relevantes dos canônicos Werke em alemão, em seis volu-          venções alemãs na transliteração dos nomes russos), é levada pa-
mes organizados por Fritz Hackert, encontramos dezoito textos
                                                                       ra a sua casa a fim de se recobrar do choque. Depois de sua par-
ficcionais não rotulados de Roman, "romance". As Colleeted Sto-
                                                                       tida, Fallmerayer reconhece. que se apaixonou por ela.
TÍes   reúnem dezessete desses dezoito textos; e não levam em conta
                                                                            Dali a poucos meses -   o ano é 1914 -,    a Áustria e a Rússia
que alguns desses dezoito sequer são contos acabados com co-
                                                                       entram em guerra. Fallmerayer combate no front oriental, so-
meço, meio e fim, mas fragmentos de projetos maiores aban-             brevivendo apenas graças à força de sua decisão de tornar a ver
donados a meio caminho; ou nem que quatro deles foram publi-           a condessa. Nas horas vagás, aprende russo por conta própria.
cados, durante a vida de Roth ou postumamente, como livros             E, claro, um dia descobre que se encontra nas proximidades da
independentes: April: The History of a Love (1925); The Blind          propriedade Walewski. Anuncia-se; ele e a condessa tornam-se
Mirrar: A Short Novel [O espelho cego, 1925]; A lenda do santo         amantes.
beberrão (1939); e O leviatã (impresso em 1940, mas distribuído             O idílio entre os dois é interrompido     pela Revolução Bol-
apenas em 1945).
                                                                       chevique. Fallmerayer salva a condessa dos comunistas e a acom-
       O décimo oitavo texto, omitido da coletânea, é A lenda do
                                                                       panha por mar até a segurança da propriedade da família em
santo beberrão, corretamente classificado por Hackert como uma         Monte Cado. Mas justo quando a felicidade dos dois parece ga-
Novelle, uma novela ou conto longo, e não um Roman. O moti-            rantida o conde Walewski, que todos julgavam morto, reapa-
vo para a sua ausência das Colleeted Stories, mencionado de pas-       rece. Velho e alquebrado, demanda cuidados, e sua mulher não
sagem na apresentação, é que já havia uma tradução sua (do             tem como recusar. Fallmerayer avalia a situação e, sem uma pa-
próprio Hofmann) disponível no mercado. As Colleeted Stories,          lavra, vai embora. "E nunca mais se ouviu nada a seu respeito."
portanto, não são os contos reunidos em sentido estrito: precisam      (Colleeted Stories, p. 201)
ser complementadas seja por A lenda do santo beberrão (Lon-                 A intuição de Roth acerca do que pode e não pode ser al-
dres, Chatto & Windus, 1989) ou pelo volume misto Right and            cançado na forma do conto é segura. Aos olhos de um romancis-

       114
                                                                                                                                    115
J
                                                                      f
ta - Tolstói, por exemplo, cuja influência pode ser claramente        ";        a burocracia do Estado. Mas agora perdeu o poder e a influên-
detectada não apenas nesse conto, mas no recém-finalizado Ra-

                                                                      I
                                                                      ~         cia. Ainda assim, os aldeões - judeus, polacos, rutênios - con-
detzkymarsch - a sequência de acontecimentos que leva do pri-
                                                                                tinuam a respeitá-Io. E essas pessoas merecem respeito, comenta
meiro encontro entre o chefe de estação e a condessa até a che-
gada do conde pode parecer limitar-se a criar o pano de fundo
para a questão que de fato interessa: o que poderá fazer da vida
um austríaco de meia-idade que abandona a família e seu país
                                                                      I
                                                                      '.
                                                                      ••••.•.
                                                                      ,
                                                                                veis da história mundial". "O vasto"aosos governantes diferente da
                                                                                pequena aldeia de Lopatyny quanto caprichos tão e os dema-
                                                                                o narrador, por resistirem assim mundo não é incompreensí-
                                                                                gogos gostariam de fazer-nos acreditar", acrescenta ele em tom
para seguir uma mulher, e agora se vê à deriva na Europa do                     sombrio. (p. 241)
pós-guerra? Mas Roth nem sequer aborda a questão. Sem negar                           Quando as novas autoridades polonesas ordenam que ele
o poder que o amor, mesmo o amoltr fou, tem de nos transformar                  retire o busto do imperador, Morstin supervisiona um enterro
em seres humanos mais plenos, ele conduz Fallmerayer até o                      solene da estátua. Em seguida, refugia-se no sul da França para
limiar do e agora?, e então o deixa lá.                                         terminar seus dias e escrever suas memórias. "Meu antigo lar, a
      "O busto do imperador" (1935) pertence claramente à fase                  monarquia ... era uma morada com muitas portas e muitos quar-
ultraconservadora de Roth. Passado na Galícia imediatamente                     tos para muitos tipos diferentes de pessoas", escreve ele. "Mas a
depois da Grande Guerra, fala do quixotesco conde Franz Xa-                     morada foi dividida, esfacelada, arruinada. Nada tenho a ver com
vier Morstin, que, embora suas propriedades agora se encontrem                  o que existe hoje em seu lugar. Estou acostumado a viver numa
em território polonês, mantém um busto do imperador Francis-                    casa, e não em cabanas." (p. 247)
co José diante da sua residência e costuma ostentar o uniforme                       Obras como "O busto do imperador" e "O túmulo do impe-
de oficial da cavalaria austríaca. A história é contada por um nar-             rador" são conservadoras não apenas na postura política, mas
rador sem nome para o qual esse protesto obscuro e discreto con-                também na técnica literária. Roth não é modernista. Parte do
tra o curso da história parece merecer todo o louvor.                           motivo é ideológica; parte, uma questão de temperamento; e parte,
     O narrador não perde seu tempo em nos externar sua opinião                 para falarmos com franqueza, o fato de ele não ter acompanha-
sobre os tempos modernos. Ao longo do século XIX, observa ele em                do os desenvolvimentos no mundo literário. Roth não lia muito;
tom cáustico, concluíra-se que "cada indivíduo precisa ser mem-                 gostava de citar Karl Kraus: "Um escritor que passa o tempo len-
bro de uma determinada raça ou nação". E então todas essas pes-                 do é como um garçom que passa o tempo todo comendo".9
soas que nunca tinham sido outra coisa senão austríacos ... come-                    "O Leviatã" é uma narrativa de tipo totalmente diverso. A
çaram, obedecendo a essa "ordem do dia", a ver-se como membros                   reticência de Roth em relação às suas origens de Ostfude desa-
das "nações" polonesa, tcheca, ucraniana, alemã, romena, eslo-                   parece por completo. Passado não na Galícia, mas na região
vena, croata. Entre os poucos que continuam a ver-se "para além                  vizinha da Volínia, no Império Russo, é um conto expansivo,
                                                                                 lírico no tom, folclórico no estilo. Em seu centro se encontra
da nacionalidade" estava o conde Morstin. (pp. 232,233,228)
    Antes da guerra, o conde costumava exercer um papel so-
cial e funcionar como uma espécie de mediador entre o povo e
                                                                      ,          o judeu Nissen Piczenik, que embora ganhe a vida vendendo
                                                                                 contas de coral a camponesas ucranianas nunca viu o mar. No

    116                                                                                                                                    117
"'"'"




oceano da sua imaginação, todos os seres, inclusive os corais,                que animam a grande literatura. "Juventude" mal se esforça para
vivem sob os cuidados de um animal fabuloso, o Leviatã da Sa-                 passar por ficção: temos a impressão de estarmos diante de uma
grada Escritura.                                                              autoanálise do próprio Joseph Roth, implacável e muito preca-
     Piczenik torna-se amigo de um jovem marinheiro, em cuja                  riamente velada.
companhia    começa a frequentar     tavernas e faltar às orações.                 "O espelho cego" (1925) é a história de uma jovem comum,
Abandona a família para ir até Odessa com o novo amigo e fica                 sonhadora, submissa e sexualmente inocente da classe operária,
semanas por lá, fascinado com a vida do porto.                                Fini - uma síísse Miídel ("jovem ingênua"), no jargão vienense.
     De volta à sua terra, descobre que está perdendo a freguesia             Aqui Roth se entrega a um pastiche do estilo da noveleta, miti-
para um rival que vende contas novinhas de celuloide. Cedendo                 gando o sentimentalismo xaroposo com toques irônicos e alguns
à tentação, começa a misturar contas de celuloide às de coral.                rasgos poéticos em tom sombrio. Fini trabalha num escritório do
Mas nem assim recupera a boa sorte. E decide emigrar. A cami-                 centro e vive numa casa pequena com a mãe perseguidora e um
nho do Canadá, seu navio naufraga. "Que descanse em paz ao                    pai reformado do exército por invalidez. Seduzida por um ho-
lado do Leviatã até a vinda do Messias" são as últimas palavras               mem mais velho, ela logo descobre como é escasso o prazer na
desse mais ostensivamente judaico dos contos de Roth. (p. 276)                vida quase marital com um amante que nunca toma banho, an-
     "Stationmaster Fallmerayer", "O busto do imperador" e "O                 da de chinelo pela casa e costuma esquecer de abotoar a bragui-
Leviatã" são obras da maturidade de Roth. Os contos mais an-                  lha. "Uma vez por semana, ou talvez duas, os dois mantinham
tigos das Colleeted Stories são muito desiguais, incluindo inex-              congresso no sofá do gabinete, uma entrega infeliz, silenciosa e
pressivos textos naturalistas, experiências frustradas e fragmentos           acompanhada por lágrimas silenciosas, como a comemoração
abandonados. Entre os contos completos dessa fase anterior, dois              desesperada de aniversário de um paciente terminal". (p. 128)
se destacam. "O aluno brilhante" (1916) é uma estreia de notá-                     Tardiamente, Fini encontra o verdadeiro amor nos braços
vel segurança. Passado numa pequena cidade da Áustria alemã,                  de um intrépido revolucionário. Quando seu amante desapare-
acompanha com um olhar satírico a ascensão de Anton Wanzl,                    ce, ela se suicida por afogamento. Sua história - uma descon-
o aluno brilhante do título, zeloso, disciplinado, obsequioso, as-            fortável mescla de paródia, sentimentalismo e realismo urbano
tuto - uma criatura perfeitamente adaptada ao progresso na                    _ acaba com seu cadáver estendido na mesa de dissecção de uma
burocracia educacional. Como muitos dos contos iniciais, porém,               escola de medicina.
este também começa cheio de ideias e de energia, depois perde                      Em suas cartas da década de 1920, Roth faz menções repe-
o vigor e acaba mal.                                                           tidas a um grande romance em que viria trabalhando. O roman-
    A personagem     de Wanzl é recuperada    e retrabalhada   cer-            ce nunca chegou a ser concluído; e só restaram dois fragmentos
ca de quinze anos mais tarde, numa narrativa de primeira pessoa                _ fieiras de anedotas, de caráter fantástico e pontilhadas de ima-
intitulada "Juventude". O narrador se apresenta como um ho-                    gens notáveis, baseadas nos seus anos de juventude na Galícia.
mem frio e cínico, sensual, mas impiedoso com as próprias emo-                 Mais tarde, Roth transporia esse material num tom mais som-
ções, destacando-se em estudos literários mas estranho às paixões              brio e o usaria num vigoroso romance curto, Das falsehe Gewieht

    118                                                                                                                                  119
[O peso falso], traduzido para o inglês como Weights and Measu-    inglês" burnish" deriva do francês "brunir", "lustrar", que nada
 res, outra obra em que um homem só encontra o amor tarde           tem a ver com o calor ou queima, pode ser posta de lado, pois
 demais na vida e não tem como viver seus prazeres.                 ocorre que todas as palavras começadas por brun- e burn- têm
                                                                    suas raízes emaranhadas no passado indo-europeu. O único pro-
     Michael Hofmann já traduziu Roth antes, e foi premiado         blema é que nenhuma parte desse engenho verbal se encontra
por suas traduções. O inglês de Hofmann é expressivo, contido e     em Roth, em cujo alemão o sol se limita a "refletir-se" ("spiegelte
preciso como o alemão de Roth no que tem de melhor. Entre-          sich") no par de samovares. (p. 261)
tanto, nem sempre Roth escreveu tão bem quanto podia, e o que            Às vezes Hofmann dá a impressão de empurrar Roth nu-
Hofmann faz quando Roth não está no auge da forma é causa           ma direção em que o original não estava indo: a pressão dos de-
para alguma preocupação.                                            dos de um homem no braço de uma jovem torna-se "insistente"
      Em "O Leviatã", por exemplo, Roth descreve no original os     quando no original era apenas suave. Às vezes, por outro lado,
trajes noturnos da mulher do vendedor de coral Piczenik como        ele deixa passar uma ênfase significativa. Para o narrador de "O
"uma camisola comprida, salpicada de uma série de manchas           busto do imperador", a geração que herdou o poder na Europa
irregulares e pretas, indícios da presença de pulgas". Hofmann      depois de 1918 já era ruim, mas não tanto quanto (na versão de
condensa isso em "a long flea-spotted nightgown" ("uma compri-      Hofmann) "os herdeiros ainda mais progressistas e assassinos"
da camisola manchada de pulgas"). No mesmo conto, Piczenik          que a sucederam - uma clara alusão a Mussolini, Hitler e suas
é saudado por suas freguesas, no texto de Roth, "com abraços e      hordas. Mas como alguém poderia chamar os fascistas de "pro-
beijos, rindo e chorando, como se nele elas recuperassem um         gressistas"? No alemão, a palavra é "moderneren", "mais mo-
amigo que não viam havia décadas, e cuja falta sentiram por         dernos": para Roth em sua fase tardia, é a linha de pensamento
muito tempo". Na versão de Hofmann ele é recebido "com abra-        moderno que dá origem ao Estado-Nação europeu que também
ços e beijos, como um amigo perdido". Nos dois casos, Hofmann       sanciona os ódios étnicos que haveriam de levar a Europa à ca-
parece ter decidido transmitir melhor o que Roth pretendia re-      tástrofe. (pp. 105,237)
formando ou condensando o original, em vez de traduzir cada               Hofmann é britânico, e vez por outra emprega locuções de
palavra do texto. Mas será mesmo parte do trabalho do tradutor      uso britânico cujo significado pode escapar ao leitor americano.
tentar dar lições de economia ao autor que traduz? (pp. 263, 260)   Um rapaz planeja "to see off" ("afugentar") um rival pelo afeto
      Há casos em que Hofmann melhora o texto de Roth a pon-        de uma jovem. Uma garota pergunta a outra se ela já "has been
to de na verdade reescrevê-Io. Em Hofmann, encontramos um par       poorly" ("teve a sua menstruação"). Alguém "havers" ("hesita")
de samovares de cobre "brunidos pelo sol poente" ("burnished        à porta de um hospital. Assim como se pode defender a tradução
by the setting sun"). Brunir um metal é o mesmo que lustrá-Io,      para o dialeto do inglês que o tradutor domina com mais clareza,
fazê-Io brilhar. Mas dentro da palavra inglesa "burnish", por um    também se pode defender, ao contrário, que deve usar o dialeto
feliz acidente linguístico, encontra-se a palavra "burn" - e as-    mais linguisticamente neutro que puder. (pp. 25, 102, 118)
sim o cobre é levado a reluzir pelo ardor ("burning") da luz do
sol, por assim dizer. Qualquer objeção que nos lembre que o                                                                      (2002)

    120                                                                                                                         121
7· Sándor Márai
                                                                    1
                                                                    I1
                                                                    i!
                                                                               No devido tempo, os dois jovens se formam na academia e
                                                                          entram para a Guarda. Enquanto Henrik leva uma vida conven-
                                                                    j
                                                                    .~.
                                                                          cional de oficial militar, Konrad começa a passar as noites sozi-
                                                                    I;    nho, entregue à leitura. Ainda assim, mesmo depois que Henrik
                                                                          se casa com a linda Krisztina, o laço entre os dois jovens perma-
                                                                    I,    nece intacto.
                                                                               O flashback termina. O velho general abre uma gaveta se-
                                                                    ·1:   creta e tira dela um revólver carregado.


                                                                    I
                                                                    I1
                                                                               Em meio à escuridão Konrad chega (e como ele fez para
                                                                    1I
                                                                          atravessar a Europa ocupada pelos alemães, não cuida de expli-
                                                                          car). Durante o jantar, descreve sua vida desde que ele e Henrik
                                                                    I1    seguiram caminhos separados, quarenta anos antes. Passou anos
                                                                          trabalhando   na Malásia, para uma empresa mercantil inglesa.
                                                                          Tornou-se cidadão britânico e vive na Inglaterra. Henrik, por sua
     Estamos com o velho general, Henrik, em seu castelo na
                                                                    I'
                                                                          vez, conta como, depois que a monarquia austríaca foi abolida,
Hungria. O ano é 1940. Vinte anos se passaram, depois da queda            decidiu renunciar à sua patente de oficial.
da monarquia dos Habsburgo, sem que o general aparecesse em                    Os dois concordam que a dissolução do Império pós-1919
público. Agora ele espera um visitante, seu outrora grande ami-           pôs fim aos sentimentos de lealdade de qualquer um deles. Kon-
go Konrad.                                                                rad: "A pátria para mim era um sentimento. Esse selltimento foi
     O general contempla os retratos dos progenitores: seu pai,           ferido. [...] Nada daquilo a que juramos fidelidade existe mais.
oficial da Guarda, e sua mãe, aristocrata francesa que fez o pos-         [...] Havia um mundo pelo qual valia a pena viver e morrer. Esse
sível para encher de cor e música aquele mausoléu de granito              mundo morreu". Mas Henrik objeta: "Para mim aquele mundo
perdido na floresta, mas ao final sucumbiu sob seu peso frio.             continua vivo, mesmo se na realidade não existe mais. Está vivo
Num longo flashback, ele rememora como, na infância, fora le-             porque jurei fidelidade a ele". (pp. 74-5)
vado para Viena a fim de se alistar numa academia militar; co-                 Um raio atinge a rede elétrica. No castelo, os dois velhos
mo lá conhecera Konrad, como os dois se tornaram insepará-                continuam seu jantar à luz de velas. Quase cem páginas se pas-
veis. Durante as férias, em casa, ele e Konrad cavalgavam juntos          saram. Estamos na metade de As brasas (o título em húngaro
e esgrimiam juntos, jurando permanecer castos. "Não há nada               diz, literalmente, Extinguem-se as velas). É hora de Henrik co-
mais delicado do que uma relação como esta. Tudo o que a                  meçar a tratar do que interessa.
vida propiciar mais tarde, sentimentos de ternura ou desejos                  Ao longo de todos esses ú1ti~TIOS
                                                                                                              quarenta anos, conta ele a
brutais, paixões impetuosas e ligações fatais, será mais rude e           Konrad, viveu atormentado por uma pergunta para a qual fi-
desumano."!
                                                                          nalmente quer uma resposta. Na verdade, se Konrad não tivesse

    122
                                                                                                                                   123
vindo visitá-Ia naquela noite, ele teria partido à sua procura, mes-
  mo que fosse nas próprias entranhas do inferno. Lembra a Kon-
  rad o que aconteceu num dia fatídico de 1899, quando bateu à
                                                                         I~l
                                                                          ª"

                                                                          I!
                                                                          ~,
                                                                          I~
                                                                          i
                                                                          !
                                                                              ..
                                                                                   começamos a aceitar que nossos desejos não encontraram
                                                                                   jamais encontrarão um eco verdadeiro no mundo. "As pessoas
                                                                                   que amamos não retribuem o nosso amor, ou pelo menos não
                                                                                                                                                  nem



 porta do apartamento de solteiro de Konrad e, para sua surpresa                   como gostaríamos." (p. 106) Assim, de Konrad ele não pede mais
 - nunca estivera lá antes, e esperava um cenário espartano _,                     que a verdade. O que de fato acontecia entre ele e Krisztina?
 encontrou o lugar repleto de belos objetos, "tapeçarias e tapetes,      f-             Às perguntas, acusações, ameaças e pedidos de Henrik, Kon-
 bronzes e prataria antiga, cristais e móveis, tecidos raros". (p. 94)
                                                                         i'        rad não dá nenhuma resposta e, ao amanhecer, vai embora. A
 Enquanto contemplava tudo aquilo, maravilhado, Krisztina en-            11        última página está virada, o revólver não é usado.
 trou pela porta, e os antolhos caíram de suas vistas.                                  As brasas é um romance - na realidade uma novela -         em
                                                                         I,
                                                                         I'
     Konrad e Krisztina o traíam e enganavam - eis por que
                                                                         I         que pouca coisa acontece. Do trio de personagens, Krisztina é




                                                                         I
 Konrad fugira do país. Mas será que sua traição fora ainda mais                   uma sombra e Konrad, um silêncio obstinado. O castelo, a tem-
                                                                         I1
                                                                         .,;
 profunda? Não consegue esquecer o momento em que, saindo                          pestade, a visita noturna de Konrad resultam em não mais que
 para a caça com Konrad, um sexto sentido lhe avisa que a arma                     um cenário e uma ocasião para que Henrik possa fazer em voz
 de Konrad estava apontada não para o cervo, mas para a sua
 nuca. (E ele não se vira: não quis passar pelo "sentimento de
 vergonha [...] que deve sentir a vítima quando é obrigada a olhar
 na cara de seu assassino".) Teriam planejado juntos assassiná-Ia
e, se era mesmo esse o caso, por que seu plano fracassara? Só por-
                                                                         I
                                                                         II



                                                                         li
                                                                         ~I
                                                                                   alta suas reflexões sobre as mutações sofridas por sua dor e seu
                                                                                   ciúme ao longo do tempo, e proferir suas meditações sobre a vi-
                                                                                   da. O livro dá a impressão de uma transcrição narrativa, às vezes
                                                                                   até canhestra, de uma peça teatral.
                                                                                       Entre os tópicos acerca dos quais Henrik expõe suas ideias
que faltara a Konrad a coragem de puxar o gatilho? (p. 114)              II        bastante convencionais estão a guerra recém-irrompida (um mun-
      Henrik rememora o veredicto particular de seu pai sobre             I        do enlouqueeido);   os povos primitivos (ao menos conservaram
Konrad: que no fundo ele não era um soldado. Como Krisztina,                       uma noção da natureza sagrada do homicídio); as virtudes mas-
morta há tanto tempo, Konrad era amante da música. E Henrik                        culinas do silêncio e da solidão, e a inviolabilidade da palavra
não compartilha essa paixão. Lembrando o herói patologicamen-                      dada; a amizade (um sentimento     conhecido   apenas pelos ho-
te ciumento da Sonata Kreutzer de Tolstói, ele acusa a música de                   mens, e mais nobre que o desejo sexual porque não pede nada
ser um apelo à libertinagem e à anarquia, uma linguagem secre-                     em troca); e a caça (a única arena onde os homens ainda podem
ta usada por "certas pessoas" para manifestar "coisas vagas, insó-                 experimentar uma alegria proibida, a saber, o impulso, nem bom
litas; às vezes [...] até [...] algo inconveniente, imoral". (p. 138)              nem mau em si mesmo, de exterminar seu antagonista).
"Você matou algo dentro de mim", conta ele a Konrad. "E esta                            As opiniões de Henrik são as que poderíamos esperar de
noite matarei algo dentro de você." (pp. 110-1)                                    qualquer enferrujado general da reserva. Mas ele é mais que
    No entanto, no mesmo momento em que tem Konrad à sua                           isso. Também é um seguidor da interpretação vulgarizada de
mercê, seu desejo de vingança parece esvair-se. De que pode lhe                    Nietzsche, com sua romantização da violência e sua mística ho-
valer, afinal, a morte de Konrad? Com a idade, ao que parece,                      moerótica, que predominou    em meio à inconformada elite mi-

    124
                                                                                                                                            125
----~




litar europeia da virada do século XIX para o XX. Uma das manei-
ras de ler As brasas é como uma obra irônica, escrita de maneira
                                                                      I
                                                                      ;;O,




                                                                      II
                                                                      li
                                                                                     podemos falar com mais ninguém. Ainda assim, sabemos quem
                                                                                     somos, e aquilo de que não podemos falar constitui a "verda-
a permitir aos Henriks do mundo expor a crueza das suas ideias
em suas próprias palavras, sem qualquer intervenção autoral. Pa-
ra que essa leitura tenha valor, porém, o leitor precisa aceitar o
                                                                      Illi
                                                                      I;


                                                                      i
                                                                                     de". Somos aquilo a cujo respeito guardamos
                                                                                     Landi. .., p. 83)
                                                                                                                                       silêncio. (Land,



                                                                      li
                                                                      ,'ª"
                                                                      ::e'


livro como uma impostura acabada, em que os sentimentos do            ,,'             E noutro ponto Márai observa que, na arena do amor, a mu-
próprio Márai são deliberadamente silenciados. A linguagem
                                                                       li
                                                                                 lher que revela seu segredo corre o risco de perder o jogO.3
recheada de clichês espelharia então a sensibilidade sem poli-        II              Numa segunda leitura de As brasas, talvez sejam Kon-
mento de Henrik, bem como a míse-en-scene igualmente deslus-           .1        rad, com sua recusa deliberada em apresentar suas desculpas, e
trada: o castelo gótico assombrado por "presenças intangíveis";
                                                                       II
                                                                                 Krisztina, que entre o dia fatídico da fuga de Konrad e sua morte
a mesa adornada com uma porcelana "de raro encanto"; laços                       não diz uma palavra ao marido ("ela se mostrou superior", co-
                                                                      :11
"profundos demais para as pálavras" entre o patrão e o antigo cria-              menta ele cheio de admiração), que são mais fiéis a si mesmos.
do que atende às suas necessidades; "antigos textos" que ele con-      1I
                                                                       ..    1
                                                                                 (As brasas, p. 161)
sulta à procura do sentido da vida etc. etc.                                          A leitura de As brasas, publicado em Budapeste em 1942,
      Uma leitura alternativa desse livro enigmático - enigmáti-                 pode ganhar muito se for feita em paralelo com a novela O le-
co porque tão deliberadamente fora de contato com o seu tempo                    gado de Eszter, lançada três anos antes.4 Como As brasas, O lega-
(foi lançado durante a Segunda Guerra Mundial) - daria mais                      do de Eszter parece ter sido concebido como uma peça teatral.
peso ao pessimismo de Márai quanto à nossa capacidade de co-                     Tem o mesmo foco numa personagem única que passa o tempo
nhecer os outros, e a sua resignação estoica a não ser, ele pró-                 todo em cena, e uma psicologia críptica e similar que resulta
prio, conhecido. "Na literatura, como na vida", escreve ele em                   num ato inesperado: uma mulher de meia-idade em circunstân-
suas memórias Land, Land! ... [Terra, Terra!. ..], "só o silêncio é              cias difíceis transfere suas propriedades a um homem que, como
'sincero'."2 Depois que você revela seu segredo mais íntimo, de-                 sabe perfeitamente,     usa mentiras sentimentais      sistemáticas pa-
siste da sua identidade e, nesse sentido, deixa de ser quem é. (Daí               ra enganá-Ia. Como assinala ela com um humor distanciado, há
o desdém que Márai sente pela psicanálise, com suas ambições                      em si algo que parece a compelir a ser enganada. Ela poderia
terapêuticas.) Mesmo que no fundo o general sinta não ser a ca-                   resistir, mas fazê-Io seria contrariar o seu caráter. Resistir seria re-
ricatura que parece, não tem como protestar nem se debater, e                     jeitar essa versão caricatural da feminilidade, da mulher como a
só pode desempenhar seu papel até o fim. Num trecho crucial,                      criatura que ama ouvir mentiras, que adora ceder. Resistir a essa
Márai escreve:                                                                    caricatura seria insurgir-se contra o teatro da vida, debater-se pa-
                                                                                  ra emergir do sonambulismo do destino. O heroísmo mais pro-
    Não nos limitamos a agir, falar, pensar e sonhar; também guar-                fundo, somos levados a inferir, reside na aceitação estoica.
    damos silêncio sobre algo. Passamos a vida toda sem falar so-                       O legado de Eszter é mais direto que As brasas em sua es-
    bre quem somos, sobre aquilo que só nós sabemos e de que não                  tratégia narrativa, mais transparente      quanto à sua ascendência

    126                                                                                                                                           127
r
                                                                      I'
                                                                      II        Em 1928 voltou à Hungria para estabelecer-se em definitivo
 -   Tchekov, Strindberg -,   e assim talvez seja uma apresentação
 menos enigmática ao fatalismo austero e radical de Márai.
                                                                      li   e reaprender    devidamente     a língua. Escreveu em abundância,



                                                                      i
                                                                      I'
                                                                      i    tanto peças teatrais quanto romances. Entre 1930 e 1939 lançou
                                                                           dezesseis livros, com os quais começou a conquistar um contin-
      Sándor Márai nasceu em 1900 na cidade interiorana          de
 Kassa, que depois do fim da Dupla Monarquia, em 1919, deixou              gente substancial de leitores tanto na Hungria como no mundo



                                                                      I
                                                                      i,
 de ficar na Hungria e, com o nome de Kosice, foi entregue à               de língua alemã. Não pertencia a nenhum partido político, le-
 recém-criada nação da Tchecoslováquia. Do lado de seu pai,                vava uma vida discreta. Seu tributo ao romancista Gyula Krúdy
 um advogado, a família era de origem saxã: o nome era Grossch-            fala muito dos seus valores: "Ele não estava preparado para es-
 midt, mas após os levantes de 1848, em que lutaram do lado na-            crever a certa classe social nem para o Volk, só para a classe e o
 cionalista húngaro, decidiram mudá-Io. Em casa, a família fala-           Volk das pessoas independentes.       Nunca se esforçou para ser o
 va mais alemão do que húngaro.                                            queridinho da pátria".5
     A formação de Márai foi interrompida pela Primeira Guer-                     Veio a Segunda Guerra, mas o fluxo das suas obras conti-
 ra Mundial. Convocado aos dezessete anos, parece ter passado              mIOU    a ser publicado sem interrupção. Entre elas estava um re-
 a maior parte do seu tempo de serviço internado num hospital.             lato autobiográfico    do seu retorno a Kassa, agora restituída à
 Depois da guerra, viveu um rápido flerte com a esquerda estu-
                                                                           Hungria. Em 1943, juntamente com outros escritores húngaros,
 dantil e partiu em seguida para o estrangeiro. Em Leipzig, matri-         assinou uma carta aberta em favor da defesa da cultura hún-
 culou-se no recém-criado Instituto de Jornalismo, mas achou as
                                                                           gara, que considerava ameaçada, contra as influências externas.
 aulas acadêmicas demais e decidiu mudar-se para Frankfurt, on-
                                                                           Começou a escrever um diário, composto já tendo em vista a
 de a atmosfera intelectual mais estimulante o deixava mais à
                                                                           publicação     futura, e o primeiro volume, cobrindo 1943-4, saiu
 vontade. Tinha um talento genuíno para fazer novos contatos, e
                                                                           em 1945.
 logo começou a escrever no prestigioso Frankfurter Zeítung. Leu
                                                                                Entre o fim da guerra, em 1945, e o ano de 1948, Márai pu-
 Kafka e traduziu alguns dos seus contos para o húngaro.
                                                                           blicou mais oito livros. Mas, à medida que a tomada das insti-
      De Frankfurt avançou para Berlim. Seu plano era conseguir
                                                                           tuições do país por ordens de Moscou ia ganhando ímpeto, a
 um diploma alemão, aculturar-se plenamente      e depois construir
                                                                           atitude oficial em relação a ele tornava-se cada vez mais glacial.
_ uma carreira de escritor em língua alemã - na verdade, a fim
                                                                           Interpretando    corretamente    os sinais, Márai partiu para o exílio,
  de retomar seu legado Grosschmidt. Em lugar disso, contudo,
  casou-se com uma jovem de Sassa, abandonou os estudos e foi              primeiro na Suíça, depois na Itália e finalmente em Nova York.
  morar em Paris, onde levava uma vida de intelectual descom-              O levante húngaro de 1956 renovou suas esperanças. Voltou para
 prometido com uma incerta identidade centro-europeia. Por cin-            a Europa, só para deparar-se com uma verdadeira torrente de
 co anos, usou Paris como base para viagens extensas. Escreveu             refugiados expulsos pela derrota. Em 1979, ele e a mulher se-
 para jornais húngaros; escreveu também um primeiro romance,               guiram o filho adotivo, um órfão de guerra, de mudança para a
 que mais tarde decidiria repudiar.                                        Califórnia. Márai morreu em 1989, por suas próprias mãos.

      128                                                                                                                                 129
Durante seu exílio, Márai foi publicado em húngaro pela        que resta ao escritor é usar a experiência             de sua viagem para
editora Vorosvary-Weller, de Toronto, e teve traduções lança das    refletir sobre o fato de que naquele continente é estrangeiro, um
na França e na Alemanha. Ao todo, entre 1931 e 1978, 22 dos seus    europeuJ
livros foram lançados em traduções para o alemão. O fato de a
admiração por sua obra não ter sido afetada pelas mudanças no            O maior sucesso popular obtido por Márai foi com um li-
clima político sugere que sua noção do que significava permane-     vro intitulado Confissões        de um burguês.       Quando foi lançado
cer acima da política corrente encontrava eco na classe média       em 1934, o livro foi considerado autobiográfico. Alarmado, Má-
alemã. Enquanto isso, Márai continuava a trabalhar nos seus Diá-    rai acrescentou uma nota do autor à terceira edição, enfatizando
rios: mais cinco volumes foram publicados     entre 1958 e 1997.    que o que escrevera era uma "biografia ficcional" cujas perso-
Em 1990, foi-lhe atribuído postumamente     o Prêmio Kossuth, a     nagens "não vivem nem jamais viveram no mundo real". Ainda
maior honraria húngara.                                             assim, a trajetória do herói das Confissões acompanha bem de
     O único livro a emergir diretamente da experiência ameri-      perto os contornos conhecidos            da vida anterior de Márai, en-
cana de Márai é The Wind Comes fTOm the West [O vento vem           quanto suas opiniões são de todo consistentes com as de Márai.
do oeste], uma coletânea de textos baseados numa viagem que         Fica para um biógrafo futuro separar que parte delas foi exata-
fez na década de 1950 através elo Sudoeste e do Sul dos Estados     mente inventada.
Unidos, com uma rápida escapada até o México. Um dos cri-                O primeiro volume das Confissões nos leva a percorrer a
térios para avaliar a qualidade de um livro de viagem é verificar   infância e a juventude do herói sem nome, primeiro no lar con-
se ele oferece aos nativos alguma nova perspectiva acerca de si     fortável dos seus pais em Kassa, depois num internato de Buda-
mesmos. E Márai não passa nesse teste. Suas informações sobre       peste. Essa evocação amorosa e extensa de um modo de vida há
os Estados Unidos parecem vir mais dos jornais americanos do        muito desaparecido é o que o livro tem de mais atraente. Trata-se
que de uma observação pessoal; seus comentários sobre o que vê      de um modo de vida - o da Mittlestand       da Europa central,
raramente são originais ou marcantes. É difícil imaginar que al-    trabalhadora, patriota, socialmente responsável, respeitosa do co-
gum americano possa achar esse livro muito interessante, salvo      nhecimento - a cuja memória Márai ainda se aferrava bem de-
talvez tangencialmente, como um registro de como um europeu         pois de ter desaparecido.
da geração e da formação de Márai via o seu país (San Diego,              O segundo volume acompanha os Wanderjahre'"                     do herói
por exemplo, é elogiada por ter um centro compacto e uma ele-       enquanto ele vagueia pela Europa do pós-guerra, primeiro como
gância que evoca o sul da Itália).6                                 um estudante não exatamente aplicado e mais tarde como escri"
    O próprio Márai via com outros olhos seu comentário sobre       tor free-Iancer, de Leipzig a Frankfurt a Berlim a Paris e a Floren-
a América. Nos velhos tempos, afirma ele, um visitante europeu      ça até que, em 1928, ele retoma a Budapeste para dedicar-se se-
à América podia fazer de conta que era um explorador percor-        riamente a uma vida de escritor.
rendo terras por descobrir. Mas na América de hoje não existe
mais nada a descobrir, porque nada mais é desconhecido.    Tudo     ':' Período sabátíco dos jovens europeus antes de se estabelecerem.   (N. E.)


     13°                                                                                                                                    131
fi
     Em Berlim, com o marco local cada vez mais desvalorizado        '   nha de Goethe e Thomas Mann. Quem poderá saber qual delas
e com os bolsos cheios de florins húngaros, ele se vê numa situa-    I   é a verdadeira? (pp. 334-5)
ção confortável. Associado a alguns amigos, aluga um escritório               O segundo volume termina com o herói instalado em seu
e começa a publicar uma revista literc'íria. Tem aventuras eróti-        gabinete em Budapeste, cheio de maus presságios quanto à ma-
cas; escreve sua primeira peça de teatro. A vida nunca tinha sido        neira como o mundo vem evoluindo e suas próprias perspectivas
tão alegre e despreocupada.                                              pessoais. Nos dez anos que passou no estrangeiro, perdeu o do-
      Em Paris, ele e a mulher que acabara de desposar entre-            mínio da língua materna. Por toda a Europa o nível da cultura
ganHe a la vÍe boheme. E sofrem bastante. A comida é ruim, as            baixa dramaticamente, os padrões de civilização desaparecem, o
instalações sanitárias são indizíveis, não entendem a fala das           instinto de manada predomina. Entretanto, mesmo ao risco de
ruas. "Vivíamos exilados numa cidade grosseira e mal-intencio-           parecer um sexagenário prematuro,      ele ergue a voz em defesa
nada." Ao cabo de um ano decidem abandonar a experiência;                do Iluminismo burguês, "houve um tempo e viveram algumas
mudam-se para a Rive Droite, alugam um apartamento confor-               nações que proclamaram a glória da razão sobre os instintos, e
tável, importam uma criada de Kassa, compram um carro, vivem             acreditaram no poder de resistência do espírito, capaz de conter
com mais largueza. Márai ainda se sente atraído por Montpar-             o desejo de mOlte da horda". (pp. 450-2)
nasse ("ao mesmo tempo seminário acadêmico, banho a vapor e                   Lidas como uma narrativa de ficção, as Confissões são epi-
conferência ao ar livre"), mas preferivelmente   na qualidade de         sódicas e escassas em dramaticidade. Como memórias da vida
espectador, não de participante.8                                        artística na Berlim e na Paris dos anos 1920, são carentes de ob-
    Aos poucos, aprende a ser mais compreensivo com os fran-             servação e superficiais nos seus juízos. Melhor aceitá-Ias como
ceses. Podem ser um povo obstinado e avarento, a guerra pode             o que seu título proclama: uma declaração de fé de um jovem
ter minado sua confiança, mas não perderam o sentido de pro-             que, tendo experimentado a vida de boêmio expatriado e tendo
porção que lhes é peculiar, nem a noção do que lhes é favorável.         visto em primeira mão os inquietantes desdobramentos políticos
Sua modéstia e falta de gosto -   "consciente, quase humilhan-           da Itália e da Alemanha, sente a confirmação do que já parecia
te" - transformam-se numa característica positiva. E não preci-          saber desde o início: que em todos os aspectos mais relevantes
sam de muito para se abrirem e dispensarem um tratamento mais            ele pertence a uma estirpe em extinção, a burguesia progressista
caloroso aos outros. (p. 395)                                            do Império Austro-Húngaro.
    Quanto aos alemães, com seu sentimento de culpa de fun-
do mítico, impossível de expiar, com sua tendência ao compor-                  Entre os húngaros, parece haver um consenso de que Má-
tamento de massa, sua belicosidade nervosa e complicada, seus            rai ficará lembrado pelos seis volumes dos seus diários. Ainda
uniformes perturbadores, sua fome impiedosa de ordem e sua               não estão disponíveis em inglês; a recente edição alemã foi mui-
falta de ordem interior, bem podem representar um perigo para            to criticada pelo descuido do seu trabalho editorial.
a Europa. Ainda assim, por trás da Alemanha "pedante e pertur-                Entre os diários poderiam ser incluídas as memórias que re-
bada" cintila uma Alemanha alternativa e mais suave, a Alema-            ceberam o infeliz título de Land, Land!. .. (em húngaro Fold,

    132                                                                                                                           133
Fold), lançado em Toronto em 1972. (O título húngaro evoca o               Quanto a Márai, em sua disposição de espírito spengleria-
grito do marinheiro    de vigia na gávea a bordo da capitânia da      na, preferia reunir soviéticos e chineses sob o mesmo rótulo de
frota de Colombo ao avistar o Novo Mundo.) Em 1996, Land,             "orientais". Entre as variedades oriental e ocidental de consciên-
LandJ ... foi relançado em inglês com o título igualmente desgra-     cia supunha haver um golfo intransponível: a consciência orien-
cioso de MemoÍr of Hungary 1944-48.9 A tradução de 1996 é exe-        tal contém espaços internos criados pelas vastas geografias, e his-
crável, e não é usada neste ensaio. Mesmo assim, até que te-          tórias de sujeição que os ocidentais não têm como acompanhar.
nhamos traduções dos diários e de maior parte do corpo da obra        Os russos podem ter expulsado os alemães da Hungria, "mas li-
ficcional de Márai, essa será a parte mais substancial da sua obra    berdade não poderiam trazer, [pois eles próprios] não desfrutam
a que leitores de língua inglesa terão acesso, e nossa avaliação do   dela". Aqueles jovens russos mal podem ser diferenciados da HÍ-
seu valor precisará apoiar-se muito nela.                             tlerjugend:   "Em suas almas, o brilho da cultura herdada se apa-
     Land, Landt. .. são memórias da vida de Márai entre a che-       gou". (pp. 64-6,19,35)
gada do Exército Vermelho aos arredores de Budapeste em 1944 e              Embora perfeitamente    cônscio de que os nazistas, que des-
sua partida para o exílio, em 1948. Não é forte em incidentes -       prezava, usavam uma leitura vulgarizada de Spengler em sua
Márai não testemunhou     nenhum combate, e para a família Má-        teoria da história, é a Spengler que Márai recorre na sua inter-
rai o período do imediato pós-guerra foi dedicado acima de tudo       pretação histórica da expansão da Rússia para o oeste. E por quê?
à mera sobrevivência precária numa cidade devastada. Consiste         Em parte porque a interfusão de cultura e raça em Spengler é
antes numa crônica das mudanças políticas, sociais e espirituais      compatível com a ideia de cultura inata de que o próprio Márai
ocorridas na capital húngara à medida que o Partido Comunista         estava tão impregnado desde a origem, e em parte porque o pes-
intensifica seu controle sobre todos os aspectos da vida do país.     simismo de Spengler em relação ao destino do Ocidente (isto é,
     Por algumas semanas do verão de 1944, Márai precisou com-        da cristandade europeiaocidental)    é semelhante ao seu, mas em
partilhar sua vílla ao norte de Budapeste com soldados russos, e      parte também porque Spengler pertence ao fundo de leituras de
a propinquidade forçada entre o europeu central alto e elegante       Márai, e um dos artigos mais respeitados do credo conservador
que passava seu tempo absorvido na leitura do DeclínÍo do OcÍ-        de Márai é nunca ceder sem resistência.
dente, de Spengler, e aqueles jovens camponeses      russos, quir-          Depois da expulsão dos alemães, Márai e a mulher retomam
guizes e buriatos, em conversas rudimentares mediadas por uma         para a área urbana de Budapeste, onde encontram seu aparta-
jovem que falava tcheco, serviu de alerta para as duas partes. "O     mento em ruínas e a biblioteca quase toda destruída. Mudam-se
senhor não é um burguês", disse um dos russos mais perspicazes        para uma residência improvisada, esperando com seus conci-
a Márai, "[porque] não vive da riqueza [herdada] nem do traba-        dadãos o passo seguinte da libertação, a saber, a volta da Hun-
lho dos outros, mas do seu próprio trabalho. Ainda assim ... no       gria ao seio da Europa cristã e católica. Quando começam a per-
fundo da alma o senhor é um burguês. E se apega a uma coisa           ceber que aquela espera era vã (o Esperando     Godot de Beckett,
que não existe mais". (Land, Land! ... , p. 53)                       diz Márai, captura com exatidão o espírito dominante      naquele

     134                                                                                                                         135
interregno),   e que a Hungria fora abandonada   aos russos, uma    é, quando tive a oportunidade,    não ter levado uma vida mais
 onda de ódio um tanto aleatório espalha-se pelo país. Na verda-     confortável e mais variada." (pp. 125, 127)
 de, diz Márai, um dos traços do período do pós-guerra em geral           É preciso muita autoconfiança,     até mesmo bastante arro-
 foi a difusão de ondas de ódio psicótico - daí o surgimento de      gância, para escrever assim. Land, LandJ. .. é uma confessio mais
 tantos movimentos revolucionários    com sede de vingança por       profundamente reveladora que as Confissões (1934). Em relação
 todo o mundo.
                                                                     a si mesmo, Márai é franco: como o resto da elite húngara, não
      Bem mais interessantes que as teorias de Márai sobre a his-    conseguiu dar nenhuma resposta imaginativa às crises do sécu-
 tória do mundo são as histórias que ele tem para contar sobre as    lo xx. Comportou-se como uma verdadeira caricatura do inte-
vidas das pessoas comuns de Budapeste, primeiro sob a ocupa-         lectual burguês, desprezando tanto a ralé da direita quanto a ralé
ção russa e depois sob o domínio dos próprios comunistas hún-        da esquerda, e recolhendo-se aos seus prazeres particulares.
garos. Além da vida social, a inflação devasta igualmente    a vi-        Mas esse fracasso, afirma ele, não significa necessariamen-
da moral do país. Retoma a polícia secreta, reunindo esses tipos     te que a Mittelstand da Europa devesse ser condenada à lata de
humanos desprezíveis bem conhecidos, recrutados como antes           lixo da história. A identidade não é uma questão puramente pes-
entre os "proletários" mas envergando    novos uniformes.   Uma      soal. Não somos apenas quem somos em nossa vida particular,
notável anedota contada em oito páginas fala de um judeu, ca-        mas também ostentamos a versão caricatural de nós mesmos que
çado durante a guerra mas agora poderoso oficial de polícia, que     circula pelo espaço social. E, já que não temos como escapar
se instala no elegante Café Emke e pede ao conjunto de ciga-         à caricatura, talvez o melhor seja adotá-Ia. Além disso, "não era
nos que toque para ele canções patrióticas dos anos 1930 fascis-     eu a única caricatura circulante na ... fase entre as duas guerras
tas, sorrindo com prazer enquanto soldados quirguizes assistem       mundiais; em tudo, em toda a vida na Hungria - em suas insti-
a tudo com ar desconfiado da mesa ao lado. "Saído diretamente        tuições, na maneira como as pessoas viam as coisas - havia algo
das páginas de Dostoiévski", comenta Márai. (pp. 157, 145)           de caricatural. É bom saber que não estamos sós". (p. 132)
     Terá sido um erro voltar para a Hungria?, pergunta-se Má-            Um ano depois do final da guerra, Márai permite-se uma
raio Ele rememora o dia de 1938 em que recebe a notícia de que       excursão à Suíça, à Itália e à França. A Suíça lhe provoca rumi-
o chanceler austríaco Schusnigg capitulara diante das ameaças        nações melancólicas sobre a morte do humanismo, o maior le-
de Hitler, renunciando. Como todo mundo, Márai sabia que o           gado da Europa para o mundo, em Auschwitz e Katyn. O que
mundo estava mudando debaixo dos seus pés. Ainda assim, no           uma Europa que perdeu seu sentido de missão humanista pode
dia seguinte, jogaria sua partida costumeira de tênis, seguida de    prometer a um "europeu do arrabalde" como ele próprio? Os suí-
um chuveiro e uma massagem. Mas não se orgulha da maneira            ços olham com desprezo para seus visitantes pobres e mal-ves-
como se comportou. "Sempre sentimos vergonha quando acha-            tidos. Os russos, pelo menos, não agem assim. (p. 196)
mos que não fomos heróis, e sim logrados - logrados pela his-             Na França ele se põe à procura da "autocrítica corajosa e
tória." Mas o que fazer agora? Despejar cinzas sobre a cabeça?       precisa, a distribuição de responsabilidades morais" que espera
Bater no peito? São reações que ele recusa. "Tudo que lamento        dos franceses, mas disso não encontra nem sinal. Os franceses,

    136                                                                                                                        137
ao que parece, só querem retomar a vida onde a interromperam                 A irrupção recente do interesse por Márai não é fácil de ex-
em 1940, recusando-se a ver que os quatrocentos anos de ascen-          plicar. Durante a década de 1990, cinco livros seus foram publi-
dência do "homem branco" estão chegando ao fim. (p. 206)                cados na França, atraindo apenas resenhas respeitosas. E então,
     Na Hungria, começa a debacle final. A polícia secreta está         em 1998, promovido por Roberto Calasso da editora Adelphi, As
em toda parte. Márai para de escrever para os jornais, mas conti-       brasas chegou às listas dos mais vendidos na Itália. Adotado pelo
nua a publicar seus livros, inclusive dois volumes de uma trilogia      grande promoter da crítica literária alemã, Marcel Reich-Ra-
sobre o período hitlerista que Georg Lukács arrasa numa rese-           nicki, As brasas, em sua roupagem alemã, vendeu 700 mil exem-
nha, escolhendo ler o que Márai tem a dizer sobre os fascistas          plares de capa dura. "Um novo mestre", proclamou com entu-
como uma crítica velada aos comunistas. A partir de então Má-           siasmo um resenhista de Die Zeit, "que no futuro haveremos de
rai se cala, vivendo modestamente de seus direitos autorais. Pas-       situar ao lado de Joseph Roth, Stephan Zweig, Robert Musil e
sa os dias imerso nos romancistas menores da Hungria do século          quem sabe quais outros de nossos gastos semideuses, talvez até
XIX, com suas histórias do mundo em que crescera.                       de Thomas Mann e Franz Kafka."1O
      Uma pressão cada vez maior se exerce sobre os intelectuais            As brasas, com   O   título Embers, foi lançado em inglês em
burgueses para que apoiem o regime. Logo fica claro que mes-            2001, numa tradução de Carol Brown Janeway não direta do hún-
mo a liberdade de permanecer em silêncio, essa forma de exí-            garo, mas em segunda mão, a partir da tradução alemã - práti-
lio interno, será recusada a pessoas como ele. Márai consulta           ca profissional um tanto questionável. Os resenhistas america-
seu amado Goethe, e Goethe lhe diz que, se ele tem um desti-            nos parecem ter aceitado sem duvidar a afirmação dos editores
no, é seu dever viver esse destino. Faz preparativos para partir.       de que As brasas era "desconhecido do leitor moderno" antes de
Estranhamente, nenhum obstáculo oficial se ergue barrando seu           1999 (na verdade, uma tradução para o alemão fora publicada
caminho.
                                                                        em 1950 e uma tradução para o francês, em 1958, depois reedi-
     Anos se passam no exílio, anos de impotência, longe da "ma-        ta da em 1995), tratando Márai como um mestre perdido e redes-
ravilhosa e solitária língua húngara", mas ainda assim sua fé na        coberto. O sucesso do livro na Europa repetiu-se no mundo de
classe em que nasceu, e na missão histórica dessa classe, perma-        língua inglesa.
nece inabalada:
                                                                             É difícil deixar de acreditar que esse sucesso seja em grande
                                                                        parte uma resposta aos elementos de romance popular presentes
    Eu era um burguês (ainda que apenas em caricatura)       e conti-   no livro - o castelo na floresta, a história de paixão, adultério e
    nuo a sê-Ia, embora velho e num país estrangeiro.   Ser um bur-     vingança, a apaixonada amante oriental de Konrad, a linguagem
    guês nunca foi para mim apenas uma questão de posição de            exagerada, e assim por diante -, ou seja, exatamente à camada
    classe -   sempre julguei que fosse uma vocação. O burguês sem-     caricatural e kitsch que Márai, a seu modo complexamente irô-
    pre foi, a meu ver, a melhor coisa produzida pela moderna cul-      nico, ao mesmo tempo prefere ver de longe mas aceita como ine-
    tura ocidental, pois foi o burguês que produziu a moderna cultu-    vitável; embora no caso dos leitores europeus não se deva igno-
    ra ocidental. (p. 86)                                               rar um movimento histórico mais profundo, a saber, a exaustão,

    138                                                                                                                            139
ou mesmo a mera impaciência,        com uma visão do século xx         amor verdadeiro. Mas percebe que a paixão dele não está à altu-
cm que tudo ou bem nos conduz para o buraco negro do Ho-               ra da sua. Ele só é fiel à sua arte. Quando vai embora, ela profe-
locausto ou bem nos afasta dele, e uma nostalgia correspon-            tiza uma velhice terrível para Casanova, tomada pelos remorsos.
dente dos tempos em que as questões morais ainda tinham di-                A substância do livro de Márai é composta por esses dois
mensões praticáveis.                                                   extensos diálogos, na verdade praticamente dois monólogos (o
     Em 2004, um segundo romance de Márai, Vendégjáték Bol-            do duque se estende por cinquenta páginas), mais as rumina-
zanóban (1940) [Conversas em Bolzano], foi publicado em tradu-         ções de Casanova a respeito de ambos. Como sugere o título
ção para o inglês com dois títulos diferentes: Conversations in Bol-   original, o romance brinca com a ideia da performance elo céle-
zano no Reino Unido, Casa nova in Bolzano nos Estados Unidos. H        bre conquistador, parecendo cultivar uma expectativa quanto ao
    A ação desse livro é exígua, e faz parte de sua concepção          espetáculo que deverá ocorrer no baile de máscaras do duque e
que seja assim. Ele começa com a chegada a Bolzano de Giaco-           depois, talvez, ainda no quarto da duquesa; enquanto o prólogo,
mo Casanova, que acaba de fugir da prisão em Veneza e preten-          que se passa no quarto de Casa nova e no qual se pergunta se essa
de retomar negócios interrompidos. Cinco anos antes, disputara         performance deve mesmo acontecer, acaba sendo o único espe-
um duelo com o duque de Parma por causa da noiva do duque,             táculo que teremos. Por sua qualidade estática - em vez de uma
Francesca, de quinze anos. O duque lhe avisara para nunca rea-         ação no presente, temos a memória da ação passada e a reflexão
parecer. Mas ei-Io de volta.                                           sobre a possibilidade de ação futura -    e por sua linha narrati-
     Avisado da presença de Casanova, o duque vai visitá-Io no seu     va limitada, Vendégjáték Bolzanóban, assim como As brasas, re-
quarto da taverna. E lhe propõe um acordo: em troca da liberda-        vela um autor mais à vontade com o teatro do século XIX que com
de para cortejar Francesca e talvez obter uma noite com ela, Ca-       o romance.
sanova precisa jurar que nunca mais tornará a vê-Ia. E, em com-             Como também ocorre em As brasas, há pouca coisa que se
pensação, receberá mil ducados e uma carta de salvo-conduto.           possa chamar de desenvolvimento. Todas as três personagens,
    E o que o senhor ganha?, pergunta Casanova ao duque. Vai           mesmo a jovem duquesa, têm posições fixas a partir das quais
ser um presente meu para minha mulher, responde o duque: a             falam, e seus discursos nada mais fazem que enunciar essas mes-
experiência de uma noite com um grande artista do amor, e uma          mas posições. Individual e coletivamente    (como participantes
aula de como ele só pode ser pouco capaz do verdadeiro amor.           na performance), são personagens típicas de Márai. "Você, como
Como fruto dessa lição, o duque espera conquistar a gratidão e         eu", diz o duque a Casanova, "é apenas um pau-mandado, um
o afeto da mulher.                                                     ator, o instrumento do destino que joga com cada um de nós
    Casanova aceita o que o duque vê como um negócio, mas              dois, um destino cuja finalidade às vezes parece insondável." (p.
que para o próprio Casanova é um desafio.                              202) Francesca pode sugerir a Casanova que se revolte contra o
    Pouco depois que o duque vai embora, Francesca apare-              papel imaginado para ele - o do sedutor empedernido -, mas
ce. Seu marido a subestima, declara. Ela está preparada a largar       nada do que ela diz sugere que tenha alguma esperança de mo-
tudo para ir viver com Casanova e mostrar-lhe como pode ser o          dificá-Io. Os amantes parecem conscientes de que estão repre-

    14°                                                                                                                           141
sentando uma espécie de tragédia em que a promessa do amor          quais precisa, por sua vez, ser descartada para que finalmente
será sufocada em nome da domesticidade, de um lado, e da sen-       possamos conhecer o rosto verdadeiro e nu do outro." (p. 261)
sualidade do outro; ainda assim, eles próprios nem sequer cogi-          E é na carta em que apresenta ao duque as suas despedi-
tam rebelar-se contra o papel que nela desempenham. O que se        das que Casanova de fato dá a resposta do artista. O amor se ba-
vê é um estoicismo melancólico, no lugar da coragem trágica.        seia em ilusões, diz ele. "E há outra coisa que eu sabia e a duque-
     Em nenhum ponto Márai sugere que as memórias deixadas          sa de Parma ainda não tem como saber: que a verdade só pode
pelo Casanova histórico tenham provado que se tratava de um         sobreviver na medida em que os véus ocultos do desejo e da
grande artista. Ainda assim, na facilidade com que conseguia        saudade formem uma cortina à sua frente, mantendo-a coberta."
atrair as mulheres e no desconforto instintivo que despertava nas   (p. 291) A triste verdade em que a arte de Casanova nos inicia é
autoridades - foi encarcerado em Veneza não por algo que ti-        que, além de estarmos sempre mascarados, não temos como so-
vesse feito, mas por "sua maneira de ser, por sua alma" -, Casa-    breviver desprovidos de máscara.
nova acaba encarnando o artista-rebelde romântico, da maneira            Vendégiáték Bolzanóban começa como uma ficção históri-
como é concebido pela imaginação popular. (p. 107) O núcleo         ca de tipo rotineiro, mas a laboriosa introdução de pormenores
intelectual das Vendégiáték Bolzanóban consiste no confronto        de fundo, bem como a recriação dos ambientes, felizmente logo
entre a concepção ingênua -     mantida em vida por Francesca       se encerra, permitindo que o livro se dedique a ser o que Márai
-   do artista como a figura da verdade e o contraexemplo,   dado   pretende,   um veículo para as suas ideias sobre a ética da arte.
por Casanova, do artista que se submete, tanto ética quanto es-     Novas traduções da obra ficcional de Márai estão prometidas;
teticamente, à prática da ilusão, e mesmo da ilusão do tipo mais    mas nada do que foi posto até agora à disposição de leitores ile-
tomado pelos clichês. O artista da sedução obtém o que deseja,      trados em húngaro contradiz a impressão de que, por mais que
sugere Casanova, porque abre os olhos da jovem para quem ela        possa ter sido um cronista ponderado da sombria década de 1940,
realmente é; não porque a cegue com suas mentiras, mas porque       por mais corajosamente (ou talvez só impassivelmente) que pos-
tanto ele quanto ela sentem que as mentiras repetidas pelos se-     sa ter falado em nome da classe em que nasceu, por mais pro-
dutores, geração após geração, acabam adquirindo uma certa ver-     vocativa que possa ser a sua filosofia paradoxal da máscara, sua
dade própria.                                                       concepção da forma do romance ainda assim era antiquada; seu
     Quando Francesca e Casanova ocupam o palco para a sua          domínio de suas potencialidades, limitado e suas realizações na
grande cena a dois, eles o fazem (em consequência de uma intri-     área, consequentemente,    de bem pouca monta.
ga pouco convincente) usando disfarces: Francesca está mas-
carada e fantasiada de homem; Casanova, travestido de mulher.                                                                    (2002)
Francesca expõe a visão ingênua do amor: o amor provoca o
desnudamento da ilusão e a adoção da verdade nua da pessoa
amada. "Ainda somos apenas figuras mascaradas, meu amor",
diz ela, "e há muitas outras máscaras entre nós, cada uma das

     1{2                                                                                                                       143
8. Paul Celan e seus tradutores                                      ocupada, onde morreram, a mãe com uma bala na cabeça quan-
                                                                     do se tornou incapaz de trabalhar. O próprio Antschel passou os
                                                                     anos da guerra fazendo trabalhos forçados na Romênia aliada
                                                                     ao Eixo.
                                                                          Libertado pelos russos em 1944, trabalhou por algum tem-
                                                                     po como assistente num hospital psiquiátrico, depois em Buca-
                                                                     reste como editor e tradutor, adotando o pseudônimo de Celan,
                                                                     um anagrama de Antschel em sua transliteração        romena. Em
                                                                     1947, antes de ficar encerrado    pela cortina de ferro de Stálin,
                                                                     viajou para Viena e de lá transferiu-se para Paris. Em Paris, pres-
                                                                     tou exame para obter sua Lícense es Lettres e foi nomeado profes-
                                                                     sor de literatura alemã na prestigiosa École Normale Supérieure,
                                                                     posição que ocuparia até a morte. Casou-se com uma francesa,
                                                                     católica de origem aristocrática.
    Paul Antschel nasceu em 1920 em Czernowitz,        no territó-         O sucesso da sua mudança do Leste para o Ocidente logo
rio de Bukovina, que depois do esfacelamento     do Império Aus-     foi toldado. Entre os escritores que Celan vinha traduzindo para
tro-Húngaro em 1918 tornou-se parte da Romênia. Czernowitz,          o alemão estava o poeta francês Yvan Goll (1891-1950). A viúva
nesse tempo, era uma cidade de muito movimento intelectual,          de Goll, Claire, discordou de Celan quanto às suas versões, e em
com uma considerável minoria de judeus de língua alemã. Ants-        seguida acusou-o publicamente de plagiar em alemão alguns
chel foi criado falando alto-alemão; durante sua formação, parte     dos poemas que Goll escrevera. Embora as acusações fossem
em alemão e parte em romeno, passou ainda um período na es-          infundadas, e talvez até insanas, Celan sentiu-se atingido por
cola hebraica. Na juventude, escrevia versos e reverenciava Rilke.   elas a ponto de convencer-se de que Claire Goll fazia parte de
     Depois de um ano (1938-9) numa escola de medicina na            um complô contra a sua pessoa. "O que nós, os judeus, precisa-
França, onde travou contato com os surrealistas, esteve em ca-       remos suportar ainda?", escreveu ele à sua confidente Nelly Sachs,
sa de férias e lá ficou encurralado pela irrupção da guerra. Nos     como ele uma judia que escrevia em alemão. "Você não faz ideia
termos do pacto entre Hitler e Stálin, a Bukovina foi absorvida      de quantas pessoas devem ser incluídas entre os seres vis, não,
pela Ucrânia: por um breve período, ele foi cidadão soviético.       Nelly Sachs, você não faz ideia!. .. Devo dizer-lhe os nomes? Vo-
    Em junho de 1941, Hitler invadiu a União Soviética. Os ju-       cê ficaria hirta de horror."l
deus de Czernowitz foram confinados num gueto; logo come-                 A reação de Celan não pode ser classificada de simples pa-
çaram as deportações. Aparentemente advertido, Antschel con-         ranoia. À medida que a Alemanha do pós-guerra começava a sen-
seguiu esconder-se na noite em que seus pais foram capturados.       tir-se mais confiante, correntes antissemitas voltavam a fluir, não
Os pais foram despachados para campos de trabalho na Ucrânia         apenas na direita, mas também, o que era bem mais perturba-

    144                                                                                                                         145
dor, em plena esquerda. E Celan suspeitava, não sem motivo,         You lie amid a great listening

que se tinha transformado num foco conveniente para a campa-        enbushed, enflaked.

nha pela arianização da cultura alemã que não cessara de todo
                                                                    Go the Spree, to the Havel,
em 1945, mas apenas se tornara subterrânea.
                                                                    go to the meathooks,
     Claire Goll nunca desistiu da sua campanha contra Celan,
                                                                    the red apple stakes
continuando a persegui-Io mesmo após a morte; sua perseguição
                                                                    from Sweden -
envenenou a vida do escritor e muito contribuiria para seu co-
lapso final.
                                                                    Here comes the gift table,
                                                                    it turns around an Eden -
     Entre 1938 e sua morte, em 1970, Celan escreveu cerca de
oitocentos poemas em alemão; além disso, deixou ainda um cor-       The man became a sieve, the Frau
po de textos anteriores em romeno. O reconhecimento       do seu    had to' swim, the sow,
dom veio cedo, com a publicação     de Mohn und Gedaehtis [A        for herself, for no one, for everyone -
papoula e a memória J, em 1952. Consolidou     sua reputação co-
mo um dos mais importantes jovens poetas da língua alemã com        The Landwehr Canal won't make a mumwr.

Spraehgitter [Grade da fala, 1959J e Die Niemandsrose [A rosa       Nothing
de ninguém, 1963J. Dois outros volumes ainda foram publicados           stops.

durante a sua vida, e três postumamente.   Essa poesia posterior,
                                                                    Jazes em meio a muita escuta
fora de fase com a guinada para a esquerda da intellígentsia ale-
                                                                    amoitado, em flocos.
mã depois de 1968, não foi recebida com o mesmo entusiasmo.
     Pelos padrões do modernismo internacional,    Celan foi bas-
                                                                     Vá até o Spree, até o Havel,
tante acessível até 1963. Sua poesia posterior, porém, torna-se
                                                                     vá até os ganchos de açougueiro,
extremamente   difícil, e mesmo obscura. Atônitos diante do que
                                                                     as estacas de maçãs vermelhas
lhe parecia um simbolismo arca no e referências particulares, os     da Suécia-
críticos classificaram os poemas tardios de Celan de herméticos,
um rótulo que ele rejeitava com grande veemência. "Nem um            E eis a mesa dos presentes,
pouco hermético", respondia ele. "Leiam! Continuem       lendo, o    ela gira em torno de um Éden -
entendimento   vem por conta própria."z
     Típico do Celan "hermético"    é o seguinte poema sem tí-       o homem     tornou-se uma peneira, a Frau
tulo, publicado após a sua morte, que cito na tradução de John       teve de nadar, a porca,
Felstiner.3                                                          por si, por ninguém, por todos -

                                                                                                                 147
     146
r
     o Canal       de Landwehr nem murmura.                           :~
                                                                           de receptividade? Será possível reagir a uma poesia como a de
     Nada
                                                                           Celan, e mesmo traduzi-Ia, sem compreendê-Ia plenamente?
           para.                                                      f
                                                                                Michael Hamburger, um dos mais eminentes tradutores de
                                                                           Celan, parece achar que sim. Embora não tenha dúvida de que
      Do que, no mais elementar dos níveis, trata o poema? Difí-           os estudiosos iluminaram para ele a poesia de Celan, diz Ham-
cil dizer, antes de nos inteirarmos de certas informações, infor-          burger, ele não tem certeza de "entender", no sentido corrente
mações forneci das por Celan ao crítico Peter Szondi. O homem              da palavra, nem mesmo os poemas que ele próprio traduziu,
que se tornou uma peneira foi Karl Liebknecht,      "a Frau [...] a        quanto mais todos eles.5
porca" nadando no canal é Rosa Luxemburgo. "Eden" é o nome                     "Exige demais do leitor", é o veredicto de Felstiner quanto
de um bloco de prédios de apartamentos construído no local on-             ao poema sobre Rosa Luxemburgo. Por outro lado, prossegue
de os dois militantes foram fuzilados em 1919, enquanto os gan-            ele, "o que será demais, diante dessa história?". E é esta, em
chos de açougueiro são os ganchos do Plótzensee no rio Havel,              poucas palavras, a resposta do próprio Felstiner às acusações de
de onde penderam enforcados os pretensos assassinos de Hitler              hermetismo dirigidas contra Celan. Dada a enormidade das per-
em 1944. À luz dessas informações, o poema emerge como um                  seguições antissemitas no século xx, dada a necessidade muito
comentário pessimista acerca da contínua sede de sangue da di-             compreensível dos alemães, e do Ocidente cristão em geral, de
reita na Alemanha, e do silêncio dos alemães a respeito dela.              escapar a um monstruoso íncubo histórico, que memória, que
    O poema sobre Rosa Luxemburgo transformou-se num 10-                   conhecimento será demais exigir? Mesmo que os poemas de Ce-
cus classicus menor quando o filósofo Hans-Georg Gadamer,                  lan fossem totalmente incompreensíveis (e não é exatamente
defendendo Celan contra as acusações de hermetismo, apresen-               isso que Felstiner diz, mas a extrapolação parece válida), ainda
tou uma leitura sua na qual argumentava que qualquer leitor                assim assomariam diante de todos nós como um mausoléu, um
receptivo e de mente aberta, com uma boa formação cultural                 mausoléu erguido por um "poeta, sobrevivente, judeu" (o subtí-
alemã, é capaz de entender o que importa entender em Celan                 tulo do estudo de Felstiner), insistindo com sua presença para
sem qualquer ajuda, e que a informação de fundo deveria ocupar             que nos lembremos, embora as palavras nele inscritas pareçam
uma posição secundária em relação ao "que o [próprio] poema                pertencer a uma língua indecifrável. (Felstiner, p. 254)
sabe".4
                                                                                Em jogo há mais que um simples confronto entre uma Ale-
    A argumentação        de Gadamer é combativa, mas não se sus-          manha impaciente para esquecer seu passado e um poeta judeu
tenta. O que ele esquece é que não podemos ter certeza de que              que insiste em trazer esse passado à memória da Alemanha. Ce-
a informação que decifra o poema - no caso, a identidade dos               lan ficou famoso, e ainda hoje é mais amplamente conhecido,
mortos -     tem importância secundária antes de sabermos qual             pelo poema "Fuga da morte":
seja. Ainda assim, as questões que Gadamer levanta são impor-
tantes. Será que a poesia oferece um tipo de conhecimento dife-                Black milk of daybreak we drink you at night
rente do apresentado pela história, demandando    um tipo diverso              we drink you at noon death is a master from Germany

    148                                                                                                                              149
we drink you at sundown and in the moming we drink                imenso impacto emocional quando se encontram com ele. No
          and   we   drink you                                         entanto, esse argumento precisaria abrir uma exceção para a ma-
     death is a master {rom Germany his eyes are blue                  neira como "Fuga da morte" foi recebido, de braços aparente-
     he strikes you with leaden bullets his aim is true                mente abertos.
                                                                             Na verdade, o próprio Celan jamais confiou totalmente no
     Negro leite da aurora tomamos-te à noite                          espírito com que seu poema foi recebido, e até mesmo celebra-
     tomamos-te ao meio-dia a morte é um mestre da Alemanha            do, na Alemanha Ocidental. Na linha que os críticos alemães
     tomamos-te ao pôr do sol e de manhã tomamos-te                    assumiam diante de "Fuga da Morte" - para citar um crítico
        e tomamos-te                                                   eminente, a de afirmar que o poema demonstrava o quanto Ce-
     a morte é um mestre elaAlemanha com olhos ele anil                lan teria "[conseguido escapar] à câmara sangrenta dos horrores
     tem mira certeira e te alveja com balas de fuzil                  da história para alçar voo até o éter da pura poesia" -, Celan
                                                                       sentia que estava sendo interpretado erroneamente       no sentido
     (Cito parte da tradução de Hamburger,          em Paems af Paul   histórico mais profundo, e interpretado erroneamente de propó-
Celan, p. 63, porque a versão de Felstiner do mesmo trecho, pra-       sito.6 E tampouco  ficava satisfeito ao saber que, nas salas de au-
ticamente tão marcante quanto ela a seu modo, apresenta uma            la, os estudantes alemães eram instados a ignorar o conteúdo do
solução controversa fora de contexto.) "Fuga da morte" foi o pri-      poema e a concentrar-se na sua forma, especialmente em sua
meiro poema publicado de Celan: terá sido composto em 1944             imitação da estrutura musical da fuga.
ou 1945, e saiu, em tradução para o romeno, em 1947. Absorve                Quando Celan escreve sobre os "cabelos de cinza" de Sula-
dos surrealistas tudo que valia a pena absorver. Não é criação ex-     mita, invoca o cabelo dos judeus que caía na forma de cinza so-
clusiva de Celan: aqui e ali ele utiliza frases, entre elas "A mor-    bre os campos da Silésia; quando escreve sobre a "porca" deba-
te é um mestre da Alemanha", de outros poetas dos seus dias de         tendo-se nas águas do Landswehr Canal, refere-se, na voz de um
Czernowitz. Ainda assim, seu impacto foi imediato e universal.         de seus assassinos, ao corpo de uma judia morta. Opondo-se à
"Fuga da morte" é um dos poemas mais marcantes do século xx.           pressão para recuperá-Io como um poeta que teria transformado
    "Fuga da morte" vem sendo amplamente lido no mundo de              o Holocausto em algo maior, a saber, a poesia, e opondo-se à or-
língua alemã, incluído em antologias, estudado nas escolas, como       todoxia crítica das décadas de 1950 e 1960, com sua visão do poe-
parte do programa conhecido como Vergangenheitsbewaltigung,            ma ideal como um objeto estético completo contido em si mes-
entrar em acordo com, ou superar, o passado. Nas palestras pú-         mo, Celan insiste em dizer que pratica uma arte do real, uma arte
blicas que Celan dava em alemão, "Fuga da morte" sempre era            que "nada transfigura nem torna 'poético'; ela nomeia, ela afir-
pedido. É o mais direto dos poemas de Celan em nomear e                ma, ela tenta medir a área do que é dado e do que é possível".7
acusar: nomeia o que ocorria nos campos de extermínio, acusa                Com sua música percussiva e repetitiva, "Fuga da morte"
a Alemanha. Alguns dos defensores de Celan afirmam que ele             é a abordagem mais direta do tema que um poema poderia apre-
só é rotulado de "difícil" porque os leitores costumam sentir um       sentar. E também faz duas importantes afirmações implícitas

    15°                                                                                                                           151
quanto àquilo de que a poesia é capaz, ou deveria ser capaz, em                 Vinda de um judeu, tal profissão de fé na língua alemã po-
nosso tempo. Uma é de que a linguagem pode dar conta de                    de parecer estranha. No entanto, Celan não estava de modo al-
qualquer tema: por mais indizível que possa ser o Holocausto,              gum sozinho: mesmo depois de 1945, muitos judeus continua-
existe uma poesia capaz de falar dele. A outra é de que a língua           vam a reivindicar como suas a língua e a tradição cultural alemãs.
alemã em particular, corrompida até o osso durante a era nazista           Entre eles estava Martin Buber. Celan fez uma visita a Buber pa-
pelo eufemismo e um certo duplipensar oblíquo, é capaz de di-              ra perguntar-lhe o que achava de continuar escrevendo em ale-
zer a verdade sobre o passado imediato da Alemanha.
                                                                           mão. A resposta de Buber - que era mais que natural escrever
     A primeira delas foi dramaticamente rejeitada pela declara-
                                                                           na língua materna, e que era preciso tomar uma posição de per-
ção de Theodor Adorno, divulgada em 1951 e reiterada em 1965,
                                                                           dão em relação aos alemães - deixou-o decepcionado. Como diz
de que "escrever poesia sobre Auschwitz é um gesto bárbaro".8
                                                                           Felstiner: "A necessidade vital que Celan sentia, de ouvir algum
Adorno poderia ter acrescentado: e um gesto duplamente bár-
                                                                           eco do seu tormento, Buber não conseguiu ou não quis perce-
baro escrever um poema em alemão. (Adorno retiraria suas pa-
                                                                           ber".9 O que atormentava Celan era que, se o alemão era a "sua"
lavras, um tanto a contragosto, em 1966, talvez em concessão a
                                                                           língua, só era sua de um modo complexo, contestável e doloroso.
"Fuga cIa morte ".)
  ,
                                                                                Durante os anos que viveu em Bucareste depois da guer-
     Celan evita a palavra "Holocausto" em sua obra, assim co-
                                                                           ra, Celan aperfeiçoou seus conhecimentos de russo, traduzindo
mo evitava todos os usos que pudessam dar a impressão de que-
                                                                           Lermontov e Tchekhov para o romeno. Em Paris, continuava
rer dizer que a linguagem cotidiana estivesse em posição de no-
                                                                           a traduzir poesia russa, encontrando   na língua russa um lar aco-
mear, e desse modo delimitar e controlar, aquilo que assinala.
Celan fez dois importantes pronunciamentos públicos ao longo               lhedor e antigermânico.   Em particular, leu intensamente     Óssip
da vida, ambos discursos de aceitação de prêmios, em que, com              Mandelstam (1891-1938). Em Mandelstam encontrou não só um
grande escrúpulo na escolha das palavras, respondia às dúvidas             homem cuja biografia correspondia à sua própria, a seu ver de
quanto ao futuro da poesia. No primeiro, em 1958, falou de sua             maneira quase sobrenatural, mas um interlocutor fantasma que
fé persistente de que a língua, mesmo a língua alemã, tivesse so-          respondia às suas necessidades mais profundas, capaz de lhe ofe-
brevivido "ao que aconteceu" sob o domínio nazista.                        recer, nas palavras de Celan, "o que é fraterno - no sentido
                                                                           mais reverencial que posso dar a essa palavra". Pondo de lado sua
    Restava em meio às perdas esta única coisa: a língua.                  própria obra de criação, Celan passou a maior parte dos anos de
        Ela, a língua, permanecia, não perdida, sim, apesar de tudo.       1958 e 1959 vertendo Mandelstam para o alemão. Suas tradu-
    Mas precisava passar através da sua própria falta de respostas, pas-   ções constituem um ato extraordinário de transmigrar-se para ou-
    sar através da mudez assustadora, passar através das mil escuri-       tro poeta, embora Nadejda Mandelstam, a viúva do poeta, tenha
    dões da fala que traz a morte. Ela passou através disso e não pro-     razão de considerá-Ias "muito distantes do texto original". (Felsti-
    duziu palavras para o que aconteceu; ainda assim, passou através       ner, pp. 131, 133)
    desse acontecimento. Passou através dele e conseguiu retomar à              A concepção de Mandelstam, do poema como diálogo, mui-
    luz, "enriquecida" por tudo isso. (sPp)                                to contribuiu para modificar a teoria poética de Celan. A partir

    152                                                                                                                                153
de então, os poemas de Celan começam a dirigir-se a um Tu que
tanto pode estar mais ou menos distante quanto ser mais ou me-
                                                                   ,
                                                                   if

                                                                   ~
                                                                   t
                                                                        judaica, e Buber sobre o hassidismo. Palavras em hebraico -
                                                                        Zív, a luz sobrenatural             da presença de Deus; Yízkor, a lembran-
nos conhecido. No espaço entre o Eu que fala e o Tu, eles en-           ça -    aparecem em sua poesia. O tema do testemunho,                do de-
contram um novo campo de tensão.                                        poimento,      avança para o primeiro plano, juntamente              com o
                                                                        amargo subtema pessoal: "Ninguém/ dá testemunho sobrei a tes-
     (I know you, you're the Ol1ebel1t over low,                        temunha." ("No onel Bears wítness for! the wítness.", SPP, p. 261)
     and I, the Ol1epierced through, am in your need.                   O "Tu" da sua poesia dialógica agora insistente transforma-se, de
     Where flames a word to witness for us both?                        maneira intermitente mas inconfundível, em Deus: ecos emer-
     You -     wllOlly real.   1- wholly mad.)                          gem dos ensinamentos cabalísticos de que toda a criação é um
                                                                        texto composto na linguagem divina.
     (Eu te conheço, és aquele que está muito curvado,                         A captura de Jerusalém pelas forças israelenses na guerra de
     e eu, o trespassado, necessito de ti.                              1967 enche Celan de júbilo. E ele escreve um poema comemo-
     Onde arde a palavra que testemunhe          por nós dois?          rativo que circula amplamente               em Israel:
     Tu -    totalmente    real. Eu -   totalmente louco.)
                                                                               Just think: your
     (Essa é a tradução de Felstiner. Na versão mais livre, de                 own hand
Heather McHugh e Nikolai Popov, o último verso diz: "Tu és                     has held
minha realidade. Eu sou a tua miragem.". [You're my realíty. I'm               this piece of
your mírage.   ])'0                                                            habitable earth,
                                                                               again suffered
      Se existe um tema singular que domina a biografia de Ce-                 up il1tOlife.   (sPp,   p.   307)

lan escrita por John Felstiner, é que Celan, de poeta alemão
cujo destino era ser judeu, transformou-se num poeta judeu cujo                Imagine só: a sua
destino era escrever em alemão; que superou a afinidade com                    própria mão
Rilke e Heidegger para encontrar em Kafka e Mandelstam seus                    conservou
verdadeiros patronos espirituais. Embora durante a década de                   este pouco de
1960 Celan tenha continuado     a visitar a Alemanha para fazer                terra habitável,
palestras, qualquer esperança de que ele pudesse desenvolver um                trazida de volta à vida
envolvimento emocional com a Alemanha reerguida foi aos pou-                   pelo sofrimento.
cos desaparecendo, a ponto de ser classificada por ele de "um
erro muito trágico e na verdade muito infantil". (Felstiner, p.              Em 1969 Celan visitou Israel pela primeira vez ("Tantos ju-
226) Começa a ler Gershom Scholem sobre a tradição mística              deus, só judeus, e não num gueto", admirou-se ele em tom irô-

    154                                                                                                                                     155
nico). (Felstiner, p. 268) Deu palestras e fez leituras, encontrou-se   esse veredicto sobre o suicídio de Celan é verdadeiro. Mas não
com escritores israelenses, retomou uma relação romântica com           podemos descartar causas mais mundanas como a vcndctta pro-
uma mulher dos seus tempos de Czernowitz.                               longada e enlouquecida de Claire Goll, ou a natureza dos cuida-
     Na infância, Celan frequentara por três anos uma escola            dos psiquiátricos que teve. Felstiner não faz comentários diretos
hebraica. Embora tenha estudado a língua de má vontade (pois            sobre o tratamento a que os médicos de Celan o submeteram,
a associava a seu pai sionista, em contraposição à sua amada mãe        mas a partir das próprias observações amargas de Celan fica cla-
germanófila), adquirira um domínio surpreendente e profundo.            ro que eles precisariam responder por muita coisa.
Aharon Appelfeld, a essa altura israelense, mas na origem um
natural de Czernowitz, como Celan, achava o hebraico de Ce-                  Mesmo durante a vida de Celan, desenvolvera-se uma ani-
lan "bastante bom". (Felstiner, p. 327) Quando Yehuda Amichai           mada troca acadêmica, especialmente na Alemanha, em torno
leu em voz alta suas traduções dos poemas de Celan, Celan pô-           da sua obra. E esse comércio transformou-se hoje em verdadeira
de sugerir alguns melhoramentos.                                        indústria. Celan passou a ser, para a poesia alemã, o que Kafka é
     De volta a Paris, Celan se perguntava se não teria feito a es-     para a prosa.
colha errada ao permanecer na Europa. Brincou com a ideia de                 Apesar das traduções pioneiras de Jerome Rothenberg, Mi-
aceitar uma posição de professor em Israel. Memórias de Jerusa-         chael Hamburger e outros, Celan só foi realmente penetrar no
lém deram origem a um breve período de composição, poemas               mundo de língua inglesa depois de consagrar-se na França; e na
ao mesmo tempo espirituais, alegres e exóticos.                         França Celan era lido como um poeta heideggeriano, ou seja,
    Havia muito que Celan sofria de crises de depressão. Em             eomo se a sua carreira poética, culminando    no suicídio, exem-
1965 internou-se numa clínica psiquiátrica, e mais tarde subme-         plificasse o que ocorre eom a arte em nosso tempo, num fim em
teu-se à terapia de eletrochoque. Em casa, como descreve Fels-          paralelo ao fim da filosofia diagnosticado por Heidegger.
tiner, era "ocasionalmente violento". Ele e a mulher resolveram              Embora Celan não seja o que se pode chamar de poeta fi-
viver separados. Um amigo de Bucareste que o visitou achou-o            losófico, um poeta das ideias, essa ligação com Heidegger não é
"profundamente alterado, prematuramente envelhecido, tacitur-           fantasiosa. Celan leu Heidegger com atenção, assim como Hei-
no, de cara fechada". "Estão fazendo experiências comigo", con-         degger lia Celan; Halderlin foi uma influência decisiva sobre
tou-lhe Celan. À sua amante israelense, escreveu em 1970: "Eles         a formação de ambos. Celan concordava com a opinião de Hei-
me curaram tanto que acabaram comigo". Dois meses mais tar-             degger de que a poesia tinha uma capacidade especial de dizer
de ele se mataria por afogamento. (Felstiner, pp. 243, 330)             a verdade. A explicação que dava dos motivos por que escrevia
     Para o historiador Erich Kahler, com quem Celan se cor-            - "para falar, para me orientar, para descobrir onde eu estive e
respondera, o suicídio de Celan provou que"ter sido "tanto um           aonde devia ir, para desenhar a realidade para mim mesmo" -
grande poeta alemão quanto um jovem judeu da Europa Cen-                está em plena harmonia com Heidegger. (sPp, p. 396)
tral, criado à sombra dos campos de concentração", era um far-               Apesar do passado nacional-socialista de Heidegger e do
do pesado demais para qualquer um.U Num sentido profundo,               seu silêncio acerea dos campos de extermínio, ele era a tal ponto

     156                                                                                                                          157
importante para Celan que este, em 1967, decidiu fazer-lhe uma      ele parece ter encontrado nela uma espécie de compressão, sin-
visita em seu refúgio da Floresta Negra. Em seguida, escreveu       tática e metafórica, com a qual tinha muito a aprender. Quan-
um poema ("Todtnauberg") sobre aquele encontro e a "pala-           to a Shakespeare, voltaria muitas vezes aos sonetos. Suas versões
vra/ do coração" que esperava ouvir de Heidegger, mas este não      são ofegantes, urgentes, interrogativas: nem tentam imitar a gra-
lhe disse.                                                          ça de Shakespeare. Como diz Felstiner, Celan às vezes "chega
     Qual poderia ser a palavra que Celan esperava? "Perdão",       quase a uma discussão, para além do diálogo, com o inglês", rees-
sugere Philippe Lacoue-Labarthe em seu livro sobre Celan e          crevendo Shakespeare de acordo com a noção que tinha do tem-
Heidegger. Mas logo reformula seu palpite. "Foi engano meu          po em que ele próprio vivia. (p. 205)
achar... que bastaria pedir perdão. [O extermínio] é absoluta-           Quanto às suas próprias traduções de Celan, Felstiner pro-
mente imperdoável. Eis o que [Heidegger] deveria ter dito."12       cura indicações - como nenhum tradutor antes dele jamais fi-
    Para Lacoue-Labarthe, a poesia de Celan é "em sua tota-         zera - nas revisões manuscritas de Celan e em suas leituras gra-
lidade, um diálogo com o pensamento      de Heidegger".   (p. 33)   vadas, bem como nas versões francesas aprovadas por Celan. Um
E foi essa abordagem de Celan, predominante na Europa, que          exemplo pode mostrar o uso que faz dessas pesquisas. O mais
mais contribuiu para retirá-Io da órbita do leitor culto comum.     longo dos poemas de Celan, "Engführung" ("Stretto"), começa
Mas existe uma escola discordante, à qual Felstiner adere de for-   com as palavras "Verbracht ins/ Gelande/ mit der untrüglichen
ma clara, que vê em Celan um poeta fundamentalmente       judeu     Spur" [removidos para o terreno (ou o território) com os trilhos
cuja maior realização foi forçar a reintrodução, na alta cultura    (ou os rastros) infalíveis (ou inconfundíveis)]. Qual a melhor tra-
alemã (com sua ambição de fazer remontar suas origens ideais        dução para "verbracht"? Uma tradução do poema         para o francês,
à Grécia antiga) e na língua alemã, da memória de um passado        revista por Celan, emprega a palavra "déporté".       No entanto, se
judaico que toda uma linha de pensadores alemães, culminando        formos verificar a versão do poema para o alemão      na narração do
em Heidegger, tentara obliterar. Desse ponto de vista Celan sem     documentário de Alain Resnais sobre os campos         de extermínio,
dúvida responde a Heidegger, mas, tendo-lhe respondido, deixa-o     Nuit et bruillard [Noite e nevoeiro], encontraremos    o francês "dé-
para trás.                                                          porter" traduzido pelo alemão "deportieren". "Deportieren" é a pa-
                                                                    lavra regularmente usada nos documentos oficiais para a depor-
     Celan começou sua vida profissional como tradutor, e con-      tação de prisioneiros ou populações, nos quais assume um certo
                                                                    matiz abstrato e eufemístico. Para evitar esse eufemismo, Felstiner
tinuou a traduzir até o fim da vida, principalmente do francês
para o alemão, mas também do inglês, do russo, do romeno, do        rejeita a palavra cognata inglesa "deported". Em lugar dela, evo-
italiano, do português e (em colaboração) também do hebrai-         cando o uso idiomático de "verbracht" por prisioneiros, ele pre-
co. Dois volumes dos seis das suas Obras reunidas são dedicados     fere traduzi-Ia por "taken off" [removidos]: "Taken off into/ the
às suas traduções. Em inglês, Celan dedicou-se especialmente        terrain ..." [Removidos para/ o terreno ...]. (ssP, pp. 118-9)
a Emily Dickinson e a Shakespeare. Embora sua Dickinson em                Muitas das traduções de Felstiner incluídas em Selected
alemão seja menos ritmicamente entrecortada que a original,         Poems and Prose of Paul Celan já tinham aparecido em seu livro

                                                                                                                                 159
     158
Paul Celan: Paet, SurvÍvar, Jew [Paul Celan: poeta, sobrevivente,          pov-McHugh vêm principalmente              da obra tardia. As coincidên-
judeu]' mas na republicação foram revistos e, em muitos casos,             cias entre os dois trabalhos são raras: menos de vinte poemas. Só
refinados. Parte do empreendimento      de 1<'elstinerno livro ante-       um punhado de poemas é comum aos três tradutores.
rior fora explicar, em termos compreensíveis para um leitor que                 Entre Felstiner e Popov-McHugh a escolha é difícil. As so-
desconheça   o alemão, a natureza dos problemas a que Celan                luções que Popov-McHugh             encontrou para os problemas pro-
submete seu tradutor, das alusões inexplicadas de um lado às pa-           postos por Celan são às vezes de uma cria tivida de fulgurante,
lavras comprimidas, compostas ou inventadas de outro, e como               mas Felstiner também tem seus momentos de brilho, mais espe-
ele, Felstiner, decidira agir em cada caso. Inevitavelmente,    isso       cialmente em sua "Deathfugue", em que a própria língua ingle-
acarreta a justificativa de suas próprias estratégias e escolhas de        sa, no final, é afogada pelo alemão ("Death Ís eÍn MeÍster aus
palavras, e produz assim um dos traços mais infelizes do livro:            Deutschland").     (ssP,     pp. 31-3) De tempos em tempos encontra-
certo elemento de autopromoção.                                            mos diferenças substanciais na maneira de decompor, e portanto
     Entre os tradutores   recentes de Celan, o próprio Felsti-            compreender, a sintaxe emaranhada e compactada de Celan; nes-
ner, a dupla Popov e McHugh (a que me referirei como Popov-                ses casos, Felstiner é geralmente quem inspira maior confiança.
-McHugh) e Pierre Joris se destacam. Se Joris é menos imediata-                 Felstiner é um especialista formidável em Celan, mas Po-
mente atraente que os demais, pode ser porque escolheu a tarefa            pov-McHugh não deixou a desejar no campo da erudição. As li-
mais difícil: enquanto Felstiner e Popov-McHugh       arrogam-se a         mitações de Felstiner ficam mais evidentes sempre que Celan
liberdade de escolher os poemas que lhes parecem mais conve-               pede um toque mais leve, por exemplo, no poema "Selbdritt,
nientes (e, por implicação, evitar os que frustraram seus melho-           selbviert", que utiliza padrões de canções folclóricas e fórmulas
res esforços), Joris nos traz as duas coletâneas tardias Attemwende    ~   sem sentido. A versão de Popov-McHugh é engraçada e lírica, a
(Breathturn, 1967) e Fadensannen (Threadsuns, 1968) na íntegra,            de Felstiner, sóbria demais.
num total de quase duzentos poemas. Como hoje é amplamente                     A música de Celan não é expansiva: ele parece compor pa-
aceito que Celan compunha em sequências e ciclos, em que os                lavra a palavra, locução a locução, em vez de empregar unidades
poemas de um mesmo dado volume se referem aos poemas an-                   de mais fôlego. E, enquanto atribui seu pleno peso a cada palavra
teriores e posteriores do mesmo grupo, esse projeto só pode ser            e locução, o tradutor também precisa criar certo ímpeto rítmico.
aplaudido. No entanto, os problemas são muitos. Há inúmeros
poemas incompletos em Celan, e, mais a propósito, muitos mo-                    ich ritt durch des Schnee, horst du,
mentos de obscuridade quase total. Assim, é compreensível       que            ich ritt Cott in die Feme -      die Nahe, er sang,
o brilho das páginas de Joris não seja sempre cegante.   1)
                                                                               es war

     Felstiner escolhe e traduz cerca de 160 poemas, distribuídos              unser letzter Ritt ...

por toda a extensão da carreira de Celan, entre eles algumas to-
cantes peças líricas da juventude. Os poemas escolhidos por Po-            escreve Celan.

     160                                                                                                                                   161
I rode through the snow, do you hear,                                de atirar, é lançado ao espaço e retoma. Felstiner traduz a pa-
    I rode God into the distance - the neamess, he sang.                 lavra como "boomeral1g". Popov-McHugh, inexplicaveImente, co-
     it was                                                              mo "flUl1g wood" (literalmente, "pau arremessado"). (sPP, p. 179;
     our last ríde...                                                    Popov-McHugh, p. u)
                                                                               Noutro poema, Celan fala de uma palavra que cai no fos-
escreve Felstiner. (spp)                                                 so atrás da sua testa e ali continua a crescer: ele a compara à
                                                                         "Siebel1stem" ("sete-estrelas"), a flor cujo nome erudito é Triel1-

     I rode through the snow, do you read me,                            talís europea.  Numa versão de resto excelente, Popov-McHugh
     I rode God {ar -   I rode God                                       traduz Síebel1stem simplesmente como "starflower" ("flor es-
     near, he sang.                                                      trelada"), deixando de captar as ressonâncias especificamente
     it was                                                              judaicas das seis pontas da estrela de davi e dos sete braços da
     our last ride...                                                    mel1orah. Felstiner expande a palavra e chega a "sevel1bral1ch
                                                                         starflower" ("flor estrelada em sete ramos"). (ssP, p. 195; Popov-

escreve Popov-McHugh. (p. 5)                                             -McHugh, p. 12)
     Os versos de Felstiner não têm vida rítmica. Em Popov-                     Por outro lado, a flor conhecida em alemão como díe Zeít-
-McHugh, "I rode Cod {ar - I rode Cod l1ear" não está no origi-          lose, um tipo de sempre-viva (Colchíum    autuml1ale),   é inimagi-
nal, mas seria difícil argumentar que o impulso para a frente que        nativamente traduzida por Felstiner como "Lhe meadow saffrol1"
transmite seja inadequado. [Uma tradução "intermediária" pa-             ("o açafrão da campina"), enquanto Popov-McHugh, com jus-
ra o português: "cavalguei pela neve, me ouves,! cavalguei Deus          tificável liberdade, a rebatiza de "the ímmorLelle". (sPp, p. 201;
para longe - perto, cantava ele,! e foi/ nossa última cavalga-           Popov-McHugh, p. 13)
da ...". (N. T.)]                                                              Às vezes, assim, é Felstiner quem encontra a fórmula exata,
       Há muitos pontos, por outro lado, em que esses papéis são         e às vezes Popov-McHugh, a tal ponto que o leitor acaba com a
trocados e Felstiner aparece como o tradutor mais ousado e inven-        sensação de que poderia obter, com a costura de trechos das res-
tivo. "Wel1l1 díe Totel1muschel heral1schwímmt/ wíll es hier lautel1",   pectivas versões - mais uma ou outra solução de Joris -, um
escreve Celan ["quando a casca dos mortos sobrenadarl ouvire-            texto compósito superior a cada um dos três. E esse procedimen-
mos aqui dobres de sinos"]. "Whel1 death's shell washes up 011           to não seria muito excêntrico nem impraticável, dada a afini-
shore", escreve Popov-McHugh,  simplesmente dando conta do               dade estilística entre as suas versões, afinidade que emana, claro,
                                                                         de Celan.
sentido geral. (p. 1) "Whel1 the deadmal1's cOl1ch swíms up", escre-
ve Felstiner, saltando de "shell" para "col1ch" e evocando a fun-             Todos os três - Felstiner em sua biografia de Celan, Po-
ção de trombeta da anunciação desempenhada por esse tipo de              pov-McHugh em suas notas, Joris em suas duas apresentações
concha. (sPp, p. 89)                                                     - têm coisas esclarecedoras a dizer sobre a linguagem de Ce-
     Há alusões aparentemente óbvias que Popov-McHugh pa-                lan. Joris é particularmente revelador ao falar da relação agonís-
rece deixar de perceber. Num poema, um Wur{holz,           um bastão     tica entre Celan e a língua alemã:

      162                                                                                                                           163
o alemão    de Celan é uma língua sombria, quase fantasmagórica;
       é ao mesmo tempo uma língua materna, firmemente            ancorada,     9. Günter Grass e o Wílhelm
       portanto, no reino dos mortos, e uma língua que o poeta precisa          Gustloff
       formar, recriar, reinventar, para devolvê-Ia à vida ... Radicalmente
       despojado de qualquer outra realidade, ele se propõe a criar uma
       linguagem    própria -   uma linguagem    tão absolutamente     exila-
       da quanto ele próprio. Tentar traduzi-Ia como se fosse o alemão
       corrente, comumente falado ou disponível-      isto é, encontrar uma
       "Umgangssprache" inglesa ou americana de corrência equivalen-
       te -,   seria deixar de perceber um aspecto essencial dessa poesia.
       (Breathtllm, pp. 42-3)


      Celan é o mais alto poeta europeu das décadas intermediá-
rias do século xx, um poeta que, em vez de transcender seu tem-
po -    não tinha o menor desejo de transcendê-Io -,          atuou como            Günter Grass irrompeu na cena literária em 1959 com O
um para-raios de suas descargas mais terríveis. Seus embates in-                tambor, romance que, com sua mistura entre a fábula - um
cansáveis e Íntimos com a língua alemã, que formam o substrato                  herói menino que, como protesto contra o mundo à sua volta,
de toda a sua produção poética tardia, só podem ser transmitidos                recusa-se a crescer - e o realismo - uma evocação densa em
numa tradução, na melhor das hipóteses, como algo escutado de                   sua textura da Danzig anterior à guerra -,     anunciou a chegada
relance, em vez de claramente ouvido. Nesse sentido, a tradu-                   do realismo mágico à Europa.
ção dos seus poemas tardios só pode necessariamente              fracassar.         Tendo adquirido a independência      financeira graças ao su-
Ainda assim, duas gerações de tradutores se esforçaram, com um                  cesso de O tambor, Grass mergulhou na campanha pelos sociais-
engenho e uma devoção notáveis, a reproduzir em inglês o que                    -democratas de Willy Brandt. Depois que o partido chegou ao
pode ser trasladado. Outros sem dúvida hão de seguir-se.                        poder em 1969, porém, e especialmente        depois da renúncia de
                                                                                Brandt em 1974, Grass começou a se afastar da política institu-
                                                                     (2001)     cional, preferindo dedicar-se cada vez mais às causas feminista e
                                                                                ecológica. Ao longo dessa evolução, porém, continuou a crer no
                                                                                debate ponderado e no progresso social deliberado, ainda que cau-
                                                                                teloso. Como totem, escolheu o caracol.
                                                                                     Tendo sido um dos primeiros a atacar o consenso de silên-
                                                                                cio em torno da cumplicidade entre os alemães comuns e o do-
                                                                                mínio nazista -   um silêncio cujas causas e consequências      fo-

       164                                                                                                                                165
ram examinados por Alexander e Margarete Mitscherlich          em        e uma figura envolta em sombras, tão parecida com o escritor
sua obra pioneira de psico-história, Díe Unfahígkeít   zu Trauem         Günter Grass que vou dar-lhe o nome de "Grass".
[A incapacidade de prantear] -, Grass é mais livre que a maioria             Pokriefke é o sobrenome da mãe de Paul; a identidade do
para entrar no debate atual na Alemanha quanto ao silêncio e o
silenciamento, assumindo, de modo caracteristicamente       cau-
teloso e nuançado, uma posição que até a virada do século só a
direita radical tinha ousado propalar em público: a de que os
                                                                     I   pai nem mesmo sua mãe conhece. Mas ela diz a Paul que ele
                                                                         tem um parentesco acidental com um nazista importante, o Lan-
                                                                         desgnlPIJenleíter
                                                                         loff -
                                                                                             (comandante regional) Wilhelm Gustloff. Gust-
                                                                                    uma personagem da vida real - esteve postado na Suíça
alemães comuns - e não só os que pereceram nos campos ou                 na década de 1930, com ordens de reunir informações e recrutar
morreram opondo-se a I-Iitler - podem incluir-se entre as víti-          expatriados alemães e austríacos para a causa fascista. Em 1936,
mas da Segunda Guerra Mundial.                                           um estudante judeu de origem balcânica e de nome David Frank-
      Questões sobre a condição de vítima, sobre o silêncio e            furte r bateu à porta de Gustloff em Davos e matou-o a tiros, en-
sobre a revisão da história encontram-se no cerne do romance             tregando-se à polícia em seguida. "Atirei nele porque sou judeu.
que Grass escreveu em 2003, Passo de caranguejo, cujo narra-             E. .. não me arrependo" parecem ter sido as palavras de Frank-
dor e principal personagem chega ao mundo durante os últimos             furter.' Julgado por um tribunal suíço e condenado a dezoito anos
momentos do Terceiro Reich. O aniversário de Paul Pokriefke              de prisão, Frankfurter acabou expulso do país depois de cumprir
é em 30 de janeiro, uma data com alguma ressonância simbóli-             metade da pena. Transferiu-se para a Palestina e em seguida tra-
ca na história alemã. Os nazistas tomaram o poder em 30 de               balhou no Ministério da Defesa de Israel.
janeiro de 1933. E no mesmo dia, em 1945, a Alemanha sofreu                       N a Alemanha, a morte de Gustloff foi aproveitada como uma
sua pior catástrofe marítima de todos os tempos, um desastre da          oportunidade de criar um mártir do nazismo e atiçar sentimen-
vida real no meio do qual teria nascido a personagem fictícia            tos antijudaicos. O corpo foi levado cerimonialmente de volta
Paul. Paul é portanto uma espécie de filho da meia-noite no              da Suíça e as cinzas, enterradas num monumento fúnebre às mar-
sentido usado por Salman Rushdie, uma criança escolhida pe-              gens do lago Schwerin, com uma lápide de quatro metros de
los fados para dar voz a seu tempo. Paul, contudo, acharia me-           altura. Ruas e escolas foram batizadas com o nome de Gustloff,
lhor evitar esse destino. Passar pela vida despercebido seria mais       e até um navio.
de acordo com sua preferência. Jornalista profissional, recolhe               O cruzador Wílhelm Gustloff foi lançado ao mar em 1937
as velas sempre que os ventos políticos sopram forte demais. Nos         como parte do programa nacional-socialista de lazer para a clas-
anos 1960, publica na conservadora editora Springer. Quando              se operária, um programa conhecido como Kraft durch Freude,
os sociais-democratas chegam ao poder, transforma-se num li-             "força através da alegria". Tinha a capacidade de transportar 1500
beral de esquerda um tanto tímido; mais tarde, dedica-se a cau-          passageiros de cada vez em acomodações        de classe única, para
sas ecológicas.                                                          viagens aos fiordes da Noruega, à ilha da Madeira e ao Mediter-
     Existem, porém, duas pessoas poderosas por trás dele, que o         râneo. Em pouco tempo, contudo, usos mais urgentes foram en-
espicaçam a escrever a história da noite em que nasceu: sua mãe          contrados para a embarcação.       Em 1939, foi enviada à Espanha

     166
                                                                                                                                    167
para transportar a Legião Condor de volta de lá. Quando a guer-     maradas eram na verdade nada mais nada menos que seu filho
ra começou, foi transformado em navio-hospital. Mais adiante,       Konrad, estudante secundário,     que vê raramente depois que o
tornou-se navio de treinamento   para a Marinha alemã, e final-     jovem decidiu morar em Schwerin com sua avó TuBa.
mente um transporte para refugiados.                                     Konrad, descobre-se, ficara obcecado pelo caso GustlofE.
    Em janeiro de 1945, o Gustloff zarpou do porto alemão de        Para o curso de história, escreve um trabalho sobre o programa
Gotenhafen   (hoje Gdynia, na Polônia), rumando para o oeste        Kraft durch Freude, que seus professores o proíbem de apresen-
abarrotado com cerca de 10 mil passageiros, na maioria civis ale-   tar à turma, alegando que o tema era "inadequado" e o trabalho,
mães que fugiam do avanço do Exército Vermelho, mas tam-            "gravemente contaminado      por ideias nacional-socialistas".     Kon-
bém soldados feridos, tripulantes de submarino em treinamento       rad tenta apresentar o mesmo trabalho numa reunião dos neona-
e membros do corpo feminino auxiliar alemão. Sua missão, por-       zistas locais, mas o texto é acadêmico demais para seu püblico
tanto, não deixava de ter um lado militar. Nas águas geladas do     de cabeça raspada embriagado de cerveja. A partir de então ele
Báltico, foi torpedeado por um submarino russo sob o comando        se confina ao seu website, onde adota o codinome "Wilhelm" e
do capitão Aleksandr Marinesko. Cerca de 1200 sobreviventes
                                                                    apresenta Gustloff ao mundo como um autêntico herói e mártir
foram recolhidos; todos os demais morreram. O número de bai-
                                                                    alemão, repetindo as palavras de sua avó, segundo a qual os na-
xas transformou esse naufrágio no pior desastre marítimo de toda
                                                                    vios de cruzeiro de classe única do programa Kraft durch Freude
a história.
                                                                    eram uma representação concreta do autêntico socialismo. (pp.
    Entre os sobreviventes estava uma jovem (fictícia) chamada
                                                                    196,202).
Ursula ("TuBa") Pokriefke, em avançado estado de gravidez. No
                                                                         "Wilhelm" logo precisa enfrentar uma reação hostil. Escre-
barco que a resgata, TuBa dá à luz um filho, Paul. Desembar-
                                                                    vendo para o site com o pseudônimo de "David", um leitor afir-
cando com o bebê nos braços, ela tenta avançar para o oeste atra-
vés das linhas russas, mas acaba em Schwerin, na zona russa, sede   ma que o verdadeiro herói da história foi Frankfurter, um herói
do monumento em memória de GustlofE.                                da resistência judaica. Na tela do seu computador,       Paul obser-
    Por seu nascimento, assim, Paul tem de fato uma tênue li-       va enquanto seu filho e o judeu presumido sustentam uma pro-
gação com Wilhelm GustlofE. Um laço mais perturbador        reve-   longada controvérsia.
la-se décadas mais tarde, em 1996, quando, percorrendo alea-             Mas um mero debate verbal não basta para Konrad. Ele con-
toriamente a internet, Paul encontra um website denominado          vida "David" - um jovem da mesma idade que ele - para vir
www.blutzeuge.de.   no qual os "Camaradas de Schwerin" man-         a Schwerin, e no local onde ficava o monumento demolido a
têm viva a memória de GustlofE. (Um Blutzeuge é um juramen-         Gustloff mata o rapaz a tiros, como Frankfurter fizera com Gust-
to de sangue. O dia do Blutzeuge, 9 de novembro, era uma data       10fE.Logo se descobre que o verdadeiro nome da sua vítima era
sagrada do calendário nazista, o dia em que os membros da ss        Wolfgang, e que, apesar de não ser judeu de fato, sentia-se tão pos-
reafirmavam seu juramento.) Devido a certas fórmulas e expres-      suído por sentimentos de culpa ligados ao Holocausto que che-
sões usadas no site, Paul começa a suspeitar que os supostos Ca-    gara a tentar viver como judeu na casa de sua família alemã,

    168                                                                                                                          169
usando sempre um solidéu e exigindo que sua mãe só lhe prepa-
rasse comida kosher.
                                                                      r
                                                                      I
                                                                           Lucy Rennwand de O tambor possa ser considerada sua precur-
                                                                           sora. Em Gato e rato ela é "uma criança magra e pequena [de
                                                                                                                                                II


      Konrad não se deixa abalar pela descoberta. "Atirei porque
sou alemão", diz ele em seu julgamento, ecoando as palavras de
Frankfurter, "e porque o eterno judeu falava através de David."
Interrogado, admite que jamais conhecera um judeu de verda-
                                                                      i
                                                                      -I   dez anos] com pernas que lembram palitos", que sai para nadar
                                                                           com os meninos no porto de Kaisershafen e a quem eles permi-
                                                                           tem assistir a seus concursos de masturbação.2 Em Anos de cão




                                                                      I
                                                                           (1963), agora estudante secundária, ela acusa falsamente um dos
de, mas nega que isso seja relevante. Embora não tenha nada                seus professores à polícia: ele é mandado para o campo de tra-
contra os judeus em abstrato, diz ele, o lugar dos judeus é Israel,        balhos forçados de Stutthof e lá acaba morrendo. Por outro lado,
e não a Alemanha. Os judeus que homenageiem Frankfurter, se
                                                                           quando uma nuvem malcheirosa recai sobre Kaisershafen, TuBa




                                                                      I
quiserem, ou o russo Marinesko; já estava na hora de os alemães
                                                                           é a única a declarar o que todos sabem: que o cheiro vem dos ca-
prestarem sua homenagem a Gustloff. (p. 204)                               minhões de ossos humanos de Stutthof.
     O tribunal faz o possível e o impossível para ver Konrad co-
                                                                                No último ano da guerra, TuBa trabalha como condutora
mo um fantoche movido por forças além do seu alcance. TuBa
                                                                           de bonde e faz o possível para engravidar. Em seguida, desapare-
faz uma aparição dramática no banco das testemunhas para de-
                                                                           ce: em Die Réittin [O rato, 1986], o ex-menino do tambor Oskar
fender o neto e acusar seus pais de o terem abandonado. E deixa
                                                                           Matzerath, agora com quase sessenta anos, lembra-se dela como
de contar que foi ela quem deu ao jovem a arma do crime.
                                                                           uma "vadia muito especial" que, até onde ele sabe, morreu no
     Acompanhando os trabalhos, Paul fica convencido de que
                                                                           naufrágio do Gustloff3
Konrad é a única personagem do julgamento que não tem me-
do de dizer o que pensa. Entre os advogados e juízes, detecta um                As posições políticas de TuBa são difíceis de reduzir a qual-
cobertor pesado que a tudo abafa. E piores ainda são os pais do            quer sistema coerente. Carpinteira treinada e proletária impe-
jovem morto, intelectuais liberais impecáveis que só põem a cul-           cável, ela é devotada aos negócios do Partido no novo Estado
pa de tudo em si mesmos e negam qualquer desejo de vingança.               alemão oriental, acabando reconhecida e premiada por seu ati-
Seu filho decidira ser judeu, descobre Paul, justamente devido             vismo. Seguidora invariável da linha de Moscou, chora quando
ao hábito do pai de ver dois lados em todas as questões, inclusive         Stálin morre em 1953 e acende velas por ele. No entanto, en-
o episódio do Holocausto.                                                  quanto num momento saúda a tripulação do submarino que qua-
     Condenado a sete anos de detenção juvenil, Konrad tor-                se a matou, definindo-os como "heróis da União Soviética, unidos
na-se um prisioneiro-modelo, usando seu tempo para preparar                pela amizade aos trabalhadores", no instante seguinte consegue
seus exames de admissão à universidade. O único momento de                 descrever Wilhelm Gustloff como "o filho tragicamente assassi-
desgaste ocorre quando vê recusado seu pedido de ter em sua ce-            nado da nossa linda cidade de Schwerin" e propor que o modelo
la um retrato do Landesgruppenleiter Gustloff.                             da Kraft durch Freude fosse copiado pelo comunismo. (pp. 49, 93)
                                                                               Apesar de suas posturas incorretas, TuBa conserva sua posi-
    TuBa Pokriefke, nascida em 1927, o mesmo ano que Günter                ção no coletivo, vista com afeto mas também temida por seus
Grass, faz sua primeira aparição em Gato e rato (1961), embora a           camaradas. Quando, depois do colapso do regime em 1989, o que

    17°                                                                                                                              171
Grass chama de "die Berliner Treuhand", e seu tradutor para o       própria do que ocorreu na Alemanha e no mundo no século xx,
inglês chama engenhosamente de "the Berlin Handover Trust"          uma versão que pode ser distorcida, caótica e subordinada a seus
[o Consórcio para a Entrega de Berlim], instala-se na antiga Ale-   interesses próprios, mas ainda assim é ligada a sentimentos pro-
manha Oriental para comprar as antigas empresas estatais, ela       fundos; que se ressente por se ver banida do discurso civilizado
cuida de receber a sua parte. Ao final do livro, consegue com-      e ser geralmente reprimida pelos bien-pensants; e que se recusa
binar o catolicismo a seu eclético sistema de crenças: na sala da   a ceder.
sua casa da rua Gagarin, não muito longe do monumento a Lê-              Por mais feio que possamos considerar o fenômeno TuBa
nin, ela mantém um altar em que o velho tio Josef fuma o seu        Pokriefke, Passo de caranguejo apresenta um argumento de peso
cachimbo lado a lado com a Virgem Maria.                            a favor de permitir que as TuBas e os Konrads da Alemanha te-
    Paul vê na sua mãe a última verdadeira stalinista. O que isso   nham seus heróis, seus mártires, seus memoriais e suas cerimô-
quer dizer exatamente ele não explica; mas TuBa emerge do seu
                                                                    nias comemorativas. E a posição contrária à repressão e favorável
relato como uma mulher sem princípios, astuta, intrigante, te-
                                                                    a uma história nacional que inclua a todos é a postura que Paul,
naz, impaciente com a teoria, impiedosa, difícil de matar, acima
                                                                    diante do destino do filho, acaba apreciando cada vez mais, a sa-
de tudo nacionalista e antissemita, o que constitui um perfil na-
                                                                    ber: se paixões com raÍzes profundas forem reprimidas, acabarão
da inexato de um stalinista. Também ela deu à luz uma criança
                                                                    emergindo em algum outro lugar em formas diferentes e impre-
em pleno mar, na mesma noite em que viu milhares de crianças
mortas boiando de borco em seus salva-vidas ineficazes e ouviu      visíveis. Se Konrad vê recusado o direito de ler seu trabalho para
                                                                    a turma, transforma-se num assassino; se é preso, outro website
o último grito coletivo dos passageiros do Wilhelm Gustloff en-
                                                                    surge na intemet: o www.kameradschaft-konrad-pokriefke.de       com
quanto caíam no mar. "Um grito como aquele nunca mais sai do
                                                                    seu juramento de sangue: "Acreditamos em você, esperaremos
seu ouvido", diz ela. E, como que para prová-Io, seu cabelo fica
todo branco naquela noite. Além de stalinista, TuBa também          por você, nós o seguiremos". (p. 234)
é, assim, uma alma atormentada:    atormentada   pelo que viu e
ouviu, e incapaz de superar a sua dor até que o tabu quanto à            As partes mais pessoais de Passo de caranguejo são aquelas
descrição do que houve em 30 de janeiro de 1945 possa ser rom-      em que Grass ou "Grass" aparece por cima do ombro de Paul
pido e os mortos possam ser pranteados como merecem. (p. 155)       Pokriefke, e ficamos sabendo como a narrativa de Paul, justa-
     TuBa Pokriefke é a personagem mais interessante de Passo       mente Passo de caranguejo, foi escrita. Quando era estudante
de caranguejo - e talvez, depois de Oskar, o menino do tambor       em Berlim Ocidental, trinta anos atrás, Paul frequentou um curso
de lata, a mais interessante de toda a obra de Grass, não só no     de composição literária em que "Grass" lecionava. Agora "Grass"
nível humano, mas também pelo que representa para a socieda-        torna a fazer contato com ele, instando-o a escrever o livro sobre
de alemã em geral: um populismo étnico que sobreviveu melhor        o Gustloff, afirmando que, na qualidade de fruto daquela noite
no Leste que no Ocidente, mas que não consegue ser captura-         trágica, ele está singularmente   bem situado para a tarefa. Anos
do nem pela direita nem pela esquerda; que mantém uma versão        atrás, "Grass" reuniu material para um livro próprio sobre o Gust-

    172                                                                                                                       173
loff, mas decidira mais tarde que "estava farto do passado" e não     fuga do Leste, a Schrecklichkeit do bombardeio incendiário das
chegara a escrevê-Io; agora era tarde demais. (p. 80)                 cidades alemãs, a indiferença glacial dos Aliados em relação ao
     As pessoas da sua geração mantinham um silêncio discreto         sofrimento da população alemã depois da guerra - que a direi-
sobre os anos da guerra, revela "Grass", porque seu sentimento        ta radical alemã encontra as fontes de ressentimento duradouro
pessoal de culpa era avassalador e porque "a necessidade de as-       que pode explorar, e sim no silêncio exigido daqueles que se
sumir a responsabilidade   e demonstrar remorso tinha adquirido       veem como vítimas ou herdeiros das vítimas - um silêncio im-
a precedência". Mas agora ele percebe que isso fora um erro:          posto primeiro pelos invasores estrangeiros, e depois adotado co-
desse modo, a memória histórica dos sofrimentos da Alemanha           mo uma medida política calculada pelos próprios alemães.
acabara entregue à direita radical. (p. 103)                               Esse tabu, hoje, vem sendo reexaminado num amplo deba-
     "Grass" tem vé'íriassessões de trabalho com Paul em que o        te nacional. Passo de caranguejo tornou-se um best-seller ao ser
pressiona a encontrar palavras para descrever os horrores dos úl-     lançado na Alemanha no início de 2002. Não porque as histórias
timos meses da guerra, quando os alemães em fuga morriam              de Gustloff e do Gustloff nunca tivessem sido abordadas. Pelo
às centenas de milhares, talvez aos milhões. Para ajudar Paul,
                                                                      contrário, pouco mais de um ano depois da morte de Wilhelm
"Grass" chega a produzir uma amostra de texto (ajuda enganosa,
                                                                      Gustloff, o popular escritor Emil Ludwig publicou, em alemão,
porém, pois a passagem não descreve o que realmente aconte-
                                                                      embora não na Alemanha, um romance sobre o episódio em que
ceu, mas o que ele vira num filme sobre o fim do Gustloff).
                                                                      Frankfurter aparece como herói, um homem que, ao ferir um
     Paul tende a desconfiar de quais sejam os motivos do pedi-
                                                                      nazista proeminente, espera inspirar os demais judeus à resistên-
do de "Grass". O verdadeiro motivo pelo qual "Grass" deixou de
                                                                      cia. Em 1975, o diretor suíço Rolf Lyssy fez um filme, Konfronta-
escrever seu livro, suspeita, é que suas energias se esgotaram.
                                                                      tion, sobre o mesmo tema.
Além do mais, a verdadeira pressão deve vir da obsessão de Tulla
                                                                          A última viagem do Gustloff serviu de base para o filme
por trás de "Grass", torcendo-lhe o braço. "Grass" afirma só co-
                                                                      Nacht fiel über Gotenhafen    (1959) do diretor teuto-americano
nhecer Tulla superficialmente, dos velhos tempos em Danzig.
                                                                      Frank Wisbar. Um sobrevivente da viagem, Heinz Schon, publi-
Mas a verdade, suspeita Paul, é que "Grass" pode ter sido aman-
                                                                      cou ano após ano suas pesquisas sobre o fatídico incidente e a
te dela e até ser seu verdadeiro pai. Suas suspeitas são reforçadas
por um comentário que "Grass" faz sobre os seus esboços: que          identidade dos mortos. Em inglês, foi lançado The Cntelest Night:
ele devia cercar Tulla de mais mistério, de um "fulgor mais difu-     Germany's Dunkirk and the Sinking of the Wilhelm Gustlof{ [A
so". "Grass" parece continuar sob o encantamento da mulher            mais cruel das noites: o dunquerque   da Alemanha e o afunda-
feiticeira dos cabelos brancos. (p. 104)                              mento do Wilhelm Gustloff, 1979], de Christopher Dobson, John
                                                                      Miller e Thomas Payne. O próprio Grass já se referira ao Gust-
     "Quem semeia ventos colhe tempestades", diz um provér-           lof{ em vários dos seus livros, desde O tambor, bem como ao afun-
bio corrente também na Alemanha. E nem é tanto na tempesta-           damento, por aviões britânicos, de outro antigo cruzador, o Cap
de - as atrocidades cometidas contra os alemães étnicos em sua        Arcona, carregado de sobreviventes de campos de concentração.

     174                                                                                                                       175
Assim, nem Gustloff nem o Gustloff estavam esquecidos no          calar o ressentimento agudo mas inarticulado das Tulla Pokriefkes
sentido de cortados ou omitidos dos registros históricos. Mas exis-   da Alemanha e liberar seus netos do peso do passado.
te uma diferença entre fazer parte da história registrada e fazer           Mas o que de fato significa para a história do Gustloff     ser
parte da memória coletiva. A raiva e o ressentimento das pessoas      escrita por um Paul Pokriefke? Uma coisa é reviver aquelas terrí-
como Tulla Pokriefke emanam da sensação de que seu sofrimen-          veis horas derradeiras na imaginação e então reproduzi-Ias em
to não foi levado na devida conta, de que um acontecimento            palavras que transmitam seus terrores para quem lê, a tarefa que
suficiente para causar o luto coletivo tenha sido reduzido à força    "Grass" parece propor a Paul. Mas o projeto literário diante do
a mera fonte de dores individuais. Sua provação, e a provação de      qual Paul hesita é mais vasto e muito mais exigente: tomar-se o
milhares como ela, é capturada de maneira mais pungente quan-         escritor que, no momento presente da história - os primeiros
do, disposta a celebrar a memória dos mortos, ela não encontra        anos do século XXI -, escolhe transformar o afundamento do
nenhum lugar onde possa depor as suas flores que não o sítio do       Gustloff   em tema, ou seja, que escolhe romper o tabu afirman-
antigo memorial nazista. E a pergunta que ela formula, em sua         do que um crime de guerra, ou pelo menos uma atrocidade, foi
forma mais emocional, é a seguinte: será que o motivo de não          cometida contra alemães naquela noite.
podermos prantear, conjuntamente, e em público, as mortes des-            A relutância de Paul em escrever essa história maior, e a
ses milhares de crianças afogadas é o simples fato de que eram        dança semelhante à marcha de um caranguejo que ele execu-
alemãs?                                                               ta enquanto conta a história dessa sua relutância - uma dança
     Desde 1945, a questão da culpa coletiva assinala uma divi-       durante a qual, por um movimento lateral, a história maior de
são na Alemanha, e hoje Grass tenta abordá-Ia não de frente,          algum modo acaba sendo contada -,          se justifica. Para um jor-
mas de lado, como caminha um caranguejo. Passo de carangue-           nalista obscuro chamado Pokriefke, que por um feliz ou infeliz
jo é anunciado como eÍne Novelle, uma novela ou romance cur-          acaso nasceu na própria cena do acontecido, contar a história
to; seu tema é não o afundamento do Gustloff, mas a necessidade       não significa nada. Para o presente, as histórias sobre o sofrimen-
de que fosse escrita, e como finalmente foi escrita, a história do    to dos alemães durante a guerra continuam inseparáveis de quem
afundamento do Gustlof{.                                              as conta e dos motivos que os levam a contá-Ias. A melhor pessoa
    E é nesse ponto que Günter Grass e a figura indistinta de         para contar de que maneira os 9 mil alemães inocentes ou "ino-
"Grass" chegam mais perto de se fundirem: através de "Grass",         centes" morreram não é Pokriefke nem "Grass", mas Günter
Günter Grass apresenta suas desculpas por não ter escrito e, con-     Grass, o decano das letras alemãs, vencedor do prêmio Nobel, o
tristado, por não ter mais condições de escrever o grande roman-      praticante mais consistente e exemplo mais duradouro dos va-
ce alemão em que os muitíssimos alemães que pereceram en-             lores democráticos na vida pública da Alemanha. Para Günter
quanto o Terceiro Reich agonizava fossem trazidos de volta à          Grass, contar essa história ao raiar do novo século significa algu-
vida para poderem ser enterrados e pranteados da maneira certa,       ma coisa. Pode até assinalar que agora é aceitável, adequado e
de modo que, completado o luto, uma nova página da história           próprio que todas as histórias do que aconteceu nesses anos ter-
pudesse enfim ser virada; um ato de rememoração que pudesse           ríveis sejam admitidas na arena pública.

    176                                                                                                                           177
* * *
                                                                       de caranguejo   é fiel, inclusive à construção de frase ocasional-
                                                                       mente desgraciosa, típica de Crasso (pp. 191, 18o)
     Cünter Crass nunca foi um grande estilista em prosa, nem              O principal desafio ao engenho de Krishna Winston vem
um pioneiro da forma ficcional. Sua força está alhures: na pers-       de TuBa Pokriefke. TuBa fala um alemão demótico da Alema-
picácia da sua observação da sociedade alemã em todos os níveis,       nha Oriental, com ecos dos subúrbios operários da Danzig ante-
em sua capacidade de sondar as correntezas mais profundas da           rior à guerra. Encontrar um equivalente no inglês americano é
psique nacional e em sua firmeza ética. A narrativa de Passo de        tarefa ingrata. Locuções como "Ain't it good enough that I'm out
caranguejo   compõe-se de fragmentos soltos que funcionam       efi-   here breaking my back for them no-goods?" soam estranham ente
cazmente em sua ordem presente, embora sem produzir uma                datadas; mas talvez a fala de TuBa também soe estranhamen-
forte sensação de inevitabilidade estética. O recurso autoral de       te datada aos ouvidos dos alemães ocidentais. (p. 69)
acompanhar      passo a passo o submarino     e sua presa enquanto
convergem para o encontro fatal como que conduzidos por um                                                                         (2°°3)
destino superior é especialmente desgastado. Como escrita, Pas-
so de caranguejo perde em comparação com outras incursões de
Crass na forma da Novelle,    especialmente     Gato e rato e, mais
recentemente,    Maus presságios (1992), uma obra de construção
elegante que paira entre o satírico e o elegíaco, na qual um casal
idoso e decente funda uma associação para permitir que os ale-
mães expulsos de Danzig (hoje a cidade polonesa de Cdansk)
possam ser enterrados na cidade onde nasceram, mas seu em-
prendimento escapa a seu controle e é transformado num gran-
de golpe para arrecadar dinheiro.4
    Ralph Mannheim foi o primeiro e melhor dos tradutores de
Crass para o inglês, admiravelmente sintonizado com a lingua-
gem do escritor. Depois da morte de Mannheim em 1992, a to-
cha passou primeiro para Michael Henry Heim e depois para
Krishna Winston. Embora haja um ou dois pontos em torno dos
quais se possa fazer alguma reclamação -      TuBa possui um cer-
tificado de mestre num ofício ("Meisterbrief") e não um "diploma
de mestrado", que soa acadêmico demais; o capitão Marinesko
não é "degradado" ("degradiert") em seu retorno ao porto, mas
rebaixado de patente -, a versão de Krishna Winston para Passo

    178
                                                                                                                                 179
ra, já estava acostumado com a travessia contumaz e, a bem di-
10. W. G. Sebald, After Nature
                                                                     zer, o pisoteamento sistemático das fronteiras entre a ficção e a
                                                                     não ficção).l
                                                                         Nos livros de Sebald, as pessoas são na maioria o que só
                                                                     podemos chamar de melancólicas. O tom de suas vidas é defini-
                                                                     do por uma sensação difícil de articular de que não fazem parte
                                                                     do mundo, e de que os seres humanos em geral talvez não deves-
                                                                     sem estar aqui. São modestos o suficiente para não reivindica-
                                                                     rem uma sensibilidade sobrenatural às correntes da história -
                                                                     na verdade, tendem a crer que é neles que alguma coisa está
                                                                     errada -, mas o teor do empreendimento       de Sebald é sugerir
                                                                     que suas pessoas são proféticas, muito embora no mundo moder-
                                                                     no o destino do profeta seja permanecer obscuro, sem que nin-
                                                                     guém lhe dê ouvidos.
    W. G. Sebald nasceu em 1944 no canto do sul da Alemanha               Qual será a base de tanta melancolia? Sebald sugere e torna
onde a própria Alemanha, a Áustria e a Suíça se encontram. Com       a sugerir que são todos prejudicados pelo peso da história recen-
pouco mais de vinte anos viajou para a Inglaterra a fim de apro-     te da Europa, uma história em que assoma gigantesco o Holo-
fundar seus estudos de literatura alemã, e passou a maior parte      causto. Internamente, sentem-se dilaceradas pelo conflito entre
da sua vida de trabalho lecionando numa universidade do inte-
                                                                     o impulso autoprotetor de manter bloqueado um passado sofri-
rior da Inglaterra. Na altura em que morreu, em 2001, tinha um       do e um avanço às cegas em busca de alguma coisa, não sabem
sólido conjunto de publicações acadêmicas em seu nome, espe-         bem o quê, que se perdeu.
cialmente sobre a literatura da Áustria.
                                                                         Embora nas histórias de Sebald a superação da amnésia se-
     Mas nos anos intermediários Sebald também floresceu co-
                                                                     ja muitas vezes apresentada como a culminação de um grande
mo escritor, primeiro com um livro de poesia e depois com uma        esforço de pesquisa - cavando em arquivos, rastreando testemu-
sequência de quatro obras de ficção. A segunda delas, Os emi-        nhas -, a recuperação do passado só confirma o que as pessoas
grantes (1992), valeu-lhe ampla atenção, especialmente
                                                     no mun-         já sabiam num nível mais profundo, como sua melancolia em
do de língua inglesa, onde sua mistura de fabulação, diário de       face do mundo já manifestava e como, em suas crises ou catalep-
viagem, biografia fictícia, ensaio sobre os antigos, sonho e rumi-   sias intermitentes, seus corpos desde sempre já vinham dizen-
nação filosófica, executada numa prosa elegante embora um            do em sua linguagem própria, a linguagem do sintoma: que não
tanto lúgubre e complementada por uma documentação foto-             existe cura nem salvação.
gráfica de irresistível qualidade amadorística, representou uma          A forma que assume a crise de melancolia em Sebald é bem
nota decisivamente inédita (o público leitor alemão, a essa altu-    definida. Existe um momento prévio tomado por uma atividade

     180                                                                                                                      181
compulsiva, quase sempre caminhadas       noturnas, e dominado           parte de sua tristeza generalizada se deva à destruição do habitat
por sentimentos de apreensão. O mundo parece repleto de men-             em nome do progresso, ele não é conservador no sentido de de-
sagens em código secreto. Os sonhos se sucedem, densos e rápi-           sejar a volta a uma idade de ouro em que a humanidade teria
dos. E então vem a experiência propriamente dita: uma delas é            habitado a terra de uma forma boa e natural. Ao contrário, sub-
à beira de um desfiladeiro ou a bordo de uma aeronave, olhando
para baixo e vendo o espaço vazio, mas ao mesmo tempo divisan-
                                                                     I   mete os conceitos de lar e de lugar que se habita a um contínuo
                                                                         escrutínio cético. Um dos seus livros de crítica literária é um
do o passado; o homem e suas atividades parecem minúsculos               estudo da noção de Heimat ("terra natal" -       o equivalente ao
ao ponto da insignificância; todo sentido de finalidade se dissol-
ve. E essa visão precipita uma espécie de desmaio em que a men-
te entra em colapso.
                                                                     I   inglês homeland) na literatura austríaca. Jogando com a ambi-
                                                                         guidade da palavra unheimlieh ("estranho", "não familiar", e daí
                                                                         "assustador"), ele sugere que para os austríacos de hoje, cidadãos
     Vertigem (1990), a primeira obra mais longa em prosa de             de um Estado que teve seu território e sua população profunda-
Sebald, enfatiza a dimensão apocalíptica dessa crise mental. Na          mente alterados a cada guinada da história europeia moderna,
parte final do livro, o narrador em primeira pessoa faz uma via-         deve haver algo de fantasmagórico em sentir-se em casa.3
gem ao seu torrão natal, o vilarejo de w. Ali, enquanto examina              Os anéis de Saturno (1995) é, dentre os livros de Sebald, o
detidamente objetos acumulados num sótão coberto de poeira,              que se aproxima do que habitualmente classificamos de não fic-
uma torrente de memórias é liberada, sucedida por intimações             ção. É escrito para dominar o "horror paralisante" que toma con-
de que a vingança está a ponto de assolar a localidade. Temendo          ta do seu autor - melhor dizendo, sua figura do "eu" - em fa-
a loucura, ele foge. Toda a viagem até em casa percorrendo o sul         ce do declínio da parte oriental da Inglaterra e da destruição de
da Alemanha é sinistra. A paisagem tem um ar extraterreno; na            sua paisagem. (É óbvio que o "eu" dos livros de Sebald não deve
estação do trem, as pessoas parecem exilados em fuga de cidades          ser identificado com o W. G. Sebald histórico. Ainda assim, en-
condenadas; diante dos seus olhos alguém lê um livro que, co-            quanto escritor, Sebald sustenta um jogo malicioso com as se-
mo suas pesquisas bibliográficas posteriores irão mostrar, nem           melhanças entre os dois, a ponto de reproduzir em seus textos
sequer existe.2                                                          instantâneos e fotos de passaporte de "Sebald".)4
     Em Sebald, 1914 muitas vezes é citado como o ano em que                  Depois de uma longa viagem a pé por toda a região, Sebald,
a Europa enveredou pelo caminho errado. No entanto, exami-               ou "eu", é hospitalizado em estado cataléptico, tomado de sinto-
nado mais de perto, o idílio anterior a 1914 revela-se desprovido        mas entre os quais uma sensação de estranheza absoluta asso-
de qualquer fundamento. Não terá a guinada ocorrido na verda-            ciada a alucinações   em que se vê em algum lugar elevado, de
de mais cedo, então, com o triunfo da razão iluminista e a entro-        onde contempla o mundo a seus pés. A essa vertigem, ele dá uma
nização da ideia do progresso? Embora se possa encontrar uma             interpretação   mais metafísica que meramente    psicológica. "Se
razoável consciência histórica em Sebald -    as cidades e paisa-        nos olharmos de uma grande altitude", diz ele, "é assustador per-
gens que suas personagens atravessam são assombradas por fan-            ceber como conhecemos pouco a nossa espécie, nossas metas e
tasmas, com camadas e camadas de sinais do passado - e embora            nossos fins." E uma vertigem seguida de colapso mental é o que

    182
                                                                                                                                   183
nos acomete quando nos contemplamos          do ponto de vista de        negação da realidade do tempo fornece uma justificação retros-
 Deus. (p. 92)
                                                                          pectiva para as fotografias que salpicam os textos em prosa de
      Sebald não se dizia romancista -     o termo que preferia era       Sebald.)
 "prosador" -,   mas ainda assim, para fazer sucesso, seu projeto              Uma consequência da negação do tempo é que o passado se
 precisa desprender-se do biográfico ou do ensaístico - do pro-           vê reduzido a uma série de memórias interconectadas nas men-
 saico, no sentido corrente da palavra - para ascender aos do-            tes dos vivos. Austerlitz é assombrado pela consciência de que,
 mínios da imaginação.     E a misteriosa facilidade com que ele          a cada dia, uma parte do passado, inclusive o seu próprio passa-
 consegue operar essa decolagem é a prova mais clara da sua ge-           do, desaparece à medida que pessoas morrem e memórias se
 nialidade. Mas Os anéis de Saturno nem sempre é bem-sucedi-              extinguem. Aqui ele ecoa a ansiedade manifestada por Rainer
 do. Os capítulos sobre Joseph Conrad, Roger Casement, o poe-             Maria Rilke em suas cartas sobre o dever do artista como porta-
 ta Edward Fitzgerald e a última imperatriz da China, todos os            dor da memória cultural. De fato, por trás do herói erudito de
quais - surpreendentemente      - têm ligações com a região de            Sebald, tão deslocado ao final do século xx, erguem-se vários
East Anglia, não conseguem desprender-se do prosaico.                     mestres mortos dos últimos anos da Áustria dos Habsburgo:
     Em seus livros anteriores, o tema do tempo não era tratado           Rilke, o Hugo von Hoffmannsthal da "Carta a Lorde Chandos",
com nenhuma profundidade, talvez porque Sebald não estivesse              Kafka, Wittgenstein.
seguro de que sua obra pudesse comportar muita especulação
filosófica. Quando o tema é abordado, tende a sê-lo por meio de               Pouco antes da sua morte, Sebald publicou um livro de
referências aos paradoxos idealistas de Jorge Luis Borges ou, em          poemas com ilustrações da artista Tess Jaray.6 Não é uma obra de
Os anéis de Saturno, a um dos mentores de Borges, o neoplatô-             grande ambição, sugerindo que escrever versos era para ele um
nico sir Thomas Browne. Mas em Austerlitz (2001), o mais ambi-            mero passatempo. Ainda assim, seu primeiro livro de poesia,
cioso dos livros de Sebald, o tempo é atacado de frente.5             f   Nach der Natur (1988), traduzido para o inglês como After Na-
     O tempo não tem existência real, assevera Jacques Auster-            ture, é uma obra de alcance considerável. Embora suas imagens
litz, professor de arte e arquitetura   da Europa que perdeu seu          sejam mais desafiadoras que qualquer passagem da obra em pro-
passado quando seus pais judeus o remeteram ainda pequeno                 sa de Sebald, os versos conservam as virtudes sebaldianas de ele-
para a Inglaterra a fim de fugir à calamidade que se aproximava.          gância e clareza retórica, e apresentam-se bem na tradução para
Em vez do meio contínuo do tempo, diz Austerlitz, o que existe
são bolsões interligados de espaço-tempo cuja topologia podemos       I   o inglês, como aliás tudo que ele escreveuJ
                                                                               Nach der Natur compõe-se de três poemas longos. O pri-
nunca chegar a compreender, mas entre os quais os supostos vi-            meiro trata de Mathias Grünewald, o pintor do século XVI cuja
vos e os supostos mortos podem viajar e assim travar encontros.
                                                                          biografia Sebald recompõe a partir de fontes históricas dispersas
As fotografias, continua, são uma espécie de olhos ou nódulos de
ligação entre o passado e o presente, permitindo que os vivos ve-     I   e observações dos seus quadros. A principal das obras de Grü-
                                                                          newald é o altar que executou para o mosteiro antonino da Ise-
jam os mortos e os mortos vejam os vivos, os sobreviventes. (Essa         nheim, na Alsácia, no seu tempo sede de um hospital para males

    184
                                                                                                                                   185
de vários tipos. Na mais soturna das pinturas de Isenheim -          a        O segundo dos poemas de Nach der Natur trata novamen-
tentação de santo Antônio, a crucifixão e deposição de Jesus-,           te de uma vastidão deserta e gelada. Seu herói, Georg Wilhelm
o Grünewald de Sebald vê a criação como um campo de expe-                Steller (17°9-46), é um filho do Iluminismo, um jovem intelec-
riência para forças naturais amorais e cegas, já que uma das pro-        tual alemão que abandona a teologia para estudar ciência natu-
duções mais loucas da natureza é a própria mente do homem,               ral. Ambicionando   catalogar a flora e a fauna do norte congela-
capaz não só de imitar seu criador e inventar engenhosos méto-           do, Steller viaja para São Petersburgo, uma cidade que se ergue
                                                                         como um fantasma do "vazio ressoante do futuro", onde adere à
dos de destruição como também de atormentar-se - como no
caso do próprio Grünewald-          com visões da loucura da vida.       expedição liderada por Vitus Bering para mapear a passagem por
                                                                         mar dos portos árticos da Rússia ao oceano Pacífico. (p. 48)
       Igualmente sombria é a Crucifixãa, de Grünewald, em Ba-
                                                                             A expedição é bem-sucedida. Steller chega inclusive a de-
sileia, onde a luz estranha e enevoada cria um efeito de tempo
                                                                         sembarcar por algumas horas em terras do continente norte-ame-
que corre para trás. Por trás desse quadro, sugere Sebald, estão
                                                                         ricano. No caminho de volta para a Rússia, porém, os viajantes
premonições       do apocalipse produzidas    por um eclipse do sol
                                                                         naufragam. O melancólico      Bering morre; os sobreviventes em-
ocorrido na Europa central em 1502, um "adoecimento           secreto
                                                                         preendem a volta para casa numa embarcação improvisada, to-
do mundo,! em que uma coagulação fantasmagórica de sombra/
                                                                         dos menos Steller, que enceta uma viagem pelo interior da Sibé-
no meio do dia como um desmaio/ despejou-se da abóbada do
                                                                         ria para coletar espécimes e familiarizar-se com os povos nativos.
céu"   [Ua   secret síckeníng away af the warld,! ín which a phantas-
                                                                         E lá ele também acaba morrendo, deixando para trás uma lista
mal encroachment af dusk/ ín the mídst af daytíme líke a faíntíng
                                                                         de plantas e um manuscrito     que viria a tornar-se um procura-
fit/ paured through the vault af the sky"]. (p. 30)
                                                                         do guia para caçadores.
       O caráter sombrio da visão de Grünewald não se deve ape-              A finalidade dos poemas sobre Grünewald         e Steller não é
nas a um temperamento        idiossincraticamente   melancólico.   Por   biográfica nem histórica num sentido corrente. Embora a eru-
força da sua associação ao profeta messiânico Thomas Münzer,             dição por trás deles seja rigorosa - Sebald já publicara obras
Grünewald respondia aqui aos horrores que conheceu na Guer-              sobre história da arte; e fica evidente que fez pesquisas sistemáti-
ra dos Trinta Anos, entre os quais uma atrocidade então muito            cas sobre a expedição de Bering -,     ela fica em segundo plano
difundida e que causaria calafrios em qualquer artista, o arranca-       diante do que intui acerca das suas personagens e talvez nelas
mento dos olhos; ainda por cima, por intermédio de sua mulher,           projete (o que pode dar uma pista para a maneira como Sebald
uma cristã conversa nascida no gueto de Frankfurt, ele tinha ain-        construía suas personagens em suas obras posteriores de ficção
da uma experiência Íntima da perseguição dos judeus na Europa.           em prosa). Primeiro exemplo: sua afirmação de que Grünewald,
       A coda desse primeiro poema consiste de uma única ima-            embora casado, fosse em segredo homossexual, envolvido por
gem: o mundo tomado por uma nova idade do gelo, de um bran-              muitos anos "numa amizade masculina oscilando/ entre o hor-
co sem vida, o que é tudo que o cérebro consegue enxergar quan-          ror e a lealdade" com um colega pintor chamado Matthis Nithart,
do o nervo óptico se rompe.                                              é, entre os especialistas, altamente polêmica: "Matthis Nithart"

       186                                                                                                                           187
pode ser apenas o nome de batismo do próprio GrÜnewald. Se-         dois e maior motivo da distância em que sempre viveram, obriga
 gundo exemplo: o Steller histórico parece ter sido um jovem vai-    Sebald a lembrar também por eles. (Pôr um fim a esse período
doso e arrogante, interessado antes de tudo em criar fama, e que     de amnésia histórica tornou-se um motivo de crescente inquie-
teria encontrado a morte ao cair num estupor alcoólico em tem-       tação nacional na Alemanha da virada do século. E é o tema de
peraturas glaciais. Nada disso aparece no poema de Sebald.           Luftkrieg und Literatur (1999), do próprio Sebald, traduzido pa-
     O melhor a fazer é considerar que Grünewald e Steller são       ra o inglês como On the Natural Histary afDestructian    [Sobre a
persanae, máscaras que permitem a Sebald projetar no passado         história natural da destruição]. 8)
certo tipo de personagem, pouco à vontade no mundo, na verda-
                                                                          No poema, o espetáculo da destruição de Sodoma leva a
de um exilado, que pode ser ele próprio, mas que ele julga pos-
                                                                     uma crise pessoal ("Quase enlouqueci"),      que Sebald associa a
suir certa genealogia que suas leituras e pesquisas podem revelar.
                                                                     seus episódios recorrentes de vertigem. Retrospectivamente,     fi-
A persana de Grünewald, com sua visão maniqueísta da criação,
                                                                     ca claro que também conduzirá ao esforço de reparação contido
é mais completamente elaborada que a de Steller, que pouco
                                                                     nas suas quatro obras em prosa, e especialmente   nas suas biogra-
mais é que um conjunto de gestos, talvez porque Sebald não te-
                                                                     fias de judeus, tanto imaginários (as personagens de Os emigran-
nha conseguido encontrar -     ou criar -   profundezas mais crí-
                                                                     tes; Austerlitz) quanto reais (seu amigo e hoje tradutor Michael
veISpara essa personagem.
                                                                     Hamburger, em Os anéis de Satuma). (p. 91)
     "A noite escura avança", o terceiro dos poemas de Nach der
                                                                        O trecho mais claramente narrativo de Nach der Natur, es-
Natur, é mais declaradamente autobiográfico. Aqui, Sebald, ou
o "eu" do poema, faz uma autoavaliação como indivíduo, mas           crito com uma indicação sutil de The prelude [O prelúdio]'       o
                                                                     poema de William Wordsworth sobre os anos da sua formação,
também como herdeiro da história alemã recente. Em imagens
e fragmentos de narrativa, o poema conta a sua história desde o      conta a história da primeira estada de Sebald na Manchester da
nascimento, em 1944, sob o signo de Saturno, o planeta frio, até     década de 1960, uma cidade em que a primeira encarnação in-
a década de 1980. Algumas das imagens - e a essa altura já esta-     dustrial da Europa sobrevive até o final do século xx como uma
mos familiarizados com essa prática, graças às suas obras de fic-    espécie de necrópole ou reino dos mortos ("Essas imagens/ mer-
ção em prosa - vêm da arca do tesouro da Europa, nesse caso          gulhavam-me muitas vezes num quase/ sublunar estado de pro-
de dois quadros de Albrecht Altdorfer (480-1538): o primeiro mos-    funda/ melancolia" -     "These images/ aften plunged me inta a
tra a destruição de Sodoma, e o outro, a batalha de Arbela, trava-   quasí/ sublunar state af deep/ melanchalia"). (p. 103)
da entre Alexandre da Macedônia e Dario, rei dos persas.                  A paisagem do leste da Inglaterra onde Sebald se vê mais
     Ver o quadro de Sodoma pela primeira vez precipita uma ex-      adiante é igualmente triste: propriedades rurais substituídas por
periência de déjà-vu, que Sebald associa ao bombardeio das cida-     hospícios, prisões ou asilos de velhos, ou transformadas em cam-
des alemãs na Segunda Guerra Mundial e à recusa de seus pais         pos de teste de armamentos. E a Inglaterra moderna tampouco
em tocar nesse assunto. A amnésia geral e deliberada que asso-       é singular em sua feiura. Sobrevoando a Alemanha, ele tem ou-
la a geração dos seus pais, maior fonte de suas queixas contra os    tra de suas soturnas experiências visionárias.

    188
                                                                                                                              189
Cities phosphorescent                                      que cada inspiração de ar fazia
on the riveibank, industry's                               meu rosto estremecer.
glowing piles waiting
beneath the smoke trails                                   Visões como essa levaram-no a ver-se como Ícaro, o jovem
like ocean giants for the siren's                      que, voando alto pelos ares com suas asas improvisadas, vê o que
blare, the twitching lights                            mortal nenhum podia ver. Quando ele cair, como inevitavel-
of rail- and motorways, the murmur                     mente haverá de cair, será que alguém dará alguma atenção ou,
of the millionfold proliferating molluscs,             como no famoso quadro de Brueghel, o mundo simplesmente
wood lice and leeches, the cold putrefaction,          seguirá em frente?
the groans and the rocky ribs,                               A vertigem lembra a Sebald problemas de equilíbrio que
the mercury shine, the clouds that                     ele tinha na infância, e o faz abordar o segundo dos quadros de
chased through the towers of Frankfurt,                Altdorfer, A batalha de Arbela, um panorama de carnificina em
time stretched out and time speeded up,                imensa escala apresentado em pormenores tão alucinatoriamen-
all this raced through my mind                         te minuciosos que acabam induzindo a vertigem. O quadro de-
and was already so near the end                        veria provocar mais um dos seus colapsos melancólicos, mas con-
that every breath of air made my                       duz em vez disso à transcendência bastante inconvincente com
face shudder.                                          que o poema se encerra: o descortino de uma visão de um novo
                                                       futuro, para além do horizonte de uma guerra infinita do Orien-
Cidades fosforescentes                                 te contra o Ocidente:
à beira-rio, as pilhas
luminosas da indústria à espera                             ... still further in the distance,
por trás dos rastros de fumaça                              towering up in the dwindling light,
como gigantes do oceano pelo berro                          the mountain ranges,
das sirenes, as luzes nervosas                              snow-covered and ice-bound,
das estradas de ferro e asfalto, o murmúrio                 of the strange, unexplored,
dos milhões de moluscos que proliferam,                    African continent.
pulgões e percevejos dos bosques, a fria putrefação,
os gemidos e as costelas pétreas,                           ... e mais ao longe ainda,
o brilho de mercúrio, as nuvens que                         assomando à luz bruxuleante,
corriam entre as torres de Frankfurt,                       as cordilheiras,
o tempo estendido e o tempo acelerado,                      cobertas de neve e cercadas de gelo,
tudo isso me passou correndo pela mente                     do estranho, inexplorado
e já estava tão perto do fim                                continente africano.


19°                                                                                                            191
Nach der Natur tem seus pontos mortos e seus momentos
de grandiloquência vazia, mas no fim das contas é uma obra de   11.    Hugo Claus, poeta
grande vigor e seriedade, totalmente merecedora de figurar ao
lado das obras em prosa da última década de vida de Sebald.


                                                       (2002)




                                                                    Num dos derradeiros poemas de Hugo Claus, um poeta fa-
                                                                moso concorda em conceder uma entrevista a um homem mais
                                                                jovem, também poeta. Algumas doses de bebida logo revelam a
                                                                malevolência e a inveja que motivavam a visita. Aqui entre nós,
                                                                pergunta o mais jovem dos dois, por que o senhor mantém o
                                                                mundo à distância? Por que dedica tanta atenção aos mestres do
                                                                passado? E por que se mostra tão obcecado pela técnica? Não se
                                                                ofenda, mas às vezes acho seus poemas herméticos demais. E os
                                                                seus esquemas de rimas: tão óbvios, tão pueris. Qual é sua filoso-
                                                                fia, sua ideia básica, em poucas palavras?
                                                                     O espírito do homem mais velho vaga em retorno à sua in-
                                                                fância, e se detém nos mestres do passado, Byron, Ezra Pound,
                                                                Stevie Smith. "Uma trilha de pedras", diz ele.
                                                                      "Como?", pergunta o entrevistador, surpreso.
                                                                    "Uma trilha de pedras em que o poema se apoia." Acompa-
                                                                nha o jovem até a porta, ajuda-o a vestir o casaco. Do umbral da
                                                                porta, aponta para a lua. Sem entender, o jovem fita aquele de-
                                                                cIo esticado.l

   192
                                                                                                                         193
Nesse olhar desencantado     sobre si mesmo pelos olhos de       durante a guerra. E esses antecedentes são retratados como pano
 uma nova geração que o desconsidera, Claus consegue resumir           de fundo em Het Verdríet van Belgíe.
 as características mais óbvias de sua poesia. Ele de fato se man-          Claus recebeu uma sólida formação do tipo obtido no Gym-
 tém a certa distância do mundo moderno (embora de maneira             nasíum alemão, com ênfase nas línguas clássicas e modernas,
 mais nuançada que seu rival se dispõe a reconhecer); cultiva de       mas nunca entrou para a universidade. Começou sua carreira de
 fato uma consciência intensa da maneira como sua obra se rela-        artista como ilustrador de livros; depois, aos dezoito anos, publi-
 ciona com a tradição literária, tanto nacional quanto europeia; é     cou seu primeiro livro de poesia e, um ano mais tarde, um pri-
 de fato um mestre da forma do verso, a tal ponto que consegue         meiro romance. Entre seus primeiros ídolos literários estão An-
 fazer com que difíceis proezas técnicas pareçam infantilmente         tonin Artaud e os surrealistas franceses; logo tornou-se ativo no
 fáceis; e de fato é às vezes hermético -   na verdade, às vezes es-   movimento artístico   COBRA   (Copenhague-Bruxelas-Amsterdam).
 creve numa tradição hermética; e os leitores à procura de uma              Durante a década de 1950, Claus viveu na França e na Itá-
 mensagem nítida, alguma "filosofia" clausiana que possa resumir       lia, além da sua Bélgica natal. Em 1959, foi convidado para uma
 sua obra em poucas palavras, tendem a acabar de mãos vazias.          viagem aos Estados Unidos pela Fundação          Ford, juntamente
     Hoje com mais de setenta anos, Claus teve uma carreira            com um grupo de escritores europeus recém-revelados, entre os
imensamente    produtiva, ao longo da qual foi coberto de honra-       quais se incluíam Fernando Arrabal, Günter Grass e Italo Cal-
rias e prêmios, não apenas em sua Bélgica natal e na Holanda,          vino. "Um versículo de Lucas não lhe vale de nada aqui", regis-
mas de maneira mais ampla em toda a Europa ocidental. Sua              trou ele diante da imensidão impessoal de Chicago.2
o?Uvreteatral- peças originais, traduções e adaptações - trans-             Dotado em várias esferas artísticas e intensamente ativo, Claus
formou-o numa importante presença do teatro. Fez ainda incur-          continuou a escrever poesia e ficção e a pintar, ao mesmo tem-
sões notáveis no cinema, nas artes plásticas e na crítica de arte.     po em que se desenvolvia como dramaturgo,         roteirista, diretor
Mas as criações pelas quais há de ser lembrado são, primeiro, Het      de cinema e teatro e crítico de arte. Com a publicação dos seus
Verdríet van Belgíe [A dor da Bélgica, 1983], um dos grandes ro-       Gedíehten 1948-20°4 ele assinalou o encerramento        da primeira
mances da Europa do pós-guerra e, segundo, um corpo de poe-            fase da sua carreira poética, fase de que Het Teken van de Hamster
mas que, em sua coletânea Gedíehten 1948-2°°4       [Poemas 1948-      [O signo do hamster, 1963], uma torrencial retrospectiva da sua
-2004], soma cerca de 1400 páginas.                                    vida na linha do Testamento de François Villon, emerge como
      Hugo Claus nasceu em 1920 em Brugge (Bruges), Flandres,          ponto alto. Juntamente    com Remco Campert,        Gerrit Kouwe-
filho de um dono de gráfica apaixonado pelo teatro. Vários dos         naat, Simon Vinkenoog e Lucebert, a essa altura ele já se firma-
seus professores durante a Ocupação eram nacionalistas de di-          ra na linha de frente da nova geração de poetas de língua holan-
reita; ele próprio chegou a sentir-se atraído pelo movimento fas-      desa, geração que deixou sua marca no início da década de 1950
cista da juventude flamenga. Depois da Libertação, seu pai este-       produzindo uma arte antitradicional, antirracional, antiestéti-
ve preso por um breve período devido a suas atividades políticas       ca e experimental, receptiva às influências do Novo Mundo mas

    194
                                                                                                                                   195
que, com a chegada dos anos 1960, se dividiria, dispersando seus      físico que declina, enquanto o desejo insiste em escapar a seu
membros em trajetórias individuais.                                   controle. Nessas explorações, Claus lança mão do recurso aos
     O tumulto   revolucionário   de 1968 não deixou de afetar        mitos, tanto gregos quanto indianos. Sua obra teatral do mesmo
Claus. Ele fez uma visita - obrigatória àquela altura para os         período concentra-se em adaptações de tragédias gregas e roma-
intelectuais europeus de esquerda - à utopia socialista de Cuba       nas. Não seria ir longe demais dizer que o universo clausiano
e elogiou suas conquistas, embora com mais comedimento que            tardio é dominado por uma luta entre os princípios masculino e
alguns de seus colegas. De volta à Bélgica, um tribunal conside-      feminino (e isso a despeito da advertência do próprio poeta, de
rou uma de suas montagens teatrais ofensivas à moral pública,         que não tem "filosofia" nenhuma a defender).
condenando-o a quatro meses de prisão (diante do clamor geral             Hugo Claus não é um grande lírico, e embora seu estilo
de protesto, a pena foi suspensa). Um malfadado caso amoroso          seja conciso e agudo tampouco pode ser chamado de grande
inspirou-lhe um livro de poemas, Dag, Jij [Manhã, tu; 1971]'          satirista ou epigramatista. Desde o início, porém, sua poesia es-
notável tanto por sua explicitude em matéria de sexo quanto por       teve marcada por uma combinação incomum de inteligência e
sua pungente intensidade emocional. Por muitos anos depois            paixão, exprimindo-se numa linguagem sobre a qual ele tem um
disso, a vida particular de Claus ver-se-ia esquadrinhada pela bis-   tamanho controle sem esforço que a arte se torna invisível. Mui-
bilhotice dos tabloides.                                              tos elos poemas mais curtos de sua obra são apenas fugitivos ou
     Embora Claus não tenha sido um poeta político no senti-          circunstanciais. Ainda assim, espalhados ao longo de toda ela com
do estrito, os poemas de sua primeira fase certamente refletem a       alguma abundância, há poemas cuja concentração verbal, in-
atmosfera apocalíptica e a alienação da vida política formal da        tensidade de sentimentos e alcance intelectual incluem seu au-
intelligentsía europeia durante os anos mais sombrios da Guerra        tor na primeira linha dos poetas europeus do final do século xx.
Fria, uma guerra cuja realidade - tendo em vista que Bruxelas
                                                                                                                                 (Z005)
era a sede da OTAN - os belgas tinham especial dificuldade em
ignorar. Nesse aspecto, Claus se aproxima do seu contemporâ-
neo alemão Hans Magnus Enzensberger. Mas a visão de Claus
permanece singularmente própria dos Países Baixos. O espírito
que paira sobre sua pátria pisoteada é o de Hieronymus Bosch: e
Claus recorre ao mesmo imaginário popular do final da Idade
Média, com seus bestiários e gnomos, em que Bosch inspirava
sua visão de um mundo enlouquecido.
     Na poesia da fase posterior de Claus, é a exploração da rela-
ção entre os sexos, num nível tanto simbólico quanto pessoal,
que ocupa o primeiro plano. O espírito desses versos não tem
nada de outonal: como W. B. Yeats, Claus vocifera contra seu

                                                                                                                                197
    196
12.     Graham Greene,                                             usado como informante por Colleoni, pela quadrilha de Kite. Nu-
                                                                     ma ação que não é descrita, o lugar-tenente   de Kite, um jovem
  O condenado               [Brighton RockJ                          chamado Pinkie Brown, mata Hale, talvez enfiando na sua gar-
                                                                     ganta um bastão do doce vermelho e branco conhecido na In-
                                                                     glaterra como Brighton Rock. O corpo não apresenta marcas: o
                                                                     legista que conduz a autópsia conclui que Hale morreu de um
                                                                     ataque cardíaco.
                                                                         Não fosse por Ida Arnold, uma demí-mondaíne de costu-
                                                                     mes flexíveis que Hale conhece no último dia de vida, e por
                                                                     Rase, a jovem garçonete que, sem saber, derruba o álibi de Pin-
                                                                     kie, o caso seria arquivado. A ação do romance, assim, passa a
                                                                     avançar em duas linhas convergentes: as tentativas de Pinkie
                                                                     para silenciar Rase, primeiro casando-se com ela e depois con-
                                                                     vencendo-a de que precisa fazer um pacto de morte com ele; e
      Ao resto do mundo, a Brighton da década de 1930 apresen-       os movimentos de Ida, primeiro para desvendar o mistério da
 tava a face de uma atraente estância de férias à beira-mar. Mas     morte súbita de Hale e, em seguida, para salvar Rase das maqui-
 por baixo dessa aparência havia uma outra Brighton: alas inteiras   nações de Pinkie.
 de casas de construção precária, lojas horrendas e desolados su-         Pinkie é um produto da "outra" Brighton. Seus pais morre-
 búrbios industriais. Nessa "outra" Brighton pululavam a intole-     ram; foi o pátio da escola, com seu poder hierarquizado e seu
 rância e a criminalidade, boa parte desta última concentrada no     sadismo ocasional, mais que as salas de aula, o local da sua for-
 hipódromo e nos lucros que as corridas geravam.                     mação. O gângster Kite era seu pai adotivo, ou seu irmão mais
     Graham Greene fez uma série de viagens a Brighton com a         velho. A quadrilha de Kite, sua família substituta. Do mundo
finalidade de absorver sua atmosfera e reunir material para sua      além de Brighton ele não sabe rigorosamente nada.
obra ficcional. Essa pesquisa rendeu primeiro A Gun for Sale             Amoral, desprovido de encanto, fervilhando de ressenti-
[Uma arma à venda, 1936J, um romance em que Battling Kite,           mento contra "eles" e contra os meganhas, a polícia que "eles"
chefe de uma quadrilha que extorque dinheiro dos bookmakers          usam para contê-Ia, Pinkie é uma figura assustadora. Desconfia
em troca de proteção, tem a garganta cortada por um grupo ri-        das mulheres, que a seu ver não têm nada na cabeça além do
val, a quadrilha Colleoni.
                                                                     casamento e de filhos. A simples ideia do sexo o enoja: sente-se
     E é a partir da morte de Kite que se desenvolve a ação de O     perseguido pelas memórias dos confrontos entre seus pais nas
condenado [Bríghton Rock, 1938J, originalmente planejado ape-        noites de sábado debaixo das cobertas, cujos sons era obrigado a
nas como mais um romance policial do tipo facilmente adaptá-         acompanhar desde a sua própria cama. Enquanto os homens que
vel para a tela. O livro começa com a caça a Fred Hale, repórter     passa a comandar depois da morte de Kite têm relações transitó-

    198
                                                                                                                              199
rias com mulheres, ele permanece encerrado numa virgindade                My friend judge not me
 de que sente vergonha, mas da qual não tem a menor ideia de                            I
                                                                           Thou seest judge not thee:
 como escapar.                                                             Betwíxt the stirru/J and the ground,
      E eis que entra Rose em sua vida, uma jovem tímida e feia            Mercy   I asked, mercy Ifound.
 pronta a adorar qualquer rapaz que faça menção de percebê-Ia.
 A história de Pinkie e Rose é, do lado de Pinkie, a história de           Amigo não julgues a mim,
 uma luta para barrar a entrada do amor no seu coração, e do la-           Pois vês que não julgo a ti:
 do de Rose, da persistência canina em amar seu homem, desa-               Entre o estribo e o rés do chão,
 fiando qualquer grau de cautela. Para impedi-Ia de testemunhar            Pedi e encontrei perdão.
 contra ele se um dia for levado a julgamento, Pinkie casa-se com
 Rose numa cerimônia civil que os dois sabem ser um verdadeiro             A graça de Deus, para a Igreja católica, é incognoscível, im-
 insulto ao Espírito Santo. E Pinkie, além de casar-se com Rose,       previsível e misteriosa; contar com ela para a salvação - adiar
 ainda cumpre, a contragosto, o sacrifício de consumar o casamen-      o remorso para o momento entre o estribo e o rés do chão - é
 to; e, antes que o véu de misoginia, ódio e desprezo pelas mulhe-     um pecado profundo, é pecar por orgulho e presunção. Uma
                                                                       das realizações mais notáveis de Greene em O condenado é
 res torne a descer, descobre que o sexo nem é tão mau assim, e
                                                                       elevar seu casal de amantes improváveis, o meliante adolescen-
que pode até rememorar seus momentos com certo prazer e uma
espécie de orgulho.                                                    te e a jovem noiva ansiosa, a momentos de orgulho cômico mas
                                                                       luciferiano.
     E Pinkie só precisa repelir mais uma vez o assédio da reden-
                                                                             Mas estará Pinkie condenado ao inferno? No âmbito do ro-
ção a seu coração empedernido.      Enquanto conduz Rose ao lu-
                                                                       mance, a pergunta não faz sentido: do que se passa na alma de
gar isolado onde, tudo correndo bem, ela irá se matar, ele sente
                                                                       Pinkie enquanto ele despenca de um penhasco no final do livro
"uma emoção enorme ... como se houvesse algo tentando entrar;
                                                                       nada nos é dito. E quem somos nós, afinal, para dizermos que,
a pressão de asas gigantescas contra o vidro ... Se o vidro quebras-
                                                                       em alguns casos, a confiança na misericórdia divina não pode
se, se aquele bicho - ou o que quer que fosse -        conseguisse
                                                                       advir de uma intuição genuína do espírito quanto à maneira co-
entrar, Deus sabe do que seria capaz"!
                                                                       mo funciona o mistério da graça? Por via das dúvidas, porém,
     O que mantém Pinkie e Rose ligados é o fato de serem am-
                                                                       mais adiante na vida Greene iria declarar explicitamente que não
bos "romanos", filhos da Verdadeira Igreja, de cujos ensinamen-        aceitava a doutrina da maldição eterna. O mundo já continha
tos têm uma noção muito vaga, mas que ainda assim lhes confere
                                                                       sofrimento suficiente, disse, para qualificar-se ele mesmo como
uma inabalável sensação de superioridade       interior. O ensina-
                                                                       um purgatório.
mento em que confiam com mais intensidade          é a doutrina da
graça, resumida num poema anônimo que se fixou na memória                   O condenado é um romance sem herói. Mas na pessoa de
de ambos:
                                                                       Ida Arnold, a mulher que Fred Hale escolhe por desespero no
    200
                                                                                                                                201
último dia de sua vida, Creene cria não só uma detetive nada         A terra desolada [The Waste LandJ, de T. S. Eliot. Ele próprio
  convencional,   astuta, obstinada e inabalável, mas também uma       um poeta de algum peso, Creene traz Brighton à vida com ima-
 robusta antagonista teológica ao eixo católico constituído por        gens de um sombrio vigor expressionista: "A escuridão imensa
 Pinkie e Rose. Pinkie e Rose acreditam no Bem e no Mal; Ida           premia a boca molhada contra as vidraças". (p. 252) Em livros
 acredita num Certo e num Errado mais mundanos, a lei e a or-          posteriores, Creene tendeu a refrear a poesia quando ela se tor-
 dem, embora, claro, com algum humor adicional. Pinkie e Rose          nava muito evidente.
 creem na salvação e no castigo eterno, especialmente neste últi-          Mais presente ainda nesse romance é a influência do cine-
 mo; em Ida, o impulso religioso é domesticado, trivializado e         ma. O final da década de 1930 foi uma época de grande progres-
 confinado ao tabuleiro ouíja, onde espíritos se manifestam. Nas       so para a indústria cinematográfica britânica. Pela lei, os cinemas
 cenas em que Ida, tomada pelo impulso maternal, tenta separar         eram obrigados a exibir certa quota de filmes britânicos, e um
 Rose de seu amante demoníaco, vemos o confronto entre os ru-          sistema de subsídios premiava os filmes de qualidade. Criou-se
 dimentos de duas visões de mundo, uma escatológica          e a ou-   uma escola de cinema genuinamente britânica, refletindo as rea-
 tra secular e materialista, sem que ocorra qualquer compreensão       lidades da vida britânica, um desenvolvimento que Creene sau-
 recíproca.                                                            dava com satisfação. Em 1935 ele se tornou crítico de cinema do
      Embora a visão de Ida pareça triunfar no final, um dos fei-      Spectator, e pelos cinco anos seguintes publicou cerca de qua-
 tos mais sutis de Creene é pôr em dúvida essa visão, talvez bito-     trocentas críticas de filmes. Mais tarde ainda trabalharia na adap-
 lada e tirânica. No final, a história não pertence a Ida mas a Rose   tação de seus próprios romances, entre eles o próprio O conde-
e Pinkie, pois eles, ao contrário dela, estão preparados para en-      nado, filmado por Carol Reed em 1947 e distribuído nos Estados
frentar as grandes questões, ainda que de forma pueril.                Unidos com o título de Young Scarface.
     A fé que Rose deposita em seu amado jamais vacila. Até o               Já desde Stamboul Traín [Trem de Istambul, 1932]' os ro-
fim ela identifica Ida, e não Pinkie, como a criatura malévola,        mances de Creene traziam a marca do cinema: uma preferên-
praticante da sedução sutil. "Ela é que deveria ser amaldiçoada        cia pela observação de fora sem comentário, o corte seco de cena
para sempre ... Ela não sabe o que é o amor." (p. 267) Se de fato      em cena, ênfase igual no significante e no insignificante. "Quan-
ocorrer o pior, ela, Rose, prefere sofrer no inferno com Pinkie a      do descrevo uma cena", disse ele numa entrevista, "procuro cap-
ser salva na companhia de Ida. (Como nunca iremos saber o que          turá-Ia com o olho móvel da câmera cinematográfica, e não com
terá ocorrido com a alma de Pinkie, também jamais saberemos            o olho do fotógrafo -   que a congela ... Trabalho com a câmera,
se a fé de Rose terá conseguido resistir às palavras de ódio, pre-     acompanhando minhas personagens e seus movimentos."2 Em
servadas num disco de vinil, que Pinkie lhe transmite do além-tú-      O condenado, a influência do estilo visual de Howard Hawks po-
mulo: "Deus a amaldiçoe, pequena cadela." [p. 193])                    de ser percebida na maneira como o autor manipula a violên-
                                                                       cia no hipódromo. O uso engenhoso do fotógrafo itinerante para
    Craham Creene pertenceu a uma geração cuja visão da vi-            conduzir o enredo sugere Alfred Hitchcock. Os capítulos, carac-
da urbana moderna foi profundamente      influenciada pelo poema       teristicamente, terminam com o foco recuando dos atores hu-

    202
                                                                                                                                   2°3
manos para abarcar o panorama natural mais amplo - a lua so-         "bitches" [o que equivale, provavelmente,    ao português "vaga-
 bre a cidade e a praia, por exemplo.                                 bundas"]. O "rosto semítico" de Colleoni é transformado em "ros-
      Na época em que escreveu O condenado, Greene também             to italiano". Os lábios almofadados permanecem.
 vinha refinando sua técnica narrativa, usando Henry James e                O fato de Greene ter achado que a ofensa poderia ser re-
 Ford Madox Ford como mestres e A técnica da ficção, de Percy         movida com algumas penadas indica que, a seu ver, ela só tinha
 Lubbock, como seu manual. Embora O condenado possa não               a ver com a superfície verbal do romance, e não com as atitudes
 ser tecnicamente perfeito - há lapsos durante os quais a nar-        e ideias que o norteavam.
 rativa interna de Pinkie é invadida por comentários e juízos do
 narrador -, ele é, em sua concentração na malevolência ínti-              Graham Greene nasceu em 1904 numa família de algum
 ma, claramente da escola de Henry James.                             relevo intelectual.   Do lado da sua mãe, era parente de Robert
      O romance ainda tem outros problemas. Enquanto as sim-          Louis Stevenson. Seu pai era o diretor de uma escola de renome,
patias de Greene se alinham obviamente        do lado dos pobres,     um de seus irmãos se tornaria diretor-geral da BBC.
humilhados e desempregados, a grande cena em que ele podia                 Na Universidade de Oxford ele estudou história, escreveu
ter explorado a textura da vida destes - a visita aos pais de Rose    poemas, militou por um breve período no Partido Comunista e
- causa um impacto mais grotesco que perturbador. O ritmo da          chegou a brincar com a ideia de entrar para o ramo da espiona-
ação vai se afrouxando à medida que se aproxima do final -        e   gem. Depois de formar-se assumiu um emprego noturno de su-
Greene ainda dedica um excesso de páginas aos destinos indivi-        beditor no The Times, escrevendo literatura durante o dia. Seu
duais dos membros da quadrilha de Pinkie.                              primeiro romance foi publicado     em 1929; O condenado foi o
    Dado o ethos taciturno de suas personagens, em O conde-            nono.
nado Greene tem poucas oportunidades de exibir sua habilidade               Em 1941, ao final de um período trabalhando na vigilân-
como escritor de diálogos. A exceção é o advogado Prewitt, sufi-       cia de ataques aéreos, Greene entrou para o SIS, o Secret Intelli-
cientemente articulado para assumir uma vida verbal própria de         gence Service (Serviço Secreto de Informações), onde seu supe-
caráter dickensiano.                                                   rior imediato era Kim Philby, mais tarde desmascarado como
     Na edição de 1970 de suas obras reunidas, Creene retocou          agente a serviço dos russos. Depois da guerra, trabalhou em edi-
o texto original em alguns pontos. Em 1938 ele se sentia à vonta-      toras até que os vencimentos da venda dos seus livros, dos rotei-
de para usar termos como "judia" ("Jewess") e "preto" ("nigger"        ros de filmes e da venda de direitos de filmagem tornaram desne-
- na expressão "niggers with 'cushionly' lips" ["pretos de lábios      cessário que tivesse um emprego.
almofadados"J). Nos círculos que frequentava àquela altura, es-             Greene continuou a servir informalmente ao SIS por muitos
ses epítetos raciais eram correntes e aceitáveis. Depois da guerra,    anos depois da guerra, relatando o que observava em suas exten-
porém, deixaram de sê-Io. Assim, ele transformou os "niggers"          sas viagens. Até certo ponto, não passava de um agente secreto
em "negroes" ["negros"], e as "jewesses" ("judias"), em alguns con-    diletante. Ainda assim, as informações que fornecia eram bastan-
textos simplesmente em "women" ["mulheres"] e, noutros, em              te valorizadas.

    2°4                                                                                                                           2°5
ocondenado foi seu primeiro romance sério, sério porque     justiça à condição humana: eis a essência da sua crítica a Virgi-
   travalhava com ideias sérias. Por algum tempo, Greene mante-       nia Woolf e a E. M. Forster, cujas palavras ele achava "delgadas
   ve uma distinção entre suas incursões no romance sério e seus      como papel", apenas cerebrais.4
   chamados "divertimentos". Dos vinte e tantos volumes de fic-           A narrativa de Greene dando conta de como, sendo católi-
  ção que publicou antes da sua morte em 1991, O poder e a gló-       co e romancista, tornou-se um romancista católico, foi elabo-
  ria (1949), O coração da matéria (1948), Fim de caso (1951), A      rada tardiamente em sua vida e não deve ser necessariamente
  Bumt-Out Case [Um caso encerrado J (1961), The Honorary Con-        aceita ao pé da letra. Segundo esse relato, embora ele se tenha
  sul [O cônsul honorário, 1973J e O fator humano (1978) foram        convertido ao catolicismo ainda jovem,5 para ele a religião per-
  os que atraíram mais atenção da crítica.
                                                                      maneceu uma questão particular entre o crente e Deus até pre-
        Nesse corpo de escritos, Greene definiu um território pró-    senciar em primeira mão a perseguição da Igreja no México e
  prio, a chamada "Greenelândia", em que homens tão imperfei-         constatar como a fé religiosa podia tomar conta da vida das pes-
  tos e divididos quanto qdalquer outro têm sua integridade e os      soas, sacramentalizando-as integralmente.
 fundamentos de Suas crenças postos à prova até o limite, enquan-          O que fica dessa narrativa é a atração, romântica em sua
 to Deus, caso exista, insiste em permanecer oculto. As histórias     natureza e confirmada pelo que dizem suas primeiras obras de
 desses heróis dúbios são contadas com um magnetismo e um co-         ficção, que o catolicismo exerceu sobre ele - a sensação de que
 nhecimento de causa que atraíram os leitores aos milhões.
                                                                      os católicos têm um acesso único a um corpo ancestral de co-
      Greene gostava de citar o bispo Blougram de Robert Browning:    nhecimentos, e de que os católicos ingleses em especial, mem-
                                                                      bros de uma seita perseguida no passado, são por isso inerente-
     Nosso interesse é pelo extremo perigoso das coisas,              mente excluídos.
     O ladrão honesto, o assassino terno,
                                                                           Por menos letrado que seja o Pinkie Brown de Greene (mas
     O ateu supersticioso ...
                                                                      nem por isso incapaz de compor frases em latim), sua ideia da
                                                                      própria identidade está impregnada da noção de que detém um
      Se precisasse escolher uma epígrafe para toda a sua obra, di~   conhecimento secreto, fora do alcance da ralé, de que um des-
zia ele, seria essa. Embora idolatrasse Henry James ("tão isolado     tino mais alto está reservado para ele. Essa sensação de ser um
à frente na história do romance quanto Shakespeare na história        eleito, compartilhada   por tantas outras personagens de Greene,
da poesia"), seu antecessor imediato é o Joseph Conrad de O agen-     suscitou críticas como a de George Orwell: "Greene         parece
te secreto. De sua progênie, John le Carré é o mais celebrado.3       compartilhar a ideia, que vem pairando no ar desde Baudelaire,
     Greene é geralmente considerado um romancista católico,          de que existe algo de distingué em ser maldito".6 Mas esse tipo de
que interroga as vidas das suas personagens de um ponto de vis-       crítica não é de todo justa: se em alguns momentos Greene
ta especificamente católico. Não há dúvida de que julgava que,        parece prestes a endossar a concepção romântica que Pinkie tem
sem uma consciência religiosa, ou pelo menos uma consciência          do catolicismo como a fé do marginal byroniano, há momentos
da possibilidade do pecado, o romancista não tinha como fazer         em que o aparato escatológico de Pinkie revela-se uma simples
    206
                                                                                                                               2°7
defesa precária erguida contra a zombaria do mundo ~ a zom-
baria das suas roupas surradas, da sua gaucheríe, do seu sotaque    13.    Samuel Beckett, os contos
de operário, da sua juventude, da sua ignorância em matéria de
sexo. Pinkie pode fazer o possível para elevar seus atos à esfera
do pecado e da maldição, mas para a resoluta Ida Arnold eles
não passam de crimes que merecem        as penas da lei; e neste
mundo, o único mundo que temos, a visão de Ida é a que tende
a prevalecer.


                                                          (2°°4)




                                                                          Embora Watt, escrita em inglês durante os anos da guerra
                                                                    mas publicada apenas em 1953, seja uma presença substancial
                                                                    no cânone beckettiano, pode-se dizer que Beckett só foi encon-
                                                                    trar-se como escritor depois que adotou o francês e, especialmen-
                                                                    te, depois dos anos de 1947-51 quando, numa das erupções criati-
                                                                    vas mais notáveis dos tempos modernos, escreveu as ficções em
                                                                    prosa Molloy, Malone morre e O Inomínável ("a trilogia"), além
                                                                    da peça Esperando Godot e dos treze Textos para nada.!
                                                                          Essas grandes obras foram antecedidas por quatro contos,
                                                                    igualmente escritos em francês, acerca de um dos quais - "Pri-
                                                                    meiro Amor" - Beckett tinha as suas dúvidas. (Também pode
                                                                    ter questionado a maneira como encerra "O Fim": no geral um
                                                                    mestre da frase contida, Beckett permitiu-se aqui a indulgência
                                                                    de um mergulho nada característico na plangência.)
                                                                        N esses contos, no romance Mercíer e Camíer (escrito em
                                                                    francês em 1946) e em Watt, os contornos do mundo beckettiano
                                                                    tardio, bem como os processos pelos quais os produtos da criação
                                                                    ficcional de Beckett eram gerados, começam a se tornar visíveis.
  208
                                                                                                                             2°9
Trata-se de um mundo de espaços confinados ou então de deso-             As três décadas seguintes verão Beckett, em suas ficções
 ladas extensões vazias, habitadas por monologuistas associais e      de prosa, incapaz de seguir em frente - atolado, na verdade, na
 na verdade misantrópicos que jamais conseguem terminar seus          própria questão de saber o que significaria seguir em frente, por
 monólogos, vagabundos com o corpo em colapso e a mente em            que devemos seguir em frente e quem deve tomar a iniciativa do
 vigília constante, condenados a um redemoinho purgatorial em         avanço. Um filete de publicações continua a gotejar: composi-
 que ensaiam vezes sem conta os grandes temas da filosofia oci-       ções breves e quase musicais cujos elementos são locuções e fra-
 dental; um mundo que nos chega na prosa característica que           ses. Ping (Bing no original francês, 1966) e Lessness (Sans no ori-
 Beckett - baseando-se principalmente em modelos franceses,           ginal francês, 1969) - textos construídos a partir de repertórios
 embora com o fantasma de Jonathan Swift a murmurar-lhe bai-          de frases organizadas por métodos combinatórios [e ambos tra-
 xinho no ouvido - encontrava-se em pleno processo de aperfei-        duzidos para o inglês pelo próprio BeckettJ - representam o ex-
 çoar para si, lírica e mordaz na mesma medida.
                                                                      tremo dessa tendência. A música que produzem é áspera; mas,
      Em Textos para nada (o título francês Textes fJour rien alude   como demonstra o quarto dos Fizzles (1975), as composições de
 à medida inicial marcada pelo maestro ante o silêncio da orques-     Beckett também podem ser de uma irresistível beleza verbal.
tra) vemos Beckett esforçando-se para deixar o canto isolado que           Beckett se aferra à premissa narrativa de O Inominável, e de
lhe restara em O Inominável: se "o Inominável" é o signo verbal       How It Is (Comment c'Est, 1961), nesses textos curtos de ficção:
para o que fica depois que todas as marcas de identidade são re-      uma criatura constituída de uma voz conectada, por motivos des-
movidas da série de monologuistas que o antecede (MoIloy, Ma-         conhecidos, a algum tipo de corpo encerrado num espaço que
lone, Mahood, Worm e todo o resto), quem ou o que virá quan-          lembra mais ou menos o Inferno de Dante, por um certo tem-
do o Inominável for por sua vez despojado, e quem depois desse        po é condenada a falar, tentar dar sentido às coisas. A situação é
sucessor, e assim por diante? E - o que é mais importante _           bem descrita por um termo de Heidegger, Geworfenheit: ver-se
será que a própria ficção não irá degenerar no registro desse pro-    atirado sem explicação numa existência governada por regras obs-
cesso de desnudamento cada vez mais mecânico?                         curas. O Inominável era sustentado por sua soturna energia cô-
     O problema da criação de alguma fórmula verbal capaz de          mica. À altura do final da década de 1960, porém, essa energia
delimitar e aniquilar o resíduo inominável da identidade e assim      cômica; com seu poder de surpreender-nos,      reduzira-se a uma
alcançar finalmente   o silêncio aparece formulado no sexto dos       autolaceração implacável e árida. The Last Ones/Le Dépépleur
Textos de Beckett. À altura do décimo primeiro, essa busca de         [Os últimos, 1970] é um inferno para o leitor, e talvez também
um desfecho ou finalidade - baldada, como sabemos e Beckett           tenha sido um inferno para escrever.
também sabe -    está em pleno processo de ser absorvida numa              E então, com Company/Compagnie          [Companhia,    1980]'
espécie de música verbal, e a feroz angústia cômica que a acom-       Mal visto e mal dito (1981) e Worstward Ho [Rumo ao pior, 1983],
panhava também está em pleno processo de ser esteticizada. Eis        emergimos milagrosamente em águas mais claras. A prosa se
a resposta a que Beckett parece ter chegado, uma resposta clara-      mostra subitamente mais expansiva, e até cordata em matéria de
mente precária, para a pergunta do que fazer depois.                  Beckett. Enquanto nas ficções anteriores a interrogação da iden-
    210
                                                                                                                                 211
tidade encurralada,     gcworfen, tinha uma qualidade mecânica,            teso Em sua desconfiança da axiomática cartesiana, Beckett ali-
   como se desde o início ficasse combinado que qualquer questio-             nha-se com Nietzsche e Heidegger, e com seu contemporâneo
   namento era fútil, nesses textos posteriores tem-se a sensação de          mais jovem Jacques Derrida. A interrogação satírica a que ele
   que a existência individual é um mistério genuíno, merecedor               submete o cogito cartesiano (estou pensando, logo devo existir)
  de exame mais detido. A qualidade do pensamento e da lingua-                está tão próxima em espírito da decisão de Derrida de revelar as
  gem permanece tão filosoficamente escrupulosa como sempre,                  premissas metafísicas por trás do pensamento ocidental que não
  mas surge um elemento novo, pessoal e até mesmo autobiográ-                 podemos deixar de mencionar, senão uma influência direta de
  fico: as memórias que emergem e flutuam na mente de quem                    Beckett sobre Derrida, no mínimo um caso notável de vibra-
  fala provêm claramente da infância remota do próprio Samuel                 ção em sintonia.
  Beckett, e são tratadas com certa admiração e ternura, muito                     Começando como um joyceano desconfortável e um prous-
  embora - como imagens dos antigos filmes mudos - tendam                     tiano mais desconfortável ainda, Beckett acaba por instalar-se na
  a tremer e a desaparecer na tela do olho interior. A palavra-chave          comédia filosófica como o meio mais adequado a seu tempera-
  beckettiana "on",':'que antes tinha uma qualidade de áspera fu-             mento singularmente    angustiado, arrogante, dubitativo e escru-
  tilidade ("I can't go on, I'll go on" - "não posso continuar, vou           puloso. No espírito popular, seu nome está associado ao miste-
 continuar"), começa a assumir um novo significado: o significa-              rioso Godot que pode ou não chegar, masque de todo modo
 do, se não da esperança, pelo menos da coragem.                              esperamos, passando o tempo da melhor maneira possível. Nes-
      O espírito desses últimos escritos, otimista embora de um               sa criação ele parece ter definido o espírito de uma época. Mas
 ceticismo bem-humorado         quanto ao que se pode realizar, é bem         o alcance de Beckett é bem maior, e suas realizações, bem mais
 capturado numa carta escrita por Beckett em 1983: "A reta lon-               importantes.   Beckett era um artista possuído por uma visão da
 ga e torta é laboriosa, mas não deixa de ser animada. Enquanto               vida sem consolo nem dignidade ou promessa de graça, em face
ainda 'jovem' comecei a buscar consolo na ideia de que naquela                da qual nosso único dever - inexplicável e de finalidade fútil,
época, se em algum tempo, isto é agora, as palavras verdadeiras               mas ainda assim um dever - é não mentirmos para nós mes-
afinal, da mente em ruínas. E a essa ilusão continuo aferrado".2              mos. Era uma visão a que ele dava expressão numa linguagem
                                                                              de força viril e sutileza intelectual que o assinala como um dos
    Embora não seja uma descrição que ele próprio aprovasse,                  grandes estilistas em prosa do século xx.
Beckett pode ser definido, com justiça, como um escritor filosó-
fico cuja obra pode ser lida como uma série de ataques vigorosos                                                                         (2°°5)
e céticos a Descartes e à filosofia do sujeito fundada por Descar-


* Preposição em si intraduzível, de tantos sentidos que forma em inúmeras
locuções, mas que aqui equivaleria mais ou menos a "adiante", como na locu-
ção "seguir adiante". (N. T.)


     212
                                                                                                                                       213
14·     Walt Whitman                                                             assim. Ele é um dos milhares de nossos jovens americanos des-
                                                                                  conhecidos   das fileiras armadas sobre os quais não há registro
                                                                                  nem se cria fama, nenhuma    agitação produzida por suas mortes
                                                                                  tão anônimas, mas vejo neles os realmente preciosos e nobres ...
                                                                                  Pobre filho querido, embora não fosses meu filho, fui levado a
                                                                                  amar-te como um filho, pelo curto tempo que pude ver-te ali,
                                                                                  doente e moribundo.


                                                                                  A carta vinha assinada "Walt Whitman", com um endereço
                                                                          no Brooklyn.1
                                                                              Escrever cartas de condolência era apenas um dos deveres
                                                                          que Whitman se impunha como Missionário dos Soldados. Per-
                                                                          correndo os hospitais de Washington, trazia de presente para os
                                                                          soldados roupas de baixo limpas, frutas, sorvete, tabaco e selos
    Em agosto de 1863, o cabo Erastus Haskell, do 141º Regi-              postais. Também conversava com eles, consolava-os, beijava e
mento de Voluntários de Nova York, morreu de febre tifoide no
                                                                          abraçava alguns, e se precisavam morrer tentava facilitar sua
Hospital de Armory Square, em Washington, capital dos Estados
                                                                          morte. "Nunca antes tive meus sentimentos tão integralmente e
Unidos. Pouco tempo depois, seus pais receberam uma longa                 (até aqui) permanentemente absorvidos, até as raÍzes, como por
carta de um desconhecido. "Eu estava muito ansioso pela salva-
                                                                          essas multidões de pobres rapazes feridos, doentes e agonizan-
ção [de Erastus]", dizia ele,
                                                                          tes", escreveu ele. "Criei ligações no hospital que hei de con-
                                                                          servar até o dia da minha morte, e eles também, sem a menor
    assim como todos os outros -     e ele era bem tratado pelos aten-    dúvida."2
    dentes ... Passei muitas noites no hospital ao lado da sua cama ...
                                                                               Entre 1862 e 1865, por seus próprios cálculos, Whitman pres-
    -    ele sempre gostava que eu me sentasse ali, mas nunca se dava     tou cuidados a cerca de 100 mil homens. Embora suas inter-
    ao trabalho de dizer nada - nunca me esquecerei dessas noites,        venções não fossem universalmente           bem recebidas -       "Esse
    era uma cena curiosa e solene, os doentes e feridos estendidos a
                                                                          detestável Walt Whitman, [vindo] falar de coisas perversas e de
    toda a volta em suas camas ... e esse jovem tão querido ali bem
                                                                          descrença com os meus rapazes", escreveu uma enfermeira-,
   perto ... Não conheço o seu passado, mas o que sei, e o que pude
                                                                          cm nenhum lugar barravam sua entrada. Poderíamos nos per-
   ver, é que era um rapaz nobre -    sinto que era alguém a que eu
                                                                          guntar se em nossos dias um homem de meia-idade, com fama
   poderia me apegar muito ...
                                                                          dc pornógrafo, conseguiria vagar assim pelas enfermarias, de ca-
       Escrevo-Ihes esta carta porque pelo menos alguma coisa quis
                                                                          beceira em cabeceira de rapazes atraentes, ou se não seria posto
   fazer em memória dele - seu destino foi muito duro, morrer
                                                                          11:   rua em pouco tempo por uma dupla de seguranças)
   214
                                                                                                                                          215
Whitman mantinha anotações sobre suas experiências em       urna rede de amor fraterno em escala nacional muito semelhan-
  Washington, e mais tarde as transformaria em artigos de jornal e    te à afetu9sa camaradagem que ele encontrara entre os jovens
  conferências que, em 1876, publicou numa edição limitada sob        soldados que marchavam para a guerra, e que detectava em seu
  o título de Memoranda during the War [Memorandos durante            próprio coração quando, mais tarde, dedicava-Ihes seus cuida-
  a guerra J. Essa obra, por sua vez, tornou-se parte de Specimen     dos. No prefácio de 1876 a Folhas de relva, ele diria: "É por meio
  Days [Amostras de dias, 1882J. Nem tudo nos Memoranda vem           de um desenvolvimento fervoroso e aceitável da camaradagem,
  de urna experiência em primeira mão. Embora Whitman dê a            a bela e saudável afeição de homens por homens, latente em to-
  impressão de ter testemunhado o assassinato de Abraham Lin-         dos os jovens ... e por meio do que acompanha direta e indire-
 coln no Ford's Theatre e nos apresente urna descrição dramática      tamente esse desenvolvimento, que os Estados Unidos do futu-
 desses acontecimentos, na verdade não estava lá. Mas ele de fato     ro ... terão urna ligação mais eficaz, intercalados, cingidos numa
 acreditava ter urna relação especial com Lincoln. Os dois eram       união viva".4
 altos. Whitman muitas vezes viu Lincoln passar pelas ruas, e es-          Para Whitman, a adesividade não era urna simples forma
 tava convencido de que, por cima das cabeças da multidão, o lí-      sublimada da amatividade, mas urna força erótica autônoma. O
 der eleito do povo americano reconhecia e respondia ao aceno         traço mais atraente dos Estados Unidos sonhados por Whitman
 do legislador extraoficial da humanidade (assim corno Shelley,       é que esse país não exigiria de seus cidadãos a sublimação de eros
 Whitman tinha ideias elevadas sobre a sua vocação).                  no interesse elo Estado. E nisso o poeta diverge de outras utopias
                                                                      do século XIX.
      Quando jovem, Whitman ficara muito impressionado com                Whitman não era apenas altamente adesivo corno também,
 urna ciência recém-criada, a frenologia. Submeteu-se a um exa-       a julgar pelo que escreveu, intensamente amativo: "Tiro o noi-
me frenológico básico e obteve notas altas em amatividade e ade-      vo da cama e deito-me eu próprio com a noiva,! e a pressiono a
sividade, Com notas apenas médias para as habilidades linguísti-      noite inteira com meus lábios e coxas." ["I turn the bridegroom
caso Sentia suficiente orgulho de scus resultados para divulgá-I os   out ofbed and stay with the bride myself,! 1 tighten her all night
nos anúncios de Folhas de relva.
                                                                      to my thighs and lips."). A questão de qual era exatamente a
     No jargão frenológico, a amatividade é o ardor sexual; a ade-    forma física dessa amatividade vem absorvendo cada vez mais
sividade é a conexão, a amizade, a camaradagem. A distinção           abertamente os estudiosos de Whitman nos últimos tempos. (LoG,
tornou-se importante para Whitman em sua vida erótica, onde           p.65)
ela lhe fornecia um nome, e na verdade urna certa respeitabili-            Nos anos que se seguiram à guerra, Whitman        criou laços
dade, para seus sentimentos por outros homens. E também dava          significativos com homens mais jovens, entre os quais dois se
substância à sua concepção de democracia: corno variedade do          destacam: Peter Doyle, que trabalhava corno condutor na fer-
amor que não se limitaria ao casal sexual, a adesividade podia        rovia de Washington; e Henry Stafford, aprendiz de tipógrafo. A
constituir as fundações de urna comunidade democrática. A de-         relação com Doyle - que era praticamente analfabeto e, segun-
mocracia whitmaniana    seria urna adesividade muito ampliada,        do Whitman, considerava Folhas de relva "um emaranhado de
    216
                                                                                                                                217
frases loucas e palavras difíceis, tudo embaralhado, sem ordem                    Na forma em que sobreviveram no original, os doze poemas
     nem sentido" - parecia provocar uma angústia considerável em                 da série Líve Oak contam a história dessa ligação. Entretanto, ao
     Whitman. Numa anotação em código em seu caderno, Whitman                     chegar o momento da publicação, Whitman perdeu a coragem
     adverte a si mesmo:
                                                                                  e distribuiu os doze, fora da ordem, em meio a um conjunto
                                                                                  maior de poemas intitulado Calamus, que, de maneira geral,
         Desista absolutamente     & de uma vez por todas, a partir de ago-       celebrava antes a adesividade que a amatividade.
         ra, dessa perseguição   febril, volúvel, inútil e indigna de [Doy-            Por razões talvez estratégicas, Whitman gostava de dar a en-
         le] -   em que vem perseverando       há tempo demais (muito de-         tender que tinha casos amorosos com mulheres. Chegou até a
         mais) -tão   humilhante ... Evite tornar a vê-Ia [sic] ou encontrar-se
                                                                                  iniciar rumores sobre crianças que teria gerado fora do casamen-
         com ela, ou qualquer conversa ou explicação - ou qualquer tipo           to, em Nova Orleans e em outras cidades. As mulheres o acha-
         ele encontro, a partir do momento presente, pelo resto da viela.
                                                                                  vam de fato atraente, e é difícil acreditar que o poeta de "I Sing
                                                                                  the Body Electric" desconhecesse de todo os prazeres do sexo
         (Ao censurar seus papéis, Whitman deu-se ao trabalho de                  heterossexual: "Noite de amor de noivo laborando certa e suave-
 apagar minuciosamente cada repreensível pronome masculino,                       mente até a aurora prostrada,! Penetrando ondulante no dia re-
 substituindo-o pela forma feminina.)5
                                                                                  ceptivo e entregue,! Perdido na greta do dia envolvente de carne
       A ligação com Henry Stafford parece ter sido mais tranquila                macia." ["Bridegroom night of love working surely and softly in-
 -    Whitman era quase quarenta anos mais velho que Stafford,                    to the prostrate dawn,! Undulating into the willing and yielding
cuja família o acolhia. Whitman passava tempos como hóspede                       day,! Lost in the cleave of the clasping and sweetilesh'd day."]
pagante na fazenda da família, onde podia praticar à vontade seu                  (LoG, p. 96)
ritual matutino de um banho de lama seguido de um mergulho                             As passagens eróticas de Folhas de relva, especialmente as
no riacho, tudo acompanhado de cantoria em voz muito alta.
                                                                                  de narcisismo e exibicionismo, em que tiradas cômicas podem
        Se formos ler autobiograficamente          os poemas da série co-         facilmente ser confundidas com jactância, incomodavam mui-
nhecida como Live Oak (1859) ficaremos com a impressão de ter                     tos dos amigos de Whitman, entre eles Ralph Waldo Emerson,
acontecido alguma ligação importante em fins da década de 1850,                   o contemporâneo mais velho cuja importância para Whitman
levando Whitman a perceber que seus sentimentos por outros                        fora maior. Emerson foi o primeiro a perceber a genialidade de
homens não poderiam ser mantidos em segredo para sempre.                          Whitman, e permaneceu ao lado de seu protegido mesmo quan-
"Um atleta está enamorado por mim, e eu por ele,! Mas por ele                     do este usou desavergonhadamente seu nome para promover as
há algo de feroz e terrível em mim a ponto de explodir,! Não me                   vendas do seu livro. Mas o ponderado conselho de Emerson, de
atrevo a dizê-Io com palavras, nem mesmo nestes cantos." ["An                     que Whitman atenuasse um pouco o sexo para a edição de 1860,
athlete is enamoured of me, and I ofhim,! But toward him there
                                                                                  foi ignorado.
is something fierce and terrible in me eligible to burst forth,! I                      O que mais surpreende   nas reações imediatas a Folhas de
dare not tell it in words, not even in these songs."J (LoG, p. 132)               relva é que foi o sexo aparentemente   heterossexual, mais que o
       218
                                                                                                                                            219
homoerotismo por trás dos poemas do Calamus, que causou                        Num posfácio a uma recente reimpressão das Folhas de rel-
 grande ofensa, e acabou levando o promotor local de Boston a              va (1855), David Reynolds zomba de Anthony Comstock, empe-
 ameaçar autor e editores de processo se a edição de 1881 não fos-         nhado em sua campanha contra a literatura indecente, que de-
 se expurgada.
                                                                           nunciou o sexo heterossexual da edição de 1881 mas ao mesmo
         A essa altura, Whitman já reunia um considerável contin-          tempo ignorava os poemas do Calamus. Como, pergunta Rey-
 gente de admiradores entre os intelectuais gays, especialmen-             nolds, Comstock pode ter deixado de perceber o substrato que
 te na Inglaterra: em sua turnê aos Estados Unidos, Oscar Wilde            hoje nos parece tão obviamente homossexual? "A resposta pode
 visitou Whitman e saiu do encontro anunciando             que recebera    ser que o amor entre pessoas do mesmo sexo não era interpre-
um beijo nos lábios. O ensaísta John Addington Symonds pres-               tado naquela época da mesma forma como é hoje." "Fosse qual
sionou Whitman a admitir que o tema velado dos poemas do                   fosse a natureza das relações [de Whitman] com [rapazes], a maio-
Calamus era um caso amoroso com um homem. Mas Whitman,                     ria das menções ao amor entre pessoas do mesmo sexo em seus
antes por astúcia que por medo, pode-se imaginar, negou. Os poe-           poemas não destoava muito de outras teorias e práticas correntes
mas, respondeu ele em tom gélido, não toleravam tais "inferên-             na época, afirmando a salubridade desse tipo de amor."7
cias mórbidas - [que] eu repudio & me parecem condenáveis".6                    E Reynolds reitera a mesma posição em seu livro Walt
     Seriam assim os leitores da época de Whitman mais tole-               Whítman:
rantes ao amor sexual entre homens do que geralmente supo-
mos, contanto que ele não se proclamasse com muito estarda-                     Embora Whitman      tenha evidentemente     tido um ou dois casos
lhaço? Seria o poeta do corpo elétrico tacitamente reconhecido                  amorosos com mulheres,      ele era principalmente   um camarada
como gay?
                                                                                romântico que teve uma série de relacionamentos       intensos com
                                                                                jovens rapazes, a maioria dos quais em seguida se casou e teve fi-
    "Sou o poeta da mulher assim como do homem ...! Sou aquele                  lhos. Fosse qual fosse a natureza de suas relações físicas com eles,
    que caminha com a noite suave e crescente,! Clamo à terra e ao              a maioria das menções ao amor entre pessoas do mesmo sexo em
    mar semissuspensos pela noite.! Abraça-me noite de peito desco-             seus poemas não destoava muito das teorias e práticas correntes
    berto -    abraça-me noite magnética    e nutriz!! Noite de ventos          na época, afirmando a salubridade desse tipo de amor.8
    do sul -    noite de grandes e escassas estrelas!! Noite silenciosa
   e convidativa - noite louca e nua de verão." ["I am the poet of              Num tom igualmente         cauteloso, Jerome Loving, em sua
   the woman the same as the man .. .I Iam he that walks with the          biografia de 1999, afirma que Peter Doyle "pode ou não ter sido
   tender and growing night,! I call to the earth and sea half-held        amante de Whitman". "É impossível conhecer os detalhes ínti-
   by the night./ Press dose bare-bosom'd night -     press dose mag-      mos da relação entre eles". Sobre Henry Stafford, diz Loving:
   netic nourishing night!! Night of south winds -    night of the large   "Hoje, nossa visão da relação entre Whitman e [Stafford] pode
   few stars!/ Still nodding night -    mad naked summer       night."J    refletir... antes o interesse atual pelas possíveis tendências        ho-
   (LoG, p. 49)
                                                                           mossexuais de Whitman do que os fatos concretos".9
   220
                                                                                                                                           221
A meu ver, tanto Reynolds quanto Loving tratam a questão         exemplo, para deixarmos de ruminar os "detalhes íntimos", ou
   com um excesso de simplicidade. O que Loving chama de "de-           "fatos concretos", do que as outras pessoas fazem quando entram
   talhes íntimos" e Reynolds, um tanto mais delicadamente, de          no banheiro.
  "natureza das relações físicas" entre Whitman e os rapazes só              Noutras palavras, acreditar que os leitores da época de Whit-
  pode se referir a uma coisa: o que Whitman e os rapazes em            man deixaram de perceber do que realmente falavam seus poe-
  questão faziam com seus órgãos da amatividade quando se viam          mas de amor pode revelar mais sobre uma noção simplista do
  a sós. Se Comstock pode ser tratado como figura cômica, é só          que seja "realmente falar" de alguma coisa do que sobre os leito-
  porque, com sua estupidez, deixou de perceber o conteúdo ama-         res de Whitman.
  tivo subjacente às elevadas proclamações     adesivas dos poemas            A resposta de Peter Coviello à pergunta de como Whitman
  do Calamus.
                                                                        conseguiu escrever impunemente poemas sobre o amor entre
       Sem tomar o lado dos censores (embora ridicularizar Com-         pessoas do mesmo sexo é mais sutil do que as de Loving ou Rey-
  stock por "ostentar suíças e pança", como faz Reynolds, não te-       nolds, mas no fim das contas também erra o alvo. As ligações
  nha muito cabimento - uma vez que o próprio Whitman tam-              afetivas subjacentes tanto aos poemas do Calamus quanto aos
 bém exibia suas suíças, além de uma pança nada diminuta), não          Memoranda, afirma Coviello, "frustram as taxonomias disponí-
 será possível dizer que, entre os leitores que não se sentiram ofen-   veis das relações íntimas".
  didos pelos poemas do Calamus, alguns teriam deixado de perce-
  ber seu conteúdo amativo não porque concepções prévias daqui-             Houve a meu ver um excesso de preocupação      um tanto reles em
 lo em que devia consistir a intimidade entre homens os cegasse,            torno dessas ligações, devido em parte a um desejo de não des-
 mas porque não sentiam que lhes fosse necessário especular qual            crever de maneira anacrônica certos tipos de relações -   relações
 poderia ser o conteúdo amativo daquela intimidade, ou seja, por-           desejantes entre pessoas do mesmo sexo -     em termos que não
 que sua ideia de intimidade não dependia do que os homens em               eram correntes   no tempo de Whitman.      Mas essa bem-inten-
 questão faziam com seus órgãos sexuais?lO                                  cionada hesitação não devia levar-nos a encobrir as relações de
     É um lugar-comum       pós-vitoriano dizer que, desde a mais           Whitman entre os soldados com uma castidade forjada. (Fazê-Io
tenra idade, os vitorianos aprendiam a reprimir certos pensamen-            seria esquecer, em primeiro lugar, a relativa latitude concedi-
tos, especialmente os pensamentos sobre "os fatos da vida", a pon-          da aos homens em meados daquele século ... numa era em que a
to de deixar o próprio ar embaçado pela repressão sexual. Mas o             linguagem   mais punitiva do desvio sexual ainda não adquirira
anátema quanto à repressão é parte da agenda freudiana, uma                 ampla corrência.)u
das armas que Sigmund Freud forjou em sua guerra íntima con-
tra a geração dos seus pais. Com todo respeito a Freud, é perfei-            De fato, os homens da metade do século XIX gozavam de
tamente possível evitar tecer fantasias sobre a vida particular dos     uma liberdade que os homens da metade do século XX já não
outros, mesmo nossos pais, sem precisar reprimir essas fantasias        tinham: podiam beijar-se em público, podiam andar de mãos
e sofrer as consequências da repressão - sobre nossa vida psí-          dadas, podiam escrever poemas para outros homens motivados
quica. Não precisamos pagar nenhum alto preço psíquico, por             pelo amor mais profundo (o "In Memoriam" de Tennyson é um
    222
                                                                                                                                      223
desses casos), e podiam até dormir na mesma cama, sem que na-         embora esse ideal social jacksoniano se tornasse cada vez mais
 da disso os condenasse ao ostracismo social ou fosse punido por       fantasioso à medida que, em torno da metade do século, a nova
 alguma lei. Mas o que Coviello parece afirmar implicitamente é        economia industrial tornava-se dominante e a classe artesã na-
 que esse comportamento não era punido porque não teria sido           tiva -     para não falar do intenso fluxo de imigrantes do Velho
 mal interpretado:   especificamente,   não teria sido interpretado    Mundo - convertia-se no contingente dos operários assalaria-
 como um sinal de libertinagens nada castas com os órgãos ama-         dos da indústria.
 tivos a partir do momento em que as luzes se apagavam.                     Como repórter e editor na década de 1840 e no início da
      A pergunta a se fazer, porém, é se esse comportamento teria      seguinte, Whitman se envolveu com a ala política mais radical
 sido interpretado da forma que fosse, ou seja, submetido a um         do Partido Democrata. Em torno de 1855, porém, desencantado
 questionamento qualquer quanto à sua castidade ou incastidade.        com a falta de definição dos democratas em relação à escrava-
 Existe certa sofisticação, regi da por um consenso social tácito,     tura, abandonou a vida partidária. Na essência, a essa altura suas
 cuja natureza reside em simplesmente aceitar as coisas como se        convicções políticas estavam bem definidas: o mundo podia mu-
 apresentam.   É essa espécie de savoír-faíre social, cujo outro no-   dar à sua volta, mas ele não mudaria.
me poderia ser tato, que corremos o perigo de negar aos nossos              Apesar de sua oposição à escravatura, seria um excesso di-
antepassados da era vitoriana.                                         zer que Whitman estivesse à frente do seu tempo em sua visão
     Os estudiosos parecem concordar que, em algum momen-              da questão da raça. Nunca foi partidário do abolicionismo - na
to posterior a 1880, um novo paradigma opondo heterossexual a          verdade, costumava perorar contra o "fanatismo abominável"
homossexual, parte do que Coviello chama de "linguagem puni-           dos abolicionistas.13 O motivo do conflito entre o Norte e o Sul
tiva do desvio sexual", infiltrou-se no discurso cotidiano a partir    era estender o direito à posse de escravos aos novos estados do
da literatura ("científica") sexológica, e passou a ocupar a posi-     Oeste. Como a escravidão era antidemocrática em seus efeitos,
ção de distinção primária entre as variedades do erotismo. Qual        pois uma economia escravista era a seu ver a antítese de uma
seria o paradigma anterior é menos claro. Jonathan Ned Katz            economia de pequenos agricultores independentes,       Whitman
sugere que, nos primeiros tempos da era vitoriana, a distinção         apoiou a guerra contra os escravocratas. Não apoiava a guerra
dominante era de caráter antes moral que sexológica, e se dava         para conquistar uma posição justa numa ordem democrática pa-
entre de um lado o apaixonado e, do outro, o sensual; entre o ele-     ra os escravos negros.
vado e o rasteiro, entre o amor e a luxúria. Relações apaixonadas           Nem a condição do Sul em seguida à guerra foi para ele
entre homens ou mulheres não eram submetidas a questionamen-           motivo de regozijo. Lamentava a "imensurável degradação e in-
to enquanto permanecessem do tipo mais elevado e amoroso.l2            sulto" da Reconstrução, e deplorava "a dominação dos negros,
                                                                       mas pouco acima da das feras", cuja persistência não se podia
    Whitman, nascido em 1819, foi criado numa família de de-           permitir. Se a escravidão representara um problema terrível do
mocratas radicais. Ao longo de toda a vida acreditou numa Amé-         seu século, escreveu ele numa anotação de 1876 para seus Me-
rica de pequenos agricultores e artesãos independentes,     muito      moranda,   o que ocorreria "se a massa dos negros libertos nos

    224
                                                                                                                                 225
Estados Unidos representar por todo o século vindouro um pro-          cracia] é uma palavra cujo verdadeiro espírito ainda está adorme-
 blema ainda mais terrível e mais profundamente complicado?".           cido [...] É uma palavra esplêndida, cuja história, creio eu, ainda
 Embora não tenha reiterado sua proposta anterior à guerra, de          precisa ser escrita, porque ainda não aconteceu."15
 que a melhor solução para o "problema" dos negros da América                A democracia de Whitman é uma religião CÍvica energi-
 seria a criação de uma nação para eles em algum outro lugar,           zada por um sentimento erótico amplo que os homens sentem
 tampouco retirou o que dissera.14                                      pelas mulheres, as mulheres pelos homens e as mulheres por
       Os longos catálogos celebratórios de americanos entregues        outras mulheres, mas acima de tudo que os homens sentem pe-
 ao trabalho que encontramos na "Canção de mim mesmo" e em              los outros homens. Por esse motivo, a visão social que se mani-
 "Uma canção para profissões" tendem portanto a privilegiar             festa na sua poesia (a prosa é outra história) tem um colorido
 uma diversidade do trabalho cotidiano que, mesmo no lança-             erótico abrangente. A poesia atua através de uma espécie de en-
 mento da primeira edição de Folhas de relva em 1855, não refle-        cantamento erótico, atraindo seus leitores para um mundo onde
 tia mais a realidade: "O carpinteiro prepara a sua tábua ...! O        reina uma afeição mais ou menos benigna e mais ou menos pro-
 contramestre se ergue amparado na baleeira ...! A fiandeira recua      míscua de todos por todos. Mesmo a presença da morte em poe-
 e avança ao murmúrio da grande roda,! O agricultor... contem-          mas como "Do berço infindamente embalando" tem certo ape-
pla a aveia e o centeio ..." [The carpenter dresses his plank ...!The   lo erótico.
mate stands braced in the whale-boat...! The spinning-girl re-               Não admira que, em sua meia-idade, Whitman se apresen-
treats and advances to the hum of the big wheel,! The farmer...         tasse envolto numa aura de sábio e profeta (a longa barba ajuda-
looks at the oats and rye...]. Ainda assim, essa é a visão que Whit-    va), ou que atraísse tantos admiradores de sua arte poética como
man insiste em projetar como o futuro do país. Para ser o poeta         verdadeiros discípulos, os whitmanianos, congraçados num de-
da América, o poeta nacional, ele precisava fazer sua visão de          sapreço à vida moderna, em aspirações ao cósmico, e num desejo
um mundo que já se perdia no passado prevalecer sobre uma               de sexo melhor e mais frequente. Em sua biografia, Loving suge-
realidade cada vez mais ditada pelo mercado de trabalho huma-           re que Whitman chegou inclusive a introduzir em terras ame-
no e pela ideologia do individualismo competitivo. (LoG, p. 41)         ricanas o fenômeno da groupie, referindo-se a certa Susan Gar-
     O mais impressionante em face dessa tarefa irrealizável é o        net Smith, de Hartford, em Connecticutt, que sem mais escreveu
otimismo de Whitman. Até morrer ele parece ter acreditado que           para o poeta gay informando que seu ventre era "limpo e puro",
a força que dera origem à república, uma força a que dava o             e pronto para abrigar um filho seu. "Os anjos guardam o vestíbu-
nome de democracia, ainda haveria de prevalecer. Sua fé vinha           lo", garantiu-Ihe ela, "até que possas vir nele depositar o tesouro
de uma convicção, tanto mais forte quanto mais decrescia seu            mais precioso do mundo."16
interesse pela política, de que a democracia não era uma das in-              Enquanto isso, sob a presidência de Ulysses S. Grant, os
venções superficiais da razão humana,      mas um aspecto do es-        Estados Unidos se entregavam à ostentação mais irrestrita, e à
pírito do homem em permanente evolução, com sua origem em               caça ao dinheiro mais feroz de toda a chamada Época de Ouro,
eros. "Não tenho como me exceder quando repito que [demo-               entre o final da Guerra Civil e o começo da Primeira Grande

    226
                                                                                                                                   227
Guerra ..E Whitman via tudo isso com clareza. Ainda assim, em          gens mais ousadas, coisa com que jamais consentiu nos Estados
seu papel do Sábio de Camden e num espírito que Paul Zweig             Unidos.
chama de "otimismo congelado", ele continuava a formular suas
profecias em tom cósmico, para as quais uma leitura de Hegel                Reunir os próprios poemas e lançar uma coletânea de poe-
parece ter contribuído, insistindo em anunciar o triunfo da de-        mas reunidos não equivale a republicar todos aqueles que o autor
mocracia adesiva.'7                                                    escreveu na vida. Por convenção, o autor que organiza a coletânea
                                                                       tem o direito de revisar poemas antigos e omitir sem explicação
      Embora Whitman só tivesse uma educação formal precá-             aqueles que ele ou ela não deseja mais reconhecer. Os Poemas reu-
ria, seria um erro considerá-Io inculto ou intelectualmente pro-       nidos são, assim, uma forma prática de moldar o próprio passado.
vinciano. Pela maior parte da sua vida ele foi dono do próprio             Whitman      parece ter tido em mente desde o início que as
tempo, que empregava em leituras onívoras. Apesar de sua pose          Folhas de relva podiam ser uma coletânea em progresso, que
de trabalhador, convivia tanto com artistas e escritores quanto        crescia e se alterava conforme mudava sua concepção de si mes-
com o que definia como "roughs" (literalmente, "os rudes"). Du-        mo. O livro teve ao todo seis edições, várias das quais ocorre-
rante seus anos de jornalista, escreveu críticas a centenas de li-     ram em formas variantes na medida em que Whitman costura-
vros, entre eles obras sérias de filosofia e crítica social. Acompa-   va novos poemas a volumes já impressos. É difícil saber - e de
nhava as principais revistas britânicas e mantinha-se atualizado       certa maneira é um erro perguntar - qual das seis será a me-
em relação às correntes do pensamento europeu. Na década de            lhor, qual devemos ler à exclusão das demais, pois elas represen-
1840 deixou-se seduzir pelos escritos de Thomas Carlyle - co-          tam seis formulações e reformulações de quem era Walt Whit-
mo tantos outros jovens irrequietos - e adotou as posições críti-      mano Um exemplo simples: enquanto em 1855 ele era "Walt
cas de Carlyle ao capitalismo e ao industrialismo. Os fracassos        Whitman, um americano, um dos rudes, um kosmos", em 1881
das revoluções europeias de 1848 o abalaram seriamente. Dos            ele era "Walt Whitman, um kosmos, de Manhattan o filho".,8
escritores do seu tempo, os dois que o influenciaram mais pro-         ("Que [Whitman] seja um kosmos já é uma notícia para a qual
fundamente e para com os quais tinha mais dificuldade em reco-         não estávamos devidamente preparados. Precisamente o que se-
nhecer suas dívidas foram um americano, Emerson, e um inglês,          ja um kosmos, esperamos que [ele] aproveite a primeira ocasião
Tennyson.                                                              para informar ao público impaciente", escreveu Charles Eliot
      Embora tenha proclamado, e na verdade alardeado, a auto-         Norton numa crítica à edição de 1855.)'9
nomia cultural da América, Whitman sentia uma profunda atra-                A regra corrente no mundo acadêmico recomenda a ado-
ção pela ideia de uma turnê triunfal de leituras pela Inglaterra.       ção da última edição revista pelo autor - sua última palavra -
Se tal turnê jamais ocorreu, não foi porque lhe faltassem segui-        como a versão definitiva de uma obra. Mas há exceções, casos
dores naquele país e sim porque, como forma de entretenimen-            em que o consenso crítico é de que a derradeira revisão ou é in-
to, as leituras de celebridades nunca tiveram lá o mesmo suces-         ferior ou mesmo trai a versão original. Assim, o mais comum é
so que nos Estados Unidos. Em benefício de sua publicação na            que se leia a versão de 1805 do poema autobiográfico de Words-
Inglaterra, concordou em expurgar Folhas de relva de suas passa-        worth The prelude, preferida à forma revista em 1850. E, de modo

    228                                                                                                                          229
muito semelhante,   poderíamos argumentar     em favor da leitura
  dos primeiros poemas de Whitman em sua forma originalmen-            15.William Faulkner e seus
  te publicada, uma vez que a tendência do poeta, a partir de 1865,
  passou a ser revisar seus versos na direção do "poético" (a saber,
                                                                       biógrafos
  o tennysoniano), na esperança de conquistar um contingente mais
  vasto de leitores.

      Whitman pretendia que a sexta edição das Folhas de relva
 fosse a definitiva. Publicada em Boston em 1881, a edição foi re-
 tirada do mercado quando ameaçada de processo por obscenida-
 de. Whitman encontrou um novo editor em Filadélfia, onde sua
 súbita notoriedade fez maravilhas pela venda do livro.
      Essa sexta edição contém cerca de trezentos poemas, agru-
 pados por temas e numa série numerada. Seu núcleo é consti-
 tuído pelos sobreviventes dos doze poemas da primeira edição
 ele 1855, principalmente o longo poema mais tarde intitulaelo
                                                                             "Agora percebo pela primeira vez", escreveu William Faulk-
  "Canção de mim mesmo" e "Travessia da barca elo Brooklyn"
                                                                       ner para uma amiga, refletindo a partir de seus cinquenta e tantos
 ("Crossing Brooklyn Ferry", acrescentado em 1856); "Do berço
                                                                       anos, "que dom impressionante eu tive: sem contar com nenhu-
 infindamente embalando" ("Out of the Cradle Endlessly Rock-
 ing") e os poemas amativos (acrescentados em 186o); e "Da últi-       ma educação em qualquer sentido formal, sem ter companheiros
 ma vez que lilases floriram no pátio" ("When Lilacs Last in the       muito letrados, quanto mais literários, e ainda assim ter criado o
Dooryard Bloom'd") e os poemas "Drum-Taps" (acrescentados              que criei. Não sei de onde isso veio. Não sei por que Deus ou os
a vários exemplares da edição de 1867).                                deuses, ou quem quer que tenha sido, escolheu-me para receber
    Esse núcleo não é grande. Apesar de todo o empenho que             essa graça.'"
Whitman investiu nas tarefas de reavaliar, reordenar, reintitular           A perplexidade que Faulkner alega aqui é um tanto incon-
e republicar seus poemas, e apesar da afirmativa que tanto gosta-      vincente. Para o tipo de escritor que ele desejava ser tinha toda a
va de repetir em seus derradeiros anos, de que havia em Folhas         formação, e inclusive todo o conhecimento livresco, de que ne-
de relva uma estrutura oculta, semelhante     à de uma catedral,       cessitava. Quanto à companhia, tendia a lucrar mais com a com-
que ele passara a vida inteira perseguindo, parece provável que,       panhia de veteranos tagarelas de dedos retorcidos e longas me-
com a exceção dos especialistas, Whitman será sempre mais co-          mórias do que em conversas com alquebrados líttérateurs. Ainda
nhecido por alguns poemas isolados do que como o autor de um           assim, cabe aqui certa medida de espanto. Quem teria adivinha-
grande livro, a nova bíblia poética da América.                        do que um jovem sem muita distinção intelectual de uma cida-
                                                                       de pequena do Mississippi acabaria por se tornar não só um es-
                                                           (2°°5)      critor famoso, celebrado em seu país e no exterior, mas o tipo de

    23°
                                                                                                                                  231
escritor em que acabou por se transformar: um dos inovadores       piloto e participar de combates aéreos contra os alemães, candi-
 mais radicais dos anais da ficção americana, um escritor que da-   datou-se à Royal Air Force em 1918. Desesperado por novos com-
 ria lições à vanguarda da Europa e da América Latina?              batentes, o escritório de recrutamento da RAF mandou-o para
       De educação formal Faulkner certamente teve um míni-         um curso de treinamento em solo canadense. Antes que ele pu-
 mo. Abandonou a escola secundária no primeiro ano do colegial      desse fazer seu primeiro voa solo, porém, a guerra acabou.
 (seus pais não parecem ter feito muito caso), e, embora tenha           E ei-lo de volta a Oxford, envergando o uniforme de oficial
 frequentado brevemente a Universidade do Mississippi, foi só       da RAF, ostentando um sotaque britânico e puxando de uma per-
 graças a uma permissão especial para os militares que voltavam     na, consequência, dizia ele, de um acidente aéreo. Aos mais pró-
 da guerra (sobre as atividades militares de Faulkner na guerra,    ximos, revelava ainda que lhe tinham colocado uma placa de
 ver mais adiante). Sua ficha universitária não revela distinção:   aço no crânio.
 um único semestre de inglês (nota: D), dois semestres de francês        Sustentou a lenda do aviador por muitos anos; só começaria
 e espanhol. Para esse grande explorador do espírito do Sul do      a deixar de divulgá-Ia quando se transformou em figura nacional
 pós-guerra, nenhum curso de história; para esse romancista ca-     e o risco de ser desmascarado ficou grande demais. Seus sonhos
 paz de entretecer o tempo bergsoniano na sintaxe da memória,       de voar, contudo, não foram abandonados. Assim que reuniu
 nenhum estudo de filosofia ou psicologia.                          dinheiro suficiente, em 1933, fez aulas de pilotagem, comprou
     O que o sonhador BiIIy Faulkner escolheu, no lugar da ins-     seu próprio avião e operou por um curto tempo um circo voa-
trução formal, foi uma leitura limitada mas intensa da poesia       dor: "CIRCO AÉREO DE WILLIAM FAULKNER (Famoso Escritor)",
inglesa do fin de siecle, especialmente Swinburne e Housman,        dizia o anúncio.2
e de três romancistas que criaram mundos ficcionais vívidos e            Os biógrafos de Faulkner deram relevo excessivo às suas his-
coerentes o bastante para rivalizar com o mundo real: Balzac,       tórias de guerra, tratando-as como mais do que simples inven-
Dickens e Comad. Some-se a isso sua familiaridade com as ca-        ções de um jovem frágil e pouco imponente desesperadamente
dências do Antigo Testamento, Shakespeare e Moby-Dick e, alguns     necessitado da admiração alheia. Frederick R. KarI acredita que
anos mais tarde, um rápido estudo do que seus contemporâneos        "a guerra transformou [Faulkner] num contador de histórias,
mais velhos T. S. Eliot e James Joyce andavam aprontando, e         um ficcionista, o que pode ter sido o momento decisivo da sua
ei-lo totalmente armado. Quanto ao material, o que ouvia à sua      vida". (p. m) A facilidade com que conseguiu lograr os bons
volta em Oxford, Mississippi revelou-se mais que suficiente: a      habitantes de Oxford, diz KarI, provou para Faulknex que, quan-
epopeia, interminavelmente contada e recontada, do Sul, uma         do é criada com arte e exposta de maneira convincente, a men-
história de crueldade, injustiça, esperança, decepção, vitimiza-    tira pode suplantar a verdade, e assim é possível não só criar uma
ção e resistência.
                                                                    vida como ainda ganhar a vida com a fantasia.
                                                                         De volta à cidade natal, Faulkner se viu à deriva. Escrevia
     BiIIy Faulkner mal deixara os bancos escolares quando ecIo-    poemas sobre mulheres "epicenas" (o que aparentemente se re-
diu a Primeira Guerra Mundial. Cativado pela ideia de se tornar     feria a seus quadris estreitos) e o desejo constante que lhe des-

    232
                                                                                                                              233
pertavam, poemas que, mesmo com a maior boa vontade do                     Em 1925, Faulkner faz sua primeira viagem ao estrangeiro.
 mundo, não podem ser qualificados de promissores; começou a           Passa dois meses em Paris e gosta da cidade: compra uma boina,
 assinar-se não "Falkner", como tinha nascido, mas "Faulkner"          deixa crescer a barba e começa a trabalhar num romance - lo-
 e, fiel ao padrão dos homens da família Falkner, bebia muito.         go abandonado - sobre um pintor ferido na guerra que vai para
 Por alguns anos, até ser dispensado por seu desempenho        insa-   Paris aperfeiçoar-se. Frequenta o café favorito de James Joyce, e
 tisfatório, conservou uma sinecura como chefe de um pequeno           chega a ver lá o grande homem, mas não o aborda.
 posto dos Correios, onde passava o horário comercial lendo e               No fim das contas, nenhum elemento da história conheci-
 escrevendo.
                                                                       da sugere algo além de um pretendente a escritor de obstinação
     Para alguém tão determinado a seguir suas próprias inclina-       incomum mas sem grande talento. No entanto, logo depois da
 ções, é estranho que, em vez de fazer as malas e seguir o rumo        sua volta aos Estados Unidos ele se sentaria e escreveria um es-
indicado pelas luzes fortes da metrópole, ele tenha decidido per-      boço de 14 mil palavras repleto de ideias e personagens que ser-
manecer na pequena cidade onde nasceu, onde suas pretensões            viria de base para toda a série de grandes romances dos anos de
só despertavam o humor sardônico dos vizinhos. Jay Parini, seu         1929 a 1942. O manuscrito    continha, em embrião, o Condado
biógrafo mais recente, sugere que devia achar difícil distanciar-se    de Yoknapatawpha.
da mãe, mulher de alguma sensibilidade que parece ter mantido
uma relação mais profunda com o filho mais velho que com o                 Na infância, Faulkner era inseparável de uma amiga um
marido tedioso e submisso.3                                            pouco mais velha chamada Estelle Oldham. Os dois, de certa
     Em idas a Nova Orleans,      Faulkner criou um círculo de         forma, eram noivos. Quando chegou a hora, porém, os pais de
amigos boêmios e conheceu      Sherwood Anderson, cronista de          Estelle, descontentes com o jovem inquieto, casaram a filha com
Winesburg,   Ohio, cuja influência    mais tarde faria o possível      um advogado de melhores perspectivas. Assim, quando Estelle
para minimizar. Começou a publicar textos curtos na impren-            voltou para a casa dos pais já divorciada, tinha 32 anos e dois fi-
sa de Nova Orleans; chegou até a se arriscar em teoria literária.      lhos pequenos.
Willard Huntingdon     Wright, discípulo de Walter Pater, cau-              Embora Faulkner pareça ter tido dúvidas quanto à sensatez
sou-lhe forte impressão. No livro de Wright, The Creative Will         de reatar com Estelle, não agiu de acordo com elas, e em pouco
(1915), leu que o verdadeiro artista é solitário por natureza, "um     tempo os dois estavam casados. Estelle também pode ter tido as
deus onipotente que molda e dá forma ao destino de um mun-             suas dúvidas. Durante a lua de mel, pode ou não ter tentado
do novo, e o comanda até chegar a uma completude        inevitável     matar-se por afogamento. O casamento acabou sendo infeliz, e
em que passa a sustentar-se por si só, independente, responden-        pior ainda que infeliz. "Eles eram simplesmente desajustados
do pelo seu próprio movimento", exaltando o espírito do seu            de forma terrível um ao outro", contou a filha do casal, Jill, a Pa-
criador.4 O tipo do artista-demiurgo, sugere Wright, é Balzac,         rini muitos anos mais tarde. "Nada dava certo naquele casamen-
muito preferível a Émile Zola, um mero copista de uma reali-           to." (Parini, p. 130) Estelle era Uma mulher inteligente, mas estava
dade preexistente.                                                     acostumada a gastar dinheiro a rodo e a ter criados para atende-

    234                                                                                                                            235
rem a todos os seus desejos. A vida numa velha casa dilapidada        mamente, definia como "toda uma tribo ... pairando em círculos
com um marido que passava as manhãs escrevinhando e as tardes         como um bando de abutres em torno de cada centavo que eu
trocando vigas carcomidas e consertando o encanamento deve            ganho", ao mesmo tempo em que atendia a seu daímon interior.
ter sido um choque para ela. Uma primeira criança nasceu, mas         Apesar de uma capacidade apolínea de mergulhar em seu tra-
morreu com duas semanas. Jill nasceu em 1933. A partir de en-         balho - era "um monstro de eficiência", como o define Parini
tão, as relações sexuais entre os Faulkner parecem ter cessado.       -   tanta atividade o desgastava demais. A fim de alimentar os
     Juntos e cada um por si, William e Estelle bebiam em ex-         abutres, o único grande gênio da literatura americana da déca-
cesso. Na meia-idade,    Estelle reformou-se   e parou de beber;      da de 1930 precisou deixar de lado seus romances, tudo que real-
William nunca chegou a esse ponto. Tinha casos com mulheres           mente lhe importava, primeiro para criar contos para revistas
mais novas e não era competente ou cuidadoso para escondê-Ios.        populares e, mais tarde, para trabalhar como roteirista em Holly-
Das cenas de ciúme furioso, o casamento foi minguando, degrau         wood. (Parini, pp. 319,139)
a degrau, nas palavras do primeiro biógrafo de Faulkner, Joseph
Blotner, até se transformar "numa vaga guerra de guerrilhas do-           E o problema nem era tanto que Faulkner não fosse devi-
méstica". (p. 537)                                                    damente apreciado pela comunidade das letras, mas que não
     Ainda assim, por 33 anos, até a morte de Faulkner, em 1962,      houvesse espaço na economia dos anos 1930 para a profissão de
o casamento resistiu. Por quê? A explicação mais rasteira é que,      romancista de vanguarda (hoje Faulkner seria candidato natu-
até quase o final da década de 1950, Faulkner não tinha como          ral a alguma bolsa generosa). Os editores, revisores e agentes de
pagar as despesas oriundas de um divórcio: não poderia dar-se         Faulkner - com uma única e miserável exceção - zelavam por
ao luxo de manter - além das tropas de Falkner ou Faulkner,           seus interesses e faziam o possível para ajudá-Io, mas nunca era
para não falar dos Oldham, dependentes      de seus ganhos -    Es-   o bastante. Foi só depois da publicação de The Portable Faulkner,
telle e seus três filhos no estilo que ela teria exigido e, ainda,    uma coletânea habilidosamente organizada por Malcolm Cowley
tornar a situar-se de maneira decente na sociedade. Menos facil-      em 1945, que os leitores americanos se deram conta do que ti-
mente demonstrável é a afirmação de Karl de que, em algum             nham a seu alcance.
nível profundo, Faulkner precisava de Estelle. "Estelle nunca              O tempo empregado      escrevendo contos não fora de todo
pôde ser dissociada das camadas mais profundas da imaginação          desperdiçado. Faulkner era um revisor extraordinariamente te-
[de Faulkner]", escreve Karl. "Sem Estelle ... ele não teria conse-   naz da própria obra (em Hollywood, impressionava por sua ca-
guido continuar [a escrever]." Ela era sua belle dame sans merGÍ      pacidade de consertar roteiros mal-sucedidos de outros escrito-
- "aquele objeto ideal que o homem adora a distância mas que          res). Revisitados, reconcebidos e retrabalhados, textos publicados
também ... o destrói". (p. 86)                                        originalmente em revistas como The Saturday Eveníng Post ou
     Ao decidir casar-se com Estelle, ao decidir radicar-se em        The Woman's Home Companíon retomaram à superfície trans-
Oxford em meio ao clã dos Falkner, Faulkner aceitou um desa-          figurados em The Unvanquished [Os invencidos, 1938], O po-
fio gigantesco: ser patrono, provedor e paterfamílías do que, inti-   voado (1940) e Desça, Moisés (1942), livros com um pé de cada

    236                                                                                                                         237
lado da divisa entre a coletânea de contos e o romance propria-       tema tão forte na vida de Faulkner quanto na sua literatura, mas
 mente dito.
                                                                       existe o que se pode chamar de lealdade enlouqueci da, ou fide-
      O mesmo potencial submerso já não pode ser encontra-             lidade enlouquecida (de que o Sul ConfederacIo estava cheio
 do nos seus roteiros. Quando chegou a HolIywood em 1932, ca-          de exemplos).
 valgando sua transitória notoriedade como autor de Sanctuary               Com efeito, Faulkner passou sua meia-idade como um tra-
 [Santuário, 1931], Faulkner nada sabia sobre a indústria local (na    balhador migrante que remetia, todo mês, seu pagamento para o
 verdade, ele desprezava o cinema tanto quanto desgostava de           Mississippi; seus registros autobiográficos são, em grande parte,
 música berrante). Não tinha facilidade para criar diálogos ágeis.     uma contabilidade de dólares e centavos. Nas preocupações de
 Além do mais, logo adquiriu uma fama de excêntrico e indigno          Faulkner com o dinheiro Parini percebe, corretamente, uma ab-
 de confiança. Depois de chegar a um máximo de mil dólares por         sorção mais profunda. "Raramente o dinheiro é apenas dinhei-
 semana, em 1942 seu salário caíra a trezentos. Ao longo de treze      ro", escreve Parini. "A obsessão com o dinheiro que parece per-
 anos de carreira, trabalhou com diretores que lhe eram simpáti-       seguir Faulkner por toda a vida deve ser entendida, a meu ver,
 cos, como Howard Hawks, travou amizade com atores célebres            como uma medida de seus sentimentos cambiáveis de estabili-
 como Clark Gable e Humphrey Bogart, adquiriu uma atraente             dacIe, valor, domínio do mundo ... uma forma de avaliar sua re-
e atenciosa amante holIywoodiana; mas nada que tenha escrito           putação, seu poder, sua realidade." (pp. 295-6)
para o cinema merece ser resgatado.
     Pior ainda: os roteiros tiveram um efeito negativo sobre a             A posição de escritor residente em algum tranquilo cam-
sua prosa. Durante os anos da guerra, Faulkner trabalhou numa          pus universitário do Sul poderia ter sido a salvação para William
sucessão de roteiros de caráter exortatório, inspiracional e patrió-   Faulkner, trazendo-lhe uma renda constante sem exigir muito
tico. Seria um erro atribuir a esses projetos toda a culpa da re-      em troca, dando-lhe tempo para o seu trabalho. Previdente, Ro-
tórica excessiva que prejudica sua prosa tardia, mas ele próprio       bert Frost vinha demonstrando desde 1917 que era possível abrir
acabaria reconhecendo o mal que HoIIywood lhe fizera. "Com-            mão da aura de bardo em troca de uma sinecura acadêmica. No
preendi recentemente o quanto escrever lixo e textos ordinários        entanto, carecendo de um diploma secundário, desconfiado de
para o cinema corrompeu a minha escrita", admitiu em 1947.5            todas as conversas que lhe soassem muito "literárias" ou "intelec-
     Não há nada de incomum na história das dificuldades de            tuais", Faulkner só voltaria a frequentar os jardins da academia a
Faulkner para pagar suas contas. Desde o início ele se via como        partir de 1946, quando foi convencido a falar para os alunos da
um poete maudit, e o destino do poete maudit é ser desconsi-           Universidade do Mississippi. A experiência não foi tão desagra-
derado e mal pago. O surpreendente é que os fardos que se via          dável quanto ele temia; aos sessenta anos, em troca de um salário
obrigado a carregar - a mulher gastadeira, os parentes sem tos-        mais ou menos nominal, ele entrou para a Universidade da Virgi-
tão, os contratos desvantajosos com os estúdios - fossem supor-        nia como escritor residente, posição que conservaria até a morte.
tados com tamanha tenacidade (embora com muitas queixas em                  Uma das ironias da vida desse acadêmico retardatário é que
paralelo), mesmo em detrimento da sua arte. A lealdade é um            ele provavelmente   tinha lido bem mais, embora menos siste-

    238
                                                                                                                                 239
maticamente, que a maioria dos professores universitários. Em       acreditam no resto do planeta, eu talvez até pudesse lançar uma
 Hollywood, contava o ator Anthony Quinn, embora não fosse           das minhas personagens candidata à Presidência ... FIem Snopes,
visto como um grande roteirista, Faulkner tinha "uma reputação       quem sabe?".?
tremenda como intelectual". Outra ironia é que Faulkner foi              Menos impressionantes    eram as intervenções de Faulkner
adotado pela chamada Nova Crítica (New Criticism) como um            em seu próprio país. A pressão de mudança sobre o Sul e suas
mestre do tipo de prosa ideal para ser dissecado em aulas da uni-    instituições segregadas vinha crescendo. Em cartas a editores de
versidade. "Revelando tudo que foi meticulosa e engenhosa-           jornais, Faulkner começou a se pronunciar contra os abusos do
mente incluído no texto pelo autor", proclama com entusiasmo         racismo e a instar os demais brancos do Sul a aceitarem a igual-
Cleanth Brooks, decano da Nova Crítica. E desse modo Faulkner        dade social dos negros.
se transformou no favorito dos formalistas de New Haven, assim            O que provocou uma reação. "Weeping Willie Faulkner" [o
como já era o favorito dos existencialistas franceses, mesmo sem     lacrimoso Willie Faulkner] logo foi tachado de fantoche dos li-
ter uma noção muito exata do que fossem o formalismo ou o            berais do Norte e simpatizante   do comunismo.   Embora nunca
existencialismo.6                                                    tenha chegado a correr perigo físico, contou (numa carta a um
                                                                     amigo sueco) que chegou a prever o tempo em que se veria obri-
     O Prêmio Nobel de literatura, que foi concedido a Faulk-        gado a fugir do país "um pouco como os judeus precisaram fugir
ner em 1949 e entregue em 1950, tornou-o famoso inclusive na         da Alemanha de Hitler".8
América. Turistas passaram a vir de longe para boquiabrir-se               Estava exagerando, claro. Suas opiniões sobre a questão ra-
diante da sua casa em Oxford, para sua vasta irritação. Com gran-    cial nunca foram radicais e, à medida que a atmosfera política ia
de relutância, emergiu das sombras e começou a comportar-se          ficando mais carregada, envolvendo a questão dos direitos dos
como figura pública. Do Departamento     de Estado chegaram-lhe      estados, recaíram numa certa confusão. A segregação era um
convites para viagens ao exterior como embaixador cultural, que      mal, dizia ele; ainda assim, se a integração fosse imposta ao Sul
aceitava sem muita convição. Nervoso diante dos microfones, e        ele resistiria (num momento de exaltação, chegou a dizer que
mais nervoso ainda ao enfrentar perguntas de ordem "literária",      "pegaria em armas"). Ao final da década de 1950, sua posição era
preparava-se para essas sessões bebendo profusamente.      No en-    tão anacrônica que se tornou francamente excêntrica. Segundo
tanto, a partir do momento em que desenvolveu uma arenga que         ele, o movimento dos direitos civis devia adotar como palavras
lhe permitia fazer frente aos jornalistas, passou a sentir-se mais   de ordem decência, discrição, cortesia e dignidade; os negros
confortável no novo papel. Tinha pouca informação sobre polí-        precisavam "aprender a merecer" a igualdade.
tica externa - não lia jornais -, mas isso até convinha ao De-            É muito fácil desqualificar os arroubos de Faulkner quanto
partamento de Estado. Sua viagem ao Japão foi um sucesso no-         à questão das relações raciais. Em sua vida pessoal, seu compor-
tável de relações públicas; na França e na Itália, recebeu uma       tamento   quanto aos afro-americanos     parece ter sido sempre
atenção maciça da imprensa. Como comentou em tom sardôni-            generoso e gentil, mas, como não podia deixar de ser, condes-
co: "Se na América acreditassem no meu mundo tanto quanto            cendente: afinal, pertencia à classe dos patrans. Em sua filosofia

    24°                                                                                                                        241
política, era um individualista jeffersoniano; e era isso, mais que        Enquanto historiador do Sul moderno, o maior triunfo de
 qualquer resíduo de racismo em seu sangue, que o fazia descon-        Faulkner é a chamada "trilogia dos Snopes": O povoado (1942);
 fiar dos movimentos negros de massa. Embora seus escrúpulos           A cidade (1957); e A mansão (1959), em que ele acompanha a
 e equívocos logo o tenham tornado irrelevante para a luta pelos       tomada do poder político por uma classe ascendente de brancos
 direitos civis, foi corajoso da parte dele assumir uma posição cla-   pobres numa revolução tão silenciosa, implacável e amoral co-
 ra no momento em que se manifestou. Suas declarações públi-           mo uma invasão de cupins. Sua crônica da ascensão do pequeno
 cas o transformaram numa espécie de pá ria em sua cidade natal,       empresário é ao mesmo tempo mordaz e elegíaca, além de de-
 e tiveram bastante a ver com sua decisão de, após a morte de sua      sesperada: mordaz porque ele detesta a situação, ao mesmo tem-
 mãe em 1960, deixar o estado do Mississippi e mudar-se para a         po em que se deixa fascinar pelo que vê; elegíaca porque adora o
Virginia. (Ao mesmo tempo, é bom lembrar, a ideia de cavalgar          antigo mundo que está sendo devorado diante dos seus olhos; e
atrás dos cães nas famosas caçadas do condado de Albermarle            desesperada por muitos motivos, entre os quais, antes de tudo, o
era um poderoso atrativo: em seus últimos anos, Faulkner consi-        fato de o Sul que ele tanto ama ter sido construído, como ele
derava-se praticamente esgotado como escritor, e a caça à raposa       sabe melhor que ninguém, com base no duplo crime da expro-
se transformou na nova paixão da sua vida.)                            priação e da escravidão; segundo, que os Snopes não passam de
                                                                       outro avatar dos Falkner, ladrões e predadores da terra no passado;
     As intervenções de Faulkner nas questões públicas eram ine-       e portanto, terceiro, que ele, William "Faulkner", não tem a me-
ficazes não porque ele fosse uma nulidade em matéria de políti-        nor base em que se apoiar para afirmar-se como crítico e juiz.
ca, mas porque o veículo apropriado para as suas visões políticas           A menos que recorra às verdades eternas. "Coragem e hon-
não era o ensaio, muito menos a carta ao editor, mas o romance,        ra e orgulho, e devoção e amor à justiça e à liberdade" é a litania
e mais especificamente o tipo de romançe que ele inventou, com         de virtudes recitada em Desça, Moisés por Ike McCaslin, basica-
seus recursos retóricas inigualáveis para entrelaçar o passado e o     mente um porta-voz da identidade ideal que Faulkner almeja-
presente, a memória e o desejo.                                        va - um homem que, depois de passar em revista a sua história
     O território em que o romancista Faulkner lançava mão dos         e o mundo restrito (e que encolhia cada vez mais) à sua volta,
seus melhores recursos era um Sul marcado por uma forte seme-          renuncia a seu patrimônio, abjura a paternidade (pondo fim des-
lhança com o Sul verdadeiro do seu tempo - ou pelo menos               se modo à processão de gerações) e se transforma num simples
o Sul da sua juventude -, mas que não era a totalidade do Sul.         carpinteiro.9
O Sul de Faulkner é um Sul branco assombrado por presenças                   Coragem e honra e orgulho: a essa litania Ike poderia acres-
negras. Mesmo Luz em agosto, seu romance que aborda mais               centar a persistência, como faz em outro ponto da narrativa: "Per-
diretamente a questão da raça e do racismo, tem no centro não          sistência ... e devoção e tolerância e comedimento e fidelidade e
um negro, mas um homem cujo destino é enfrentar ou ser con-            amor pelas crianças ...". (p. 225) Existe uma forte veia moralista
frontado pela negritude como uma interpelação dos outros, uma          na obra tardia de Faulkner, um humanismo cristão reduzido ao
acusação de fora para dentro.                                          essencial a que o autor se aferrava com obstinação num mundo

    242                                                                                                                           243
de que Deus se ausentou. E sempre que esse moralismo se mos-            Como observa Karl com justeza, Faulkner é "o mais histó-
 tra inconvincente, como ocorre tantas vezes, geralmente é por-     rico dos escritores [americanos] importantes"; nesse espírito, ele
 que Faulkner não conseguiu encontrar um veículo ficcional ade-     trata Faulkner como um americano que responde através da sua
 quado para ele. As frustrações que sentiu ao compor A Fable        criação às forças históricas e sociais que o cercam. (p. 666) Na
 [Uma fábula], escrito em 1944-53 e publicado em 1954, destina-     qualidade de biógrafo literário, o que ele tenta compreender é
 do a seu ver a tornar-se seu magnum opus, deveram-se precisa-      de que maneira um homem tão profundamente desconfiado da
 mente às suas dificuldades para encontrar um modo de dar cor-      modernização e do que ela causou ao Sul poderia ao mesmo tem-
po a seu tema de oposição à guerra. A figura exemplar em A          po, em sua prática de romancista, ter sido um modernista radical.
Fable é Jesus reencarnado e ressacrificado na forma do solda-            O Faulkner de Karl emerge como uma figura patética mas
do desconhecido; noutras passagens de sua obra tardia, é o negro    dotada de grandeza, um homem que, talvez por força da ima-
simples e sofredor ou, mais frequentemente, uma mulher negra        gem romântica do artista maldito, mostrou-se disposto a sacrifi-
que, ao suportar um presente insuportável, mantém vivo o ger-       car-se para levar até o fim um destino que teria provocado a fuga
me de um futuro.
                                                                    em qualquer pessoa racional. Mas o livro de Karl é prejudicado
                                                                    por uma constante psicologização redutiva. Por exemplo: a cali-
    Para um homem que teve uma vida sem grandes aconteci-           grafia clara de Faulkner - o sonho de qualquer editor - é apre-
mentos e em sua maior parte sedentária, William Faulkner mo-        sentada como indício de uma personalidade anal; suas mentiras
bilizou prodigiosas energias biográficas. O primeiro desses monu-   inconsequentes sobre suas façanhas na RAF, como um sinal de
mentos biográficos foi-lhe erguido em 1974 por Joseph Blotner,      personalidade esquizoide; sua atenção para com os detalhes, co-
um colega mais jovem da Universidade de Virginia por quem           mo uma prova de obsessividade; seu caso com uma mulher mais
Faulkner sentia uma confiança e um afeto evidentes, e cujo livro    jovem, como indício claro de seus desejos incestuosos pela pró-
em dois volumes, Faulkner: A Biography, traz um tratamento          pria filha.
completo e justo da vida aparente de seu biografado. No entan-          "Muitas vezes, um romance menor pode trazer mais reve-
to, mesmo a forma condensada pelo próprio Blotner, num único        lações biográficas decisivas que um dos mais importantes", diz
volume e em 400 mil palavras (1984), pode revelar-se excessiva-     Karl. (p. 75) Se é assim - e não são muitos os biógrafos de hoje
mente rica em detalhes para a maioria dos leitores.                 que discordariam -, temos aqui um problema de ordem geral
     O volumoso tomo de Frederick R. Karl, Wílliam Faulkner:        quanto à biografia literária e à validade de suas chamadas per-
American Writer (1989), afirma ter por finalidade "compreender      cepções biográficas. Afinal, se a obra menor parece revelar mais
e interpretar a vida [de Faulkner] psicológica, emocional e lite-   que a maior, aquilo que ela revela não merecerá apenas ser co-
rariamente". (p. xv) Há muito de admirável no livro de Karl, in-    nhecido de maneira menor? Faulkner - para quem as odes de
clusive audazes incursões ao labirinto das práticas composicio-     John Keats eram uma obra-prima poética -       talvez fosse de fa-
nais de Faulkner, que envolviam trabalhar em vários projetos ao     to o que julgava ser: um ser de aptidão negativa, um ser que se
mesmo tempo, transferindo material de um para outro.                dissolvia, que se perdia, em suas criações mais profundas. "Mi-

    244                                                                                                                      245
nha ambição é ser um indivíduo reservado, abolido e expurgado         vaneio exaltado". Embora não caia de modo algum na hagiogra-
da história, deixando-a sem marca", escreveu ele a Cowley. "Mi-       fia, seu livro traz um tributo eloquente ao biografado: "O que
nha meta é ... que o resumo e a história da minha vida ... possam     mais impressiona em Faulkner como escritor é sua mera persis-
ser: produziu seus livros e morreu."lO                                tência, a força de vontade que o trazia de volta à mesa de traba-
                                                                      lho a cada dia, ano após ano [...] [Sua] energia era [...] tanto físi-
    Jay Parini é autor de biografias de John Steinbeck (1994) e       ca quanto mental; progredia como um boi avançando pela lama,
Robert Frost (1999), e de dois romances com forte conteúdo bio-       puxando todo um mundo atrás de si". (pp. 261,429)
gráfico: A última estação (1990), sobre os últimos dias de Liev            Num livro de não especialista como esse, uma das primei-
Tolstói, eA travessia de Benjamin (1997), sobre os últimos dias de    ras decisões que o autor precisa tomar é se deverá refletir o con-
Walter Benjamin.H                                                     senso crítico ou assumir uma linha marcadamente individual.
     A vida de Steinbeck segundo Parini é sólida mas sem nada         Quase sempre, Parini escolhe uma versão da opção pelo consen-
de notável. O livro sobre Frost é mais autorreflexivo: a biografia,   so. Seu esquema é acompanhar a vida de Faulkner em ordem
reflete Parini, pode ser menos a forma de historiografia que cos-     cronológica, interrompendo a narrativa com curtos ensaios críti-
tumamos imaginar, e mais como a composição de um romance.             cos introdutórios sobre cada uma de suas obras. Nas mãos certas,
De seus próprios romances biográficos, o que fala de Tolstói é        esse esquema poderia ter resultado numa amostra exemplar da
o mais bem-sucedido, talvez devido à grande multiplicidade de         arte da crítica. Mas os ensaios de Parini não se mostram à altura
relatos sobre a vida em Yasnaya Polyana para lhe servir de fonte.     do padrão. Os que falam dos livros mais conhecidos de Faulkner
No livro sobre Benjamin, Parini precisa gastar um tempo exces-        tendem a ser os melhores; dos demais, muitos consistem em si-
sivo explicando quem foi esse herói absorvido em si mesmo, e          nopses não especialmente bem construídas acompanhadas de
por que devemos interessar-nos por ele.                               um sumário do debate crítico que as obras despertaram, no qual
     No caso de Faulkner, Parini tenta o que nem Blotner nem          o que é apresentado como discussão tende antes a ser uma tedio-
Karl nos proporcionaram:   uma biografia crítica, ou seja, um re-     sa pesquisa acadêmica.
lato razoavelmente abrangente da vida de Faulkner acompanha-               Como ocorre no livro de Karl, aqui também encontramos
do de uma análise de sua produção literária. E muito pode ser         uma boa dose de questionável psicologismo. Parini, por exem-
dito sobre o que ele nos apresenta. Embora recorra muito a Blot-      plo, decide propor uma leitura bastante extravagante de Enquan-
ner para os fatos, vai bem mais longe que este ao realizar entre-     to agonizo -    um romance curto construído em torno da jorna-
vistas com a última geração de pessoas a ter conhecido Faulkner       da grotesca dos irmãos Bundren para levar o corpo da mãe ao
em primeira mão, algumas das quais possuem coisas bem inte-           túmulo - como um ato simbólico de agressão de Faulkner con-
ressantes a dizer. Tem um respeito de escritor pela linguagem de      tra a própria mãe, bem como um "perverso" presente de casa-
Faulkner, e manifesta claramente sua admiração. Para ele, por         mento para a sua mulher. "Será que Estelle conseguirá suplantar
exemplo, a prosa de "O urso" avança "com uma espécie de fero-         Miss Maud [a mãe do autor] no espírito de Faulkner?", pergunta
cidade inexorável, como se Faulkner a tivesse composto num de-         Parini. "Perguntas como essa não admitem respostas, mas é pri-

    246                                                                                                                             247
vilégio da biografia formulá-Ias, permitindo que se apliquem ao        sobre Rowan Oak, a propriedade de 15 mil metros quadrados que
texto e o tornem mais turvo." (p. 151) Talvez seja de fato privilé-    Faulkner comprou em péssimo estado em 1929 e na qual viveria
gio do biógrafo turvar o texto com fantasias que extrai do ar; tal-    até a morte. Faulkner estava sempre disposto a gastar um dinhei-
vez não. Importaria mais saber se a mãe de Faulkner, ou sua mu-        ro de que não dispunha nas reformas de Rowan Oak, escreve
lher, teria entendido o romance como um ataque pessoal contra          Parini, porque "tinha uma visão do luxo anterior à Guerra Civil
ela. E nada indica que tenha sido esse o caso.                         que, acima de tudo, desejava recriar em sua vida cotidiana [...] O
     As incursões de Parini à mente de Faulkner envolvem mui-          filme ...E o vento levou foi lançado [em 1939], criando furor em
ta discussão sobre as personalidades múltiplas, ou identidades         todo o país. Mas Faulkner não precisava vê-lo. Era a história da
dentro da identidade. Condenará Faulkneros amores adúlteros            sua vida". (p. 250) Qualquer pessoa que tenha lido as palavras
de Palmeiras selvagens? Resposta: enquanto "parte de sua men-          de Blotner sobre o cotidiano em Rowan Oak sabe quanto o lu-
te de romancista" os condena, outra parte não. E por que, no fi-       gar diferia da fantasia de Tara.
nal da década de 1930, Faulkner terá decidido concentrar-se em
FIem Snopes, o alpinista social de olhos inexpressivos e coração            "Os livros são a vida secreta do escritor, o gêmeo obscuro de
gelado? "Desconfio de que isso tenha algo a ver com o exame            um homem: não há como reconciliar um e os outros", diz uma
de seu próprio lado agressivo", escreve Parini. Tendo obtido "um       das personagens de Mosquítoes (1927).12
sucesso que superava os seus sonhos mais ambiciosos ... [Faulk-             Reconciliar escritor e seus livros é um desafio que Blotner,
ner] pretendia refletir sobre esse sucesso e entender melhor os        muito sensatamente, prefere não enfrentar. E se Karl ou Parini,
impulsos que podiam tê-lo conduzido até esse ponto". (pp. 238,         cada qual a seu modo, conseguiu reunir o homem que se assi-
232-3)                                                                 nava "William Faulkner" a seu gêmeo obscuro é uma questão
     Terá sido mesmo "a parte agressiva" de Faulkner que produ-        em aberto.
ziu seus grandes romances da década de 1930 -     realização, aliás,        O teste decisivo é o que os biógrafos de Faulkner decidem
que FIem teria considerado     desprezível devido ao pouco di-         dizer sobre o seu alcoolismo, tema em torno do qual não se pode
nheiro que renderam para o seu autor? Será que a genialidade            andar na ponta dos pés. As anotações na ficha do hospital psiquiá-
malévola de FIem assemelha-se de fato à relação complexa de             trico de Memphis ao qual Faulkner era regularmente conduzido
Faulkner com o dinheiro, em que a ingenuidade do escritor o             num estado de estupor alcoólico falam, conta Blotner, de "um
levou a assinar um contrato com a Warner Brothers, o mais obs-          alcoólatra agudo e crônico". (p. 574) Embora, mesmo depois dos
tinadamente conservador dos estúdios em matéria de risco, que           cinquenta anos, Faulkner ainda conservasse uma bela aparência
na prática o transformou em escravo da empresa por sete anos?           cheia de energia, ela era apenas uma casca. Uma vida inteira de
     No fim das contas, o livro de Parini é uma mistura descon-         consumo de álcool já começara a prejudicar seu funcionamen-
certante: por um lado, demonstra uma admiração genuína por              to mental. "É mais que um caso de alcoolismo agudo", escreveu
Faulkner como escritor, e por outro insiste numa disposição ex-         seu editor Saxe Commins em 1952. "A desintegração desse ho-
cessiva de vulgarizá-lo. O pior exemplo vem de suas observações         mem é uma tragédia." Parini acrescenta o depoimento        terrível

                                                                                                                                  249
     248
da filha de Faulkner: quando se embriagava, seu pai podia ficar
 tão violento que "alguns homens" precisavam permanecer       por   16. Saul Bellow, os primeiros
 perto para proteger a ela e à sua mãe.!)                           romances
     Blotner não tenta entender    o vício de Faulkner, limitan-
do-se a fazer a crônica dos seus estragos, descrever seus padrões
e citar a ficha do hospital. De acordo com a leitura de Karl, a
bebida era a forma que a rebelião assumia em Faulkner, a ma-
neira que ele encontrava para manter sua arte a salvo das pres-
sões da família e da tradição. "Se o álcool fosse removido da sua
vida, é muito provável que o escritor não existisse; e talvez nem
mesmo uma pessoa bem definida." (pp. 130-2) Parini não hesi-
ta em ver também uma finalidade terapêutica no alcoolismo de
Faulkner. As bebedeiras do escritor eram "um tempo de descan-
so para a mente criadora", diz ele. E seriam "úteis de algum mo-
do. Espanavam teias de aranha, reacertavam o relógio interno,            Entre os romancistas americanos da segunda metade do sé-
permitiam que o inconsciente, como um poço, se enchesse len-        culo xx, Saul Bellow assoma como um dos gigantes, talvez o
tamente [sic]". Cada vez que emergia de uma bebedeira, "era co-     maior de todos. Seu apogeu se estende do começo da década de
mo se ele despertasse de um sono longo e repousante". (p. 281)      1950 (As aventuras de Augíe March) ao final da década de 1970
     É da natureza dos vícios serem incompreensíveis para quem      (Humboldt's Gíft), embora ainda em 2000 ele continuasse a pro-
os vê de fora. E o próprio Faulkner, aqui, não nos ajuda em na-     duzir notáveis textos de ficção (Ravelsteín). Em 2003, enquan-
da: jamais escreveu sobre seu alcoolismo nem, ao que se saiba,      to ele ainda vivia, a Library of America admitiu-o em sua versão
de dentro dele (estava quase sempre sóbrio quando se sentava à      do cânone clássico reeditando seus três primeiros romances -
mesa de trabalho). Nenhum biógrafo conseguiu ainda explicá-Io,      Danglíng Man (1944), The Víctím [A vítima, 1947] e As aventu-
mas talvez a tentativa de explicar um vício, procurar as palavras   ras de Augíe March (1953) - e prometendo publicar todo o resto
capazes de dar conta do que ele seja ou atribuir-lhe um determi-    da sua obra.'
nado lugar na economia da existência de alguém, seja sempre               Danglíng Man e The Víctím atraíram a atenção favorável da
um empreendimento equivocado.                                       crítica, mas eram ambas obras bastante literárias, e europeias em
                                                                    sua inspiração. Foi o espalhafatoso e espraiado Augíe March que
                                                          (2005)    conquistou um público para Bellow.
                                                                         O herói epônimo de Augíe March vem à luz em torno de
                                                                    1915 - o ano do nascimento do próprio Bellow - numa família
                                                                    moradora de um bairro polonês de Chicago. O pai de Augie não

    25°
                                                                                                                             251
aparece, e sua ausência não suscita praticamente      qualquer co-    roubar livros, que em seguida vende a estudantes          da Univer-
mentário. Sua mãe, uma figura triste e apagada, é quase cega.         sidade de Chicago. Mas guarda o coração mais ou menos puro,
Ele tem dois irmãos, um dos quais deficiente mental. A família        racionalizando   aquele roubo de livros como um caso especial,
subsiste, com certo grau de fraudulência, graças ao dinheiro da       uma forma benigna de furto.
previdência social e às contribuições de uma pensionista nasci-           E encontramos também influências no sentido contrário,
da na Rússia, a Avó Lausch (sem nenhum parentesco com eles),          entre elas um empregador paternal que presenteia Augie com
para quem o jovem Augie vai buscar livros na biblioteca ("Quan-       uma coleção completa, embora levemente estragada, dos Har-
tas vezes preciso lhe dizer que, se não disser romance, eu não        vard Classics. Augie guarda os livros num caixote debaixo da ca-
quero? .. Bozhe moy!"), e a qual lhe transmite algum verniz de        ma, mergulhando neles sempre que sente o impulso. Mais adian-
cultura. (p. 392)                                                     te, irá atuar como assistente de pesquisa para um rico estudioso
     É a Avó Lausch quem na verdade cria os irmãos March.             amador. Assim, embora jamais entre para a universidade, de uma
Quando a esperança que mais a anima é frustrada -           de que    forma ou outra suas incursões na leitura continuam. E ele lê a
um deles acabe se revelando um gênio cuja carreira poderia ca-        sério, até mesmo pelos padrões da Universidade de Chicago: He-
ber-lhe administrar -, ela assesta sua mira na ideia de transfor-     gel, Nietzsche, Marx, Weber, Tocqueville, Ranke e Burckhardt,
má-Ios em bons funcionários de escritório. E se vê presa do desa-     para não falar dos gregos e romanos e dos Padres da Igreja. Ne-
lento quando eles crescem desagradáveis e incivis. Na verdade, é      nhum romanCÍer.
ainda pior: como outros meninos da área onde mora, Augie cos-              Simon, um dos irmãos mais velhos de Augie, é um homem
tuma praticar pequenas transgressões. Mas tem consciência de-         de grande voracidade. Embora não seja propriamente um fari-
mais para entregar-se a uma vida de crimes. O primeiro roubo          seu, atribui às leituras de Augie o principal obstáculo a seu plano
organizado de que participa deixa-o tão infeliz que ele acaba aban-   de levá-Io a encontrar uma noiva rica e casar-se com ela, estudar
donando sua gangue.                                                   direito à noite e tornar-se seu sucessor num negócio de venda de
     Refletindo retrospectivamente sobre sua infância a partir dos    carvão. Em obediência a Simon, Augie passa algum tempo le-
seus trinta e tantos anos, quando escreve a narrativa que estamos     vando uma vida dupla, trabalhando na companhia de carvão o
lendo, Augie se pergunta que efeitos terá sofrido por ter crescido    dia inteiro antes de vestir-se bem para frequentar os salons dos
não na "Sicília pastoral" dos poetas, mas submetido às "humi-         nouveaux   ríches.

lhações profundas da cidade". (p. 477) Mas nem precisava se dar             Sob a tutela de Simon, Augie tem a primeira oportunidade
ao incômodo. As partes mais fortes do livro da sua vida vêm da         de experimentar as coisas boas da vida, especialmente a calidez
rememoração intensa de uma infância urbana rica em espetácu-           sedosa dos hotéis caros. "Procurei não me sentir esmagado por
los e em experiências sociais, juventude de um tipo que poucas         toda aquela grandeza", escreve ele.
crianças americanas ainda conhecem nos dias de hoje.
     Rapaz nos anos da Depressão, Augie continua a trafegar à               Mas [...] finalmente, elas [as dependências do hotel] são o que se
beira da criminalidade. Com um especialista, aprende a arte de              revela tão maravilhoso - os inúmeros banheiros com a infalível


    252                                                                                                                              253
água quente, os enormes aparelhos de ar-condicionado     central e   vida de Chicago. Em personagens como Carrie Meeber (Síster
     todo o maquinário sofisticado. Nenhuma      grandeza oposta é ad-    Carríe) e Clyde Griffiths (AnAmerícanTragedy   [Uma tragédia
     mitida, e a pessoa perturbadora   será aquela que não servirá pelo   americana]), Dreiser apresentou-nos algumas almas descompli-
     uso ou se negará por não desejar usufruir. (p. 656)                  cadas e ansiosas do Meio-Oeste americano, nem boas nem más
                                                                          por natureza, atraídas como Augie para a órbita do luxo da cida-
     Nenhuma     grandeza oposta é admitida. Augie é suficiente-          de grande, cujo acesso, logo descobrem, não requer credenciais,
 mente lúcido e pragmático para reconhecer que qualquer um                nem sangue tradicional nem senha, nada além de dinheiro.
 que negue o poder que se manifesta no grande hotel americano                  Clyde Griffiths é uma personagem errante no sentido dreise-
corre o risco de se marginalizar, seja qual for a autoridade que          riano: não escolhe seu destino, o que constitui sua versão ameri-
invoque para apoiá-Io dentre os autores dos Harvard Classics.             cana da tragédia, mas é conduzido para ele. Augie também corre
Visto que não está escrevendo o resumo final de sua vida, mas             o perigo de tornar-se uma personagem à deriva: um jovem de boa
um relatório intermediário, Augie recusa-se a tomar posição pró           aparência cujas aventuras de consumo as mulheres ricas mos-
ou contra os hotéis de Chicago, pró ou contra o futuro que eles           tram-se mais que dispostas a subsidiar. Mas, se o pouco que di-
representam. E também alega o que, na prática, equivaleria à              ferencia Augie de Clyde - o contato com o romance russo e os
incompetência jurídica. "Mas como alguém pode tomar uma                   Harvard Classics - não lhe proporciona a capacidade de resistir
decisão de ser contra e continuar contra? Quando é que a pessoa           ao poder do grande hotel, o que torna a história de Augie dife-
escolhe, e quando em vez disso é escolhida?". (p. 656)                    rente da história de outro filho qualquer do seu tempo?
     A postura cautelosa de Augie não é dessemelhante à de Hen-                A essa pergunta Bellow só apresenta uma resposta proustia-
ry Adams perante a Exposição de Chicago em 1893; e o próprio              na: o jovem que começa sua história com as palavras "Sou um
Adams evoca com ironia o fantasma de Edward Gibbon con-                   americano, nascido em Chicago [...] e falo das coisas da maneira
templando as ruínas de Roma. "Em 1893, Chicago perguntou                  como aprendi por conta própria, em estilo livre, e vou contar a
pela primeira vez", escreve Adams, "se o povo americano sabia             história a meu modo", (p. 383) e termina rememorando como
aonde estava indo." A resposta, ao que lhe parece, é que não sa-          escreveu aquelas palavras e em seguida comparando-se a Co-
biam. Ainda assim, podiam estar "seguindo ou deixando-se levar            lombo - "Colombo também achou que tivesse fracassado [...]
inconscientemente" rumo a um ponto a partir do qual poderiam              O que não prova que a América não existisse" (p. 995) - não
então articular a finalidade daquilo tudo. A posição mais sensa-          fracassa, muito embora não consiga imaginar um poder capaz
ta a ser assumida por qualquer observador -       especialmente   um      de opor-se ao gigantismo cego da América, porque a própria re-
observador que fosse ele próprio americano - seria simplesmen-            memoração construída constitui esse poder. A literatura, afirma
te posição nenhuma, meramente observar e esperae                          Bellow, interpreta o caos da vida e lhe dá sentido. Em sua dispo-
    Outra presença ao lado de Augie, assinalada por aumentos              sição primeiro de deixar-se levar pelas forças da vida moderna e
do teor de ruminações grandiloquentes      e linguagem rarefeita, é       depois de tornar a confrontar-se com elas através da sua arte "em
Theodore Dreiser, o grande antecessor de Bellow no registro da            estilo livre", Augie, somos levados a compreender, está mais bem

    254                                                                                                                             255
equipado do que acredita para opor-se às seduções de um estilo          Seu modelo do mundo parte de um imperativo de simpli-
 de vida à deriva.
                                                                    ficação. O mundo moderno, a seu ver, tende a sobrecarregar-nos
                                                                    com sua infinitude nociva. "Um excesso de tudo ... um excesso
     Um elemento de Dreiser que Bellow não incorpora são os         de história e cultura ... um excesso de detalhes, de notícias, de
 mecanismos deterministas do destino. O destino de Clyde é som-     exemplos, de influências ... E quem precisa interpretar isso tudo?
 brio; o de Augie, não. Um ou dois descuidos e Clyde termina na     Eu?" (p. 902) Sua resposta a esse excesso de tudo é, primeiro,
 cadeira elétrica; de todos os perigos que o rodeiam, Augie por     "tornar-se o que eu sou"; (p. 937) segundo, comprar terras, ca-
 sua vez sempre emerge são e salvo.                                 sar-se, criar um lar, tornar-se professor, fazer carpintaria domés-
      Assim que se torna claro que seu herói irá levar uma vida     tica e aprender a consertar seu carro. Como comenta um amigo
 encantada, Augie March começa a pagar por sua falta de estru-      dele, "Boa sorte". (p. 905)
 tura dramática e, no fim das contas, de organização intelectual.       Segundo ele próprio conta, Bellow se divertiu muito escre-
O livro vai ficando cada vez menos envolvente à medida que          vendo Augie March, e nas primeiras centenas de páginas sua
avança. O método de composição cena a cena, em que cada             animação criadora é palpável e contagiosa. O leitor é arrebata-
uma delas principia com um tour de force de descrição do am-        do pela prosa ousada, veloz e picante, pela fluência casual com
biente, começa a parecer mecânico. As muitas páginas dedica-        que um mot juste se sucede a outro ("Karas, de terno caro de
das ao tempo que Augie passa no México envolvido num esque-         jaquetão e ostentando dificuldades para barbear-se e pentear-se
ma estúpido de treinar uma águia para capturar iguanas rendem       suplantadas de maneira incrível"). (p. 498) Desde Mark Twain,
muito pouco, apesar da riqueza de recursos composicionais ne-       nenhum escritor americano tinha manejado o vernáculo com
las investida. A principal aventura de Augie no tempo da guer-      tamanha verve. O livro conquistou seus leitores com sua varieda-
ra, torpedeado e perdido na companhia de um cientista louco a       de, sua energia inesgotável, sua impaciência com os bons mo-
bordo de um bote salva-vidas ao largo da costa africana, é sim-     dos. Acima de tudo, dava a impressão de dizer um Sim! enfático
plesmente uma trama de história em quadrinhos.                      à América.
    O que não significa que o próprio Augie seja exatamente              Hoje, em retrospecto, pode-se ver que esse Sim! tinha cer-
um enigma intelectual. Por convicção ele é um idealista filo-       to preço: o preço da consciência crítica. Augie March, em certo
sófico, até mesmo um idealista radical, para quem o mundo se        sentido, apresenta-se como a história do amadurecimento da ge-
constitui de um emaranhado complexo de ideias-do-mundo, mi-         ração de Bellow. Mas será que Augie é um bom representan-
lhões delas, tantas quantas são as mentes humanas que existem.      te dessa geração? Ele conversa com estudantes de esquerda, lê
Cada um de nós, acredita ele, tenta defender sua ideia singular     Nietzsche e Marx, milita como sindicalista, chega até a cogitar
através do recrutamento de outros seres humanos para desempe-       de empregar-se como guarda-costas de Leon Trótski no Méxi-
nharem algum papel nela. A regra de Augie, desenvolvida ao lon-     co; entretanto, mal registra o quadro mais amplo do que ocorre
go de quase metade da sua vida, é evitar ser recrutado para atuar   no mundo. Quando a guerra começa, ele fica atônito: "Bum! A
nas ideias de outras pessoas.                                       guerra começou ... Caí da cadeira, eu odiava o inimigo, mal po-

    256                                                                                                                       257
dia esperar para entrar na briga". (p. 905) A partir de que ponto   armazéns, imensos cartazes, carros estacionados. Será que esse
 esse grau de absorção no aqui e agora se transforma em idiotia?     ambiente não deforma a alma?, pergunta-se ele. "Onde ainda
      A edição compilada da Library of America traz quinze pá-       existiria uma partícula daquilo que, em outro lugar, ou no passa-
 ginas de notas de James Wood, especialmente úteis no caso de        do, falara em favor do homem? .. O que Goethe poderia dizer do
 Augie March, onde nomes e alusões se espalham como confete.         panorama visto desta janela?" (p. 55)
 Wood localiza muitas das referências de passagem de Augie, mas           Pode parecer cômico que, na Chicago de 1941, alguém pu-
 um bom número delas é esquecido. Quem, por exemplo, foi             desse dedicar-se a reflexões grandiosas como essas, diz Joseph em
 posto por suas irmãs em prantos em cima de um cavalo para ir        seu diário, mas em cada um de nós sempre existe um elemento
 estudar grego em Bogotá? (p. 477) Que embaixador de qual país       do fantástico. Quando zomba dessas especulações filosóficas em
 terá injetado goma-laca na tubulação de água de Lima para de-       tom cômico, na verdade ele está negando o que tem de melhor.
 ter a oxidação dos canos? (p. 658)                                      Embora em abstrato o jovem Joseph estivesse preparado pa-
                                                                     ra aceitar que o homem é agressivo por natureza, quando exami-
     Dangling Man, que Bellow escreveu quase uma década an-          nava seu próprio coração só detectava uma natureza gentil. Uma
tes durante os anos da guerra, é um romance curto na forma de        de suas ambições mais frívolas era fundar uma colônia utópica
diário. Quem mantém o diário é um jovem morador de Chicago           onde o despeito e a crueldade seriam proibidos. Eis por que um
chamado Joseph, desempregado, formado em história e susten-          dos desdobramentos que mais desalentam o Joseph posterior é
tado pela mulher que trabalha. Joseph usa seu diário para desco-     constatar-se tomado por acessos imprevisíveis de uma violência
brir como se transformou em quem é, e especialmente para en-         inesperada. Ele perde a cabeça com sua sobrinha adolescente e
tender por quê, cerca de um ano antes, ele abandonara os ensaios     a espanca, deixando os pais da moça em choque. Agride o senho-
filosóficos que vinha escrevendo e começara a "pender" ou "pai-      rio. Grita com uma caixa de banco. Sente que virou "uma espé-
rar" ("dangle"), palavra que na gíria americana da época signifi-    cie de granada humana cujo pino foi retirado". (p. 107) O que
cava estar no limbo à espera de notícias da Junta de Recruta-        estará acontecendo com ele?                                          li



                                                                                                                                          1I




mento, mas à qual Bellow atribui um sentido mais existencial.             Um amigo artista tenta convencê-Io de que a cidade mons-        '.1




     Tão vasta parece a lacuna entre ele como é agora e a pessoa     truosa à volta deles não é o mundo real: o mundo real é o mundo       II11




esforçada e inocente que fora no passado que em alguns momen-        da arte e do pensamento. Em abstrato Joseph está disposto a res-
tos Joseph, o autor do diário, considera-se um simples duplo do      peitar essa posição e constatar seus efeitos benéficos: embora di-
Joseph anterior, só usando as roupas que aquele descartara. A        vidindo com outros os produtos da sua imaginação, o artista per-           I'
pessoa anterior era capaz de funcionar em sociedade, de manter       mite que um agregado de indivíduos solitários se transforme numa     ,Iilll

                                                                                                                                                    111




um equilíbrio entre o emprego numa agência de viagens e seus         espécie de comunidade. Mas ele, Joseph, não é um artista. Sua
interesses acadêmicos. No entanto, mesmo então já sentia pre-        potencialidade é ser um homem bom. Mas viver como ele vive,          .11




                                                                                                                                          i li
monições perturbadoras, sensações de alienação do mundo. Da          "isolado, alienado, desconfiado", é o mesmo que estar na cadeia.
sua janela, ele passa em revista a paisagem urbana -   chaminés,     (p. 65) De que serve ao homem ser bom numa cela de prisão? A         1:1

                                                                                                                                          i.11    i ...




                                                                                                                                                     I
                                                                                                                                                     .1
                                                                                                                                                  il
    258                                                                                                                       259

                                                                                                                                                          I
                                                                                                                                                    I1
                                                                                                                                                    ,1
bondade precisa ser praticada na companhia dos outros; precisa               Joseph estabelece uma distinção entre um indivíduo mera-
ser acompanhada pelo amor.                                               mente obcecado consigo mesmo como ele, sempre engalfinha-
     Num trecho especialmente vigoroso, ele atribui seus aces-           do com seus pensamentos, e o artista que, mediante a faculdade
sos de violência às intoleráveis contradições da vida moderna.           demiúrgica   da imaginação,   transforma seus pequenos proble-
Submetidos a uma lavagem cerebral que nos convence de que                mas pessoais em questões de alcance universal. Mas o caráter
cada um de nós é um indivíduo de valor inestimável contempla-            dos seus engalfinhamentos particulares, na forma de pretensas
do com um destino individual, de que não há limite para o que            entradas de diário destinadas apenas aos seus próprios olhos, não
podemos conseguir, estamos, todos nós, em busca da grandeza              se sustenta. Porque em meio a essas entradas encontram-se pági-
individual. E não temos como deixar de encontrá-Ia. Então co-
                                                                         nas - na maioria descrições de cenas da cidade, ou de pessoas
meçamos a "odiar-nos imoderadamente            e submeter-nos,   a nós
                                                                         que Joseph conhece - cuja dicção elevada e inventividade me-
mesmos e aos demais, a castigos imoderados. O medo de sermos             tafórica denunciam-nas como produto de uma imaginação poé-
deixados para trás nos persegue e nos enlouquece ... Criando um
                                                                         tica que não só clama por um leitor como inventa e se dirige a
clima interno de trevas. E ocasionalmente sobrevém uma tem-
                                                                         um leitor. Joseph pode fazer de conta que deseja ser visto por nós
pestade de ódio e a capacidade de ferir despeja-se como chuva            como um erudito fracassado, mas sabemos, como ele deve sus-
para fora de nós". (p. 63)
                                                                         peitar, que na verdade ele é um escritor nato.
      Noutras palavras, entronizando o Homem no centro do uni-
                                                                               Dangling Man tem longas reflexões e pouca ação. Ocupa
verso, o Iluminismo, especialmente em sua fase romântica, im-
                                                                         um terreno pouco firme entre a novela e o ensaio pessoal ou a
pôs exigências psíquicas impossíveis a cada um de nós, exigên-
                                                                         confissão. São várias as figuras que sobem ao palco e trocam pa-
cias que extravasamos não só em pequenos acessos de violência
                                                                         lavras com o protagonista, mas além de Joseph em suas duas
como os de Joseph, ou em aberrações morais como a tentativa
                                                                         manifestações mal definidas não existem outras personagens no
de alcançar a grandeza através do crime (vide o Raskólnikov de
Dostoiévski), mas talvez também na guerra que consome o mun-             sentido próprio. Por trás da silhueta de Joseph podem-se discer-
                                                                         nir os funcionários modestos e humilhados de Gógol e Dostoiévs-
do. E é por isso que, numa atitude paradoxal, Joseph, o autor do
diário, encerra suas reflexões, pousa sua pena e se alista. O isola-     ki, ruminando sua vingança; o Roquentin da A náusea de Sartre,
mento redobrado - o isolamento imposto pela ideologia do in-             o intelectual que sofre uma estranha crise metafísica que o tor-
dividualismo, mais o isolamento do autoexame - acabou por                na estranho ao mundo; e o jovem poeta solitário dos Cadernos
levá-Io, pensa ele, à beira da insanidade. E talvez a guerra possa       de Malte Laurids Brigge, de Rilke. Nesse seu delgado primeiro
lhe ensinar o que não aprendeu com a filosofia. E ele encerra            livro, Bellow ainda não desenvolveu um veículo adequado ao
seu diário com uma exclamação:                                           tipo de romance rumo ao qual avançava às cegas, o romance que
                                                                         pudesse proporcionar ao leitor a habitual satisfação romanes-
     Viva o horário regular!                                             ca, inclusive o envolvimento no que parece ser um conflito real
     E a supervisão do espírito!                                         num mundo da vida real, mas deixando o autor com um manejo
     Longa vida à arregimentação!   (p. 140)                              desembaraçado   do seu conhecimento     da literatura e do pensa-

     260                                                                                                                           261
mento europeus para discutir a vida contemporânea e seus mal-es-   em resistir ao argumento   de Allbee de que foi enganado e por-
 tares. Para esse passo na evolução de Bellow, precisaremos espe-    tanto é credor de uma dívida. Toda essa resistência é apresenta-
 rar por Herzog (1964).                                              da de dentro: não há nenhuma indicação do autor que nos ajude
                                                                     a decidir qual lado devemos tomar, qual dos dois é a vítima e
      Asa Leventhal, que pode ser ou não a vítima no romance         qual é o perseguidor. Nem nos é fornecida qualquer orientação
 curto The Victim, é editor de uma pequena revista comercial em      de ordem moral. Estará Leventhal resistindo a ser envolvido por
 Manhattan. No trabalho, precisa suportar as ocasionais alfineta-    palavras, por força da devida prudência, ou estará se recusando
 das antissemitas. Sua mulher, que ele ama profundamente,     está   a aceitar que somos todos responsáveis por nossos semelhantes?
 fora da cidade.
                                                                     Por que eu? - eis o único grito de Leventhal. Por que esse des-
      Um dia, na rua, Leventhal tem a sensação de estar sendo        conhecido vem me culpar e me odiar e exigir que eu lhe forneça
 observado. Um homem o aborda e o cumprimenta. Vagamente             uma reparação?
 ele se lembra do nome do homem: Allbee. Por que ele está atra-          Leventhal reafirma que tem as mãos limpas, mas os amigos
 sado, pergunta-lhe Allbee - não lembra que eles tinham um           que consulta já não têm a mesma certeza. Por que ele se envol-
                                                                                                                                            :111


                                                                                                                                                 II1
encontro? Leventhal não se lembra de nada. Então por que com-        veu para começo de conversa, perguntam eles, com uma perso-                   I:,




pareceu, pergunta-lhe Allbee? (E repetidas vezes Allbee irá der-     nagem tão desagradável como Allbee? Estará sendo inteiramen-
 rubar Leventhal com esse tipo de jiu-jitsu lógico.)                 te honesto consigo mesmo quanto aos seus motivos?
      Tendo encurralado Leventhal, Allbee começa a contar uma             Leventhal rememora     seu primeiro encontro com Allbee,
aborrecida história do passado em que Allbee conseguira uma          numa festa. Uma garota judia tinha cantado uma balada, e All-
entrevista para Leventhal com seu patrão (dele, Allbee), duran-      bee dissera a ela que devia tentar cantar salmos. "Essas outras [as
te a qual Leventhal tinha (propositalmente, diz Allbee) adotado      baladas americanas], se você não nasceu cantando, nem adian-
um comportamento     ofensivo, o que levara Allbee a perder o seu    ta tentar." (p. 174) Será que ele, Leventhal, naquele momento
emprego.                                                             marcara inconscientemente Allbee como antissemita, e decidira
     Leventhal tem uma lembrança apenas nebulosa dos acon-           vingar-se?
tecimentos, mas nega a insinuação de que aquela entrevista fi-            Com a consciência pesada, Leventhal oferece a Allbee re-
zesse parte de uma conspiração contra Allbee. Se ele tinha ido       fúgio em seu apartamento. Mas a coabitação da dupla é um de-
embora no meio da entrevista, diz, foi porque o patrão de Allbee     sastre. Os hábitos de Allbee são deploráveis. Ele remexe os pa-
não demonstrara o menor interesse em contratá-Io.                    péis pessoais de Leventhal. (Allbee: Se você não confia em mim,
     Mesmo assim, retruca Allbee, agora ele está desempregado,       por que deixa sua escrivaninha destrancada?) Leventhal perde a
não tem onde morar e precisa dormir em albergues. Que provi-         paciência e bate em Allbee, mas Allbee continua a ripostar.
dência Leventhal pretende tomar a respeito?
                                                                                                                                           11'



                                                                          Allbee faz um longo discurso que (segundo ele) Leventhal
     E assim começa a perseguição de Allbee a Leventhal-    ou       deveria ser capaz de entender apesar de judeu, dizendo que to-
pelo menos o que assim parece a este último. Leventhal teima         dos precisamos nos arrepender e nos converter em homens no-
    262
                                                                                                                               263
vos. Leventhal duvida da sinceridade de Allbee, e declara que              E então, certa noite ele esbarra em Allbee no teatro. Allbee
duvida do que ele diz. Você duvida de mim porque é judeu e eu          está na companhia de uma atriz decadente; e cheira a bebida.
não, responde Allbee. Mas por que eu?, torna a perguntar Le-           Encontrei meu lugar no trem, informa Allbee a Leventhal, mas
venthal. "Por quê?", responde Allbee. "Por bons motivos; os me-        não como condutor, só como passageiro. Entrei num acordo
lhores do mundo ... Estou lhe dando uma oportunidade         de ser    com "quem quer que controle as coisas". "E qual é sua ideia de
justo, Leventhal, e de fazer a coisa certa." (p. 328)                  quem controla as coisas?", pergunta Leventhal. (p. 379) Mas All-
     Chegando ~m casa certa noite, Leventhal encontra a porta          bee desapareceu na multidão.
trancada e Allbee na cama com uma prostituta - não só na ca-                O Kirby Allbee de Bellow é uma criação inspirada, cômi-
ma, mas na cama dele, Leventhal. Allbee acha graça da indigna-         ca, patética, repulsiva e ameaçadora. Às vezes seu antissemitis-
ção de Leventhal. "Onde mais, se não na cama? .. Talvez você           mo parece quase aceitável por sua franqueza: às vezes ele próprio

conheça algum outro meio, mais refinado, diferente. Mas vocês          parece ter sido possuído por sua caricatura do judeu, que agora
                                                                       vive dentro dele, um antijudeu que fala pela sua boca. Vocês, os
não vivem dizendo que são iguais a todo mundo?" (p. 362)
                                                                       judeus, estão se apoderando do mundo, choraminga ele. A única
     Quem é Allbee? Um louco? Um profeta encoberto por um
                                                                       coisa que nós, os pobres americanos, podemos fazer é procurar
pesado disfarce? Um sádico que escolheria suas vítimas ao acaso?
                                                                       um canto humilde que possamos ocupar. Por que vocês nos viti-
     Allbee tem sua própria versão. É como se ele fosse um índio
                                                                       mizam tanto? Que mal fizemos a vocês?
da planície, afirma, que com a chegada da ferrovia antevê o fim             Existe também um certo traço do americano puro-sangue
de seu antigo modo de vida. E decide aderir à nova ordem. Le-          no antissemitismo de Allbee. "Sabe, um dos meus antepassados
venthal, o judeu, membro da nova raça dominante, precisa con-
                                                                       foi o governador Winthrop", diz ele. "Não é mesmo um absurdo
seguir-lhe um emprego na ferrovia do futuro. "Eu quero apear
                                                                       [o estado de coisas atual J? É como se os filhos de Calibã estives-
do [meu] cavalo e tornar-me o condutor do trem." (p. 329)              sem comandando tudo." (p. 259)
     Com sua mulher às vésperas de voltar para casa, Leventhal               Mas acima de tudo Allbee é desprovido de vergonha, como
manda Allbee procurar outras acomodações. No meio da noite,            o id, e igualmente    impuro. E mesmo seus momentos de sim-
acorda e descobre que o apartamento      está tomado pelo gás. All-    patia são ofensivos. Deixe eu passar a mão pelo seu cabelo, pede
bee, sem sucesso, tenta suicidar-se com gás na cozinha.                ele a Leventhal-     "parece a pelagem de um animal". (p. 323)
    Allbee desaparece da vida de Leventhal. Passam-se anos.                  Leventhal é um bom marido, um bom tio, um bom irmão,
Aos poucos Leventhal se livra da sensação de que "saiu-se daque-        um bom trabalhador em circunstâncias      difíceis. É um homem
la". (p. 372) Mas não precisava sentir-se culpado, reflete ele. All-    esclarecido,   e não costuma criar caso. Tudo que quer é fazer
bee não tinha o direito de invejar seu bom emprego, seu casa-           parte da melhor sociedade americana. Seu pai não se incomoda-
mento feliz. Esse tipo de inveja baseia-se numa premissa falsa:         va com o que os gentios pensavam dele, contanto que pagassem
de que a cada um de nós foi feita alguma promessa. Mas nunca            o que lhe deviam. "Era a opinião do seu pai. Mas não a dele, que
nos prometeram nada desse tipo -       nem Deus nem o Estado.           a rejeitava e achava repulsiva." (p. 232) Ele tem uma consciência

                                                                                                                                  265
     264
social. Sabe quanto é fácil, especialmente na América, recair em      mos de algum modo convencidos de que Leventhal se encontra
meio "aos perdidos, aos marginalizados, aos vencidos, aos apa-        no limiar de uma revelação. Mas nesse momento ele é tomado
gados, aos arruinados". (p. 158) É inclusive um bom vizinho-          por uma grande fadiga. Tudo isso é demais para ele.
afinal, nenhum dos amigos gentios de Allbee se mostrara dispos-            Ao passar em revista sua carreira, Bellow sempre tendeu a
to a hospedá-Ia. O que mais se podia esperar dele?                    menosprezar The Victim. Se Dangling Man foi seu mestrado co-
     A resposta é: tudo. The Victim é o mais dostoievskiano dos       mo escritor, diz ele, The Victim foi seu doutoramento. "Eu ainda
livros de Bellow. O enredo é adaptado de O eterno marido, de          estava aprendendo,   confirmando minhas credenciais, provando
Dostoiévski, a história de um homem que é inesperadamente             que um jovem de Chicago tinha o direito de reivindicar a aten-
abordado pelo marido de uma mulher com quem tivera um caso            ção do mundo."J Excesso de modéstia. The Victim está a poucos
anos antes, cujas insinuações e exigências vão se tornando cada       centímetros de Billy Budd na primeira fila das novelas america-
vez mais insuportavelmente íntimas. Mas não é só o enredo que         nas. Se tem uma fraqueza, é uma fraqueza não de execução, mas
Bellow deve a Dostoiévski, ou o motivo de um duplo odioso. O          de ambição. Estaria nos poderes de Bellow transformar Leven-
próprio espírito de The Victim é dostoievskiano. Os elementos         thal num peso-pesado intelectual, capaz de discutir com Allbee
em que nossas vidas limpas e bem-arrumadas se apoiam sempre           (e, por trás dele, com Dostoiévski) a universalidade do modelo
podem desmoronar de um momento para o outro; exigências de-           cristão da conclamação ao arrependimento. Mas ele decidiu de
sumanas podem ser-nos feitas sem aviso prévio, e vindas das par-      outro modo.
tes mais estranhas; claro que é natural resistir (Por que eu?); mas
                                                                                                                                (2°°4)
se pretendemos ser salvos não temos escolha: devemos deixar tu-
do de lado e acatá-Ias. Entretanto, essa mensagem essencialmen-
te religiosa é posta na boca de um repelente antissemita. Será
realmente surpreendente que Leventhal responda fincando pé?
     Mas o coração de Leventhalnão está fechado; sua resistên-
cia não é completa. Existe alguma coisa em todos nós, reconhe-
ce ele, que se opõe à sonolência do cotidiano. Na companhia de
Allbee, em momentos isolados, ele se sente à beira de ultrapas-
sar os limites de sua antiga identidade e ver o mundo com novos
olhos. Alguma coisa parece estar ocorrendo na área do seu cora-
ção, algum tipo de premonição, não sabe dizer se de um ataque
cardíaco ou de algo mais elevado. Num certo momento ele olha
para Allbee e Allbee lhe devolve o olhar, e os dois quase pode-
riam ser a mesma pessoa. Noutro ponto - descrito com a prosa
mais magistralmente   atenuada ["understated"] de Bellow -      so-

                                                                                                                                267
    266
mento da fronteira do Oeste americano,     e os efeitos desse fe-
17.    Arthur Miller, Os desajustados                                  chamento sobre a psique americana. Huckleberry Finn, ao fim
                                                                       do livro sobre ele escrito por Mark Twain, ainda tinha o recurso
                                                                       de partir para os territórios do Oeste de modo a escapar da civi-
                                                                       lização (e Nevada, na década de 1840 da infância de H uck, era
                                                                       um desses territórios). Já os vaqueiros de Miller, cerca de cem
                                                                       anos mais tarde, não têm para onde ir. Um deles, Caye (Clark
                                                                       Cable), tornou-se um gigolô pronto a aproveitar-se de divórcios.
                                                                       Outro, Perce (Montgomery Clift), vive em condições precárias
                                                                       com o que ganha participando de rodeios. O terceiro, Cuido (Eli
                                                                       Wallach), exibe o lado sombrio da homossocialidade masculina
                                                                       da fronteira, a saber, uma misoginia malévola.
                                                                            São esses os desajustados de Miller, homens que ou não
                                                                       conseguiram fazer a transição para o mundo moderno ou estão
     Os desaiustados (The Mísfits, 1961) foi realizado por um no-      fazendo essa transição de maneira ignominiosa. Os três são apre-
tável conjunto de criadores. O filme se baseia num roteiro ori-        sentados com uma clareza e integridade raras no cinema, conse-
ginal de Arthur Miller. Foi dirigido por John Huston e estrelado       quência da habilidade de Miller como dramaturgo.
por Marilyn Monroe e Clark Cable, nos que acabaram sendo                   Mas é claro que o título de Miller tem um segundo sentido
seus derradeiros papéis importantes. Embora não tenha sido um          oculto. Se os vaqueiros não têm lugar na América de Eisenhower,
grande sucesso de bilheteria, continua a atrair, e com justiça, cer-   os cavalos selvagens de Nevada têm menos ainda. Antes, eram
ta atenção da crítica.                                                 dezenas de milhares; agora, reduziram-se a míseras tropas no alto
      O enredo é simples. Uma mulher, Roslyn, em visita a Re-          das montanhas, que quase nem compensa capturar. De represen-
no, Nevada, para obter um divórcio rápido, fica amiga de um            tação da liberdade da fronteira, transformaram-se num anacro-
grupo de vaqueiros ocasionais e parte com eles para o deserto          nismo, criaturas se~ qualquer utilidade numa civilização meca-
numa incursão para a captura de cavalos selvagens. Lá ela desco-       nizada. O destino que lhes resta é serem cercados e caçados do
bre que os cavalos não seriam usados como montaria, mas ven-           ar; só não são baleados do alto porque assim sua carne iria estra-
didos como carne para a fabricação de ração de animais domés-          gar-se antes que os magarefes pudessem chegar até eles com seus
ticos. A descoberta precipita a quebra de confiança entre ela e os     caminhões refrigerados.
homens, uma ruptura que o filme só remenda do modo mais ca-                 E Roslyn (Marilyn Monroe), claro, também é uma desajus-
nhestro e inconvincente.                                               tada, de maneiras menos fáceis de definir, maneiras que nos con-
      Tirando o fim, o roteiro é forte. Arthur Miller opera na pon-    duzem ao cerne criativo do filme. Miller era casado com a atriz
ta final de uma longa tradição literária de reflexão sobre o fecha-     na época da filmagem, e desconfiamos     que Roslyn tenha sido

     268                                                                                                                         269
construída em torno de Marilyn, ou em torno do que Miller           centrados e até regulamentados    de sexualidade difundidos não
achava que era ou podia ser a Marilyn interior. Numa das cenas      só por Hollywood e pelos meios de comunicação como também
mais impressionantes do filme, Miller e Huston limitam-se a         pela sexologia acadêmica. Roslyn dança com uma difusa e - à
criar um espaço em que Marilyn pode representar a si mesma,         luz do resto do filme - triste sensualidade, para a qual nem a
criar-se a si mesma na película.                                    vocação de predador sexual de Cuido nem o comedimento gen-
     As ironias aqui são especialmente profundas, pois Marilyn      til e antiquado de Caye seriam uma resposta adequada.
Monroe em parte representava, e em parte combatia, o tipo da            Outra cena impressionante      ocorre mais perto do final do
loura burra que lhe era prescrito pelo star system hollywoodiano.   filme, quando Roslyn percebe com uma clareza brutal que os
E com uma complicação suplementar: nem sempre é fácil se-           homens mentiram para ela, e que no fim das contas importam-se
parar o encanto difícil de definir de Roslyn de certo humor ler-    mais com o feito machista em que estão empenhados -           a cap-
do, induzido pelo Nembutal, da atriz em crise.                      tura dos pobres cavalos -   do que com ela, e que nenhuma sú-
     A cena crucial nesse sentido ocorre a uns trinta minutos
                                                                    plica ou suborno poderá lhe valer de nada. Desesperada e fu-
do início do filme. Roslyn está dançando com Cuido, enquanto        riosa, ela se afasta dos homens; grita, esbraveja e chora por eles
Caye e Isabelle, uma velha amiga de Roslyn, observam. Roslyn        serem tão desalmados. Para um diretor mais convencional, esse
está encantadora, cheia de energia; mas todos os outros sinais      momento alto -    o momento em que todos os véus caem diante
que ela envia, Cuido interpreta   erradamente.   Para ele aquela    dos olhos de Roslyn e ela percebe que, como mulher, e talvez
dança é uma corte sexual; mas Roslyn insiste em evitá-lo para       como ser humano, está totalmente sozinha - poderia parecer
além da mera timidez. Finalmente ela sai dançando da casa ao
                                                                    uma oportunidade para uma encenação à moda antiga: close-ups
sol do fim da tarde ("Cuidado!", grita Caye, "Não tem degrau!")
                                                                    intensos, cortes de rosto em rosto, mostrando as expressões de
e continua sua dança em torno do tronco de uma árvore, caindo
                                                                    raiva. Mas Huston filma a cena contrariando essas convenções.
finalmente num coma semidespido.
                                                                    A câmera permanece     do lado dos homens; Roslyn está tão dis-
    Caye não entende melhor que Cuido o que está haven-
                                                                    tante que é quase engolida pela vastidão do deserto; sua voz fa-
do com Roslyn, mas sabe que precisa conter o companheiro.     Os
                                                                    lha; suas palavras são incoerentes. O efeito é perturbador.
dois homens, e Isabelle, ficam observando perplexos enquan-
                                                                         Mas as cenas -    a longa sequência de cenas -    que se gra-
to Roslyn - que a essa altura temos como reconhecer a partir
                                                                    vam mais indelevelmente     no espírito do espectador são as que
da perspectiva histórica, pode perfeitamente ser a própria Mari-
                                                                    envolvem os cavalos.
lyn, ou pelo menos a Marilyn de Arthur Miller - leva seu nú-
mero até o fim.                                                          Nos créditos de qualquer filme envolvendo a participação
     E qual é o número de Roslyn-Marilyn? Em parte é a entre-       de animais feito nos dias de hoje, pelo menos de qualquer filme
ga a uma angústia de segunda mão, cuja culpa deve ser atribuí-      feito no Ocidente, aparece um aviso assegurando aos espectado-
da a um existencialismo de café da Rive Cauche. Mas em parte        res que nenhum dano foi causado aos animais, e que o que pode
tem a ver também com a resistência aos modelos altamente con-       parecer sofrimento foi apenas um truque cinematográfico.            Po-

    27°                                                                                                                           271
de-se supor que essas justificativas tenham sido impostas à indús-   mais um sistema de signos, continua a existir uma diferença ir-
tria cinematográfica por organizações de defesa dos animais.         redutível da imagem fotográfica, a saber, que ela traz em si ou
      Mas não em 1960. Os cavalos usados na filmagem de Os           consigo o rastro de um passado histórico verdadeiro. E é por isso
desajustados eram de fato cavalos selvagens; a exaustão, a dor e o   que as sequências da captura dos cavalos em Os desajustados são
terror que vemos na tela são reais. Os cavalos não estão represen-   tão perturbadoras: por um lado, fora do campo da lente da câ-
tando. Os cavalos são reais, explorados por Huston e pelas pes-      mera, um bando de vaqueiros, diretores, escritores e técnicos de
soas por trás de Huston por sua força, sua beleza e sua resistên-    som congregados para tentar fazer os cavalos enveredarem pelo
cia; pela integridade espiritual da sua reação a seu inimigo, o      caminho prescrito para eles numa construção ficcional chama-
homem; e por serem de fato o que pareciam ser e o que repre-         da Os desajustados; por outro, diante da lente, um rebanho de
sentavam na mitologia do Oeste: criaturas soltas e indómitas.        cavalos selvagens que não fazem qualquer distinção entre atores,
     Esse ponto merece ser enfatizado porque ele nos leva bem        dublês e técnicos, que não sabem ou não querem saber do ro-
para perto do cerne da questão do cinema como meio de repre-         teiro do famoso dramaturgo Arthur Miller em que podem ou
sentação. O cinema, ou pelo menos o componente visual do cine-       não ser, dependendo do ponto de vista, os desajustados a que se
ma naturalista, não funciona via símbolos intermediários. Quan-      refere o título, que nunca ouviram falar do fechamento da fron-
do você lê, num livro, "Os dedos dele tocaram os dela", o que        teira do Oeste mas naquele momento a vivenciam na própria
se vê não são dedos reais tocando outra mão real, mas a ideia de     carne, e da maneira mais traumatizante. Os cavalos são de ver-
dedos que tocam a ideia de outros dedos. Já num filme, o que         dade, os dublês são de verdade, os atores são de verdade; e todos
se contempla é o registro visual de uma coisa que aconteceu con-     estão, nesse momento, envolvidos numa luta terrível em que os
cretamente num dado momento: dedos reais que entraram em             homens desejam subjugar os cavalos para seus fins e os cavalos
contato com outros dedos reais.                                      só desejam escapar; de tempos em tempos, a loura grita ou ber-
     Parte do motivo pelo qual o debate em torno da pornogra-        ra; tudo isso aconteceu de fato; e é isso que temos aqui, reviven-
fia ainda está vivo no que se refere aos meios fotográficos, quan-   do pela décima milésima vez diante dos nossos olhos. Quem ou-
do praticamente morreu com respeito à palavra impressa, é que        saria dizer que tudo não passa de uma história?
a fotografia é lida, justificadamente, como o registro de alguma
coisa que de fato aconteceu. O que está representado no celu-                                                                   (2000)
loide foi de fato feito em algum momento do passado por pessoas
de verdade diante de uma câmera. A história em que esse mo-
mento está incluído pode ser fictícia, mas o evento foi real, per-
tence à história, a uma história que se revive cada vez que o fil-
me é exibido.
    Apesar de toda a inteligência investida na teoria do cinema
desde a década de 1950 para caracterizar o cinema como apenas

     272                                                                                                                       273
livro sobre os Estados Unidos -     que contém uma nota seme-
18.Philip Roth, Complô contra                                         lhante, começando com as palavras "Complô contra a América
a América                                                             é uma obra de ficção" - deve ser lido da mesma forma, ou se-
                                                                      ja, com sua verdade mantida em suspenso? Num certo senti-
                                                                      do, não, e obviamente não. O enredo de Complô contra a Amé-
                                                                      rica não pode ser verdadeiro porque todos sabem que muitos dos
                                                                      acontecimentos em torno dos quais ele se desenvolve jamais ti-
                                                                      veram lugar. Por exemplo, nunca houve um presidente Charles
                                                                      Lindbergh na Casa Branca nos anos 1941-2, atendendo a ordens
                                                                      secretas recebidas de Berlim. É igualmente óbvio, porém, que
                                                                      Roth não inventou essa longa fantasia sobre os Estados Unidos
                                                                      nas mãos dos nazistas como um mero exercício literário. Qual é
                                                                      então a relação entre sua história e o mundo real? O livro, afinal,
                                                                      é "sobre" o quê?2
      Em 1993, acima do nome "Philip Roth", foi lançado um li-               O presidente Lindbergh do livro de Roth prefere usar um
vro intitulado Operação Shylock: uma confissão, que, além de           estilo de oratória baseado na frase dec1aratória entrecortada. Seu
ser uma incursão alucinante num território que parecia reserva-        governo comanda iniciativas sinistras com nomes reconfortantes
do a John Barth e aos metaficcionistas, também tratava de Israel       como "Gente Simples", "Just Folks", e "Nossa Terra 42", "Ho-
e de suas relações com a Diáspora judaica. Operação Shylock            mestead 42" (que podem ser justamente comparados com o
apresenta-se como a obra de um escritor americano chamado              "Homeland Security Act" e o "Patriot Act" de anos recentes). Por
Philip Roth (no interior do livro, contudo, existem duas persona-      trás de Lindbergh espreita um vice-presidente ideólogo e impa-
gens chamadas Philip Roth), que admite ter auxiliado em segre-         ciente para pôr as mãos nas alavancas do poder. As semelhanças
do os serviços de informação de Israel. Podemos decidir aceitar        entre o governo Lindbergh e o governo de George W. Bush são
essa confissão ao pé da letra. Por outro lado, ela pode fazer parte    difíceis de ignorar. Será então esse romance de Roth falando dos
de uma criação ficcional mais ampla: Operação Shylock - uma            EUA sob o domínio fascista um livro "sobre" os EUA sob o segundo

confissão: um romance. Qual seria a leitura mais fiel? A "Nota ao      dos Bush?
leitor" que encerra o livro parece prometer uma resposta. A no-              Na época em que o livro foi lançado, Roth fez o possível
ta começa dizendo: "Este livro é uma obra de ficção", e termina         para desencorajar essa leitura. "Parte dos leitores irá querer consi-
dizendo: "Esta confissão é falsa". Estamos, noutras palavras, em        derar meu livro um roman à def sobre o momento atual dos Es-
pleno paradoxo do Mentiroso Cretense.1                                  tados Unidos", escreveu ele na New York Times Book Review.
      Se Roth pretende e não pretende que seu livro sobre Israel        "Mas isso seria um erro ... Meu interesse [pelos anos 1940-2] não é
seja lido como uma mentira, uma invenção, será que seu novo             apenas simulado -     estou de fato interessado nesses dois anos."3

                                                                                                                                     275
    274
A advertência soa inequívoca, e de fato é. Ainda assim, um            Para qualquer leitor mais sensato, Complô contra a Améri-
 romancista experiente como Roth sabe que as histórias que co-         ca só pode ser "sobre" o governo de George W. Bush de maneira
 meçamos a escrever muitas vezes começam a escrever-se sozi-           muito periférica. Um grau extremo de paranoia seria necessário
nhas; a partir de então sua veracidade ou falsidade nos escapa         para transformá-lo num roman à def falando do início do sécu-
das mãos, e as declarações de intenção do autor perdem qual-           lo XXI. Entretanto, uma das coisas de que trata Complô contra a
quer peso. Além disso, depois que um livro é lançado no mundo          América é, justamente, a paranoia. Na história de Roth, a cons-
ele se torna propriedade dos seus leitores, que, à menor oportu-       piração de cima para baixo, em termos mais imediatos, uma tra-
nidade, irão certamente distorcer seu significado de acordo com        ma contra os judeus americanos, em última instância, um com-
suas próprias preconcepções e seus próprios desejos. Novamen-          pIá contra a república norte-americana, funciona de maneira tão
te, Roth sabe disso: no mesmo artigo publicado no New York Ti-         insidiosa que num primeiro momento as pessoas sensatas não
mes ele nos lembra que, embora Franz Kafka não tenha escrito           conseguem percebê-Ia. Qualquer um que fale de trama ou cons-
seus romances como alegorias políticas, os europeus orientais          piração é desqualificado e tachado de louco.
dominados por governos comunistas liam-nos dessa maneira, e
chegaram mesmo a utilizá-los com fins políticos.                           A história fictícia de Roth começa em 1940, quando, a rebo-
    Finalmente, podemos notar que essa não é a primeira vez            que de uma campanha para manter os Estados Unidos fora da
que Roth nos convida a pensar sobre uma guinada rumo ao fascis-        guerra recém-irrompida na Europa, o aviador Charles Lind-
mo conduzida de cima para baixo. Em Pastoral americana (1997),         bergh derrota Franklin Delano Roosevelt nas eleições presiden-
o pai do herói, ao assistir às audiências de Watergate na televisão,   ciais. Muita gente fica horrorizada com a eleição de um conhe-
observa a respeito do círculo que rodeava Richard Nixon:               cido simpatizante do nazismo para presidente. Mas, em face do
                                                                       seu sucesso em manter os EUA prósperos e em paz, a oposição
    Esses patriotas de meia tigela ... por eles, pegavam este país e   aos poucos se enfraquece. Roosevelt se retira para lamber suas
    transformavam numa Alemanha nazista. Conhecem o livro ft           feridas. As primeiras leis visando os judeus são aprovadas, e nem
    Can't Happen Here? É um livro maravilhoso, esqueci quem es-        provocam protestos.
    creveu, mas a ideia não podia ser mais atual. Essas pessoas nos         A pouca resistência que se manifesta cristaliza-se em torno
    levaram até a beira de uma coisa terrível.4                        de um núcleo pouco provável. Semana após semana, o jornalis-
                                                                       Ia Walter Winchell usa seu programa de rádio para fustigar Lind-
    O livro a que ele se refere mal é legível nos dias de hoje. lt     bergh. Fora da comunidade judaica, porém, encontra pouco
Can't Happen Here [Não pode acontecer aqui, 1935], em que              apoio. O New Ydrk Times critica suas investi das por seu "gosto
Sinclair Lewis imagina uma tomada do governo americano por             discutível", e aplaude os anunciantes quando estes o retiram do
uma mistura instável de forças populistas e de extrema-direita.        ar. Winchell   reage denunciando   os proprietários do Times co-
Como modelo para o seu presidente fascista, Lewis não usava            mo "quislings judeus ultra-civilizados". Destituído do seu único
Lindbergh, mas o demagogo populista Huey Long.                         acesso aos meios de comunicação, Winchell candidata-se à indi-

    276                                                                                                                         277
cação do Partido Democrata para 1944. Num comício na terra            trar-se no ceme da intenção    do seu autor: que a história que
de Lindbergh, porém, acaba assassinado. Durante o funeral,            aprendemos nos livros escolares é uma versão censurada e do-
Fiorello La Guardia faz um discurso que lembra o de Marco An-         mesticada do que realmente ocorreu. A verdadeira história é o
tônio, carregado de ironia cortante, ao lado do caixão. Em res-       imprevisível, "o imprevisto implacável". "O terror do imprevis-
posta, Lindbergh embarca em seu aeroplano, levanta voo e nun-         to é o que a ciência da história oculta." E, na medida em que nos
ca mais se tem notícias suas. (pp. 240, 242)                          transmite a crônica da irrupção do imprevisto na vida de uma
     Depois do desaparecimento       de Lindbergh, as coisas ainda    criança, Complâ contra a América é um livro de história, mas
pioram antes de começarem a melhorar. Seu vice-presidente e           de um tipo fantástico, dotado de uma verdade própria: o tipo de
sucessor, Burton K. Wheeler, é um extremista, e sob o seu gover-      verdade que Aristóteles tinha em mente quando disse que a poe-
no ocorre um breve reino de terror. Revoltas eclodem nas ruas;        sia é mais verdadeira que a história - mais verdadeira devido a
judeus, escritórios e lojas de judeus são atacados. Anne Morrow
                                                                      seu poder de condensar e representar a multiplicidade   pelo que
Lindbergh, logo ela, levanta a voz em protesto, é imediatamente
                                                                      é típico. (pp. 7,113,114)
capturada pelo FBI e posta sob custódia. Fala-se de começar uma
                                                                           O pai de Philip, Herman Roth - cujo avatar da vida real já
guerra contra o Canadá, que vem dando abrigo aos judeus per-          teve seus louvores cantados pelo filho em Patrimony [Patrimô-
seguidos pelo poderoso vizinho do sul.
                                                                      nio, 1991] -, é um homem de qualidades impecáveis, dotado de
     Mas logo o país corrige seus rumos. A resistência reúne fi-
                                                                      uma lealdade mais intensa, ou talvez mais romântica, aos ideais
guras políticas como La Guardia e Dorothy Thompson, mulher
                                                                      da democracia     americana   que qualquer outra personagem     do
de Sinclair Lewis e espírito que animou a composição de li
                                                                      livro. Herman faz o possível para manter sua família a salvo da
Can't Happen Here, aos americanos decentes de todas as ori-
                                                                      tempestade que se anuncia; mas, a fim de evitar que sejam relo-
gens. Numa eleição presidencial extraordinária realizada em no-
                                                                      cados de sua Newark natal para o interior do país (a finalidade
vembro de 1942, Roosevelt recupera o cargo, e o Japão imedia-
tamente bombardeia Pearl Harbor. Assim, exatamente com um              real do programa Nossa Terra 42 -   a segregação dos judeus), ele
ano de atraso, a nau da história -     da história americana, aliás    precisa deixar seu trabalho de corretor de seguros e aceitar um
-   retoma a seu curso traçado.                                        emprego noturno carregando caixotes no mercado; e mesmo ali
                                                                       não está a salvo das ameaças do agente McCorkle e do FBI.

     A década de 1940 nos é mostrada pelos olhos de um certo                O espetáculo da impotência de seu pai diante do Estado de-
Philip Roth, nascido em 1933, menino cuja disposição estável e         sencadeia um colapso psíquico profundo em Philip. A crise co-
feliz se deve ao fato de ser "o filho americano de pais americanos     meça com pequenos delitos, prossegue manifestando-se sob a
numa escola americana numa cidade americana numa América               forma de alienação ("Ela é outra pessoa", diz ele para si mesmo,
em paz com o mundo". À medida que o programa de Lindbergh              observando a sua mãe, "todo mundo é outra pessoa.") e culmina
começa a entrar em ação, porém, o jovem Philip é obrigado a            quando ele foge de casa e procura refúgio num orfanato católi-
absorver, passo a passo, uma lição que pode justamente encon-          co. Ele exprime com toda a clareza o significado de fugir de ca-

                                                                                                                                279
     278
sa. "Eu não queria ter nada a ver com a história. Eu queria ser só        em que medida se pode dizer que o verdadeiro Philip Roth traz
 um menino, na menor escala possível." (pp. 194,232)                       as marcas da infância devastada do jovem Philip poderia aju-
      A crise de Philip é tratada com leveza -   apesar da ameaça          dar-nos então a responder àquela pergunta: do que realmente
 sinistra que paira no ar, o tom do livro é cômico. A fuga do me-          trata esse livro, essa obra de ficção?
 nino manifesta antes o pânico que sua rejeição à família ou ao                 Quaisquer marcas que Philip traga adquirem uma aparên-
 seu legado. Um dos alter egos de Roth, Nathan Zuckerman, já               cia cada vez mais estranha à medida que as examinamos. Oskar
 insinuou no passado que o Roth filho obediente e cumpridor dos            Matzerath, em O tambor, de Günter Grass, traz dentro de si ou
 deveres é um impostor, e que o verdadeiro Roth é o rebelde dis-           em si, bem mais obviamente que Philip Roth, a prova de que
 simulado e escabroso que primeiro se manifestou em O comple-              nada queria ter a ver com a história. Oskar afirma seu direito à
 xo de Portnoy (1969). Complâ contra a América, na verdade, con-           infância não se escondendo da história, o que seria impossível,
testa as palavras de Zuckerman, apresentando-nos     um pedigree           nem mesmo num orfanato, mas parando de crescer, o que - de
para o Roth mais filial e "cidadão".5                                      certa forma -   até pode ser feito. Mas a história com que Oskar
     Ainda assim, Lindbergh, e o que Lindbergh representa -        a       colide, a história do Terceiro Reich, não é um "imprevisto" abs-
licença para a manifestação desenfreada de tudo que existe de              trato: ela de fato aconteceu, como ficou atestado na memória
mais feio na psique americana -,    força Philip a crescer depres-         comum e registrado em milhares de livros e milhões de fotogra-
sa demais, a perder cedo demais suas ilusões infantis. Em prazo            fias. Já a história que deixa cicatrizes em Philip, por outro lado,
mais longo, que efeito esse despertar abrupto da infância tem              só aconteceu na cabeça de Philip Roth e só se encontra registra-
sobre Philip? Num certo sentido, a pergunta não cabe. Como                 da em Complâ contra a América. Explicar Complâ contra a Amé-
o romance de Roth termina em 1942, não chegamos a ver Philip               rica e seu mundo imaginário, portanto, é bem menos fácil e ób-
para além dos nove anos de idade. Mas, se o autor Philip Roth              vio que explicar O tambor.
pretendia escrever sobre uma criança fictícia que só existe nas                 Mas quanto, afinal, é imaginário o mundo descrito no li-
páginas de um romance, não teria dado a esse menino o nome                 vro de Roth? Uma presidência Lindbergh pode ser imaginária,
de Philip Roth, nascido no mesmo ano que ele e de pais com                 mas o antissemitismo do verdadeiro Lindbergh não era. E Lind-
nomes idênticos aos dos seus. De alguma forma, o jovem Philip              bergh não estava sozinho. Dava voz a um antissemitismo ameri-
Roth sobre cuja infância lemos no livro teve sua vida continua-            cano que tinha uma longa pré-história no cristianismo católico e
da pela vida do Philip Roth que, seis décadas mais tarde, não só           protestante, cultivado em inúmeras comunidades de imigrantes
narra a história do menino como ainda a escreve.                           europeus e alimentado    ainda pelo fanatismo contra os negros
    De alguma forma, então, estamos diante não só da história              com o qual era, pela lógica irracional do racismo, cerradamente
de um representativo menino judeu americano da geração que                 entrelaçado (entre todos os "indesejáveis históricos" da América,
chegou à consciência na década de 1940 - embora essa década                sugere Roth, não podia haver grupos mais díspares que os negros
nos seja apresentada aqui numa versão pervertida - mas tam-                e os judeus).6 Um eleitorado volátil e caprichoso cativado antes
bém da história do Philip Roth histórico e real. Tentar decifrar           pela aparência que pela substância - perigo antevisto por Toc-

    280                                                                                                                               281



                                                                       1
queville muito tempo antes - tanto poderia em 1940 ter-se dei-       parece um complexo de perseguição pode ser, na verdade, um
xado seduzir pelo aviador heroico com uma mensagem simples           mecanismo de sobrevivência. (p. 193)
quanto pelo candidato à reeleição. Nesse sentido, a fantasia de          A julgar por qualquer padrão objetivo, Sandy emerge dos
um governo Lindbergh é apenas uma concretização,         uma rea-    anos Lindbergh tão coberto de cicatrizes quanto seu irmão mais
lização para fins poéticos, de certo potencial da vida política      novo, e talvez ainda mais, pois é obrigado a viver como um estra-
amencana.                                                            nho no lar dos pais que o reprovam. Se esses anos tivessem de
     Tendo em mente essa leitura de Lindbergh, podemos retor-        fato acontecido, o irmão historicamente mais velho de Philip
nar à questão das cicatrizes que o filho da década de 1940 apre-     Roth - que é tão verdadeiro quanto Philip, e viveu a mesma
senta no futuro. E aqui, em vez de vasculharmos a vida e o ca-       história - também traria suas marcas. No entanto, o governo de
ráter do verdadeiro Philip Roth, empreendimento questionável         Lindbergh não aconteceu, e não existem marcas desse período
em quaisquer circunstâncias, pode ser útil voltarmo-nos para ou-     como tal. Qual será então a natureza das cicatrizes que os dois
tro menino da família Roth, o irmão mais velho de Philip, San-       irmãos, o escritor e o não escritor, trazem em decorrência de
dy, aquele que não foge da história (e tampouco escreve um livro     uma história que é chamada poeticamente (no sentido dado por
sobre a sua infância). Philip, apaixonadamente patriota, colecio-    Aristóteles) de governo Lindbergh? Ou será apenas o irmão es-
na ícones (selos) de americanos exemplares. Sandy, possuidor de      critor quem traz uma cicatriz? Ou na verdade não existirá cica-
dotes artísticos, prefere desenhar os seus heróis. Ambos colecio-    triz alguma?
nam imagens do aviador Lindbergh que adoram; como judeus,                  Embora o jovem Philip vá, é claro, crescer e transformar-se
porém, os dois se veem diante de uma crise quando Lindbergh          num escritor famoso, Complâ contra a América não é um livro
revela sua verdadeira coloração política. Philip não quer se des-    sobre a incubação da alma do escritor. Em nenhum momen-
fazer de seus selos de Lindbergh; Sandy esconde seus retratos de     to Roth invoca a imagem do artista ferido pela vida cuja dor se
Lindbergh debaixo da cama.                                           transforma na fonte da sua arte. A única explicação que parece
     Sob a influência de um rabino colaboracionista com quem         fazer sentido para a cicatriz dos anos Lindbergh é a própria con-
a irmã da mãe deles é casada, mas contrariando a vontade de          dição judaica - uma condição judaica, entretanto, de etiolo-
seus pais, Sandy alista-se voluntariamente no programa Gente         gia peculiar: a condição judaica como a ideia que alguém de
Simples, que leva jovens judeus para passar o verão fora das gran-   fora, e alguém hostil, além do mais, faz do que seja ser judeu,
des cidades e os hospeda na casa de típicas (isto é, simpatizantes   uma ideia imposta cedo demais ao menino que começa a cres-
de Lindbergh) famílias não judias em áreas rurais. Sandy passa o     cer, e por meios que, embora possam não ser propriamente ex-
verão numa propriedade rural do Kentucky e volta para casa for-      tremos, podem facilmente - e a década de 1940, a época por
te e bronzeado, incapaz de entender por que seus pais, a quem        excelência do imprevisto, nos trouxe provas abundantes - tor-
define com desprezo de "judeus do gueto" atacados por um "com-       nar-se extremos.
plexo de perseguição", mostram-se tão nervosos por causa de               O que o complô contra a América causa ao jovem Philip
Hitler. E leva um ano inteiro para entender que aquilo que lhe       entre seus sete e nove anos de idade é terrível. Impõe ao meni-

    282                                                                                                                       283
no -      embora menos, deve-se dizer, em primeira mão do que                     tamente não precisavam de nenhuma outra língua -       já tinham
através dos noticiários cinematográficos          e jornais radiofánicos,         a sua, sua língua materna, cuja expressividadevernácula maneja-
                                                                                  vam sem esforço [...] O que eram era aquilo de que não conse-
além das conversas inquietas entre os pais que ele escuta aqui e
ali - uma visão do mundo baseada no ódio e na desconfiança,                       guiam livrar-se - aquilo de que nem mesmo teriam modo de
um mundo dividido entre "eles" e "nós". Faz com que ele deixe                     começar a livrar-se.O fato de serem judeus vinha de serem quem
de ser um americano judeu e se transforme em judeu america-                       eram, tanto quanto o fato de serem americanos. [...] (p. 220)
no ou, aos olhos dos seus inimigos, simplesmente            um judeu na
América. Ao despertá-Io cedo demais para a "realidade", o com-                     A descrição que Roth nos apresenta do judaísmo de pes-
                                                                              soas como os seus pais é totalmente afirmativa. Não há sinal aqui
pIá o despoja da sua infância. Ou, diriam os sionistas, o complá
o despoja das suas ilusões. Um judeu não pode esperar outro lar               do que ele sugere noutras passagens: que, para alguns judeus, a
no planeta que não a pátria judaica.                                          religião reduzida a um código de ética mais algumas práticas
                                                                              sociais pode ser vista como árida demais, e que para darem um
                                                                              sentido mais completo às suas vidas podem mergulhar histerica-
    O que é ser judeu na América? Um judeu tem lugar na
América? Pode a América ser o verdadeiro lar de um judeu?                     mente em algum culto (a mulher de Mickey Sabbath em O tea-
                                                                              tro de Sabbath) ou na violência revolucionária (Meredith Levov
Herman e Bess Roth, os pais de Philip, nasceram nos Estados
                                                                              em Pastoral americana).
Unidos no início do século xx, de pais imigrantes. Amam o país
                                                                                   A condição judaica de Herman Roth e dos seus semelhan-
em que nasceram e trabalham muito para abrir caminho nele.
Philip presta um tributo à geração de seus pais que não deixa de              tes pode ser desprovida de uma dimensão metafísica, mas corpo-
ter suas nuances de elegia:                                                   rifica uma química que nem os sionistas nem os arquitetos do
                                                                              programa Nossa Terra 42 conseguem compreender. A condição
       Era o trabalho que identificava e distinguia nossos vizinhos para      de judeu americano é um composto, e não uma mistura sim-
       mim, mais que a religião. Ninguém [...] tinha barba ou se vestiaao     ples. Não é possível subtrair simplesmente um dos seus elemen-
       estilo antiquado do Velho Mundo ou usava solidéu [...] Os adul-        tos ("judeu" ou "americano") e ficar com o outro. Ser americano
       tos não eram mais judeus praticantes de maneira manifesta e re-        _ falar a língua americana, participar do modo de vida america-
       conhecível [...] [O único] desconhecido que usava uma barba...         no, estar impregnado da cultura americana - não requer que
                                                                              o indivíduo deixe de ser judeu nem acarreta uma perda do ju-
       [e] aparecia de alguns em alguns meses depois que anoitecia para
                                                                              daísmo; no sentido oposto, ser relocado arbitrariamente       de uma
       pedir, em inglês precário, uma contribuição para a criação de uma
                                                                              comunidade    judaica a uma "americana" (isto é, de gentios) não
       pátria nacional judaica na Palestina ... parecia incapaz de admi-
       tir que já tínhamos uma pátria havia três gerações [...] (p. 34)       faz de ninguém mais americano do que era. O mesmo se aplica
       [ ...]                                                                 ou se aplicava aos judeus da Europa. Roth cita com aprovação
                Esses judeus não precisavam de termos amplos de referência,   a observação mordaz de Aharon Appelfeld: "Sempre gostei dos
       de profissãode fé ou de credo doutrinário para serem judeus, e cer-     judeus assimilados, porque é neles que o caráter judeu, e tam-

                                                                                                                                            285
       284
bém, talvez, o destino judaico, apresenta-se concentrado     com     volta para Newark numa cadeira de rodas, medalha no peito e
maior força".?                                                       uma raiva surda contra tudo e contra todos. Com determinação
     Depois da eleição de Lindbergh, Herman leva sua família         sinistra, Alvin ingressa numa vida de crimes, livrando-se do pas-
numa viagem a Washington, onde espera que o contato com os           sado militante antifascista que passa a considerar um tolo capri-
monumentos duradouros da democracia americana consiga eli-           cho juvenil. Com cicatrizes mais profundas que as dos dois ir-
minar o travo desagradável dos acontecimentos recentes. Em           mãos, Alvin está no livro para nos recordar, mais sobriamente, o
vez disso, a família aprende que sabor vem adquirindo a vida pú-     que a história real pode fazer em matéria de destruição das vi-
blica na América mais ampla. São expulsos do seu quarto de ho-       das humanas.
tel sob um falso pretexto, e submetidos a ameaças antissemitas
de outros turistas. O triunfo de Lindbergh foi claramente enten-          Embora a mente através da qual os acontecimentos de 1940-2
dido pelos americanos médios como um sinal de abertura da tem-       nos são apresentados seja uma mente de criança, o relato que
porada de caça.                                                      lemos não é nunca faux-naíf A voz que nos fala é a da criança já
     Um homem desconhecido se associa à família Roth. Afirma         crescida, mas submetida à visão que tinha quando mais nova e,
ser guia profissional e não aceita ser dispensado. Quem será ele,    em contra partida, emprestando a essa identidade mais jovem uma
na verdade? Em seu novo estado de paranoia, o casal Roth sus-        percepção concentrada de si mesma que criança alguma possui.
peita de que seja um agente do FEl, e decidem testá-Io. Mas ele           Não há nenhum sinal particular de que essa voz adulta che-
passa em todas as provas. A verdade, bem mais simples, é que ele é   gue a nós da primeira década do século XXI (mal se encontra no
exatamente o que diz ser: um guia turístico, e dos bons, ainda       livro alguma perspectiva do futuro além de 1945), mas diante dos
por cima. Mas na nova América nada era simples. Uma viagem           vestígios autobiográficos podemos considerar que pertence ao
destinada a confirmar aos meninos o legado comum a todos se          Philip Roth histórico ou a seu alter ego ficcional "Philip Roth",
transforma numa verdadeira aula de exclusão. Philip: "Paraíso        de cujo repertório o conhecimento trazido pela retrospectiva é
patriótico, o Jardim do Éden americano se estendia à nossa fren-     deliberadamente excluído e que consegue deixar passar todas as
te, e ali nos encolhemos uns contra os outros, a família expul-      oportunidades de mostrar-se inteligente à custa da criança. Se
sa". Nos termos mais crus, é isto que o complô do título de Roth     se puder falar do afeto de um homem adulto pela criança que
pretende e, no nível do imaginário, consegue: expulsar os judeus     ele próprio foi, o afeto respeitoso que o escritor demonstra pelo
da América. Juden raus. Eis o que Philip não consegue esquecer.      jovem Philip é um dos aspectos mais atraentes do livro. A modu-
(p. 60)                                                              lação entre o frescor de uma visão jovem e a percepção adul-
      E para finalmente pôr em perspectiva qualquer cicatriz me-     ta é conduzida com tamanha habilidade que perdemos a noção
tafórica: não devemos nos esquecer do terceiro filho da família      de quem está falando em nossos ouvidos num dado momento,
Roth: Alvin, o agregado de 21 anos, órfão no sentido próprio da      a criança ou o homem feito. Só raramente a mão de Roth falha,
palavra, que foge de casa para se alistar no exército canadense      por exemplo, quando o menino Philip vê sua tia Evelyn como
e lutar contra os nazistas, perde uma perna de forma inglória e      realmente é: "Seu belo rosto, com seus traços grandes e a ma-

     286                                                                                                                      287
quiagem aplicada em camadas grossas, de repente me pareceu           seu filho, fossem despachados para o Kentucky. Para seu desalen-
absurdo - o rosto carnal de [uma] mania insaciável". (p. 217)        to, a tia atende a seu pedido. Meses depois de ter chegado à cida-
    Submeter-se à visão de mundo de uma criança significa que        de de Danville, a mãe de Seldon é atraída para uma armadilha
Roth precisa abster-se de toda uma gama de recursos estilísticos,    e assassinada por milicianos antissemitas, e Seldon precisa ser
em especial o gume mais afiado da ironia e as perorações e ras-      devolvido a N ewark, agora órfão. Assim, Philip se vê diante da
gos de eloquência desesperada que distinguem romances como           culpa não só de ter enviado a sra. Wishnow para a morte como
O animal agonizante (2001) e o grande O teatro de Sabbath            ainda do castigo do convívio diário compulsório com Seldon.
(1995), eloquência desencadeada pela resistência bruta do mun-            Na noite do desaparecimento de sua mãe, Seldon telefo-
do à vontade humana ou pela perspectiva da extinção que se           na para Newark (não conhece ninguém no Kentucky), e a sra.
avizinha. Por outro lado, põe Roth fora do alcance de William        Roth, lançando mão de todos os seus recursos de firmeza mater-
Faulkner, a influência de cuja prosa carregada às vezes o pre-       na, desincumbe-se de nada menos que a tarefa de conservar a
judica nos anos recentes, especialmente    em A mancha huma-         sanidade daquele menino nervoso. A conversa entre os dois pelo
na (2000).                                                           interurbano contém alguns dos diálogos mais dilacerantes (sabe-
     Roth só ganhou em estatura como escritor à medida que foi       mos que a mãe de Seldon morreu, mas nem Seldon nem a sra.
envelhecendo. No seu melhor, ele é hoje um romancista de al-         Roth sabem disso, embora ela tema o pior) e ainda assim mais
cance autenticamente   trágico; no seu ápice, é capaz de atingir     engraçados que Roth jamais escreveu.
alturas shakespeareanas. Pelo padrão estabelecido por O teatro
de Sabbath, Complô contra a América não é uma de suas obras               Um romance histórico, por definição, transcorre num pas-
maiores. O que ela oferece a seus leitores, no lugar da tragédia,    sado histórico real. O passado em que Complô contra a América
é um páthos dilacerante que se salva do sentimentalismo pelo         se desenrola não é real. Desse modo, o Complô, em termos de
humor aguçado, um desempenho       de alto risco e no fio da nava-   gênero, não é propriamente um romance histórico mas um ro-
lha que Roth executa sem um escorregão.                              mance distópico, embora fora do comum, pois normalmente os
     A personagem que apresenta o páthos mais tocante não é o        romances distópicos transcorrem no futuro, um futuro rumo ao
jovem Philip - muito embora quando sai pela noite agarrado a         qual o presente parece tender. O 1984 de George Orwell é um ro-
seu álbum de selos, determinado a voltar a ser um simples garo-      mance distópico exemplar, escrito da perspectiva de um 1948 em
to, Philip seja uma figura bastante patética -, mas seu vizinho      que a ameaça do controle total parecia assustadoramente forte.
e sombra, Seldon Wishnow. Como Philip, Seldon é um meni-                 No típico romance distópico, existe uma conveniente la-
no inteligente, impressionável e obediente. Também sofre de um       cuna entre o presente e o futuro - conveniente porque libera
azar fatal, sendo uma vítima de nascença, e Philip não quer na-o      o autor da obrigação de demonstrar passo a passo como o pre-
da com ele (Seldon, claro, adora Philip). Em seus esforços para       sente se transforma nesse futuro. E ele só precisa nos apresentar
livrar-se da maldição de Seldon, Philip sugere à tia Evelyn, que      duas linhas de sutura: os imaginários anos Lindbergh devem ser
trabalha no escritório de relocação, que os Wishnow, a viúva e        cosidos de um lado à história real da qual divergem a partir de

     288                                                                                                                        289
,:t   ~,   ':(

meados de 1940, e na outra ponta à história real em que desem-
bocam, no final de 1942. À luz dos padrões mais estritos a cirur-
gia de Roth é um fracasso, e só poderia mesmo fracassar. Mes-              Na vida real, Charles Lindbergh reagiu a Pearl Harbor jun-
mo sob o controle de um governo obstinadamente isolacionista,          tando-se ao esforço de guerra e participando, como piloto, de
a história americana não teria como avançar independentemen-           raids de bombardeio contra os japoneses. Morreu em 1974. O
te da história mundial. A América, ausentando-se do palco inter-       que acontecerá com o Lindbergh da ficção depois de outubro de
nacional por dois anos, teria inevitavelmente   afetado o curso da     1942, quando decola num voo solo e nunca mais é visto?
                                                                            Nenhuma resposta sólida nos é fornecida, só rumores. De
guerra e assim mudado o mundo.
                                                                       acordo com um deles, Lindbergh teria sido forçado a pousar em
     Se, por sua natureza,    a história alternativa   de Roth não
                                                                       solo canadense por aviões britânicos. Segundo os alemães, teria
tem como passar no teste da realidade, passará pelo teste me-
                                                                       sido sequestrado pelo com pIá judaico internacional. Os britâ-
nos exigente da plausibilidade? Será plausível, por exemplo, que
                                                                       nicos afirmam que ele teria pousado com seu avião nas águas
o Congresso americano não se incomodasse com o espetáculo
                                                                       do Atlântico, sendo recolhido por um submarino alemão que o
do avanço das forças japonesas pela Indonésia, Índia e Austrá-
                                                                       conduzira ao Reich. Anne Morrow Lindbergh divulga uma his-
lia, criando assim as bases de uma vasta Esfera de Prosperidade
                                                                       tória segundo a qual o filho do casal não teria sido assassinado
Mútua governada a partir de Tóquio? Será plausível que aquilo
                                                                       depois do sequestro de 1932, mas levado para a Alemanha, onde
que as Forças Armadas americanas levaram quatro anos de his-
                                                                       era usado como refém para garantir que seus pais cumprissem as
tória real para conseguir (1942-5) pudesse ter sido realizado nos      ordens de seus controladores alemães; e que o próprio Charles
três anos da história revista (1943-5)?
                                                                       Lindbergh tivera seu avião derrubado por agentes alemães por-
     Perguntas como essas seriam menos relevantes se Roth se           que deixara de ser considerado merecedor de confiança. Diante
tivesse entreguado a uma fábula especulativa do tipo "e se ...?".      dessas versões mutuamente excludentes, tudo que nós, os leito-
Mas o desafio que ele se propõe a enfrentar é mais rigoroso. Roth      res dessa história fictícia, podemos dizer é que ficamos sem saber
escreve um romance realista sobre eventos imaginários. Da pre-         o que terá havido com Lindbergh e, o que é mais grave, sem sa-
missa da eleição de um fascista para a Casa Branca, tudo mais          ber por que a presidência ou a conspiração de Lindbergh preci-
precisa decorrer segundo a lógica da plausibilidade.    E é por isso   sava acabar no momento em que acaba, dado que a resistência a
que, a fim de explicar a inação americana, Roth precisa dar-se ao      ela ainda não ultrapassara o estágio da mera oratória.
trabalho de criar todo um emaranhado de acordos secretos entre              O espírito que reina de certa distância sobre as últimas pá-
a Alemanha nazista e o Japão imperial de um lado e, de outro,          ginas de Complô contra a América, que soam um tanto apressa-
o fantoche de ambos instalado na Casa Branca. É por isso que           das, é o de Jorge Luis Borges. Mas Borges teria utilizado melhor
ele precisa reformar a cronologia da guerra. Confrontado     ao pa-    a camada sólida de pesquisa histórica com base na qual Roth
drão de plausibilidade a que ele próprio se submete, porém, esse       edificou seu livro. Enquanto Lindbergh desaparece em pleno ar,
pano de fundo histórico mostra-se mais que precário.                   sem deixar nada para trás, também seu presidente desaparece,


     29°                                                                                                                         291
deixando apenas rastros na mente do garoto que, ao crescer, irá
tornar-se o escritor Philip Roth. Com exceção do livro que temos
                                                                   19.   Nadine Gordimer
nas mãos, não existe nenhum outro legado do governo Lindbergh.
Esses dois anos fantasmagóricos e paralelos da história america-
na - e, como o mundo é indivisível, da história do mundo -
poderiam perfeitamente   não ter ocorrido.
    O que Borges sabia é que os caminhos da história são mais
complexos e mais misteriosos do que isso. Se tivesse havido um
presidente Lindbergh, nossas vidas hoje seriam diferentes e pro-
vavelmente bem piores, embora não tenhamos como saber ao
certo exatamente de que modo.


                                                          (2°°4)

                                                                         Num conto escrito por Nadine Gordimer        na década de
                                                                   1980, um casal britânico da classe trabalhadora   hospeda como
                                                                   pensionista um rapaz tranquilo e estudioso do Oriente Médio.
                                                                   Ele trava relações íntimas com a filha do casal, engravida a moça
                                                                   e propõe-lhe casamento. Os pais consentem com alguma hesi-
                                                                   tação. Mas, antes que ele possa casar-se com a jovem, anuncia o
                                                                   pensionista, ela precisa viajar desacompanhada até seu país na-
                                                                   tal para conhecer a família dele. Quando a leva ao aeroporto para
                                                                   se despedir, ele enfia uma bomba em sua mala. O avião explode;
                                                                   todos os passageiros morrem, inclusive sua suposta futura noiva
                                                                   iludida e o filho que ela levava no ventre!
                                                                         Não se vê no conto indicação alguma de que Gordimer cul-
                                                                   tive qualquer interesse pela motivação que o pensionista pudesse
                                                                   ter para um gesto tão desumano, na verdade diabólico, e de ma-
                                                                   neira mais geral pelas forças que atuam sobre os jovens muçul-
                                                                   manos e os levam a cometer atos de terror. Dez anos mais tarde,
                                                                   como para penitenciar-se por essa falta de curiosidade, ela revi-
                                                                   sita a situação nuclear do conto - o árabe que, por motivos pró-

    292                                                                                                                      293
prios, corteja e se casa com uma mulher ocidental - e descobre        real. Ele prefere o pai dela e os colegas banqueiros do sogro, de
nela a semente de uma linha de desenvolvimento muito mais             cujos valores grosseiros e vazio moral Julie se envergonha, e que
original e interessante. O romance O engate (2001) é o fruto des-     por sua vez nada querem ter a ver com o estrangeiro sem tostão
sa reexploração.2                                                     com quem ela se meteu.
     Julie Summers é uma sul-africana branca de família rica. É            Abdu pressiona Julie para que mobilize a família em favor
jovem, tem um bom emprego, tudo corre bem na sua vida. Um             de sua luta para tornar-se um imigrante legalizado. Mas começa
dia seu carro enguiça no centro da cidade. O mecânico que o           tarde demais: logo as autoridades da imigração avisam-no de que
conserta é bonito, de olhos negros, estrangeiro. Ficam amigos;        vai ser deportado.
mais adiante, começam um caso amoroso.                                     A essa altura ele julga que Julie irá abandoná-Io, como ele
    Logo descobrimos que Abdu, como ele diz chamar-se, é mais         próprio abandonaria qualquer pessoa cuja utilidade para ele ti-
um "ilegal" entre as centenas de milhares de estrangeiros que         vesse expirado. Em vez disso, ela sai e compra duas passagens de
vivem na África do Sul sem documentos, trabalhando à margem           avião, que exibe para ele sem dizer nada. O gesto o deixa como-
da economia formal. A maioria desses ilegais vem de outros paí-       vido. Por um momento ele a vê em todo seu mistério, uma cria-
ses africanos, mas Abdu vem de um país não identificado do            tura autônoma dotada de esperanças e desejos próprios. E então
Oriente Médio, um país desprovido de petróleo ou qualquer ou-         as velhas barreiras tornam a se erguer: se aquela mulher se afer-
tro recurso natural. A África do Sul é uma das várias rotas que       ra a ele, deve ser porque sexualmente não consegue largá-Io ou
Abdu já tentara para fugir da pobreza e do atraso: passara perío-     porque se entregou a algum complicado jogo moral, do tipo que
dos na Alemanha e na Grã-Bretanha, respondendo por trabalhos          só os ricos desocupados têm tempo de disputar.
que faziam os locais torcerem o nariz.                                     A decisão tomada por Julie, de acompanhá-Io de volta a seu
     Pela terra em que nasceu Abdu só sente desprezo. Não é           país, cria-lhe um problema de ordem prática. Ele não pode apre-
nem mesmo um país digno desse nome, diz ele, só um trecho de          sentar à sua família uma mulher que não se diferencie de uma
deserto demarcado por linhas que algum europeu morto tinha             meretriz. Primeiro precisa casar-se com ela. E então eles se casam
traçado num mapa muito tempo atrás. Sua ambição mais ardo-             às pressas num cartório.
rosa era tornar-se um imigrante legal, de preferência em alguma              Por que Julie dá o passo momentoso e aparentemente in-
democracia rica do Ocidente.                                           sensato de abandonar uma vida nada insatisfatória, num meio
     O sexo entre Abdu e Julie é maravilhoso; quanto ao resto,         nada desinteressante, para fugir para um recanto esquecido do
têm muito pouco em comum. Ela lê Dostoiévski; ele lê os jor-           mundo com um homem que, e não tem como deixar de saber
nais. Ela vê as pessoas por um enquadramento   de raça e de classe;    disso, não a ama, e que chega a acender e apagar o próprio sorri-
ele as vê como legais ou ilegais. Ele não gosta do círculo de ami-     so como um modo de controlá-Ia?
gos dela, membros descontentes da nova íntellígentsía sul-africa-            Um dos motivos é o sexo, com o significado que Julie, e
na pós-apartheid, tanto negros quanto brancos, cujo estilo de vida     Gordimer por trás dela, atribui ao sexo. As palavras podem men-
ele reprova e os quais considera ingênuos e ignorantes do mundo        tir, mas o sexo sempre diz a verdade. Como o sexo com Abdu

                                                                                                                                  295
    294
continua a ser intensamente satisfatório, deve haver algum po-        ra a capital, onde aplica seu tempo em percorrer as embaixadas
tencial profundamente oculto para aquela relação. Além disso,         e perseguir contatos em busca do difícil visto para o Ocidente.
os sentimentos de Julie por Abdu ainda têm algo de maternal e              Para Hamlet, ver-se obrigado à deferência diante de um bu-
protetor. Por baixo da superfície do seu duro menosprezo de ma-       rocrata é um dos insultos da vida cotidiana que envenenam a von-
cho, ela o acha pungentemente infantil e vulnerável, e não seria      tade de viver. Nos tempos modernos, ninguém se vê submetido
capaz de abandoná-Io.                                                 a maior insolência de ofício que um cidadão do Terceiro Mundo
     Acima de tudo, porém, Julie está cansada da África do Sul        que requeira um visto. Ibrahim, entretanto,   está disposto a en-
de um modo que, embora possa ser difícil achar crível em al-          golir toda a insolência que precisar, contanto que possa manter
                                                                      acesa a chama da Residência Permanente. Os Residentes Perma-
guém tão jovem, é muito fácil de acreditar numa pessoa da ge-
ração de Gordimer - cansada do profundo desgaste diário que           nentes são os donos do mundo. De posse dos seus papéis mági-
uin país com uma história centenária de espoliação e violência,       cos, todas as portas se abrem para eles.
além dos desalentadores contrastes entre a pobreza e a prosperi-           O que Ibrahim tem a oferecer em troca de uma vida nova é
dade, impõe a uma consciência moral. Melancolicamente, Julie          muito pouco: um diploma duvidoso de uma obscura universida-
                                                                      de árabe, um domínio vacilante do inglês, uma ânsia profun-
cita para Abdu (que é indiferente à poesia) os versos de William
                                                                      da de abandonar a identidade com que nasceu, uma disposição
Plomer: "Vamos para outro país/ Nem o seu nem o meu/ E co-
                                                                      estratégica a aceitar o Ocidente nos termos da avaliação que este
meçar de novo." ["Let us go to another country/ Not yours or
                                                                      faz de si mesmo e, agora, uma esposa-troféu, do "tipo certo de
minei And start again."]. (p. 88) Se James Baldwin já não se tives-
                                                                      estrangeira". (p. 140)
se apropriado dele, Another country [Outro país] seria um ótimo
                                                                           Enquanto espera notícias do alto, Ibrahim passa os dias nos
título para o livro de Gordimer, captando a inquietação que mo-
                                                                      cafés com seus amigos, falando de política. Seus amigos são re-
ve seu duo de protagonistas - começar uma vida nova - muito
                                                                      presentativos do jovem nacionalismo árabe. Querem o mundo
melhor do que O engate.
                                                                      moderno e seus aparelhos, mas não querem ser esmagados por
                                                                      ele. Querem livrar-se dos governos corruptos, pela revolução se
    E assim Julie e Abdu chegam ao desprezado país de origem
                                                                      for o caso, contanto que a revolução possa acomodar a moral e a
de Abdu, e o verdadeiro nome do sequestrador de Julie é revela-
                                                                      religião tradicionais.
do: Ibrahim ibn Musa, cujos três irmãos são, respectivamente, aju-          Ibrahim mantém um ceticismo silencioso. Envolver-se na
dante de açougueiro, garçom e empregado doméstico. Ibrahim
                                                                      política do Oriente Médio irá condená-Io, a seu ver, a uma resi-
chega ao lar não coberto de glória, como o filho que construiu        dência permanente na pobreza e no atraso. Suas aspirações são
uma vida de sucesso no estrangeiro, mas como um deportado,            de outro tipo; elas o animam de um modo que ele não consegue
um rejeitado.                                                         articular, mantendo-o apartado dos seus semelhantes.
    Tendo instalado a mulher aos cuidados da mãe na desolada                A Austrália o recusa, depois o Canadá e a Suécia. Mas ao
cidadezinha do interior onde vive sua família, Ibrahim parte pa-      cabo de um ano inteiro de petições os Estados Unidos lhe con-

    296                                                                                                                        297
cedem dois vistos. Ibrahim é tomado de júbilo. Ele e Julie irão               tava habituada. Mas logo ela se submete e acaba por se transfor-
viver na Califórnia ("É onde todo mundo quer viver"); ele irá                 mar numa boa nora, desicumbindo-se das tarefas domésticas
ingressar no mundo da informática, ou então, com a ajuda do pa-               mais humildes, contribuindo    com a comunidade com aulas gra-
drasto de Julie, para o negócio dos cassinos. (p. 238) E não con-             tuitas de inglês, encetando   o estudo do Alcorão e, de maneira
segue acreditar quando Julie lhe comunica que não pretende ir                 geral, adaptando-se àquele novo ritmo de vida.
com ele. Prefere ficar com a família dele, diz ela; encontrou seu                   O que não é mero jogo de cena, nem um simples exerCÍ-
outro país, e não é a América, é aqui.                                        cio de turismo cultural. Sem a menor ambiguidade, é-nos dado a
                                                                              entender que, no decorrer do ano que passa na casa da família de
      Os amigos de Ibrahim querem um Islã novo e melhor, que
incorpore alguns aspectos bem definidos do Ocidente. A famí-
lia de Ibrahim tem a mesma visão, embora de uma forma mais
                                                                       I
                                                                       I
                                                                       ~
                                                                       I
                                                                       :li
                                                                              Ibrahim, Julie sofre uma transformação fundamental, de nature-
                                                                              za pelo menos espiritual, senão religiosa. Começa a compreen-
                                                                              der o que pode significar fazer parte de uma família; e também




                                                                       I
pé no chão. O que querem são carros grandes, telenovelas, celu-               começa a compreender como a vida pode ser tão profundamente
lares, eletrodomésticos. Quanto ao resto do Ocidente, preferem                impregnada pelo código islâmico a ponto de o comportamento



                                                                       I
manter-se a distância. O Ocidente é um "mundo de falsos deu-                  cotidiano e a observância religiosa mal se distinguem.
ses". (p. 189) Não conseguem entender por que Ibrahim resol-                       E nada disso ocorre porque a família de Ibrahim seja espe-
veu ir para lá.
     Uma das explicações mais plausíveis para a democracia do          I
                                                                       I
                                                                              cialmente exemplar. Embora a mãe de Ibrahim, que se transfor-
                                                                              ma num modelo para Julie e aos poucos se afeiçoa à esposa es-
tipo ocidental, não obstante todo um século de movimentos e
levantes de inspiração democrática,      não ter conseguido firmar
raízes no Oriente Médio é que os nacionalistas árabes sempre
                                                                       I
                                                                       'I


                                                                       I
                                                                       .;i!
                                                                              trangeira do filho, leve uma vida profundamente espiritual, os
                                                                              outros membros da família são indivíduos em nada excepcionais
                                                                              do seu lugar e do seu tempo. Tampouco a transformação ocorre
quiseram determinar quais elementos da cornucópia do Ociden-                  porque ela se entregue ao Islã. Seu desenvolvimento espiritual
te eles se dispunham a admitir, escolhendo a ciência e a tecno-               se dá por efeito daquilo que só se pode descrever como o espírito
logia e/ou os sistemas educacionais e/ou as instituições de governo           do lugar. A poucos quarteirões da casa da família começa o de-
sem jamais se prontificarem a absorver também seus fundamen-                  serto. Julie adquire o hábito de acordar pouco antes do amanhe-
tos filosóficos -   os falsos deuses do racionalismo, do ceticismo e          cer e sentar-se à beira do deserto, deixando-se penetrar por ele.
do materialismo.     Se, nesse aspecto, os amigos de Ibrahim estão
                                                                       1           Ibrahim não quer saber do compromisso entre sua mulher
prestes a cair na mesma armadilha que seus pais e avós, enquan-               e o deserto, que considera uma tola brincadeira romântica. A pró-
to Ibrahim persegue simplesmente uma ilusão, qual é a posição                 pria Julie conhece bem a romantização     ocidental do deserto, o
de Julie nisso tudo?                                                          que para ela é a "farsa" de pessoas como T. E. Lawrence e Hes-
     Mergulhada numa família do Oriente Médio, Julie num pri-                 ter Stanhope. Para ela o deserto tem outro significado, que só
meiro momento desanima diante da posição inferior que ocupa             !     consegue definir dizendo que" está sempre ali". É difícil dei-
ali por ser mulher, sem falar na falta dos confortos aos quais es-            xar de inferir que, em seu confronto solitário e diário com o de-

     298                                                                                                                               299
J           a que pertence fica mais claro depois que um enredo secundá-


                                                                     I
serto, essa jovem mulher, que já deu as costas aos modos do Oci-     ~
dente materialista em quase todas as formas mais importantes,                    rio envolvendo um tio ginecologista de Julie, falsamente acu-
                                                                                 sado de conduta antiprofissional   -   enredo secundário que só
está aprendendo a enfrentar a própria morte. (pp. 198,229)
                                                                     I
                                                                     1           apresenta uma conexão muito tênue com a história de Julie e
                                                                     il:
     Em outro romance de Gordimer, fuly's People (1981), trans-
                                                                     l'          Ibrahim - é encerrado.
                                                                     :J              Há outros modos em que O engate é menos que perfeito

                                                                     i
corrido num futuro que por sorte nunca chegou a acontecer, a
                                                                     'I          em sua arte narrativa. O enredo principal, por exemplo, baseia-se
África do Sul está mergulhada numa guerra civil. Um casal bran-
co cujo mundo foi virado de cabeça para baixo procura refúgio
numa área isolada do interior, sob a proteção de um antigo cria-
                                                                     I
                                                                     i
                                                                     õ€"


                                                                     iI;
                                                                                 numa premissa implausível. Ibrahim não tinha a necessidade
                                                                                 objetiva de humilhar-se para obter um visto. Sua mulher, com
                                                                                 uma formação acadêmica dispendiosa e alguma experiência nos
do negro. Sua visão do mundo sofre uma revisão que os deixa          ;a


bem mais humildes. Como ocorre em O engate, é a mulher e                         negócios, dona de investimentos feitos em seu nome e tendo a


                                                                     I
não o homem quem tem a sensibilidade e a maleabilidade ne-                       mãe casada com um americano rico, poderia num piscar de olhos
cessárias para crescer a partir da experiência.                                  obter a abençoada condição de residente nos Estados Unidos,
                                                                     !           trazendo Ibrahim sob a asa marital. Se Gordimer escolhe seguir


                                                                     I
    O engate tem uma dimensão interior, espiritual, ausente
em fuly's People. Mas sua motivação política é comparável, não                   uma linha de enredo implausível, só pode ser porque é impe-
                                                                                 rativo que sua heroína termine no Oriente Médio árabe, e não
só na maneira como explora a mente do migrante impelido pela
economia, ou o tipo de migrante que é assim impelido, mas em         I
                                                                     'I
                                                                     "'iÉ
                                                                                 na Califórnia.



                                                                     i
sua crítica e, em última instância, em sua recusa dos falsos deu-    ~                Apesar dessas imperfeições, contudo, O engate ainda é um
                                                                     t
ses do Ocidente -    capitaneados pelo deus do capital e do mer-                 livro profundamente interessante, tanto pelo que sugere quanto
cado, a cujos caprichos a África do Sul de Julie se entregou sem                 à trajetória que a obra de Gordimer vem seguindo quanto pelos
reservas e que estendeu seu domínio inclusive ao desprezado                      dois tipos que ela examina em suas páginas: o jovem confuso e
areal de onde vem Ibrahim (o pai de Ibrahim ganha um salário                     conflitado, sem qualquer curiosidade quanto à história e à cultu-
modesto como testa de ferro numa operação internacional de                       ra que o formaram e, mesmo cego para elas, ligado à mãe em sua
lavagem de dinheiro).                                                            vida psíquica mais profunda, desprezando os desejos do próprio
                                                                       1         corpo, imaginando-se capaz de reinventar-se através da mudança
     Em sua inspiração, O engate é claramente devedor do con-
to "A adúltera", de Albert Camus, em que a protagonista, uma           I         para outro continente;    e a jovem sem qualidades excepcionais
franco-argelina, escapa ao marido toda noite para expor-se ao                    que confia nos seus impulsos e acaba se encontrando através da
deserto e experimentar o êxtase místico, tanto físico quanto espi-               humildade. Não apenas um livro interessante, na verdade, mas
ritual, que ele induz.3 Apesar de sua extensão, O engate é mais                  um livro surpreendente:   difícil imaginar uma apresentação mais
uma novela que um romance, de alcance mais estreito que                          compassiva e mais Íntima das vidas dos muçulmanos comuns do
outros produtos da fase mais importante de Gordimer, como O                      que encontramos aqui, e produzida além do mais pela mão de
amante da natureza (1974) e A filha de Burger (1979). O gênero                   uma escritora judia.

                                                                                                                                           301
     300


                                                                           -~;
r
                              ,): * ,~
                                                                     I    de um sistema reprodutivo funcional. Recusando esse papel, ela



                                                                     i
                                                                     i
                                                                     '"
                                                                          decide abortar o filho que leva no ventre, a criança que poderia
     Se houve um princípio único a animar a obra de Gordimer              ter acolhido a alma desabrigada.
entre os anos 1960 e a democratização    da África do Sul nos anos
1990, foi a busca da justiça. As pessoas bondosas que ela apresen-
ta são incapazes de viver num estado de injustiça, ou auferir ga-
                                                                     I
                                                                     ~          Noutro dos contos da série "Karma", um casal de sul-afri-
                                                                          canas lésbicas, brancas e liberais, com uma história dolorosa
                                                                          de militância contra o apartheid, decide ter um filho. Mas aí
nhos graças a ele; aqueles que submete às suas interrogações mais
frias são os que encontram maneiras de calar suas consciências e
acomodar-se ao mundo tal como ele é.
    A justiça por que Gordimer anseia é mais ampla que uma
                                                                     I    lhes ocorre que nunca poderão ter certeza se o esperma que
                                                                          obterão no banco não terá vindo de algum torturador
                                                                          le tempo. Com medo de que a criatura que tragam ao mundo
                                                                                                                                    daque-


                                                                          possa reencarnar o espírito da antiga África do Sul, elas recuam



                                                                     I
ordem social justa e um tratamento político justo. De maneira             da sua decisão.
mais difícil de definir, ela almeja também que as relações sejam               Nessas duas histórias, a alma bate à porta apenas para ter
justas no âmbito privado. Pode-se dizer, assim, que a justiça de
                                                                     I    sua entrada barrada; para o bem dela, as mulheres que guardam
Gordimer tem uma qualidade ideal. O que não se pode dizer é
                                                                     I
                                                                     I
                                                                          a passagem decidem não a admitir no mundo tal qual ele é no
que tivesse uma dimensão espiritual. A imersão de Julie Summers
                                                                          presente. Noutro conto da série, porém, a alma desconcertada
em si mesma, sua comunhão com a inumanidade do deserto,



                                                                     I
                                                                          recebe a concessão não só da encarnação como de uma dupla
indica assim um novo ponto de partida na obra de Gordimer.
                                                                          encarnação, numa sul-africana encerrada no limbo pelas leis de
     Dois anos depois de O engate, Gordimer publicou uma co-
                                                                          classificação racial do antigo Estado dominado pelo apartheid,
letânea de contos, Loot, em que o aspecto espiritual do seu pen-
                                                                          com uma identidade genética que a identifica como "branca" e
samento é levado ainda mais longe, embora não, é bom assina-
                                                                          uma identidade social que a identifica como "de cor".
lar, mais fundo. A pérola da coletânea é um ciclo de contos de
                                                                               A série "Karma" combina crítica histórica, especialmente
99 páginas intitulado "Karma", em que, com mais que um me-
                                                                          da nova ordem mundial, com observações impiedosas, algumas
ro aceno a Italo Calvino, Gordimer acompanha as aventuras de
uma alma à medida que reencarna ou deixa de reencarnar em                 cósmicas em sua perspectiva (E isto também passará, parece di-
várias vidas humanas.                                                     zer Gordimer) e outras ainda de ordem metaficcional: participar
     A mais poderosa dessas narrativas trata da camareira de um           de uma vida após a outra, reflete a alma, é muito parecido com
hotel de Moscou que se apaixona por um empresário italiano de             a condição do romancista,    que habita uma personagem          atrás
                                                                          da outra.
visita e se deixa levar para Milão. Lá, cansando-se dela, o execu-
tivo a casa com um primo distante, açougueiro e criador de ga-                 O outro texto substancial de Loot foi escrito na veia de Gor-
do. Numa visita ao lugar onde este cria seus animais, ela reco-           dimer que consideramos mais familiar: um relato ao mundo so-
nhece pela primeira vez o que representa para aqueles europeus            bre o estado das coisas na África, na forma de um conto intitula-
do Ocidente: um animal, uma reprodutora, uma fêmea dotada                 do "Mission statement" [Relatório de missão].


     3°2                                                                                                                            3°3
Roberta Blayne é inglesa, divorciada, com quarenta e pou-      do a história de como, uma vez por semana, mandava um em-
cos anos, mulher contida e sensata. Trabalha para um organis-       pregado africano ir buscar uma caixa de uísque no depósito da
mo de assistência internacional que, por quase todos os padrões,    sede da empresa, uma viagem que levava vários dias a pé. Q em-
seria considerado muito esclarecido: sua atuação é pautada pela     pregado voltava com a caixa na cabeça, "e que cabeças eles [os
visão de que a África não é "ontologicamente incurável", em-        africanos] têm ... chatas e grossas como uma tora de madeira",
bora a cura ainda não tenha sido descoberta. Com essa opinião       dizia o avô, provocando as gargalhadas dos amigos. (p. 42)
concorda Roberta, que representa o pessimismo discreto quanto            N um momento comovente, Roberta, aninhada nos braços
à melhoria do mundo presente em todo o livro.4                      de Chabruma,     prorrompe   em prantos devido a esse legado de
     No país africano não identificado de língua inglesa para o     desprezo racista, resistindo a custo ao impulso de abraçar e aca-
qual é enviada, Roberta conhece um alto funcionário do go-          riciar a maltratada e ofendida cabeça do amante. Como escrito-
verno, Gladstone Shadrack Chabruma, um homem casado, tão            ra, é nessas epifanias que Gordimer se revela mais poderosa: nes-
contido e reservado quanto ela, com quem trava um prolonga-         ses gestos ou configurações dos corpos em que a verdade de uma
do caso amoroso. Para todos os efeitos, os dois se transformam      situação emerge crua e completamente.
num casal.                                                                Chabruma tenta consolar o pranto de Roberta. Essa fala
    Quando se aproxima o final da missão de Roberta, Chabru-        racista era "a tradição deles", diz; ela não precisa sentir-se culpa-
ma lhe propõe que ela permaneça no país. Ele se casará com ela:     da por isso. (p. 65) Mas isso a deixa num impasse: se for sentir-se
como sua segunda esposa, a esposa para ocasiões oficiais, ela po-   liberada do fardo do passado porque a história é apenas a histó-
derá dar apoio ao avanço da carreira dele ao mesmo tempo em         ria, como poderá rejeitar o arg~mento de Chabruma de que os
que progride na sua própria. É uma solução tipicamente africa-      costumes são apenas os costumes, e que sua tradição lhe permi-
na: a primeira esposa de Chabruma, mulher sem qualquer edu-         te duas esposas? O conto se encerra com Roberta em profundo
cação formal, definida por uma colega de Roberta como "uma          desconforto. Se aceitar a proposta de Chabruma, não será ape-
mulher caseira de um tipo novo, [uma] camponesa urbana", há         nas por um desejo de penitenciar-se do passado? E se recusar -
de se ajustar à situação. (p. 53)                                   não será apenas pelo orgulho de mulher ocidental que exige o
     Como acontece tantas vezes nas obras de Gordimer,       esse   tratamento que lhe é devido?
conto opera na interseção entre o público e o privado. Embora            Loot contém ainda muitos contos ligeiros e menos me-
Roberta tenha nascido e sido criada na Inglaterra, descobrimos      moráveis, em comparação       com as coletâneas anteriores como
que tem um esqueleto africano no armário. Na verdade, não exis-     Livíngstone's Companíons (1972), Somethíng Qut There (1980)
te ninguém na Inglaterra, é o que somos levados a perceber -        ou A Soldíer's Embrace (1984). Um dos seus contos mais curtos,
pelo menos ninguém de uma certa classe social -, a salvo da         "The Diamond Mine", merece no entanto ser assinalado. É uma
sombra do envolvimento imperial daquele país com a África. No       narrativa maravilhosamente     competente e confiante sobre o des-
caso de Roberta, um avô seu foi diretor de uma mina naquela         pertar sexual de uma menina, e nos lembra como Gordimer sem-
mesma província, avô de quem ela se lembra vagamente contan-        pre escreveu bem sobre o sexo.

    3°4                                                                                                                          3°5
':' * *
                                                                      soas de cuja luta ela prestava seu testemunho histórico, o nome
                                                                      de Zola, para não falar do nome de Proust, não traziam qualquer
     Desde o início da sua carreira, Gordimer se viu às voltas        ressonância - que ela era europeia demais para importar para
com a questão do lugar, presente e futuro, que ela própria ocupa      as pessoas que mais importavam para ela. Seus ensaios desse pe-
na história. E a questão ainda se bifurca: primeiro, qual será o      ríodo mostram-na esforçando-se inconclusivamente em torno da
veredicto da história sobre o projeto europeu de colonização da       pergunta do que significava escrever para um povo - escrever
África subsaariana, em que ela teve participação deliberada? E,       em favor dele e em nome dele, além de ser lida por ele.6
segundo, que papel histórico se encontra disponível para uma               Com o fim do apartheid e o afrouxamento dos imperativos
escritora como ela, nascida numa comunidade colonial tardia?          ideológicos que nos tempos desse regime pairavam sobre todos
     O arcabouço ético de toda a sua obra foi definido na década      os assuntos culturais, Gordimer se viu liberada dessa autoflage-
de 1950, quando leu pela primeira vez Jean-Paul Sartre e Albert       lação. As obras de ficção que publicou no novo século mostram
Camus, este último nascido na Argélia. Sob a influência dessas        uma bem-vinda disposição a percorrer novas avenidas e um no-
leituras, ela assumiu o papel de testemunha do destino da Áfri-       vo sentido do mundo. Se a escrita tende a parecer um tanto me-
ca do Sul. "A função do escritor", escreveu Sartre, "é agir de tal    nos encorpada e um pouco mais rascunhada em comparação
maneira que ninguém possa ignorar o mundo, nem dizer que              com os textos do seu período mais importante, se a devoção à
não tem culpa do que está acontecendo."5 Os contos e romances         textura do real que caracteriza seus melhores textos hoje é ape-
que Gordimer escreveu nas três décadas seguintes são povoados         nas intermitente, se de certa forma ela se contenta em indicar
de personagens, muitas delas sul-africanos brancos, que vivem         com um gesto o que quer dizer, em vez de descrever sua inten-
plenamente a má-fé sartreana, fingindo para si mesmos que não         ção com palavras exatas, isso ocorre, é o que sentimos, porque
sabem o que se passa à sua volta; a tarefa que ela se impôs foi       ela acha que já mostrou a que veio, e não precisa tornar a realizar
obrigá-Ios a enfrentar a evidência da realidade a fim de demolir      esses trabalhos hercúleos.
suas mentiras.
     No cerne do romance do realismo está o tema da desilusão.                                                                     (2°°3)
Ao final de Dom Quixote, Alonso Quixana, que partira decidi-
do a reformar os males do mundo, volta para casa tristemente
consciente não só de que não é um herói, mas de que no mundo
tal como se tornou não há mais lugar para heróis. Como desnuda-
dora de ilusões convenientes e desmascaradora da má-fé colo-
nial, Gordimer é uma herdeira da tradição de realismo que Cer-
vantes inaugura. E conseguiu produzir muito satisfatoriamente
de acordo com essa tradição até o final da década de 1970, quan-
do foi levada a perceber que, para os sul-africanos negros, as pes-

     3°6                                                                                                                         3°7
J
                                                                    I
                                                                    .~
                                                                    :li<

                                                                             toiévski. O arcabouço moral de O amor 110Stempos do cólera,
20. Gabriel García Márquez,                                                  obra de considerável alcance emocional mas ainda assim uma

Memórias de minhas putas tristes                                    I        comédia, só que da variedade outonal, simplesmente não é vasto

                                                                    i
                                                                    .~       o suficiente para contê-Ia. Em sua determinação de tratar Amé-


                                                                    I
                                                                    ]if:     rica como uma personagem secundária, mais uma na extensa
                                                                             linhagem das amantes de Florentino, e de deixar inexploradas as

                                                                    I
                                                                    ~
                                                                    ~        consequências para Florentino do mal que lhe fez, García Már-
                                                                             quez ingressa num território moralmente perturbado r. E, na ver-
                                                                             dade, dá sinais de insegurança quanto ao modo de tratar a história
                                                                             dela. Normalmente seu estilo verbal é ágil, animado, inventivo e

                                                                    ,í       unicamente reconhecível, mas nas cenas das tardes de domingo
                                                                             entre Florentino e América podemos captar ecos arcanos da Lo-

                                                                         I   lita de Nabokov: Florentino despe a garota "uma peça de roupa
                                                                             de cada vez, com pequenas brincadeiras de criança: primeiro os
     o romance     O amor 110Stempos do cólera (1985), de Gabriel            sapatinhos para o ursinho bebê [...] depois essas calcinhas flori-
García Márquez, termina com Florentino Ariza, finalmente reu-                das para o coelhinho, e um beijinho no delicioso passarinho do
nido à mulher que amou de longe a vida inteira, navegando para               seu papai".'
cima e para baixo pelo rio Magdalena a bordo de um vapor que                      Florentino foi solteiro a vida inteira, é poeta amador, escri-
ostenta a bandeira amarela do cólera. O casal tem 76 e 72 anos,              tor de cartas de amor para pessoas com problemas ligados à pa-
respectivamente.                                                             lavra, frequentador devoto de concertos, um tanto avarento em
    Para poder dedicar uma atenção integral à sua amada Fer-                 seus hábitos, e tímido com as mulheres. Ainda assim, a despeito
mina, Florentino precisa pôr fim à sua ligação então corrente,               de sua timidez e de sua falta de atrativos físicos, meio século de
um caso com uma protegida sua de catorze anos de idade, que                  romances sub-reptícios lhe rende 622 conquistas, sobre as quais
ele inicia nos mistérios do sexo em encontros de domingo à tar-              mantém anotações numa série de cadernos.
de no seu apartamento de solteiro (e ela se revela uma aluna que                  Em todos esses aspectos, Florentino se assemelha muito ao
aprende depressa). E termina o caso com ela numa sorveteria.                 narrador anônimo da mais recente novela de García Márquez.
Confusa e desesperada, a menina comete um suicídio discreto,                 Como seu predecessor,     esse homem mantém um rol das suas
levando seu segredo consigo para o túmulo. Florentino derrama                conquistas como guia para um livro que planeja escrever. Na
uma lágrima sem testemunhas e sente pontadas intermitentes de                verdade, tem um título pronto desde já: Memoria de Mis Putas
dor por sua perda, mas é só.                                                 Tristes, memórias (ou memorial) das minhas putas tristes, tradu-
    América Vicufía, a menina seduzi da e abandonada por um                  zido para o inglês por Edith Grossman como Memories of My
homem mais velho, é uma personagem saída diretamente de Dos-                 Melal1choly Whores. Sua lista chega a 514 quando ele desiste de


     3°8                                                                                                                                3°9
seguir contando. Mais adiante, com uma idade avançada, ele                    ma com uma mulher a quem não tenha pagado: mesmo quando
encontra o verdadeiro amor, na pessoa não de uma mulher da                    a mulher não queria dinheiro ele a obrigava a aceitar, transfor-
sua geração, mas de uma garota de catorze anos.2                              mando-a em mais uma das suas putas. A única relação duradou-
     Os paralelos entre os dois livros, publicados com duas déca-             ra que mantém é com a sua empregada doméstica, que monta
das de intervalo, são notáveis demais para serem ignorados. Su-               ritual mente uma vez por mês enquanto ela lava roupa, sempre
gerem que, em Memórias de minhas putas tristes, García Már-                   en sentido contrario, um eufemismo que Grossman traduz como
quez possa estar tentando abordar de novo a história artística e              "por trás", tornando possível para ela alegar, já na velhice, que
moralmente insatisfatória de Florentino e América em O amor                   ainda era uma virgo intacta. (p. 13)
nos tempos do cólera.                                                              Em seu nonagésimo aniversário, ele decide dar-se um pre-
                                                                              sente especial: sexo com uma garota virgem. Uma cafetina cha-
    o herói,   narrador e autor putativo de Memórias de minhas                mada Rosa, com quem faz negócios há muito tempo, o conduz
putas tristes, nasceu na cidade portuária de Barranquilla, na Co-             a um quarto do seu bordel onde uma garota de 14 anos está dei-
lômbia, em torno de 1870. Seus pais pertencem à burguesia cul-                tada à espera dele, nua e drogada.
ta; quase um século mais tarde, ele ainda vive na decadente re-      f
sidência da família. Costumava ganhar a vida como jornalista e
professor de espanhol e latim; agora subsiste graças a uma pen-
são e à coluna que escreve toda semana para o jornal da cidade.
                                                                     I
                                                                     ~c




                                                                     I,
                                                                                   Ela era morena e quente. Fora submetida a um tratamento com-
                                                                                   pleto de higiene e embelezamento     que não descuidara sequer da
                                                                                   penugem incipiente do seu púbis. Seus cabelos tinham sido en-
    A narrativa que ele nos transmite, cobrindo o tempestuoso
nonagésimo primeiro ano da sua vida, pertence a certa subespé-       I
                                                                     ~             caracolados, e ela usava esmalte incolor nas unhas das mãos e dos
                                                                                   pés, mas sua pele da cor do melaço parecia-lhe áspera e maltra-
                                                                                   tada. Seus seios recém-nascidos ainda lembravam os de um me-
cie de memórias: as confissões. Tipificadas pelas Confissões de
Santo Agostinho, as confissões nos falam de uma vida desper-                       nino, mas davam a sensação de uma iminência de rebentar com
diçada que culmina numa crise interior e numa experiência de                       uma energia secreta pronta a explodir. A melhor parte do seu
conversão, seguida de um renascimento espiritual para uma exis-                    corpo eram os pés grandes e silenciosos, com seus dedos longos e
tência nova e mais rica. Na tradição cristã, as confissões têm uma                 sensíveis como os dedos da mão. A despeito do ventilador, ela
pronunciada finalidade didática. Olhai o meu exemplo, dizem                        estava ensopada de uma transpiração fosforescente       [...] Era im-
elas; eis como, através da ação misteriosa do Espírito Santo, até                  possível imaginar como seria seu rosto por baixo de tanta pintura
uma criatura tão miserável quanto eu pode ser salva.                               [...] mas os adornos e cosméticos não tinham como esconder seu
     Os primeiros noventa anos da vida do nosso herói foram sem                    caráter: o nariz altaneiro, as sobrancelhas grossas, os lábios inten-
dúvida desperdiçados. Não só ele gasta toda a sua herança e em-                    sos. E pensei: um jovem touro miúra. (pp. 25-6)
prega maIos seus talentos como sua vida emocional também é
extremamente árida. Jamais se casou (esteve noivo muitos anos                      A primeira reação do velho experiente à visão da menina é
                                                                          i
atrás, mas largou a noiva no último minuto). Nunca foi para a ca-              inesperada: terror e confusão, um impulso de bater em retirada.




                                                                          I
     310                                                                                                                                        311
No entanto, ele se deita ao lado dela na cama e, sem muito en-        ele, "nmTI outro homem". É o amor que move o mundo, come-
tusiasmo, tenta explorar entre as suas pernas. Ela se afasta no       ça ele a perceber - não tanto o amor consumado quanto o amor
sono. Desprovido de desejo, ele começa a cantar para ela: "An-        em suas inúmeras formas não correspondidas. Sua coluna no
jos rodeiam a cama de Delgadina". E logo ele se descobre tam-         jornal se transforma numa ode aos poderes do amor, e seu públi-
bém rezando por ela. E em seguida adormece. Quando desper-            co leitor responde com adulação. (p. 65)
ta, às cinco da manhã, a garota está deitada com os braços abertos         Durante o dia - embora ele nunca a veja -,            Delgadina,
em cruz, "senhora absoluta da sua virgindade". Deus a abençoe,        como uma autêntica heroína de conto de fadas, vai para a fábri-
pensa ele, e se retira. (pp. 28, 29-3°)                               ca onde trabalha abrindo casas para botões. Toda noite ela retor-
     A intermediária telefona para ele, queixando-se da sua pusi-     na a seu quarto no bordel, agora adornado por seu amante com
lanimidade e oferecendo-lhe uma segunda oportunidade de pro-          quadros e livros (ele tem vagas ambições de cultivar o seu espíri-
var sua macheza. Ele declina. "Não posso mais", diz ele, e sente      to), para dormir castamente ao lado dele. Ele lê histórias em voz
um alívio imediato, "finalmente livre de uma escravidão" - es-
                                                                      alta para ela; de vez em quando ela deixa escapar algumas pa-
cravidão ao sexo, no sentido estrito -    "que me manteve cativo      lavras no sono. Mas no geral ele não gosta da voz dela, que soa
desde os treze anos de idade." (p. 45)                                como a voz de uma estranha falando de dentro dela. Ele a prefe-
    Mas Rosa insiste até que ele cede e regressa ao bordeI. No-       re inconsciente.
vamente a garota está dormindo, novamente ele se limita a en-
                                                                           Na noite do aniversário dela, uma consumação erótica sans
xugar a transpiração do seu corpo e a cantar: "Delgadina, Delga-
                                                                      pénétration ocorre entre os dois.
dina, serás a minha amada". (E seu canto não deixa de ter um
tom um tanto sombrio: no conto de fadas onde aparece, Delga-
                                                                           Beijei todo o seu corpo até perder o fôlego ... Enquanto a beijava,
dina é uma princesa que se vê obrigada a fugir aos avanços amo-
                                                                           a temperatura de seu corpo ia subindo, e ela exalava uma fragrân-
rosos do próprio pai.) (p. 56)
                                                                           cia indômita e selvagem. Ela me respondia com novas vibrações
   Ele volta para casa no meio de uma violenta tempestade.
                                                                           ao longo de cada centímetro da pele, e em cada um deles eu en-
Um gato que adquirira pouco antes parece ter-se transformado
                                                                           contrava um calor diferente, um sabor único, um outro gemido,
numa presença satânica. A chuva entra pelos buracos do telha-
                                                                           e todo o seu corpo ressoava por dentro com um arpejo, é seus ma-
do, um cano de água quente se rompe, o vento espatifa várias
                                                                           milos se abriram e floresceram sem que eu os tocasse.
vidraças. Enquanto se esforça por salvar os livros que tanto ama,
ele percebe a figura fantasmagórica de Delgadina a seu lado, a
                                                                           E então sobrevém o infortúnio. Um dos clientes do bordel
ajudá-Ia. Agora ele está convencido de que encontrou o amor
verdadeiro, "o primeiro amor da minha vida, aos noventa anos          é apunhalado,    a polícia invade o local, um escândalo ameaça
de idade". (p. 6o) E uma revolução moral ocorre dentro dele.          irromper, Delgadina precisa ser levada embora. E seu amante,
Confronta-se com a desolação, a mesquinharia e a obsessividade        mesmo percorrendo toda a cidade atrás dela, não consegue mais
da sua vida passada, e termina por repudiá-Ia. E se transforma, diz   encontrá-Ia. Quando ela finalmente reaparece no bordeI, parece

     312                                                                                                                              313
anos mais velha e já não tem seu ar de inocência. Ele é tomado        seus olhos se abrem. De maneira que há certo grau de incompa-
                                                                      tibilidade intrínseca entre a narrativa de conversão e o roman-
por um ciúme furioso e vai embora.
     Passam-se meses e a ira dele se atenua. Uma antiga namora-       ce moderno, da maneira como foi aperfeiçoado no século XVIII,
da dá-lhe um bom conselho: "Não vá morrer sem conhecer o              com sua ênfase antes no caráter que na alma e seu programa de
encantamento    de foder com amor". Seu nonagésimo primeiro           mostrar passo a passo, sem saltos inesperados ou intervenções
aniversário chega e passa. Ele faz as pazes com Rosa. Os dois         sobrenaturais, como aquele que costumava ser chamado de he-
concordam em deixar ambos seus bens materiais em herança              rói ou heroína, mas agora é mais propriamente chamado de per-
para a moça que, afirma Rosa, nesse meio-tempo teria ficado           sonagem central, percorre o seu caminho do começo ao fim.
                                                                           Embora continue ostentando o rótulo de "realista mágico"
completamente apaixonada por ele. O coração repleto de ale-
gria, o pressuroso pretendente passa a viver a expectativa de "fi-    que lhe foi aplicado, García Márquez opera na tradição do rea-
nalmente, uma vida de verdade". (pp. 100, llS)                        lismo psicológico, com sua premissa de que as operações da psi-
      As confissões dessa alma renasci da podem de fato ter sido      que individual têm uma lógica que pode ser acompanhada.           Ele
escritas, como diz ele, para aliviar sua consciência, mas a men-      próprio já observou que o dito realismo mágico é uma simples
sagem que transmitem não é, de modo algum, a de que abjure-           questão de contar histórias difíceis de acreditar com uma expres-
mos dos desejos da carne. O deus que ele ignorou a vida inteira       são impassível, truque que teria aprendido com sua avó em Car-
é de fato o deus por cuja graça os perversos são salvos, mas ao       tagena; ademais, diz ele, muito do que os leitores de fora acham
                                                                      tão difícil de acreditar em suas histórias é muitas vezes lugar-co-
mesmo tempo um deus do amor, que pode instigar um velho
                                                                      mum na América Latina. Achemos ou não aceitável essa alega-
pecador à busca de um "amor louco" por uma virgem - "meu
desejo naquele dia era tão urgente que parecia uma mensag~m           ção, o fato é que a mistura do fantástico com o real - ou, para
de Deus" - e em seguida insuflar o espanto e o terror em seu          ser mais preciso, a elisão do "ou então" que separa a "fantasia" da
coração quando ele pousa os olhos em sua presa pela primeira          "realidade" -, que causou tamanha sensação quando Cem anos
vez. Por artes de sua interveniência divina, o velho é instantanea-    de solidão foi publicado em 1967, tornou-se lugar-comum no ro-
mente transformado    de frequentador   de putas em adorador de        mance para muito além das fronteiras da América Latina. Será o
uma virgem, venerando o corpo da menina adormecida como                gato de Memórias de minhas putas tristes um simples gato ou um
um crente mais simples pode venerar uma imagem ou um íco-              visitante do mundo inferior? Delgadina vem de fato em auxílio
ne, cuidando dele, trazendo-lhe flores, prestando-lhe tributo, can-    do amante na noite da tempestade, ou será que ele, transido pelo
tando para ela, rezando em sua presença. (pp. 3, ll)                   amor, apenas imagina essa visita? Essa bela adormecida é mes-
                                                                       mo uma simples jovem trabalhadora que procura faturar alguns
     Há sempre algo de imotivado nas experiências de conver-           pesos por fora, ou será uma criatura de outro domínio, onde prin-
são: é da sua essência que o pecador esteja tão cego de desejo ou      cesas dançam a noite inteira, fadas madrinhas concedem pode-
orgulho que a lógica psíquica que conduz ao ponto de virada em         res super-humanos e donzelas são adormecidas por feiticeiras?
sua vida só se torne visível para ele em retrospecto, depois que       Pedir respostas inequívocas para perguntas como essas é equivo-

                                                                                                                                  315
     314
car-se acerca da natureza do narrador de histórias. Roman Jakob-      primeiro caso e pré-colombianos no segundo. (Como a descri-
son gostava de lembrar a fórmula usada pelos contadores de his-       ção que seu amante nos faz dela deixa claro, Delgadina possui
tórias de Majorca como preâmbulo para suas narrativas: Foi assim      certa qualidade feroz de uma deusa virgem arcaica: "o nariz al-
e também não foi,3                                                    taneiro, as sobrancelhas grossas, os lábios intensos [...] um jovem
     O mais difícil de aceitar pelos leitores de inclinação secu-     touro miúra".)
lar, pois não tem base psicológica aparente, é que o mero espetá-          A partir do momento em que aceitamos uma continuidade
culo de uma jovem nua possa causar tamanha reviravolta espi-          entre a paixão do desejo sexual e a paixão da veneração, aqui-
ritual num velho depravado. Toda essa disponibilidade do velho        lo que se origina como um desejo "mau", do tipo praticado por
para ser convertido podia fazer mais sentido psicológico caso su-     Florentino Ariza com sua protegida, pode sem mudar a sua es-
puséssemos que ele possui uma existência que se estende para          sência transfigurar-se num desejo "bom" do tipo sentido pelo
um passado anterior ao início da narrativa de suas memórias,          amante de Delgadina, constituindo assim o germe de uma vida
para o interior do conjunto das obras ficcionais anteriores de Gar-   nova para ele. Memórias de minhas putas tristes faz mais sentido,
cía Márquez, especialmente    no interior de O amor nos tempos        em outras palavras, como uma espécie de suplemento a O amor
do cólera.                                                            nos tempos do cólera, em que o responsável pelo abuso da con-
     Avaliado pelos padrões mais rigorosos, Memórias de minhas        fiança da menina virgem se transforma em seu fiel adorador.
putas tristes não é uma grande obra. E não se pode dizer que
essa ligeireza se deva à sua brevidade. Crônica de uma morte               Quando Rosa ouve sua empregada de catorze anos ser cha-
anunciada (1981), por exemplo, embora tenha mais ou menos             mada de Delgadina (de "Ia delgadez", delicada, elegante), ela se
a mesma extensão, é um acréscimo significativo ao cânone de           espanta e tenta ensinar a seu cliente o verdadeiro nome da me-
García Márquez: uma narrativa cerrada e arrebatadora,'e ao mes-       nina. Mas ele não quer ouvir, da mesma forma como prefere que
mo tempo uma vertiginosa aula magna sobre a maneira como              a própria mocinha não fale. Quando, depois da sua longa ausên-
múltiplas narrativas - múltiplas verdades - podem ser cons-           cia do bordel, Delgadina reaparece usando pintura e joias que
truídas para dar conta dos mesmos acontecimentos. Não obstan-         nunca exibira, ele fica indignado: traiu não só a ele como à sua
te, a finalidade das Memórias é corajosa: falar em defesa do dese-    própria natureza. Nos dois incidentes nós o vemos desejando que
jo dos mais velhos por meninas menores de idade, ou seja, falar       a moça tenha uma identidade imutável, a identidade de prince-
em defesa da pedofilia, ou pelo menos mostrar que a pedofilia         sa vugem.
não precisa ser um fim de linha nem para aquele que ama nem                A inflexibilidade do velho, sua insistência para que sua ama-
para a criatura amada. A estratégia conceitual que García Már-         da assuma apenas a forma com que a idealiza, tem um poderoso
quez emprega para tanto é derrubar o muro entre a paixão eróti-        precedente na literatura de língua espanhola. Obedecendo         à re-
ca e a paixão de veneração, tal como se manifesta especialmente        gra de que todo cavaleiro errante precisa ter uma dama a quem
nos cultos à Virgem tão vigorosos no sul da Europa e na Améri-         possa dedicar seus feitos de armas, o velho que se faz chamar de
ca Latina, com seus fortes fundamentos arcaicos, pré-cristãos no       Dom Quixote declara-se criado de Dona Dulcineia de Toboso.

    316                                                                                                                           317
I111




                                                                                                                                                       li!
                                                                            Quixote parece um sujeito bizarro à primeira vista, mas a




                                                                                                                                              ,11
Dona Dulcineia tem alguma tênue relação com uma jovem cam-                                                                                    li!

ponesa da aldeia de Toboso em quem Quixote pusera os olhos             maioria dos que entram em contato com ele acaba meio con-
no passado, mas essencialmente é uma figura de fantasia que ele        vertida a seu modo de pensar, e portanto meio quixotescos eles
                                                                                                                                              1

inventa, tal como inventa a si próprio.                                próprios. Se há uma lição que ele nos transmite é que no interes-
     O livro de Cervantes começa como uma paródia cômica do            se de um mundo melhor e mais animado pode não ser má ideia             'I
                                                                                                                                              I




romance cavaleiresco, mas transforma-se em coisa muito mais            cultivarmos em nós uma certa capacidade de dissociação, não ne-
interessante: um estudo do poder misterioso que tem o ideal de         cessariamente sob controle consciente, muito embora isso possa
resistir ao desencanto em seus confrontos com o real. O retorno        levar os outros a concluírem que sofremos de delírio intermitente.     I1I

de Quixote à sanidade ao final do livro, seu abandono do mundo                                                                                II
                                                                           Os diálogos entre Quixote e o duque e a duquesa na segun-
ideal que tentara habitar com tanta valentia em favor do mun-          da metade do livro de Cervantes exploram em profundidade o
do real dos seus detratores, atinge todos à sua volta, e o leitor      que significa empregar nossas energias em viver uma vida ideal          II1

também, com uma tristeza profunda. Será isso o que realmente           e portanto talvez irreal (fantástica, fictícia). A duquesa formula a     1,1;


queremos? Desistir do mundo da imaginação e conformar-nos              pergunta-chave com graça mas com firmeza: não é verdade que
com o tédio da vida num rincão distante de Castela?
                                                                       Dulcineia "não existe no mundo mas é uma dama imaginária e               II




     O leitor do Dom Quixote nunca sabe ao certo se o herói de
                                                                       que foi Vossa Graça [ou seja, Dom Quixote] quem a engendrou
Cervantes é um louco entregue a seu delírio ou se, ao contrário,
                                                                       e deu-lhe vida em seu espírito?".
representa um papel em plena consciência - vivendo sua vida
                                                                            "Deus sabe se Dulcineia existe ou não no mundo", respon-
como se fosse uma ficção. Ou, ainda, se a sua mente não se al-
                                                                       de Quixote, "ou se é imaginária ou não imaginária; não existe
terna, em saltos imprevisíveis, entre esses dois estados, de delírio
                                                                       um modo certo de verificar essas coisas até as últimas consequên-          II1
e consciência. Há momentos em que Quixote parece sem dú-
                                                                       cias. [Mas] nem engendrei nem dei vida à minha dama ..." (Dom
vida afirmar que dedicar-se a uma vida de serviço pode fazer de
                                                                       Quixote, p. 672)                                                           I!I
qualquer um uma pessoa melhor, seja ou não ilusório esse servi-
                                                                            A cautela exemplar da resposta de Quixote é um bom indí-
ço. "Desde que me converti em cavaleiro errante", diz ele, "fui
                                                                       cio de que conhecia mais que de passagem o longo debate sobre
valente, bem-comportado,    liberal, polido, generoso, cortês, ousa-                                                                                1111



                                                                                                                                                    '''!II

                                                                       a natureza do ser, desde os pré-socráticos até são Tomás de Aqui-
do, gentil, paciente, [e] muito resistente." Embora possamos cul-
                                                                       no. Mesmo admitindo a possibilidade de ironia do autor, Dom
tivar algumas reservas quanto a ele ter sido tão valente, bem-com-
portado etc., quanto diz, não temos como ignorar a afirmativa          Quixote parece de fato sugerir que, se aceitarmos a superiori-
muito sofisticada que faz aqui sobre o poder que um sonho po-          dade moral de um mundo em que as pessoas agem em nome de
de ter de servir de âncora para toda a nossa vida moral, ou negar      ideais a um mundo em que as pessoas agem em nome do inte-
que, a partir do dia em que Alonso Quixana assumiu sua iden-           resse, questões ontológicas desconfortáveis como a pergunta da
tidade de cavaleiro, o mundo transformou-se num lugar melhor,          duquesa podem perfeitamente ser deixadas de lado, ou até varri-
ou, se não melhor, pelo menos mais interessante, mais animado.4        das para baixo do tapete.


     318                                                                                                                           319
o espírito de Cervantes    está fundamente entranhado na lite-   camente o original e acrescentou-lhe   uma epígrafe de Sócrates
ratura de língua espanhola. Não é difícil ver na transformação da     para assinalar sua dívida.5
jovem operária sem nome na virgem Delgadina o mesmo proces-                No caso das Memórias, a dívida para com Yasunari Kawaba-
so de idealização graças ao qual a jovem camponesa de Toboso          ta é bastante conspícua. Em 1982, Carcía Márquez escreveu um
é transformada em Dona Dulcineia, ou na preferência do herói          conto, "A bela adormecida e o aeroplano", em que aludia espe-
                                                                      cificamente a Kawabata. Sentado na primeira classe de um jato
de Carcía Márquez por que o objeto de seu amor permaneça
inconsciente e sem palavras, o mesmo desgosto pelo mundo real         que cruza o Atlântico, ao lado de uma jovem de extraordinária
                                                                      beleza que dorme durante todo o voo, o narrador Carcía Már-
em toda sua teimosa complexidade que conserva Dom Quixote a
                                                                      quez lembra-se de um romance de Kawabata sobre homens mais
uma distância segura de sua dama. Assim como Dom Quixote
                                                                      velhos que pagam um bom dinheiro para passar a noite com jo-
pode afirmar ter-se tornado uma pessoa melhor através do servi-
                                                                      vens drogadas e adormecidas. Como obra de ficção, o conto da
ço a uma dama que nem sabe da sua existência, o velho das Me-
                                                                      "Bela Adormecida" é insuficientemente    desenvolvido, pouco
mórias pode alegar ter chegado ao limiar de uma vida "finalmen-
                                                                      mais que um esboço. Talvez seja por isso que Carcía Márquez se
te real" ao aprender a amar uma jovem que, na realidade, ele não
                                                                      sinta liberado para reutilizar sua situação básica - o admirador
conhece e certamente tampouco conhece a ele. (O momento
                                                                      envelhecido ao lado da moça que dorme - em Memórias de
mais essencialmente cervantesco das Memórias ocorre quando
                                                                      minhas putas tristes.6
seu autor consegue ver a bicicleta em que sua amada vai -       ou        Na "Casa das Belas Adormecidas" (1981), de Kawabata, um
dizem que vai - para o trabalho, e no fato de uma bicicleta da        homem à beira da velhice, Yoshio Eguchi, recorre a uma cafe-
vida real encontrar "provas tangíveis" de que a jovem com o no-       tina que fornece jovens drogadas para homens com gostos espe-
me de conto de fadas - cuja cama ele compartilha noite após           ciais. Por um período de tempo, passa noites com várias dessas
noite -    "existia na vida real".) (pp. 115, 71)                     garotas. As regras da casa proíbem a penetração sexual, mas são
                                                                      praticamente supérfluas, pois a maior parte da clientela é idosa
     Em sua autobiografia Viver para contar, Carcía Márquez           é impotente, mas Eguchi - como ele se diz chamar - não é
conta como compôs sua primeira obra de ficção mais longa, a           nem uma coisa nem outra. Brinca com a ideia de desrespeitar as
novela La hojarasca (1955 - publicada no Brasil como O enter-         regras, de estuprar uma das meninas, engravidá-Ia ou até mesmo
ro do diabo). Tendo - achava ele - finalizado o original, ele o       asfixiá-Ia, como forma de afirmar sua masculinidade e seu repú-
mostrou a seu amigo Custavo Ibarra, que para seu desalento            dio a um mundo que trata os velhos como crianças. Ao mesmo
mostrou-lhe que a situação dramática - a luta para enterrar um        tempo, também é atraído pela ideia de tomar uma overdose de
homem contra a resistência das autoridades civis e clericais -        drogas e morrer nos braços de uma virgem.
fora copiada da Antígona de Sófocles. Carcía Márquez releu                 A novela de Kawabata é um estudo das atividades de eros na
Antígona "com uma estranha mistura de orgulho por ter coinci-          mente de um sensualista do tipo intensivo e autocrítico, profun-
dido em boa-fé com um escritor tão grande, e tristeza pela vergo-      damente - talvez morbidamente - sensível a odores, fragrân-
nha pública do plágio". Antes de publicar seu livro, reviu drasti-     cias e nuances do tato, absorvido pela singularidade   física das

                                                                                                                                321
     320
mulheres com quem trava intimidades, tendendo a ruminar ima-                largados como os de um manequim, podem ser dispostos confor-
gens do seu passado sexual, sem medo de confrontar a possibi-               me os desejos do freguês, tenham sobre ele tamanho poder que
lidade de que sua atração por mulheres jovens possa encobrir                o façam voltar mais e mais vezes àquela casa.
seu desejo pelas próprias filhas, ou que sua obsessão com os seios               A pergunta que cabe em relação a todas as belas adormeci-
femininos possa ter origem em memórias da primeira infância.                das é, claro, o que acontecerá quando elas acordarem. No livro
     Acima de tudo, o quarto solitário contendo apenas uma ca-              de Kawabata, simbolicamente falando, não há despertar; a sexta
ma e um corpo vivo a ser usado ou abusado, dentro de certos li-             e última das garotas de Eguchi morre a seu lado, envenenada
mites, como ele quiser, sem testemunhas e portanto sem qual-                pela droga que a fez cair no sono. No de GarcÍa Márquez, por
quer risco de ver-se exposto à vergonha, constitui um teatro em             outro lado, Delgadina parece absorver pela pele todas as aten-
que Eguchi consegue ver-se como de fato é: velho, feio e próxi-             ções que lhe são dispensadas com tanta minúcia, e estar a ponto
mo da morte. Suas noites com as meninas sem nome são reple-                 de despertar, pronta para retribuir a paixão de seu adorador.
tas de tristeza em lugar da alegria, de remorso e angústia em lu-                A versão que GarcÍa Márquez nos dá do conto da bela ador-
gar do prazer físico.                                                       mecida é assim muito mais solar que a de Kawabata. De fato, na
                                                                            forma abrupta como termina ela parece fechar deliberadamen-
    A feia senilidade dos homens tristes que procuravam aquela casa         te os olhos para a questão do futuro de qualquer velho com um
    não estava muitos anos distante para o próprio Eguchi. A imen-          amor mais jovem, depois que a amada adquire permissão para
    surável extensão do sexo, sua profundeza sem fundo -     que pro-       deixar seu pedestal de deusa. Cervantes leva seu herói a visitar a
    porção dela Eguchi tinha conhecido em seus sessenta e sete anos?        aldeia de Toboso e apresentar-se de joelhos perante uma jovem
    E em torno dos velhos, carne nova, carne jovem, carne linda nas-        escolhida quase ao acaso para incorporar Dulcineia. Em tro-
                                                                        I
    ce o tempo todo. Não seria o desejo dos tristes velhos pelo sonho       ca, ele é contemplado com um chorrilho de pungentes insultos
    inacabado,   o remorso por dias perdidos sem sequer terem sido          camponeses perfumados a cebola crua, e deixa o local confuso e
    desfrutados, o que se escondia naquela casa?7                           desconcertado.
                                                                                 Não fica claro se a pequena fábula de redenção escrita por
      GarcÍa Márquez imita Kawabata menos do que responde a                 GarcÍa Márquez é sólida o suficiente para suportar uma conclu-
ele. Seu herói é muito diferente em temperamento de Eguchi,                 são desse tipo. GarcÍa Márquez talvez pudesse levar igualmente
menos complexo em seu sensualismo, menos introvertido, me-                  em conta a história do Mercador, a sátira sobre um casamento
nos explorador, e menos poeta também. Mas é pelo que ocorre                  intergeneracional nos Contos de Canterbury de Chaucer, espe-
na cama das respectivas casas de encontros que a verdadeira dis-             cialmente seu flagrante do casal surpreendido pela luz da aurora
tância entre GarcÍa Márquez e Kawabata pode ser medida. Na                   depois dos entreveros da noite de núpcias, o velho marido senta-
cama com Delgadina, o velho de GarcÍa Márquez encontra um                    do na cama com seu gorro, a papada flácida tremendo sob o quei-
novo júbilo que o eleva. Já para Eguchi, sempre é um mistério                xo, a jovem esposa a seu lado tomada pela irritação e pela repulsa.
infinitamente frustrante que os corpos inconscientes de mulher,
cujo uso pode ser comprado por hora e cujos membros flácidos,                                                                            (200S)


    322                                                                                                                                 323
[O fio da navalha, 1944], o romance que fez sua fama nos Esta-
21.   V. S. Naipaul, Meia vida                                      dos Unidos.
                                                                        The Razor's Edge tem como herói um americano que, de-
                                                                    pois de preparar-se adquirindo um bronzeado intenso e envergan-
                                                                    do trajes indianos, visita o guru Shri Ganesha e, sob sua orienta-
                                                                    ção, tem uma experiência de êxtase espiritual, "uma experiência
                                                                    da mesma ordem da que os místicos vêm tendo por todo o mun-
                                                                    do através dos séculos". Com as bênçãos de Shri Ganesha, esse
                                                                    proto-hippie retoma ao Illinois, onde planeja praticar "a calma,
                                                                    a paciência, a compaixão, o desprendimento e o comedimento"
                                                                    ao mesmo tempo em que ganha a vida como motorista de táxi.
                                                                    "Ê um erro achar que os homens santos da Índia levam vidas
                                                                    inúteis", diz ele. "Eles são uma luz que brilha nas trevas."2
                                                                         A história do encontro entre Venkataraman, o santo, e Mau-
     Ao longo da década de 1930, o escritor inglês W. Somerset      gham, o escritor, e de sua feliz colaboração, em que Venkatara-
Maugham (1874-1965) cultivou um interesse pela espiritualida-       man apresentou a Maugham uma versão vendável da espiri-
de indiana. Visitou Madras e foi levado até um ashram para co-      tualidade indiana e Maugham rendeu a Venkataraman uma boa
nhecer um homem que, nascido Venkataraman, retirara-se para         publicidade e uma enorme clientela, é o germe do romance de
uma vida de silêncio, automortificação e oração, e agora era co-    V. S. Naipaul, Meia vida (2001).3
nhecido simplesmente como o Maharishi. Enquanto esperava                 No romance, Naipaul preocupa-se menos com a questão de
sua audiência, Maugham desmaiou, talvez devido ao calor. Quan-      determinar se Venkataraman e outros fornecedores comparáveis
do voltou a si, descobriu que não conseguia falar (e cabe dizer     de sabedoria aforística são farsantes -   o que ele considera óbvio
aqui que Maugham foi gago a vida inteira). O Maharishi o con-       - que com o fenômeno mais geral da prática religiosa baseada
solou declarando que "O silêncio também é conversa".'               no sacrifício. Por que as pessoas - particularmente na Índia -
     A notícia do desmaio, conta Maugham, espalhou-se pela          resolvem dedicar suas vidas ao jejum, ao celibato e ao silêncio?
Índia. Graças aos poderes do Maharishi, dizia o rumor, um pere-     E por que são reverenciadas por isso? Quais consequências hu-
grino do Ocidente tinha sido trasladado por algum tempo ao          manas decorrem do seu exemplo de santidade?
reino do infinito. Embora Maugham não tenha recordação de                Para compreender o prestígio do sacrifício, sugere Naipaul,
qualquer visita ao infinito, o encontro deixou-lhe marcas claras,   precisamos enquadrar historicamente o ascetismo hindu. Houve
que ele descreve em A Writer's Notebook [Diário de um escritor,     tempo em que os templos hinduístas sustentavam toda uma cas-
1949] e novamente num dos ensaios de Points ofView [Pontos de       ta sacerdotal. E depois, em consequência das invasões estrangeiras,
vista, 1958]; e também incluiu o episódio em The Razor's Edge       primeiro muçulmanas e finalmente britânicas, os templos foram

      324                                                                                                                      325
perdendo receita. Os sacerdotes se viram aprisionados em um ci-          Gandhi proclama que o sistema de castas está errado. Mas
clo vicioso: a pobreza levava à perda de energia e do desejo, que    como um brâmane poderia opor-se ao sistema de castas? Respos-
levava à passividade, que levava a uma pobreza mais profunda. A      ta: casando-se com alguém de casta inferior. Chandran escolhe
casta parecia em declínio terminal. No entanto, em vez de aban-      uma jovem feia e de pele escura da sua turma, pertencente a
donarem os templos e procurarem alguma outra fonte de susten-        uma casta supostamente      atrasada, e a corteja sem muito jeito.
to, os sacerdotes conceberam uma engenhosa transformação de          Em pouquíssimo tempo, lançando mão de mentiras e ameaças,
valores: a vida sem comer, e a negação dos apetites em geral, pas-   a moça o obriga a cumprir suas promessas e casar-se com ela.
sou a ser propalada como uma coisa admirável em si, merecedo-             Caindo em desgraça na família, Chandran é posto para tra-
ra de veneração e, portanto, de tributo.                             balhar na coletoria de impostos do marajá. No serviço, permi-
     E esse, em suma, é o relato estritamente materialista de Nai-   tem-se atos sub-reptícios que prefere definir como desobediência
paul sobre como o ethos brâmane de sacrifício e fatalismo, um        civil, embora seus verdadeiros motivos sejam simplesmente fú-
ethos que despreza o empreendimento individual e o trabalho,         teis e mal-intencionados.   Quando as confusões que arma são ex-
tornou-se importante na Índia.                                       postas e ele se vê ameaçado com as penas da lei, tem uma inspi-
     Na recriação da história de Venkataraman por Naipaul, um        ração de gênio: refugia-se num templo, onde se protege do que
brâmane do século XIX chamado Chandran tem a ousadia de              prefere definir como perseguição fazendo um voto de silêncio, o
romper com o sistema dos templos. Economiza trocados, viaja          que o transforma num herói local. Muita gente acorre para assis-
até a cidade grande mais próxima - a capital de um dos estados       tir a seu silêncio e trazer-lhe oferendas.
nominalmente independentes do interior da Índia britânica - e             E é nesse lamaçal de mentira e hipocrisia que o ingênuo oci-
se emprega como escrevente no palácio do marajá. Depois dele,        dental William Somerset Maugham vem enfiar os pés, tentando
seu filho dá prosseguimento à ascensão da família nas fileiras do    encontrar a resposta mais profunda que só a Índia poderá nos
serviço público. Tudo parece bem encaminhado:       os Chandran      dar. "O senhor é feliz?", pergunta Maugham ao beatífico Chan-
encontraram um nicho seguro onde a família pode prosperar dis-       dran. Usando lápis e papel, Chandran responde: "No meu silên-
cretamente sem precisar mais mortificar seus corpos.                 cio, sinto-me livre. E isto é felicidade". (p. 30) Quanta sabedo-
     Mas o neto (e aqui já estam os na década de 1930) é uma         ria!, pensa Maugham. A comédia é rica: a principal liberdade de
espécie de rebelde. Os ecos de Gandhi e de seu movimento na-         que goza Chandran é ter-se livrado da lei.
cionalista se multiplicam. O Mahatma convoca um boicote às               Maugham publica um livro sobre sua visita, e em pouco
universidades. O neto (a partir de agora chamado simplesmente        tempo Chandran torna-se famoso em toda a Índia - famoso por-
de Chandran) decide obedecer a seu comando queimando seus            que um estrangeiro escrevera a seu respeito. (E Chandran não
livros de Shelley e Hardy no pátio da faculdade (afinal, não gos-    se limita a ser famoso na Índia: vem integrar uma lista cada vez
ta mesmo de literatura), e depois espera que uma tempestade          maior de personagens secundárias - e ocorrem-nos Rosencrantz
desabe sobre sua cabeça. Mas ninguém, ao que parece, dá im-          c Guildenstern, ou a mulher de Rochester em Tane Eyre - que
portância a seu gesto.                                               acabam despojadas de seu invólucro literário de origem e rece-

     326                                                                                                                        327
l:C   * *
bem papéis bem maiores em outras obras.) Outros visitantes do
exterior seguem os passos de Maugham.       Para eles, Chandran
repete a história de uma carreira brilhante no serviço público             Em honra de seu patrono inglês, Chandran dá a seu primo-
sacrificada em favor de uma vida de oração e sacrifício. E em         gênito o nome de William Somerset Chandran.           Como o jovem
pouco tempo ele próprio acaba acreditando nas suas mentiras.          Willie vem de um casamento misto (entre pessoas de castas dife-
Seguindo os passos de seus antepassados brâmanes, encontra um         rentes), é considerado prudente que seja mandado para uma es-
modo de repudiar o mundo e ainda assim prosperar. E não vê nis-       cola cristã. Previsivelmente, William aprende com os missioná-
so ironia alguma. Pelo contrário, fica admirado: deve estar sendo     rios canadenses que lecionam em sua escola que deve aspirar a
conduzido por um poder mais alto.                                     tornar-se missionário, e também canadense. Em suas redações
    Como o artista da fome de Kafka, Chandran        ganha a vida     das aulas de inglês, imagina-se como um menino canadense nor-
fazendo o que, secretamente, acha fácil: negar seus apetites (em-     mal, com mãe e pai e um carro da família. Seus professores o pre-
bora seus apetites não sejam exíguos a ponto de impedi-Ia de          miam com notas altas, embora seu pai fique magoado ao ver-se
gerar dois filhos em sua mulher atrasada). No conto de Kafka,         na composição em que o filho descreve sua vida.
apesar dos protestos em contrário do próprio artista da fome, há           No devido tempo, entretanto, Willie descobre qual a verda-
certo heroísmo no jejum, um mini-heroísmo bem adequado aos            deira intenção dos missionários: obter novos conversos ao cristia-
tempos pós-heroicos. Em Chandran        não há heroísmo algum: o      nismo, destruir a religião pagã. Sentindo-se logrado, ele para de
que lhe permite aceitar tão pouco é sua autêntica pobreza de          frequentar a escola.
espírito.                                                                  Cobrando antigos favores, Chandran escreve a Maugham e
     Em seu primeiro e mais crítico livro sobre a Índia, An Area      lhe pede que use sua influência em favor do menino. Recebe
af Darkness   [Uma área de escuridão,    1964], N aipaul descreve     em resposta uma carta datilografada:         "Prezado Chandran,   foi
Gandhi como um homem profundamente           influenciado pela éti-   muito agradável receber sua carta. Tenho boas memórias do seu
ca cristã, capaz, ao cabo dos vinte anos que vive na África do Sul,   país, e é bom receber notícias dos amigos indianos. Muito since-
de ver a Índia com o olhar crítico de um forasteiro e, nesse sen-     ramente seu ...". (p. 47) Outros amigos estrangeiros mostram-se
tido, "o menos indiano dos líderes indianos". Mas a Índia força       igualmente   evasivos. Finalmente,        alguém na Câmara dos Lor-
Gandhi a mudar, diz Naipaul: transformando-o num mahatma,             des dá-lhe uma resposta e Willie, aos vinte anos de idade, é man-
um ícone, ela se dá ao luxo de ignorar sua mensagem social.4          dado para a antiga metrópole com uma bolsa de estudos.
      Chandran   gosta de ver-se como um seguidor de Gandhi.               O ano é 1956. Londres está rebentando nas costuras de tan-
Porém, sugere implicitamente Naipaul, a pergunta que Chan-            tos imigrantes do Caribe. Em pouco tempo, motins raciais irrom-
dran se faz continuamente não é a gandhiana "Como preciso             pem na cidade e jovens brancos em pretensos trajes edwardianos
agir?", mas a hinduísta "Do que preciso desistir?". Ele prefere       percorrem as ruas atrás de negros que possam espancar. Willie
desistir a agir no mundo, porque desistir não lhe custa nada.         esconde-se no alojamento da sua escola. Esconder-se não é uma


      328                                                                                                                         329
Tanto pai quanto filho acreditam que os outros jamais con-
experiência inédita para ele: é o que fazia na Índia quando ocor-
riam os motins de casta.                                              seguirão enganá-Ios. Mas, se detectam mentiras e ilusões à toda
                                                                      volta, é só porque são incapazes de imaginar alguma pessoa dife-
     O que Willie aprende em Londres é, principalmente, sobre
o sexo. A namorada de um colega jamaicano fica com pena dele          rente deles próprios. Sua perspicácia baseia-se apenas num refle-
e o alivia de sua virgindade. E em seguida lhe faz uma provei-        xo defensivo de desconfiança. A regra que seguem é sempre es-
                                                                      colher a interpretação menos caridosa. São a autoabsorção e a
tosa explanação intercultural. Como os casamentos na Índia são
arranjados, diz ela, os indianos não acham que precisem satisfa-      estreiteza de espírito, mais do que a inexperiência, que se encon-
zer sexualmente as mulheres. Mas na Inglaterra as coisas são di-      tram na origem dos fracassos amorosos de Willie.
ferentes, e ele devia esforçar-se bem mais.                                Quanto ao pai de Willie, uma boa medida de sua mesqui-
     Willie consulta um livro chamado A fisiologia do sexo e fi-      nharia constitucional é a maneira como reage aos livros. Quando
                                                                      estudante, não "entendia" as aulas a que assistia, e especialmente
ca sabendo que o homem médio é capaz de manter uma ereção
                                                                      não "entendia" a literatura. (p. 10) A educação a que é submeti-
por dez a quinze minutos. Desestimulado, abandona o livro e
                                                                      do, especialmente a literatura francesa ensinada de cor, é certa-
recusa-se a prosseguir na leitura. Como é que ele, um incompe-
                                                                      mente irrelevante para sua vida diária. Ainda assim, existe nele
tente, e ainda por cima tendo começado tarde na vida, vindo de
                                                                      um impulso profundo a não entender, e a não aprender. No
um país onde não se fala de sexo e não existe nada que equivalha
                                                                      sentido mais estrito, trata-se de um indivíduo ineducável. Sua
a uma arte da sedução, irá arranjar uma namorada?
                                                                      fogueira dos clássicos não é uma resposta saudavelmente crítica
     Como é que posso aprender mais sobre o sexo?, pergunta
                                                                      a uma educação colonial sufocante. Não o liberta para algum
ele a seu amigo jamaicano. O sexo é uma coisa brutal, responde
                                                                      tipo diferente e melhor de formação, pois ele não tem ideia do
o amigo; você precisaria ter começado mais jovem. Na Jamaica,
                                                                      que possa ser uma boa formação. Na verdade, ele não tem ideia
acumulamos experiência violando as garotas à força.
                                                                      nenhuma.
     Willie reúne a coragem necessária para abordar uma mu-
lher das ruas. Suas relações são humilhantes e sem alegria. "Foda           E Willie tem a cabeça igualmente oca. Ao chegar à Ingla-
                                                                      terra, logo percebe o quanto é ignorante. Mas, numa reação re-
como um inglês", ordena ela quando ele começa a demorar mui-
                                                                      flexa típica, encontra alguém a quem declarar culpado por isso,
to. (p. 113)
      Chandran,   o sadhu charlatão, e seu filho, o amante inepto:    no caso a sua mãe; não tem curiosidade sobre o mundo porque
                                                                      é filho de uma mulher atrasada. A herança genética é caráter e
podem parecer matéria de comédia, mas não nas mãos de Nai-
                                                                      destino.
paul. Naipaul sempre foi um mestre da prosa analítica, e a prosa
de Meia vida é limpa e fria como uma lâmina. Os Chandran do                A vida universitária lhe revela que a etiqueta britânica, tan-
sexo masculino são seres humanos imperfeitos cuja incomple-           to quanto a etiqueta indiana, é extravagante e irracional. Mas
                                                                      essa percepção não marca o início do autoconhecimento. Eu sei
 tude antes assusta do que diverte; a mulher atrasada e a irmã, que
 cresce e se transforma numa arrogante simpatizante de esquer-        como são a Índia e a Inglaterra, pensa ele, enquanto os ingleses só
                                                                      sabem como é a Inglaterra, portanto posso declarar o que quiser
 da, são pouco melhores.

                                                                                                                                 331
      33°
* ,;,   ~:c
sobre meu país e a minha origem. Inventa-se                      um novo passado,
menos embaraçoso,            transformando        sua mãe em membro            de uma
antiga comunidade            cristã e seu pai no filho de um cortesão. O                             Embora    entediado       por seus estudos,            Willie     tem um talen-
ato de reinventar-se          o deixa mais animado, e lhe confere uma                      to claro como escritor. Estimulado                    por um amigo inglês a quem
sensação       de poder.                                                                   mostra alguns contos que escreveu na escola, ele lê Hemingway
        Por que esse pai e esse filho sem atrativos são como são? O                        e, usando "Os assassinos" como seu modelo básico e trasladando
que revelam        -     o que, nas mãos de Naipaul,             têm a intenção      de    situações      de filmes de Hollywood               para cenários         indianos    descri-
revelar -       sobre a sociedade           que os produziu?        A palavra-chave        tos em termos vagos, juntando                  histórias       de Londres        com histó-
aqui é sacrifício. Willie se apressa em identificar                 a falta de alegria     rias indianas      de que se lembra,           ele se entrega            a uma verdadeira
no cerne do tipo de gandhismo                 seguido por seu pai porque           sabe    fúria de composição.             Para sua surpresa,            descobre     que consegue
em primeira        mão o que significa ser objeto de desistência.                 Uma      ser mais fiel aos seus sentimentos                    quando        usa situações      muito
das histórias que Willie escreve em seu tempo de estudante                          fala   estranhas      à sua experiência           e personagens            totalmente       diversas
de um brâmane            que sacrifica       ritualmente       crianças    "atrasadas"     dele do que quando             compõe       "parábolas         cuidadosas       e semivela-
em troca de riqueza,           e acaba sacrificando            seus próprios    dois fi-   das" do tipo que escrevia na escola. (p. 82)
lhos. E é essa história,         intitulada      "Uma vida de sacrifício",         com           No passado, Naipaul            muitas vezes garimpou                 sua própria bio-
sua acusação           mal velada    contra      ele, que faz Chandran          pai -      grafia para criar suas obras de ficção. Em certos respeitos, o escri-
um homem           que ganha        a vida graças ao que chama              de sacrifí-    tor-aprendiz       W. S. Chandran           baseia-se no escritor-aprendiz                 V. S.
cio -      mandar       seu filho para o estrangeiro.             "Esse menino       irá   Naipaul.      Chandran         pode ter lido muito menos                  que Naipaul        na
envenenar        o que me resta de vida. Preciso mandá-Io                   para longe     mesma       idade (Naipaul          podia invocar            como     modelos     literários
daqui." (p. 42)                                                                            Evelyn Waugh, Aldous Huxley e, por seu tom caracteristicamen-
        O que Willie detecta          é que sacrificar       seus desejos significa,       te inglês, "sempre           distante,    insurpreendível,           imensamente           cul-
na prática,      não amar as pessoas que você deveria                     amar. Chan-      to", Somerset        Maugham).5            Por outro         lado, ambos        encontram
dran reage a essa descoberta             levando     mais longe ainda o sacrifí-           inspiração      literária     em Hollywood;                e na descoberta       de Willie
cio sem amor do seu filho. Por trás da invenção                    de Chandran       de    - de que é mais fiel a si mesmo quando parece mais distante de
que sacrificou         a carreira    em troca de uma vida de automortifi-                  si - é difícil não ouvir seu autor rebatendo anacronicamente a
cação, há uma tradição              hindu     corporificada,      se não no próprio        ortodoxia      de que todo escritor           precisa         escrever     a partir de sua
Gandhi        (que Willie     e sua mãe desprezam),             pelo menos      naqui-     posição de nacionalidade,                raça e sexo.
lo em que os indianos            como Chandran             transformaram       Gandhi            Por semanas           a fio, Willie se dedica a compor                suas obras de
ao to rná-l o o santo padroeiro             do país; corporificada         de maneira      ficção.     Mas, como o que escreve                 o conduz        inexoravelmente            a
mais geral numa            filosofia fatalista     que ensina       que quanto      me-    perguntas      que não quer enfrentar,              ele começa        a hesitar, e depois
nos melhor,        que todo esforço para progredir                é, no fim das con-       desiste. Nunca       mais em sua vida -                   pelo menos na vida que nos
tas, inútil.                                                                               é apresentada       em Meia vida -            ele voltará a pegar a pena.


        332                                                                                                                                                                     333
Emerge da tormenta criadora com os originais de 26 con-            literária que Naipaul aperfeiçoou ao longo dos anos, em que a
tos, que envia a um editor compassivo. O livro, quando é lança-          reportagem histórica e a análise social fluem entrando e saindo
do, mal atrai qualquer atenção e, àquela altura, de qualquer mo-         de uma ficção de colorido autobiográfico e de memórias de via-
do, já envergonhava seu autor. Mas ele recebe a carta de uma             gem - um modo misto que pode acabar sendo seu principal
admiradora com nome português. "Nos seus contos, pela pri-               legado às letras de língua inglesa.
meira vez, encontrei momentos que lembram os momentos da                      O quadro que formamos de Moçambique nos últimos anos
minha vida", escreve ela. (p. 116) Sabendo como os seus contos           do domínio português (Willie passa lá os anos entre 1959 e 1977)
tinham sido criados, Willie acha difícil acreditar no que ela diz.       é vivo e surpreendente. Ana é moçambicana de nascença, de fa-
Ainda assim os dois combinam um encontro, e se apaixonam. O              mília portuguesa africanizada. Na escala social, isso a coloca abai-
nome dela é Ana, e ela é herdeira de uma propriedade em Mo-              xo dos portugueses nascidos na Europa, mas acima dos mestiços,
çambique. Num impulso, Willie acompanha Ana para a África                que se situam por sua vez acima dos negros. Para Willie, vindo
e passa dezoito anos lá sustentado por ela. A segunda metade de          de uma Índia presa ao sistema de castas, essas gradaçães sociais
Meia vida é ocupada pela história desses anos. Por mais pro-             minuciosas baseadas no sangue não são, claro, nada estranhas.
fundamente interessante que seja, essa segunda metade não traz                O círculo em que Ana e Willie evoluem é constituído por
nada que se compare, em profundidade de análise, à história dos          proprietários de terras e administradores rurais; a vida social con-
Chandran pai e filho.                                                    siste em visitas aos vizinhos e viagens à cidade para a compra de
                                                                         mantimentos. Willie (que nesse respeito em nada difere do seu
    A Índia de Naipaul é abstrata e sua Londres, um rascunho,            autor) disseca o modo de vida colonial sem a condescendência
mas a Moçambique que ele nos descreve é apresentada de ma-               que se poderia esperar de um liberal bien-pensant do Ociden-
neira convincente. A Moçambique dos tempos coloniais não                 te. Na verdade ele aprova a sociedade local, especialmente pelas
produziu escritor nenhum de alguma estatura. O escritor mo-              oportunidades de variedade sexual que ela lhe fornece. Mesmo
çambicano mais conhecido dos dias de hoje, Mia Couto, pertence           quando as forças guerrilheiras fecham o cerco e o fim se apro-
à geração pós-independência, e de qualquer maneira é influen-            xima, seus amigos colonos continuam a "aproveitar o presente,
ciado demais pela voga do realismo mágico para merecer con-              enchendo as velhas salas de conversa e risadas, como pessoas
fiança como cronista do passado do seu país. Assim, Naipaul po-          que não se importassem, como pessoas que soubessem conviver
deria parecer livre para inventar uma Moçambique própria, de             com a história". "Nunca admirei os portugueses tanto quanto
fantasia, dos tempos anteriores à guerra. Mas não é o que ele faz.
                                                                     J
                                                                         àquela altura", reflete ele mais adiante. "Gostaria que me fos-
Seu compromisso é com o real, com a história real da maneira             se possível conviver da mesma forma fácil com o meu passado."
como ocorreu com pessoas reais; e assim a segunda parte de Meia          (PP·187-8)
vida tem um forte sabor jornalístico, com Willie Chandran usa-               A liberdade de nadar contra a corrente aqui exibida é coe-
do como meio para vinhetas representando     a vida colonial. Essa       rente com a atitude de Naipaul em relação ao seu próprio passa-
parte do romance adere na verdade a um modo de composição                do colonial, ou seja, que o fato de descender de humildes cam-

     334                                                                                                                            335
* * *
poneses indianos presos ao trabalho nas plantations não precisa
fixar ninguém num nicho futuro em que a condição psíquica
permanente é a de vítima. Quando Naipaul examina com olhos                As aventuras que Willie Chandran      vive na África acabam
de historiador o imperialismo, o colonialismo e a escravidão, vai     sendo basicamente sexuais. Suas relações com Ana não perma-
além apenas das variantes ocidentais. Assim, vê a Índia mais pro-     necem apaixonadas por muito tempo. Logo ele começa a fre-
fundamente     marcada por sua sujeição aos mogóis muçulmanos         quentar prostitutas africanas, muitas das quais, pelos padrões
que pelo domínio do Império Britânico. Os europeus não foram          ocidentais, ainda são crianças. Da prostituição infantil ele passa
os únicos estrangeiros que se instalaram na África. O litoral leste   a um caso com uma amiga de Ana de nome Graça, e Graça lhe
africano absorveu tanto árabes e indianos quanto europeus, e os       mostra quanto o sexo pode ser brutal. "Como teria sido terrí-
africanizou.
                                                                      vel", pensa ele mais tarde, "se ... eu tivesse morrido sem conhe-
     Uma das vertentes da complexa       autoconcepção     e auto-    cer essa profundidade de satisfação, essa outra pessoa que acabo
criação de Naipaul é como um participante da reconquista da           de descobrir dentro de mim mesmo." Com uma compaixão fora
Grã-Bretanha    pelos povos que o Império antes dominava. "Em         do normal, ele dirige seus pensamentos para seus pais na Índia,
1950 em Londres", escreve ele em O enigma da chegada, "eu me
                                                                      para "meu pobre pai e minha pobre mãe que não conheceram
encontrei no início daquele grande movimento de povos que
                                                                      nada que se comparasse a este momento". (pp. 190, 191)
viria a ocorrer na segunda metade do século XX - um movi-
                                                                          Ainda resta a Willie mais um degrau em sua escalada se-
mento e uma mistura cultural maiores que os do povoamento
                                                                      xual. Com uma delicada obliquidade,      Ana lhe dá a entender
dos Estados Unidos." (p. 141) O próprio livro O enigma da che-
                                                                      que Graça é mentalmente     instável. E de fato, quando as tropas
gada é a história de um homem que chega à Inglaterra de uma
                                                                      portuguesas se retiram e os guerrilheiros invadem, Graça recai
ex-colônia para conhecer melhor o país e, finalmente, instala-se
                                                                      num comportamento      maníaco de autodegradação.      Willie co-
na área rural de Wiltshire, um dos chamados home counties, os
                                                                      meça a entender por que as religiões condenam      o extremismo
condados mais próximos a Londres praticamente       absorvidos pe-
                                                                      sexual e, de qualquer maneira, cansou-se da sua aventura colo-
lo crescimento da capital.
                                                                      nial. Tem 41 anos de idade; metade de sua vida já passou; despe-
     Os migrantes do tipo aqui descrito por Naipaul tiveram na
                                                                      de-se de Ana e vai morar com sua irmã nas neves da Alemanha;
colônia uma educação comicamente antiquada em relação aos
                                                                      o livro acaba.
padrões da metrópole. No entanto, foi justamente       essa forma-
ção que os tornou guardiães de uma cultura que decaíra na
"pátria-mãe". "Os indianos são os únicos ingleses que sobrevive-          Meia vida é a história da trajetória de um homem entre um
ram", disse Malcolm Muggeridge numa frase famosa.6 A postu-           início sem amor e um final solitário que pode não ser realmen-
ra muitas vezes professoral que Naipaul adota em seus livros é        te um final, só um período de repouso e recuperação.     As expe-
mais vitoriana do que qualquer britânico nativo teria coragem         riências que determinam seu progresso são de natureza sexual. As
de assumir.                                                           mulheres com quem as compartilha aparecem como objetos de


     336                                                                                                                       337
desejo, repugnância ou fascínio - às vezes os três ao mesmo           da -   representado, ainda que de forma apenas parodística, pelo
tempo - relatados com um olhar de lucidez impiedosa.                  seu pai - que vê na negação do desejo o caminho para a ilu-
     Na parte do livro passada em Londres visitamos, pela tercei-     minação. Por mais impessoais que sejam, é através de seus en-
ra ou quarta vez na obra de Naipaul, desde Os mímicas (1967), o       contros sexuais com as mulheres africanas que Willie consegue
quarto do segundo piso com uma lâmpada nua e o colchão es-            exorcizar os fantasmas de Londres. Mas o que essas mulheres afri-
tendido sobre jornais no chão onde um rapaz experimenta o sexo        canas teriam de tão diferente? Observando um bando de meni-
pela primeira vez. A cada vez a cena é retrabalhada; aos poucos,      nas que dança de forma provocadora diante de seus fregueses, ele
tornou-se mais bestial e mais desesperada. É como se Naipaul se       vislumbra a resposta: elas representam alguma coisa que vai além
recusasse a livrar-se da cena até finalmente conseguir espremer       das suas existências individuais, algum inescrutável "espírito mais
dela um último sentido que ela se recusa a fornecer.                  profundo". "Comecei a formar a ideia de que no coração africa-
     Na África, quando toma nos braços sua primeira menina            no existia alguma coisa que se fechara para o resto de nós, e mui-
prostituída, os fantasmas do seu passado londrino erguem-se à         to além da política." (p. 173)
sua frente. Mas, no momento em que está a ponto de desistir,              Naipaul conhece bem a África. Morou e trabalhou na Áfri-
"uma extraordinária expressão de comando, agressividade e von-        ca Oriental: o conto "Home again", em Um caminho no mun-
tade assoma nos olhos [da menina], seu corpo todo é tomado pela       do (1994), baseia-no tempo que passou lá. In a Free State (1971) e
tensão, e me vi apertado por suas mãos e pernas fortes. Numa          Uma curva no rio (1979) são ambos "sobre" a África. No geral, a
fração de segundo - como a decisão quase imediata que tomei           visão que Naipaul apresenta da África permanece notavelmente
olhando pela mira de uma arma - eu pensei: 'É para isso que           constante e até, pode-se mesmo dizer, rígida. A África é um lu-
Álvaro [o amigo que o trouxe ao bordeI] vive', e recuperei os sen-    gar onÍrico e ameaçador que resiste à compreensão, que corrói
tidos". Depois dessa experiência, "comecei a viver com uma no-        a razão e os produtos tecnológicos desta última. Joseph Conrad,
va ideia do sexo ... Era como se tivesse adquirido "iIma nova ideia   o homem dos confins do Ocidente que se transformou num clás-
de mim mesmo". (p. 175)                                               sico da literatura inglesa, foi um dos mestres de Naipaul pela vida
     No momento com a garota, Willie evoca a outra improvável         inteira. Para o bem ou para o mal, a África de Naipaul, com suas
paixão que desenvolve na África: as armas. Fazer pontaria e puxar     imagens de máquinas industriais oxidadas e enredadas por cipós
o gatilho transforma-se, para ele, na prova existencial da verdade    selvagens, vem de Coração das trevas.
da vontade, num nível além do alcance do controle racional. As
mulheres africanas com quem dorme provam a verdade do seu                  Meia vida não dá a impressão de ter sido trabalhado com
desejo de um modo que igualmente não admite disfarce.                 muito cuidado, e as insuficiências técnicas que disso resultam não
     É ao identificar o enlace sexual como a suprema área de tes-     são negligenciáveis. O plano de Naipaul é apresentar-nos toda a
tes para a verdade sobre quem é que Naipaul chega mais perto          história como se fosse contada por Willie. Mesmo a história de
de articular a natureza da jornada espiritual que Willie Chandran     Chandran pere deveria basear-se no que Willie ouviu da sua bo-
vem percorrendo, e de medir a sua distância de um modo de vi-         ca. Mas o plano só é levado a efeito até certo ponto. Apesar da

     338                                                                                                                         339
f
                                                                      'I
                                                                           ----
frieza entre pai e filho, o pai dá a Willie acesso a seus sentimen-        podia recorrer apenas à sua infância na minúscula Port of Spain,
tos mais secretos, inclusive a repugnância física que sente pela           e não contava com nenhuma memória histórica mais ampla (e
mulher. Em alguns momentos, a suposta condução da narrativa                nisso Trinidad deixou-o na mão e, por trás de Trinidad, a Índia);
por Willie é totalmente   abandonada      em favor das intervenções        em suma, parecia não ter assunto. Só depois de décadas de esfor-
de um narrador onisciente à moda antiga.                                   ços literários é que finalmente chegou à compreensão proustia-
    E ainda há outras fraquezas. As cenas da vida literária em             na de que sempre soubera qual era seu assunto principal, e esse
Londres parecem saídas de um roman à elef satírico cuja chave              assunto era ele próprio - ele e seus esforços, como cidadão das
estará fora do alcance da grande maioria dos leitores. O amor              colônias educado numa cultura que não lhe pertencia (pelo que
juvenil de Willie por Ana passa perto de cair no cliché. E, o que          lhe diziam) e sem uma história (pelo que lhe diziam), para en-
é mais impressionante de tudo, a história de Willie se encerra             contrar um caminho no mundo.
não só sem uma resolução, mas sem qualquer vislumbre de co-                     Willie não é Naipaul, e o contorno da vida de Willie só cor-
mo poderá vir a ser. Sua Meia vida parece a metade inicial ar-             responde aqui e ali à de seu criador. Ainda assim, nas passagens
rancada de um livro que poderia chamar-se Uma vida inteira.                em que examina o sacrifício e no que uma herança profunda-
     Mas esse tipo de restrição não afeta Naipaul. A seu ver, o            mente impregnada de sacrifício se transforma quando ela própria
romance como veículo para as energias criativas chegou a seu               é sacrificada, Meia vida adquire os acentos urgentes e inconfun-
apogeu no século XIX; escrever romances impecavelmente tra-                díveis da verdade pessoalJ Será possível que o imenso feito de
balhados em nossos dias é entregar-se na verdade a uma arte de             autoconstrução que Naipaul empreendeu durante a terceira e a
antiquários. Dados seus sucessos na criação pioneira de uma for-           quarta décadas de sua vida lhe pareça em retrospecto ter cobra-
ma alternativa, fluida e semificcional,    essa sua opinião merece         do um preço alto demais em sacrifício do corpo e de seus apetites,
ser levada a sério.                                                        um preço que equivaleria a nada menos que a metade de uma
    Ainda assim, chegamos ao fim de Meia vida com a sensação               vida humana?
de que não é Willie Chandran, mas o próprio Naipaul, quem
não sabe o que virá em seguida. E, de fato, o que pode fazer um                  Na pessoa de Chandran senior, Naipaul diagnostica o sacri-
refugiado de 41 anos de idade que nunca trabalhou e só conse-              fício como o caminho da fraqueza pelo qual enveredam os espí-
guiu produzir uma única coisa na vida, um livro de contos pu-              ritos sem amor, uma forma essencialmente mágica de conquistar
blicado décadas antes? Quem é Willie Chandran, afinal? E por               a vitória na dialética natural entre um eu desejante e o mundo
que Naipaul, um escritor prolífico e famoso, investe suas ener-            real que lhe resiste simplesmente suprimindo o desejo. Na histó-
gias numa anti-identidade cuja única marca de distinção é ter da-          ria da vida do jovem Chandran, Naipaul acompanha as conse-
do as costas ao que podia ter sido uma carreira literária?                 quéncias infelizes de crescer numa tal cultura de sacrifício.
     Um dos traços mais constantes na maneira como Naipaul                      É instrutivo ler a história de Willie Chandran lado a lado
conta a história de sua própria vida é que foi por pura força de           com a história que Anita Desai nos conta em seu romance O       je-

vontade que se tornou escritor. Não era muito dado à fantasia;             jum e a festa (2000), de um jovem que é transplantado      em cir-

     34°                                                                                                                             341
cunstâncias similares da sua terra natal indiana para um país on-   trar o mesmo tipo de fome em plena América, "onde tanto é da-
de reina o apetite.8                                                do às pessoas, onde existe ao mesmo tempo licença e fartura".
     1111 como Willie, o Arun de Anita Desai foi criado sob as      Quando ele chegara lá, tinha exultado com o anonimato: "sem
ordens de um pai cujos padrões jamais consegue satisfazer. Tal      passado, sem família ... sem país". Mas afinal não escapara à fa-
como Willie, Arun obtém uma bolsa de estudos e se descobre          mília, só encontrara uma "reprodução em plástico" da mesma.
mais ou menos sem rumo numa cidade estrangeira, no caso Bos-        O que ele tinha na Índia era "desprovido de encanto e beleza,
ton, onde encontra alojamento fora do eampus na casa de uma         contorcido, frágil e condenado". O que encontrou em lugar disso
família americana de nome Patton. Seu anfitrião, descobre ele,      na América era "limpo, reluzente, cintilante, sem gosto, sabor ou
é um carnívoro contumaz que adora grelhar bifes imensos em          substância", e igualmente desprovido de amor. (pp. 214, 172, 185)
sua churrasqueira ao ar livre. As refeições logo se transformam          O excesso impressionante de comida que Arun encontra na
em rituais de constrangimento: as regras da sua casta lhe proí-     América, e os hábitos dietéticos totalmente desequilibrados da
bem o consumo de carne e, embora o tabu não fosse observado         família Patton, têm uma relação clara, embora enviesada, com o
em sua casa, Arun sempre achou a carne repulsiva. Seus hábitos      festim ou banquete do título de Desai. Mas e o jejum?
dietéticos logo se transformam num pretexto para uma rixa per-           Arun é jovem e inseguro demais para repudiar o modo de
manente entre os membros da família Patton. A sra. Patton se de-    vida que os Pattons exemplificam. Aplicadamente, tenta emular
clara convertida ao vegetarianismo, e produz para Arun sua ver-     os feitos atléticos de Rod Patton. Mas logo fica claro para ele que
são de uma dieta sem carne: sanduíches de alface e tomate, flocos   "um rapaz miúdo, subdesenvolvido e asmático das planícies gan-
de cereal com leite. Mergulhado no sofrimento, ele come, obe-       géticas, criado à base de legumes com eurry e lentilhas cozidas"
diente: "Como poderia dizer [a ela] ... que seu sistema digestivo   jamais poderá competir com um exemplar dos bem nutridos
não tinha como transformar [aquela comida] em nutrição?". Ela       machos americanos. Uma das maneiras de remediar esse esta-
o convence até a cozinhar, e com um entusiasmo fingido engo-        do de coisas seria trocar a dieta indiana por uma americana, dei-
le a pasta nada apetitosa que o menino triste - o qual na Índia     xar de ser um praticante do jejum e sentar-se também à mesa do
nunca vira sequer o interior de uma cozinha, tendo sempre sido      festim. Mas esse não é um passo que ele se julgue capaz de dar.
servido pelos criados ou pelas irmãs - acaba preparando. (p. 185)   Arun continua vegetariano por motivos que não são nem religio-
     O sr. Patton e seu filho Rod refugiam-se perplexos nas pro-    sos nem éticos, e certamente   nada têm de sociais. Por tempera-
ximidades da churrasqueira, enquanto a filha da família se es-      mento ou talvez simplesmente por sua conformação fisiológica,
conde no quarto, devorando tabletes de chocolate que depois se      ele não é carnívoro. A carne e (quando a sra. Patton enverga seu
força a vomitar, odiando-se o tempo todo. Na garota bulímica        maiô de banho) o excesso de carnes lhe provocam repulsa, não
Arun vê uma semelhança impressionante com sua irmã mais ve-         porque seus tabus dietéticos sejam ofendidos ou porque ele seja
lha e epiléptica que, incapaz de encontrar palavras para protes-    um puritano moralista, mas porque em seu ser ele é um asceta,
tar por "sua existência singular e suas fomes" serem ignoradas,     assim como no ser dela sua irmã epiléptica é uma devota religio-
recorre a espumar pela boca. Como é estranho, pensa ele, encon-     sa. O páthos do rapaz -   aquilo que seria difícil chamar de tragé-

    342                                                                                                                        343
dia, já que Desai trabalha com uma paleta deliberadamente       co-    é uma ilusão. Num nível mais mundano, certos tabus dietéticos
medida - é que ele mal consegue encontrar as palavras para             talvez precisassem ser abolidos: num momento que o historiador
descrever seu sofrimento, muito menos articular seu significado        Ashis Nandy define como "de um derrotismo terrível", Viveka-
mais amplo, a saber, que o mundo moderno, inclusive a Índia            nanda chegou a defender que os hinduístas recorressem aos "três
em seu aspecto moderno, mostra-se cada vez menos hospitaleiro          B's" para a sua salvação: o Bhagvad-Gita, os bíceps e os bifes.9
ao temperamento    dos praticantes do jejum. (p. 191)                        A discordância entre Arun e seu pai em torno do tabu bra-
     Mesmo na Índia, o vegetarianismo de Arun era uma fonte            mânico que veda o consumo de carne, assim, é mais que um
de desentendimentos. Seu pai queria que ele praticasse esportes        simples desentendimento de família. Os dois representam visões
másculos e, de maneira mais geral, fosse bem-sucedido na vida,         opostas quanto ao preço que os hindus - e os indianos - de-
entendendo por tal que desejaria que ele fosse menos fatalista e       vem estar prontos a pagar -   aquilo de que precisam abrir mão
mais empreendedor, menos passivo e mais ativo, menos femi-             - para se transformarem em atores do mundo moderno. Em
nino e mais masculino, menos indiano e mais ocidental. Tendo           sua rejeição confusa e nada heroica da fatia de carne que o sr.
tentado sem sucesso nutrir a força de Arun alimentando-o       com     Patton joga com força no seu prato, em sua relutância em negar
carne, ele interpreta a repulsa do rapaz por esse alimento como        o que parece um sacrifício aos estrangeiros, e de maneira mais
um atavismo repreensível, um retorno ao "modo de vida dos an-          geral em sua incapacidade de considerar o festim do Novo Mun-
tepassados, homenzinhos    miúdos e fracos que nunca chegaram          do o tipo de comida que possa alimentá-Io, Arun não só preserva
a nada na vida". (p. 33)                                               um mínimo de integridade pessoal como ainda complica e lan-
     Curiosamente ou não, Arun e seu pai encarnam          assim os    ça dúvidas sobre uma receita como a de Willie Chandran para
dois lados, o tradicional e o progressista, de um debate acerca do     progredir no mundo. Num nível pré-cultural, o nível do próprio
caráter nacional que remonta na Índia a meados do século XIX,          corpo, ele resiste às pressões da assimilação: esse corpo indiano
debate desencadeado    pelos reformadores hindus Swami Daya-           "subdesenvolvido" não é um corpo americano, e nunca se trans-
nand Saraswati (1824-83) e Swami Vivekananda (1863-19°2). Tan-         formará num deles.
to Saraswati quanto Vivekananda julgavam que os hindus do seu
tempo tinham perdido contato com os valores masculinos e mar-                                                                     (2001)
ciais de seus antepassados; ambos advogavam um retorno aos
valores "arianos", retorno que, se necessário, deveria incluir a in-
corporação dos traços da cultura de seus dominadores coloniais
que mais evidentemente respondiam pelo poder dos britânicos.
Na esfera da religião, o hinduísmo devia ser organizado nos mol-
des de uma igreja cristã, com linhas claras de governança inter-
na. No nível filosófico, talvez fosse necessário aceitar que a his-
tória é antes linear do que cíclica, e portanto que o progresso não

     344                                                                                                                        345
Notas
J

I
I
1




I

    L   ITALO SVEVO [pp. 17-32]

1        1. Livia Veneziani     Svevo, A Memoir of Italo Svevo, trad. Isabel QuigIy,
    Evanston, North-western University Press, 2001.
       2. P. N. Furbank, ltalo Svevo: The Man and the Writer, Londres, Secker,
    1966, p. 172.
1       3. Halo Svevo, Zeno's Conscience, traduzido por e com uma apresentação
    de William Weaver (Nova York, Knopf, 2001; Londres, Penguin, 2001), p. 404.
    Fiz pequenas mudanças         na tradução de Weaver. [Ed. bras.: A consciência de
    Zeno, trad. Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.]
        4. Svevo, As a Man Grows Older, trad. Beryl de Zoete, Nova York, Review
    Books, 2001, p. 172. [A frase da tradutora em inglês é "in search of a refuge from
    such an infamous embrace", N. T.] [Ed. bras.: Senilidade, trad. Ivo Barroso, Rio
    de Janeiro, Nova Fronteira, 2002.]
         5. Svevo, Emilio's Camival, trad. Beth Archer Brombert, New Haven, Yale
    LJniversity Press, 2001, pp. 16, 117, 170.
        6. Citado em John Gatt-Rutter, Italo Svevo, Oxford, Oxford University Press,
    1988, p. 163.
         7. Id., ibid., pp. 281, 297·
         8. "The Story of the Nice Old Man and the Pretty Girl", trad. L. Colli-
    son-Morley, in Svevo, Short Sentimental        Journey and Other Stories, Londres,
    Secker   & Warburg,     1967, p. 81, vol. 4 da edição uniformizada.



                                                                             347
9· Citado em Gatt-Rutter, p. 307.                                                      15. The Robber, trad. Susan Bernofsky, University of Nebraska Press, 2000;
     10. Na tradução de Weaver, o trecho diz: "Unlike other sicknesses, life ...       Jakob von Gunten, trad. Christopher Middleton (ver nota 4 deste capítulo).
 doesn't tolerate therapies". ("À diferença de outras moléstias, a vida ... não com-        16. Susan Bernofsky, "Gelungene Einfalle", in Utz, Wiinnende ..., pp. 123-4-
 porta terapias", p. 435.) Weaver usa sistematicamente      "therapy" para a "cura"    [Eis a tradução de Bernofsky para o inglês: "He sat in the aforementioned gar-
 do italiano de Svevo que [como em português] tanto pode se referir ao proces-         den, entwined by lia nas, embutterflied by melodies, and rapt in the rapscallity
 so de tratamento como a seu resultado, ficar curado. Mas há muitos casos, co-         of his love for the fairest young aristocrat ever to spring down from the heavens of
 mo aqui, em que "cure" transmite a intenção de Svevo com mais exatidão do             parental shelter into the public eye so as, with her channs, to give the heart of a
que "therapy", ou como no trecho em que Zeno promete a si mesmo que irá                Robberafatalstab.".      N. T.]
recuperar-se da "cura" do dr. S.                                                           17. Id., ibid., p. 117.
    11.Gatt-Rutter, p. 238.                                                                18. Walser, Gesammelte Werke, org. Jochen Greven, Frankfurt, Suhrkarnp,
                                                                                       1978, vol. x, p. 323.
                                                                                           19. Kerr (org.), Über Robert Walser, p. 12, vol. 11.
2. ROBERT     WALSER     [pp. 33-5oJ                                                      20. O original está em Frõhlic e Hamm (orgs.), Robert Walser: Leben und
                                                                                       Werk, p. 279.
    1. Por exemplo, uma das fotos da polícia é reproduzida     em Elio Frõhlich e
Peter Hamm (orgs.), Robert Walser: Leben und Werk, Frankfurt, Insel, 1980.
    2. Citado em Katharina Kerr (org.), Cher Robert Walser, Frankfurt, Suhr-           3. ROBERT     MUSIL,   O JOVEM     TORLESS     [pp. 51-61J
kamp, 1978, p. 13, vol. 2.
    3· George C. Avery, Inquiry and Testament, Filadélfia, University ofPennsyl-            1. Musil, Diaries 1899-1941, org. Mark Mirsky, trad. Philip Payne, Nova
vania Press, 1968, p. 6.                                                               York, Basic Books, 1998, p. 209.
   4· Jakob von Gunten, trad. Christopher      Middleton,    Nova York, New York            2. Brecht citado em Werner Mittenzwei, Exil in der Schweiz, Leipzig, Rae-
Review Books, 1999, p. 3.                                                              Iam, 1978, p. 19; Musil citado em Ignazio Silone, "Begegnungen mit Musil", in
                                                                                       Karl Dinklage (org.), Robert Musil: Studien zu seinem Werk, Reinbek: Rowohlt,
    5· "Robert Walser", in Michael W. Jennings, Howard Eiland, Gary Smith
                                                                                       197°, p. 355·
(orgs.), Selected Writings, trad. Rodney Livingstone et a!., Cambridge [Mass.],
                                                                                            3. Citado em Karl Dinklage, "Musil's Definition des Mannes ohne Eigens-
Harvard University Press, 1999, p. 259, vol. 11.
                                                                                       chaften", in Robert Musil: Studien zu seinem Werk, p. Il4-
    6. Citado em Avery, Inquiry ..., p. 11.
                                                                                           4. Citado em David S. Luft, Robert Musil and the Crisis ofEuropean Cul-
   7· Citado em K-M. Hinz, T. Horst (orgs.), Robert Walser, Frankfurt, Suhr-
                                                                                       ture 1880-1942, Berkeley, University of California Press, 1980, p. 108.
kamp, 1991, p. 57.
                                                                                            5· Diaries 1899-1941,p. 465.
    8. Citado em Werner Morlang, "The Singular Bliss ofthe Pencil Method",
                                                                                            6. The Confusions ofYoung Tor!ess, trad. Shaun Whiteside, Londres, Pen-
Review of Contemporary Fiction 1211, 1992, p. 96.
                                                                                       gUIl1,2001, p. 157.
    9· Citado em Mark Harman (org.), Robert Walser Rediscovered, Hanover e
                                                                                            7. The Man without Qualities, trad. Sophie Wilkins, Nova York, Knopf,
Londres, University Press ofNew England, 1985, p. 206.                                 1996; Londres, Picador, 1997, p. 826, vol. 2. [Ed. bras.: O homem sem qualida-
    10. Citado em Idris Parry, Hand to Mouth,       Manchester,   Carcanet,   1981,    des, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.]
P·35·
                                                                                            8. Diaries 1899-1941, p. 384.
    11.Citado em Peter Utz (org.), Wiinnende Fremde, Berna, Peter Lang, 1994,
p. 64; em Kerr (org.), Über Robert Walser, vol. 2, p. 22.
    12. Citado em Utz, Wiinnende ..., p. 74.                                           4. WALTER BENJAMIN,        PASSAGENS      [pp. 62-89J
    13· Citado em Agnes Cardinal, The Figure ofParadox in the Work ofRobert
Walser, Stuttgart, Heinz, 1982, p. 39.                                                     1. Walter Benjamin,    The Arcades Pro;ect, trad. Howard Eiland e Kevin
   14· Citado em Morlang, "The Singular Bliss ...", p. 96.                             McLaughlin,   Cambridge    (Mass.], Harvard University Press, 1999, p. 948.


      348                                                                                                                                                      349
2. Id., Selected Writings. Volume 1: 1913-1926, org. Marcus BuIlock e Mi-                 2. Jerzy Ficowski, Regions af the Great Heresy: Bruno Schulz, A Biographi-
 chael W. Jennings,      trad. Rodney Livingstone,        Stanley Corngold,    Edmund      cal Portrait, traduzido e editado por Theodosia Robertson, Nova York, W. W.
 Jephcott, Harry Zohn, Cambridge            [Mass.], Harvard University Press, 1996, p.    Norton, 2002, p. 105.
 446. Doravante referido como VI.
                                                                                                3. Carta a Romana Halpern, agosto de 1938, em Jerzy Ficowski (org.), Col-
     3· Id., Selected Writings. Volume 2: 1927-1934, org. Michael         W. Jennings,     lected Warks ofBruno Schulz, Londres, Picador, 1998, p. 442.
 Howard Eiland e Gary Smith, trad. Rodney Livingstone et aI., Cambridge                         4. Drohobycz, Drohobycz and Other Staries, trad. Alicia Nitecki, Nova York,
 [Mass.], Harvard University Press, 1999, p. 47. Doravante referido como V2.               Penguin, 2002.
     4· Citado em Susan Buck-Morss, The Dialectics afSeeing: Walter Benjamin                    5. The Street of Crocodiles, trad. Celina Wieniewska, introdução                     de Jerzy
 and the Arcades Project, Cambridge [Mass.], MIT, 1997, p. 21.                             Ficowski, Nova York, Penguin, 1977.
      5· Carta a Martin Buber, in Walter Benjamin, Correspondence 1910-1940,                    6. Bruno Schulz, Drawings and Documents                      from the Collectíon of the
 org. Gershom Scholem e Theodor W. Adorno, trad. Manfred Jacobson e Evelyn                 Adam Mickiewicz Líbrary Museum, Varsóvia, 1992.
 Jacobson, Chicago, University of Chicago Press, 1994, p. 313.
     6. Citado em Buck-M6rss, p. 383.
    7· Walter Benjamin,          Gesammelte Scriften, sete volumes, org. Rolf Tiede-
                                                                                           6. JOSEPH       ROTI-I,   os   CONTOS        [pp.   106-121]
mann e Herman Schweppenhauser,              Frankfurt, Suhrkamp, 1972-89, voI. 3, p. 52;
V2, p. 559.
                                                                                                L Citado em William M. Johnston, The Austrian Mind: An Intellectual and
   8. "The work of art...", in Illuminations, org. Hannah Arendt, trad. Harry
                                                                                           Social History, 1848-1938, Berkeley eLos Angeles, University of California Press,
Zohn, Nova York, Schocken, 1969; Londres, Jonathan Cape, 1970, p. 238.
                                                                                           1972, p. 238.
   9· "On Some Motifs in Baudelaire", in Illuminations, p. 190.
                                                                                                2. Citado em Sidney Rosenfeld, Joseph Roth, University of South Carolina
    10. Citado    em Momme Brodersen, Walter Benjamin: A Biography, trad.
                                                                                           Press, 2001, p. 45.
Malcolm R. Green e Ingrida Ligers, Londres e Nova York, Verso, 1996, p. 239.
   11. Citado em Buck-Morss, p. 220.
                                                                                                3. Citado em Helmuth           Nürnberger,      Joseph Roth, Hamburgo,           Rowohlt,
                                                                                           1981, p. 38.
    12. Carta de 1931, citada em Gerhard          Richter, Walter Benjamin     and the
                                                                                                4. Id., ibid., p. 15·
Corpus af Autabiagraphy, Detroit, Wayne State University Press, 2000, p. 31.
                                                                                                5. Id., ibid., p. 104-
   13· Citado em Rainer Rochlitz, The Disenchantment     of Art: The Phílasa-
                                                                                                6. Id., ibid., p. 70, 74.
phy afWalter     Benjamin,       trad. Jane Marie Todd, Nova York, Guilford Press,
1996, p. 133·                                                                                   7. Id., ibid., p. 119·

   14· AP, p. 460; The Origin af German Tragic Drama, trad. John Osborne,
                                                                                               8. The Collected Stories of Joseph Rath, trad. Michael Hofmann, Nova
Londres, New Left Books, 1998, p. 34-                                                      York, W. W. Norton, 2001. Publicado no Reino Unido como Collected Shorter
   15· Citado em Buck-Morss, p. 228.                                                       Fiction ofJoseph Roth, Londres, Granta, 2001.
   16. Id., ibid., p. 291.                                                                      9. Citado em David Bronstein (org.), Joseph Roth und die Tradítion, Agor
    17· Ver VI, p. 360, nota 38.                                                           VerIag, 1975, p. 128.
    18. Illuminatians,   p. 3.


                                                                                           7.   SÁNDOR     MÁRAI        [pp. 122-143]
5· BRUNO     SCHULZ      [pp.     9°-105]
                                                                                                L Sándor Márai, As brasas, trad. Rosa Freire d'Aguiar da versão italiana de
   L Bruno Schulz, carta a Andrzej Plesniewicz, citado em Czeslaw Z. Pro-                  Marinela d'Alessandro, São Paulo, Companhia                    das Letras, 1999, p. 36.
copcyk (org.), Bruno Schulz: New Documents and lnterpretations,            Nova York,           2. Land, Land!. ..: Erinnerungen,         tradução do húngaro para o alemão por
Peter Lang, 1999, p. 101.                                                                  Hans Skirecki, Munique, Piper, 2001, p. 114.


     35°                                                                                                                                                                         351
3· Confissões de um burguês, tradução do húngaro de Paulo Sehiller, São       uma superação do ódio, conseguiu brotar em mim. E quem sou eu para ter a
 Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 329.                                        pretensão de 'perdoar'!". Citado em Maurice Friedman, "Paul Celan and Mar-
     4- O legado de Eszter, tradução do húngaro de Paulo Sehiller, São Paulo,      tin Buber", Religion and Líterature 2911(1997), p. 46.
 Companhia das Letras, 2001.
                                                                                       10. sPP,   p. 245; Clottal Stop: 101 Poems, trad. Nikolai Popov    & Heather
      5· Citado em László Rónay, "Biographische   Chronologie",   in Sándor Má-    McHugh, Hanover e Londres, Wesleyan University Press, 2000, p. 19.
 rai, Land, Land!. .. , Berlim, Oberbaum, 2000.
                                                                                      11.Citado em Felstiner, p. 287.
    6. Der Wind Kommt vom Westen: Amerikanische Reisebílder, tradução do
                                                                                       12.   Poetry as Experience, trad. Andrea Tarnowski, Stanford, Stanford Uni-
húngaro para o alemão por Artur Saternus, Langen Müller, 1964-
                                                                                   versity Press, 1999, pp. 38, 122. O livro de Laeoue-Labarthe   foi publicado origi-
    7· Diário 1968-75, in Tagebücher: Auszüge, Berlim, Oberbaum, 2001, pp. 25-6.
                                                                                   nalmente     em 1986.
    8. Confissões de um burguês, pp. 343, 372-
                                                                                       13. Paul Celan, Breathtum, Los Angeles, Sun & Moon Press, 1995; Thread-
    9· Tradução do húngaro para o inglês por Albert Tezla, Budapeste, Corvi-
                                                                                   suns, Los Angeles, Sun & Moon Press, 2000, ambas trad. Pierre Joris.
na/Central European University Press, 1996.
    10. Die Zeit, 14 de setembro de 2000.
    11. Conversations   in Bolzano, Londres, Viking, 2004; Casanova in Bolzano,
                                                                                   9. GÜNTER GRASS E O WILHELM GUSTLOFF [pp. 165-179]
Nova York, Knopf, 2004- Tradução do húngaro para o inglês por George Szirtes.

                                                                                       L Cünter     Grass, Crabwalk, trad. Krishna Wilson, Nova York, Harcourt,
                                                                                   2003, p. 25. [Ed. brasileira: Passo de carangue;o, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
8. PAUL CELAN E SEUS TRADUTORES [pp. 144-164]
                                                                                   2002.]
                                                                                       2. Cat and Mouse and Other Writings, org. A. Leslie WiIIson, trad. Ralph
     L Paul Celan, Nelly Sachs: Correspondence, trad. Christopher Clark, River-
                                                                                   Mannheim,      Nova York, Continuum,    1994, p. 23·
dale-on-Hudson, Sheep Meadow Press, 1995, p. 17.
    2. John Felstiner, Paul Celan: Poet, Survivor, Jew, Nova York, W. W. Nor-           3. The Rat, trad. Rudolph Mannheim, Londres, Secker, 1987, p. 63. [Ed.
ton, 1995, pp. 253, 181.                                                           brasileira: A ratazana, Rio de Janeiro, Record, 2002.]
    3· Selected Poems and Prose ofPaul Celan, trad. John Felstiner, Nova York,         4. The Call of the Toad, trad. Ralph Mannheim,       Nova York, Harcourt Bra-
W. W. Norton, 2000, p. 329. Doravante referido como SPP. [Após o texto origi-      ce,1992.
nal, apresentado em itálico, minha versão livre para o português. N. T.]
    4· Hans-Georg Gadamer, "Epilogue", in Gadamer on Celan, traduzido e
organizado por Richard Heinemann e Bruce Krajewski, Albany, State Univer-          10. W. G. SEBALD, AFTER NATURE            [pp. 180-192]
sity of New York Press, 1997, p. 1{2.
    5· Introdução, Poems ofPaul Celan, Londres, Anvil Press, 1988, p. 18.              L The Emigrants, trad. Michael Hulse, Nova York, New Directions, 1996;
    6. Hans Egon Holthusen, citado em Felstiner, p. 79.                            Londres, Vintage, 2002. [Ed. brasileira: Os emigrantes, São Paulo, Companhia
   7· Paul Celan, Collected Prose, trad. Rosemary Waldrop, Riverdale, Sheep        das Letras, 2009.]
Meadow Press, 1986, p. 16.                                                             2. Vertigo, trad. Michael   Hulse, Nova York, New Directions, 2000; Lon-
    8. Theodor Adorno, "Cultural Criticism and Society", in Prisms, trad. Sa-      dres, Vintage, 2000. [Ed. brasileira: Vertigem, São Paulo, Companhia       das Le-
muel e Shierry Weber, Londres, Spearman, 1967, p. 34. [Ed. brasileira: Prismas,    tras, 2008.]
São Paulo, Ática, 1997.]                                                               3. Unheimliche Heimat: Essays zur õsterreichischen Líteratur, Salzburgo      &
     9· Felstiner, p. 161.Aqui, vale uma palavra de advertência. Temos apenas o    Viena, Residenz, 2002.
relato de Celan para esse encontro. O que Celan conta não condiz com o que             4. The Rings of Satum, trad. Michael Hulse, Nova York, New Directions,
Buber escrevera sete anos antes: "Eles [os nossos perseguidores] afastaram-se      1998; Londres: Vintage, 2002, p. 5. [Ed. brasileira: Os anéis de Satumo,       São
tão radicalmente da esfera humana ... que nem mesmo o ódio, muito menos            Paulo, Companhia das Letras, 2010.]


     352                                                                                                                                                    353
5· Austerlitz, trad. Anthea BeIl, Nova York, Random House, 2001; Londres,                   nas indicações que nos fornecem ou deixam de fornecer quanto à obra que se
 Penguin, 2002. [Ed. brasileira: Austerlitz,               São Paulo, Companhia       das Letras,   seguiria a elas.
 2008.]                                                                                                 2. Citado em James Knowlson, Damned to Fame: The Life of Samuel Be-
        6. t<orYears Now, Londres, Short Books, 200l.                                               ekett, Nova York, Simon    & Schuster,   1996; Londres, Bloomsbury, 1996, p. 60l.

        7· After Nature, trad. Michael Hamburger,               Nova York, Random        House,     [No original: "The long craoked straight is laborious but not without excite-
 2002; Londres, Penguin, 2004.                                                                      ment. While still 'young' I began to seek consolation in the thought that then
                                                                                                    if ever, i. e. now, the true words at last, fram the mind in ruins. To this illusion
    8. On the Natural History of Destruetion,                  trad. Anthea BeIl, Nova York,
 Random HOllse, 2003.                                                                               I continue to cling". N. T.]



 11. HUGO       GLAUS,       POETA     [pp. 193-197]                                                14- WALT    WHITMAN       [pp. 214-23°]

                                                                                                        l. Walt Whitman: Memoranda during the War, org. Peter CovieIlo, Oxford
       l. "Entrevista",     in Hugo Claus, Gediehten 1948-2004, Amsterdam,                Besige
                                                                                                    University Press, 2004, pp. 167-8.
Bij, 2004, vol. 2, pp. 501-3.
                                                                                                        2. Citado em Paul Zweig, Walt Whitman: The Making of the Poet, Nova
       2. "Chicago",      in Id., ibid., vol. I, p. 269.
                                                                                                    York, Basic Books, 1984, p. 339.
                                                                                                        3. Memoranda, p. XXXVIII.
                                                                                                        4- Leaves of Grass: Reader's Edition, org. Harald W. Blodgett e ScuIley
12. GRAHAM        GREENE,        O CONDENADO           [BRIGHTON      ROGK]   [pp. 198-208]
                                                                                                    Bradley, Nova York, New York University Press, 1965, p. 751. Doravante referi-
                                                                                                    do comoLoG.
       l. Brighton Roek, Nova York, Penguin,                2004; Londres, Vintage,     2004, p.
26l.                                                                                                    5. Justin Kaplan, Walt Whitman: A Life, Nova York, Simon & Schuster,
                                                                                                    1980, pp. 3H, 316.
       2. Marie-François       AIlain, The Other Man: Conversations            with Graham
                                                                                                       6. Citado em Kaplan, p. 47.
Greene, Nova York, Simon and Schuster, 1983, p. 125.
                                                                                                       7. Leaves of Grass: ISO/h Anniversary Edition, org. e posfácio de David S.
   3· "Henry James: The Private Universe" (1936), in Colleeted Essays, Har-                         Reynolds, Nova York, Oxford University Press, 2005, p. 10l.
mondsworth, Penguin, 1970, p. 34.
                                                                                                       8. David S. Reynolds, Walt Whitman, Nova York, Oxford University Press,
       4- "François Mauriac"        (1945), in Colleeted Essays, p. 9l.                             2005, p. H8.
       5· Em 1926 "convenci-me           da provável existência de algo que chamamos                   9. Jerame Loving, Walt Whitman: The Song of Himself, Berkeley eLos
Deus", escreveu Greene. A Sort ofLife, Londres, Bodley Head, 1971, p. 165.                          Angeles, University of California Press, 1999, pp. 297,299, 376.
   6. Resenha de The Heart of the Matter, in Colleeted Essays, Londres, Secker                         10. Reynolds, Walt Whitman, p. 10l.
& Warburg, 1968, p. 441, vol. 4.                                                                       H. Introdução aos Memoranda, pp. XXXVI-XXXVII.
                                                                                                       12. Jonathan Ned Katz, The lnvention ofHeterosexuality, Nova York, Dutton,

                                                                                                    1995, pp. 43-7·
13·    SAMUEL     BEGKETT,         OS CONTOS         [pp. 2°9-213]                                      13. Citado em Kaplan, p. 133.
                                                                                                        14. Memoranda,    p. 126.
       l. Passo por cima de toda a ficção curta anterior: os contos que compõem                         15. Whitman,   citado em Kaplan, p. 337.
More Prieks than Kieks ("Mais espinhos que diversão"), escritos entre 1931 e                            16. Loving, p. 259; Kaplan, p. 329.
1933, e o punhado de outros textos curtos de ficção do mesmo período. Pode-se                           17- Zweig, p. 343·
dizer acerca dessas obras, com razoável justiça, que não mereceriam               ser preser-           18. Reynolds (org.), p. 17; LoG, p. 52.
vadas caso não tivessem sido escritas por Beckett. Seu interesse reside apenas                          19. Reynolds, Walt Whitman, p. H7.



        354                                                                                                                                                                   355
15· WILLIAM FAULKNER E SEUS BIÓGRAFOS [pp. 231-25°]                                         2. Roth, The Plot against America, Nova York, Houghton       Mimin, 2004, p.
                                                                                         365. [Ed. brasileira: Complô contra a América, São Paulo, Companhia   das Le-
        1. Citado
              em Joseph Blotner, Faulkner: A Biography, edição em volume                 tras, 20°9.]
 único, Nova York, Random House, 1984, p. 570.                                                3. Número datado de 19 de setembro de 2004, p. 11.
     2. Frederick      R. Karl, Wílliam Faulkner: American Writer, Londres, Faber,            4- Roth, American Pastoral, Nova Yark, Houghton Mimin, 1997, p. 287.
 1989, p. 523.                                                                           [Ed. brasileira: Pastoral americana, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.]
        3· Jay Parini, One Matchless Time: A Lífe ofWílliam     Faulkner, Nova York,         5. Roth, The Facts: A Novelist's Autobiography   (1988), Londres, Cape, 1989,
 HarperCollins, 2004, pp. 20, 79, 141, 145; ver também Karl, p. 213.                     P·169·
    4· Citado em B1otner, p. 106.                                                            6. Roth, The Human Stain (2000), Nova Yark, Vintage, 2001, p. 132- [Ed.
    5· Citado em Karl, p. 757.                                                           brasileira: A marca humana, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.]
        6. Quinn    citado em Parini, p. 271; Brooks citado em Parini, p. 292.               7. Roth, Operation Shylock, p. 113·
        7· Citado em Blotner, p. 611. [FIem Snopes é personagem da "trilogia dos
 Snopes" de !:"aulkner, de que o ensaio fala mais adiante, pequeno empresário
 arrivista do "Novo Sul". N. T.]                                                         19. NADINE GORDIMER [pp. 293-307]
       8. Citado em Blotner, p. 599.
       9· Go Down, Moses, Harmondswarth,         Penguin, 1960, p. 227.                      1. "Some are Born to Sweet Delight", in Jump and Other Stories, Londres,
       10. Citado em B1otner, p. 501.                                                    Bloomsbury, 1991, pp. 67-88.
    11. John Steinbeck: uma biografia, Rio de Janeiro, Recard, 1998; Robert                  2. The Pickup, Nova Yark, Penguin, 2001. [Ed. brasileira: O engate, São
Frost: a Lífe, Nova York, Holt, 1999; A última estação: os momentos finais de            Paulo, Companhia das Letras, 20°4.]
Tolstói, Rio de Janeiro, Recard, 2009; A travessia de Benjamin, Rio de Janeiro,              3. Albert Carnus, "The Adulterous Woman", in Exile and the Kingdom
Record, 1999.                                                                            (1957), trad. Justin O'Brien,Harmondswarth, Penguin, 1962, pp. 9-29.
       12.   Mosquitoes, Londres, Chatto & Windus, 1964, p. 209.                             4. Loot and Other Stories, Nova York, Farrar, Strauss, Giroux, 2003, p. 32.
    13· Commins          citado em Karl, p. 844; June Faulkner citada em Parini,             5. What is Literature?, trad. Bernard Frechtman, Londres, Methuen, 1967,
p. 251.                                                                                  P·14·
                                                                                             6. Cf. "A Writer's Freedom" (1975), "Living in the Interregnum" (1982) e
                                                                                         "The essential gesture" (1984), in The Essential Gesture, org. Stephen Cling-
16. SAUL BELLOW, OS PRIMEIROS ROMANCES [pp. 251-267]                                     man, Cidade do Cabo, David Philip, 1988; "References: The Codes of Cultu-
                                                                                         re" (1989), in Líving in Hope and History: Notes from Our Century, Londres,
       1. Saul Bellow, Novels 1944-53, Nova Yark, Library of America, 2003.              B1oornsbury, 1999.
       2. The Educatíon     of Henry Adams, Nova Yark, Modern        Library, 1931, p.
343·

       3· Entrevista de 1979, em Gloria L. Cronin e Ben Siegel (orgs.), Conversa-        20. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, MEMÓRIAS DE MINHAS                      PUTAS
tions with Saul Bellow, Jackson, University ofMississippi       Press, 1994, p. 161.     TRISTES [pp. 3°8-323]

                                                                                             1. Gabriel García Márquez, Love in the Times ofCholera, trad. Edith Gross-
18. PHILIP ROTH, COMPLÓ CONTRA                 A AMÉRICA      [pp. 274-292]              man, Nova York, Penguin, 1988, p. 295. [Ed. brasileira: Amor nos tempos do
                                                                                         cólera, Rio de Janeiro, Recard, 1985.]
       1. Philip Roth, Operation Shylock: A Confession, Londres, Cape, 1993, p.              2. Gabriel García Márquez, MemoTÍes of My Melancholy Whores, trad.
399· [Ed. brasileira:     Operação Shylock, São Paulo, Companhia          das Letras,    Edith Grossman, Nova Yark, Knopf, 2005. [Ed. brasileira: Memórias de minhas
1994·]
                                                                                         putas tristes, Rio de Janeiro, Record, 2005.]


        356                                                                                                                                                      357
3· Roman Jakobson, "Linguistics and Poetics", in Essays on the Language
 of Literature, org. Seymour Chatman       e Samuel R. Levin, Boston; Houghton
 Mifflin, 1967, p. 316.
     4- Miguel     de Cervantes,   Don Quixote, trad. Edith Grossman,         Londres,
 Secker & Warburg, 2004, p. 430. [Ed. brasileira: O engenhoso fidalgo dom Qui-
 xote de La Mancha, São Paulo, 34,2002 (vol. 1); 2008 (vol. 2).J
     5· Gabriel García M,írquez, Living to Tell the Tale, trad. Edith Grossman,
 Nova York, Knopf, 2003, p. 395. [EeI. brasileira: Viver para contar, Rio ele Janei-
 ro, Record, 2003.]
     6. García Márquez, Strange Pilgrims: Twelve Stories, trad. Edith Grossman,
 Londres, Cape, 1993, pp. 54-61. [Ed. brasileira: Doze contos peregrinos, Rio de
 Janeiro, Recorel, 2008.]
     7· Yasunari Kawabata, The House of the Sleeping Beauties and Other Sto-
 ries, tradução para o inglês de Edward G. Seidensticker, Londres, Quaelriga
 Press, 1969, p. 39. [Ed. brasileira: A casa das belas adonnecidas, São Paulo,
 Estação Liberdade, 2004.]



21. V. S. NAIPAUL,       MEIA   VIDA [pp. 324-345]


    L W. Somerset Maugham, Points ofView, Londres, Heinemann, 1958, p. 58.
    2. The Razor's Edge, Londres,    Heinemann, 1944, pp. 267, 271, 272. [Ed.
brasileira: O fio da navalha, Rio de Janeiro, Globo, 2002.]
    3· Half a Life: a Novel, Nova York, Knopf, 2001; Londres, Picador, 2002.
[Ed. brasileira: Meia vida, São Paulo, Companhia         das Letras, 2002.]
    4· An Area ofDarkness,      Londres, Deutsch, 1964, p. 77.
    5· Naipaul, The Enigma of Arrival, Nova York, Vintage, 1987; Londres, Pi-
caelor, 2002, p. 135. [Ed. brasileira: O enigma da chegada, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 2001.J
    6. Citaelo em Ashis Nandy, The Intimate Enemy, Delhi, Oxford University
Press, 1983, p. 74-
    7· As entrevistas notavelmente     francas reunidas em Conversations with V.
S. Naipaul, organizado por Feroza Jussawalla, Jackson, University ofMississip-
pi Press, 1997, sugerem que a história de Willie Chandran em Londres tem um
forte componente     autobiográfico. Ver especialmente     a entrevista de 1994 com
Stephen Schiff.
    8. Anita Desai, Fasting, Feasting, Boston, Houghton Mifflin, 2000, Londres,
Vintage, 2000. [Ed. portuguesa: O jejum e a festa, Lisboa, Gradiva, 1999.J
    9· Nanely, The Intimate Enemy, p. 47.


     358

Mais conteúdo relacionado

DOCX
Filmes 1 gureea mundial
PDF
Robert Musil's other postmodernism, by M. Freed
DOCX
A pérola
DOCX
A pérola port 9º ano
PPT
Joaquim Maria Machado De Assis
PDF
Destaques Enciclopédia 24-05-2015 a 30-05-2015
RTF
Vol. 15 conferências introdutórias sobre psicanálise p1 e p2
Filmes 1 gureea mundial
Robert Musil's other postmodernism, by M. Freed
A pérola
A pérola port 9º ano
Joaquim Maria Machado De Assis
Destaques Enciclopédia 24-05-2015 a 30-05-2015
Vol. 15 conferências introdutórias sobre psicanálise p1 e p2

Semelhante a Mecanismos internos (ensaios sobre literatura), Coetzee (7)

PDF
Autores mais influentes do século
PDF
Autores Influentes
PDF
Autores Influentes
PPT
Palestra Arthur Conan Doyle
PDF
Dia das Bruxas 2009: documentos disponíveis na BME
PDF
Guadalupe
PDF
II FECON :: Future Extension Convention
Autores mais influentes do século
Autores Influentes
Autores Influentes
Palestra Arthur Conan Doyle
Dia das Bruxas 2009: documentos disponíveis na BME
Guadalupe
II FECON :: Future Extension Convention
Anúncio

Mais de Mariane Farias (20)

PDF
A Educação Estética do Homem, Friedrich Schiller
PDF
Introdução à leitura de Hegel, Alexandre Kojève
PDF
Aristotle definition of poetry, by robert j. yanal
PDF
Aesthetic imitation and imitators in aristotle, by katherine e. gilbert
PDF
Aristotles catharsis and aesthetic pleasure, by eva shaper
PDF
Poetics as system, by claudio guillen
PDF
What is poetics, by stein haugom
PDF
Myth and philosophy, by rui zhu
PDF
Hume and the theory of tragedy, by j. frederick doering
PDF
The lost dimension of greek tragedy, by peter d. arnott
PDF
Tragedy, pessimism, nietzsche, by joshua foa dienstag
PDF
Tragedy reconsidered, by george steiner
PDF
The performative basis of modern literary theory, by henry mc donald
PDF
The poetics of aristotle, by r. p hardie
PDF
The doleful airs of euripides, by blair hoxby
PDF
Postdeconstructive necrophilia, by floyd dunphy
PDF
Pity, fear, and catharsis in aristotles poetics, by charles b. daniels and sa...
PDF
Nietzsche's idea of myth, by benjamin bennett
PDF
Memory, mimeses, tragedy
PDF
Heidegger and tragedy, by michael gelven
A Educação Estética do Homem, Friedrich Schiller
Introdução à leitura de Hegel, Alexandre Kojève
Aristotle definition of poetry, by robert j. yanal
Aesthetic imitation and imitators in aristotle, by katherine e. gilbert
Aristotles catharsis and aesthetic pleasure, by eva shaper
Poetics as system, by claudio guillen
What is poetics, by stein haugom
Myth and philosophy, by rui zhu
Hume and the theory of tragedy, by j. frederick doering
The lost dimension of greek tragedy, by peter d. arnott
Tragedy, pessimism, nietzsche, by joshua foa dienstag
Tragedy reconsidered, by george steiner
The performative basis of modern literary theory, by henry mc donald
The poetics of aristotle, by r. p hardie
The doleful airs of euripides, by blair hoxby
Postdeconstructive necrophilia, by floyd dunphy
Pity, fear, and catharsis in aristotles poetics, by charles b. daniels and sa...
Nietzsche's idea of myth, by benjamin bennett
Memory, mimeses, tragedy
Heidegger and tragedy, by michael gelven
Anúncio

Último (20)

PDF
Unid1 _ProdEProcSw-2022.1- paraProf.pdf
PPTX
Santo Agostinho, bispo de Hipona, doutor da Igreja 354-430 d.C..pptx
PDF
SIMULADO AGOSTOSAEB.pdf ensino fundamental I
PPTX
Renascimento - Aula 1 - Cursinho de Filosofia.pptx
PPTX
Continente europeu sua Hegemonia Europeia na Cultura.pptx
PPTX
ISTs (1).pptx doenças sexualmente transmissiveis
PPTX
Aula de Psicofarmacologia: Psicotrópicos
PDF
MIDR- Desenvolvimento regional apostila
PPTX
baladão das figuras de linguagem........
PDF
APOSTILA CURSO COMPLETO PARA ADMINISTRAÇÃOSIOPS 2017.pdf
PPTX
material-didatico-1a-revisao-pre-enem-livepdf.pptx
PDF
Contradições Existentes no Velho e Novo Testamento. PDF gratuito
PPTX
slide aulao saepe-saeb descritores att.pptx
PDF
livro de inEbook_Informatica_Aplicada_UnP.pdf
PDF
Orientação de profeta Muhammad (que a paz e benção de Deus estejam com ele) n...
PDF
Os pilares da fé. (Religião muçulmana)
PDF
Desafio-SAEB-Lingua-portuguesa-9o-ano-c7xqle (1) (3) (2) (1).pdf
PDF
Ofício ao MP contra monitoramento de alunos por IA
PPTX
LETRAMENTO MATEMÁTICO ALFABETIZA MAIS PARAÍBA
PPT
aulainicialfsicaagro-140326193444-phpapp02.ppt
Unid1 _ProdEProcSw-2022.1- paraProf.pdf
Santo Agostinho, bispo de Hipona, doutor da Igreja 354-430 d.C..pptx
SIMULADO AGOSTOSAEB.pdf ensino fundamental I
Renascimento - Aula 1 - Cursinho de Filosofia.pptx
Continente europeu sua Hegemonia Europeia na Cultura.pptx
ISTs (1).pptx doenças sexualmente transmissiveis
Aula de Psicofarmacologia: Psicotrópicos
MIDR- Desenvolvimento regional apostila
baladão das figuras de linguagem........
APOSTILA CURSO COMPLETO PARA ADMINISTRAÇÃOSIOPS 2017.pdf
material-didatico-1a-revisao-pre-enem-livepdf.pptx
Contradições Existentes no Velho e Novo Testamento. PDF gratuito
slide aulao saepe-saeb descritores att.pptx
livro de inEbook_Informatica_Aplicada_UnP.pdf
Orientação de profeta Muhammad (que a paz e benção de Deus estejam com ele) n...
Os pilares da fé. (Religião muçulmana)
Desafio-SAEB-Lingua-portuguesa-9o-ano-c7xqle (1) (3) (2) (1).pdf
Ofício ao MP contra monitoramento de alunos por IA
LETRAMENTO MATEMÁTICO ALFABETIZA MAIS PARAÍBA
aulainicialfsicaagro-140326193444-phpapp02.ppt

Mecanismos internos (ensaios sobre literatura), Coetzee

  • 2. Copyright © 2007 by J. M. Coetzee Copyright da introdução © Derek Attridge Sumário Todos os direitos reservados. Tradução publicada mediante acordo com Peter Lampack Agency, Jnc. 551 Fifth Avenue, Suite 1613, New York, NY 10176-0187, Estados Unidos. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título original Jnller workillgs - Literary Essays 2000-2005 Capa Kiko Farkas e Thiago Lacaz/ Máquina Estúdio Preparação Cados Alberto B,írbaro Revisão Erika Nakahata Camila Saraiva Créditos 7 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Introdução 9 (Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil) Coelzee, J. M. Mecanismos internos: ensaios sobre literatura (2000-2005) / 1. Italo Svevo 17 J. M. Coelzee ; inlrodução Derek Allridge ; tradução Sergio Flaksman. - São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 2. Robert Walser 33 Título original: Inner workings - Literary Essays 2000-20°5 3. Robert Musil, O jovem Türless 51 Bibliografia ISBN 978-85-359-1808-3 4- Walter Benjamin, Passagens 62 }. Literatura - História e crítica I. Attridge, Derek. 11. Título. 5. Bruno Schulz 9° 6. Joseph Roth, os contos 106 1l-00209 CDD-809 7. Sándor Márai 122 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura: História e crítica 809 8. Paul Celan e seus tradutores 144 9. Günter Grass e o Wilhelm Gustloff 165 10. W. G. Sebald, After Nature 180 [20n] Todos os direitos desta edição reservados à 11. Hugo Claus, poeta 193 EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 12. Graham Greene, O condenado [Brighton Rock] 198 °4532-002 - São Paulo - SP 13. Samuel Beckett, os contos 2°9 Telefone (n) 37°7-35°0 14- Walt Whitman 214 Fax (n) 37°7-35°1 www.companhiadasletras.com.br 15. William Faulkner e seus biógrafos 231
  • 3. 16. Saul Bellow, os primeiros romances 251 Créditos 17. Arthur Miller, Os desajustados 268 18. Philip Roth, Complâ contra a América 274 19· Nadine Gordimer , 293 20. Gabriel García Márquez, Memórias de minhas putas tristes 308 21. V. S. Naipaul, Meia vida 324 Notas 347 O ensaio sobre Arthur Miller foi publicado originalmente em Writers atthe Movies [Escritores no cinema]' org. Jim She- pardo Nova York: HarperCollins, 2000. O ensaio sobre Robert Musil foi publicado originalmente como introdução a The Confusions ofYoung Torless [As confu- sões do jovem Ti;irless]' trad. Shaun Whiteside. Londres: Pen- gUIn, 2001. O ensaio sobre Graham Greene foi publicado originalmen- te como introdução a Brighton Rock. Nova York: Penguin, 2004- O ensaio sobre Samuel Beckett foi tirado da introdução ao quarto volume de Samuel Beckett: The Grave Centenary Edition. Nova York: Grove, 2006. O ensaio sobre Hugo Claus foi publicado originalmente co- mo apresentação à edição em brochura de Hugo Claus, Greetíngs: Selected Poems, trad. John Irons. Nova York: Harcourt, 2006. Todos os demais ensaios foram originalmente publicados na New York Review of Books. 7
  • 4. Introdução Por que razão alguém pode sentir-se atraído pela leitura de uma coletânea de resenhas de livros e apresentações literárias de um escritor conhecido acima de tudo por sua ficção? Os ro- mances de J. M. Coetzee conquistaram aclamação em todo o planeta; dois deles receberam o Booker Prize, e foi por sua obra de ficcionista que conquistou o prêmio Nobel de literatura em 2003. Alguns de seus livros combinam ficção e não ficção, e ele emprega com frequência uma persona fictícia - especialmen- te uma escritora australiana chamada Elizabeth Costello - para abordar certas questões importantes do momento atual. Em Me- canismos internos, contudo, ele nos fala com sua própria voz, dan- do prosseguimento a uma prolífica carreira de resenhista e críti- co que já resultou na publicação de três coletâneas de ensaios. Existem dois incentivos óbvios para nos voltarmos da ficção para a prosa crítica: a esperança de que estes textos mais diretos possam lançar alguma luz sobre seus romances muitas vezes oblí- quos, e a convicção de que um escritor que em suas obras imagi- nativas se mostra capaz de penetrar até o cerne de tantas ques- 9
  • 5. tões urgentes deve ter muito a oferecer quando escreve, por assim te convidado a refletir sobre cada uma delas por vez, o leitor deste dizer, com a mão esquerda. Em especial, há sempre o interesse volume é estimulado a vê-Ias em relação umas com as outras. em ver como um escritor de primeira linha trata os seus pares, A maioria dos capítulos que se seguem apresenta um re- comentando não como um crítico de fora mas na qualidade de trato do artista como o contexto para o livro ou os livros em dis- alguém que trabalha com as mesmas matérias-primas. Há far- cussão, que tomados em conjunto ilustram com riqueza de deta- tos indícios de que a segunda expectativa tende a ser atendida. A lhes a variedade e a imprevisibilidade das vidas dos escritores do obra não ficcional e semificcional de Coetzee, encarada em seu século xx. (Há entre eles um escritor do século XIX, Walt Whit- conjunto, representa uma contribuição substancial e significati- man, poeta fora do seu tempo mas ao mesmo tempo muito re- va à discussão permanente sobre o lugar da literatura na vida dos presentativo.) Os primeiros sete - !talo Svevo, Robert Walser, indivíduos e das culturas. As entrevistas e os ensaios publicados Robert Musil, Walter Benjamin, Bruno Schulz, Joseph Roth e em Doubling the Point [Voltando ao ponto], os estudos sobre a Sándor Márai - formam um aglomerado com lImitas inter-re- literatura sul-africana e a censura em White Writing [Escrita bran- lações: todos nasceram na Europa no final do século XIX e viven- ca] e Giving Offense [Ofendendo], e as "lições" de Elizabeth Cos- ciaram, na juventude ou na meia-idade, as reviravoltas da Pri- tello investigam, entre muitos outros tópicos, a relação entre a meira Guerra Mundial, tendo muitos deles ainda atingido, ou arte e a política, a continuidade entre o estético e o erótico, as res- atravessado, também a Segunda Guerra Mundial. Apesar das dis- ponsabilidades do escritor e o potencial ético da ficção. O fato de paridades de suas origens nacionais e étnicas (italiana, suíça, po- os romances e memórias de Coetzee apresentarem questões se- lonesa, galiciana e húngara), das diferentes línguas em que es- melhantes é testemunho da integridade e da persistência de sua creveram e das trajetórias muito diversas de suas biografias, há concepção do papel do artista. entre eles conexões claramente perceptíveis. Todos sentiram a ne- Em 2001 Coetzee publicou Stranger Shores [Margens estra- cessidade de explorar, na ficção, a extinção do mundo em que nhas], uma coletânea de ensaios datados de 1986 a 1999, em sua tinham nascido; todos registraram as ondas de choque do novo maioria publicados originalmente na New York Review ofBooks. mundo que emergia. Suas origens burguesas não os isentaram das Continuou a escrever regularmente para o mesmo periódico, e tribulações do exílio, da destituição e, às vezes, da violência pes- este livro é novamente composto quase todo de resenhas produ- soal. Quatro deles eram judeus, e dois morreram em decorrên- zidas segundo os padrões da revista, generosos e estritos ao mes- cia da perseguição nazista. (Entre os sete, a única exceção a esse mo tempo, juntamente com uma seleção de outros ensaios escri- padrão é um dos judeus: !talo Svevo, que permaneceu arraiga- tos quase sempre como introdução à reedição de obras literárias. do em Trieste até a morte. O rumo diferente da sua vida pode ser Embora os capítulos desses dois livros ostentem a aparência do parcialmente explicado pelo fato de ter morrido em 1928; como artigo ocasional, eles dão continuidade, num outro plano, à inves- nos conta Coetzee, a viúva de Svevo passou escondida os anos da tigação de Coetzee sobre o lugar e a finalidade da literatura - e, guerra, e o neto dos dois, escondido com ela, acabou fuzilado não se pode deixar de enfatizar, sobre seus prazeres, além dos seus pelos nazistas em 1945.) O que emerge desse conjunto de ensaios desafios. Enquanto o leitor das resenhas originais era basicamen- é uma Europa em transição dolorosa, e uma série de obras lite- 10 11
  • 6. rárias cuja originalidade é vista corno a resposta necessária do claramente o compromisso de Coetzee tanto com a arte quanto artista a mudanças de tamanho alcance. Urna figura óbvia está com a ética quando ele apresenta, ao final do capítulo sobre o ausente (embora seja mencionado em conexão com vários dos filme, um comentário especialmente revelador sobre a diferença escritores abordados): Franz Kafka, cujas obras parecem apre- entre a imagem fotográfica e a representação literária: os cavalos sentar de forma concentrada muitas das paixões e dos percalços selvagens cercados no filme estavam de fato aterrorizados. explorados de maneira mais extensa por esses sete escritores. O próprio Coetzee costuma ser visto corno um escritor nem Num segundo grupo, somos levados da crise da metade do europeu nem americano: passou quase toda a vida de escritor na século XX na Europa para o período que a sucedeu. Nesses estu- África do Sul, e metade dos seus romances transcorre nesse país. dos sobre Paul Celan, Günter Grass, W. G. Sebald e Hugo Claus Hoje mora na Austrália, e um de seus romances mais recentes, torna-se mais difícil discernir um padrão comum, na medida em Homem lento, é ambientado em sua cidade adotiva, Adelaide. que as histórias tanto nacionais quanto individuais divergem de Os últimos três escritores da coletânea têm origens igualmen- maneira mais acentuada, embora a sombria história recente da te não metropolitanas, e também foram agraciados com o reco- Europa permaneça um ponto ele referência constante. nhecimento mundial na forma do Prêmio Nobel de Literatura: A segunda metade do livro, Coetzee dedica basicamente Nadine Gordimer, Gabriel García Márquez e V. S. Naipaul. a obras em inglês. (Corno relata em Infância, foi criado falan- Aqui, Coetzee assesta o foco em obras determinadas, em vez de do inglês corno primeira língua, embora seus pais falassem o enquadrar a vida dos autores: lemos estes seus ensaios não corno africânder; também se sente à vontade com o holandês e o ale- urna avaliação feita em retrospecto, mas corno expressão do seu mão, corno sugerem seus comentários sobre obras nessas lín- compromisso com os contemporâneos. Coetzee espera que sua guas.) A atenção de Coetzee é capturada pela intensidade mo- própria ficção seja avaliada à luz dos mesmos padrões de rigor ral de Graham Greene, pela intensidade existencial de Samuel que aqui aplica aos outros. Beckett e pela intensidade homoerótica de Walt Whitman. E o Ninguém poderia imaginar depois de ler apenas seus ro- estudo sobre Whitman conduz a outro grupo, dessa vez de es- mances, mas Coetzee é um resenhista ideal. Parece ter lido tudo critores americanos, que tiveram dificuldades e oportunidades que é relevante sobre o seu terna, muitas vezes inclusive os livros de criação totalmente diversas das dos europeus. A biografia de mais obscuros da obra de um autor; escreve com familiaridade Faulkner, e as biografias escritas sobre Faulkner, são o terna de fluente sobre o pano de fundo histórico, cultural e político, seja outro capítulo, e a história dos anos desperdiçados escrevendo ro- ele o Império Austro-Húngaro ou o Sul dos Estados Unidos; e teiros por encomenda em Hollywood parece muito diversa da luta ainda se dá à pachorra de resumir os enredos para que os leitores para escrever contra um pano de fundo de nações em guerra. Nos mais ocupados possam descobrir "o que acontece" da maneira primeiros romances de Saul Bellow, no filme Os desajustados, menos trabalhosa. Pouco se percebe do romancista de folga: os de Arthur Miller e John Huston, e na fantasia histórica de Philip floreios literários são poucos, e não se nota nenhum sinal daque- Roth Complô contra a América, ternos mais três versões sem re- la voz interna antes rabugenta que marca boa parte da ficção toques dos Estados Unidos no século xx. É possível perceber recente de Coetzee. (Podemos sentir, no entanto, a solidarieda- 12 13
  • 7. de que lhe inspira a luta do escritor para manter-se fiel à sua vo- moestava seu colega romancista por não ter se posto a serviço cação apesar de tudo.) Coetzee não hesita em emitir julgamen- . das demandas éticas e políticas da África do Sul daquela época. tos, mas é um leitor generoso, aberto a uma ampla variedade de Coetzee, que se manifestou ele próprio em tom severo em ava- temas e estilos. liações anteriores da obra de Gordimer, mostra-se aqui generoso E quanto ao segundo motivo para ler estes ensaios, as possí- ao reconhecer a busca da justiça como o princípio constante e veis revelações sobre a obra ficcional do próprio Coetzee? Será supremo da escritora; e ao assinalar que O engate, que ele classi- que o leitor deste livro, voltando aos seus romances, irá desco- fica de "um livro extraordinário", introduz uma nota espiritual brir que de alguma forma se modificaram? Um efeito pode ser inédita na obra da autora, parecendo recebê-Ia num campo em descobrir oquanto lhe é inadequado o rótulo de escritor "sul-afri- que já transitava, nem sempre com conforto, havia algum tem- cano" (ou, nos dias que correm, "australiano"): a criação de Coet- po. Pois, se existem vislumbres de transcendência nos romances zee se dá a partir de um rico diálogo com escritores de várias de Coetzee, eles não são sugestões de uma justiça possível, mas de tradições. Em especial, seu fascínio evidente pelos romancistas uma justiça animada, além de posta à prova, por uma deman- europeus da primeira metade do século XX sugere que, embora da mais obscura ainda, que a definição de "espiritual" se limita jamais tenha morado na Europa continental, ele é, visto de certo a indicar - uma demanda já prenunciada, desde Dostoiévski, ângulo, um escritor profundamente europeu. Igualmente óbvio por seus formidáveis antecessores europeus. é seu interesse profundo pelas mais minuciosas questões da lin- guagem: os ensaios sobre os escritores que não escreveram ori- Derek Attridge ginalmente em inglês sempre trazem um exame detalhado do ofício dos tradutores. E, para dar o exemplo de uma conexão mais específica, os leitores de Infância ficarão intrigados com os co- mentários sobre a criação de um alter ego autobiográfico por Philip Roth em Complô contra a América. Entretanto, muitos leitores à procura de pistas sobre a cria- ção literária do próprio Coetzee ficarão tentados a debruçar-se sobre o único capítulo dedicado a outra romancista da África do Sul, seus comentários ao romance O engate, escrito por Nadine Gordimer em 2001. O questionamento que Coetzee faz a Nadi- ne Gordimer só pode ser lido como uma pergunta que também coloca para si próprio: "Que papel histórico está disponível para uma escritora como ela, nascida numa comunidade colonial tar- dia?". Nadine Gordimer escreveu uma conhecida resenha sobre Vida e época de Michael K, romance de Coetzee, em que ad- 14 15
  • 8. 1. Italo Svevo Um homem - um homem imenso, ao lado do qual você se sente muito pequeno - decide convidá-Io para conhecer suas filhas, a fim de escolher uma delas para esposa. Elas são quatro, todas com os nomes começando em A; o seu nome começa com Z. Você vai visitá-Ias em casa e tenta travar uma conversa civili- zada, mas não consegue evitar que insultos se despejem da sua boca. Você se descobre contando piadas indecentes, que são re- cebidas com um silêncio glacial. No escuro, você murmura pa- lavras sedutoras para a mais bonita das A; quando as luzes se acendem, descobre que quem vinha cortejando era a A de olhos estrábicos. Você se apoia descuidado em seu guarda-chuva; o guarda-chuva se parte ao meio; todos riem. Isso tudo parece, se não um pesadelo, um desses sonhos que, nas mãos de um vienense devidamente habilitado para interpre- tá-Ios, como por exemplo Sigmund Freud, acabam revelando muita coisa embaraçosa a seu respeito. Entretanto não se trata de um sonho, e sim de um dia na vida de Zeno Cosini, herói de A consciência de Zeno, romance de Halo Svevo (1861-1928). Se 17
  • 9. Svevo é de fato um romancista freudiano, será freudiano na me- ticos alemães. Não obstante as vantagens que seu aprendizado dida em que mostra o quanto a vida das pessoas comuns é reple- alemão podia trazer a seus negócios no Império Austro-Húngaro, ta de lapsos, parapraxias e símbolos, ou na medida em que, usan- acabaram por privá-Io de uma formação literária italiana. do como fontes A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação De volta a Trieste, Svevo matriculou-se aos dezessete anos com o inconsciente e Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, no Instituto Superiore Commerciale. Seus sonhos de tornar-se ele cria uma personagem cuja vida interior obedece às linhas des- ator tiveram fim quando foi recusado num teste devido à sua critas pelos manuais freudianos? Ou será ainda que tanto Freud elocução defeituosa do italiano. quanto Svevo pertencem a uma era em que cachimbos, charu- Em 1880, Schmitz pai sofreu reveses financeiros e seu filho tos, bolsas e guarda-chuvas pareciam impregnados de significa- 1 precisou interromper os estudos. Obteve um emprego na filial dos secretos, enquanto nos dias de hoje um cachimbo é apenas em Trieste do Unionbank de Viena e, pelos dezenove anos se- um cachimbo? guintes, trabalhou no banco. Fora do expediente, lia os clássicos italianos e a vanguarda europeia em geral. Zola tornou-se o seu "Italo Svevo" (Italo, o Suevo) é obviamente um pseudôni- ídolo. Frequentava salons artísticos e escrevia para um jornal sim- mo. O nome original de Svevo era Aron Ettore Schmitz. Seu avô pático ao nacionalismo italiano. paterno era um judeu vindo da Hungria e estabelecido em Tries- Entre os trinta e os quarenta anos, tendo experimentado o te. Seu pai começou a vida como mascate e acabou como um sabor de publicar um romance (Una vita, 1892 [Uma vida]) por bem-sucedido comerciante de artigos de vidro; sua mãe vinha de conta própria e vê-Io ignorado pelos críticos, e prestes a repetir a uma família judaica de Trieste. Os Schmitz eram judeus pra- experiência com Senilidade (1898), Svevo casou-se com uma re- ticantes, mas de observância não muito rígida. Aron Ettore ca- presentante da proeminente família Veneziani, proprietários de sou-se com uma convertida ao catolicismo, e por pressão dela aca- um estabelecimento que revestia cascos de navios com uma subs- bou se convertendo ele também (um tanto a contragosto, vale tância patenteada que retardava a corrosão e impedia o cresci- dizer). A breve autobiografia publicada sob seu nome num mo- mento de cracas. Svevo foi admitido na empresa, onde era en- mento posterior da vida, quando Trieste se tornara parte da Itália carregado da preparação da tinta a partir de uma fórmula secreta e a Itália se tornara fascista, é bastante vaga quanto a seus ante- e supervisionava os demais funcionários. cedentes judaicos e não italianos. As memórias que sua mulher Os Veneziani já eram contratados por várias forças navais Livia publicou a seu respeito - com uma certa tendência hagio- de todo o mundo. Quando o Almirantado Britânico assinalou gráfica, embora plenamente legíveis - são igualmente discretas seu interesse, apressaram-se em abrir uma representação em Lon- na matéria.' Em seus escritos, não se encontram personagens ou dres, gerenciada por Svevo. Para aperfeiçoar seu inglês, Svevo temas abertamente judaicos. teve aulas com um irlandês chamado James Joyce, que leciona- O pai de Svevo - uma influência dominante em sua vida va no curso Berlitz de Trieste. Depois do fracasso de Senilida- - mandou os filhos para um colégo interno de comércio na Ale- f I de, desistira de escrever a sério. Agora, porém, no novo professor, manha, onde em suas horas vagas Svevo mergulhou nos român- encontrou alguém que gostava dos seus livros e entendia as suas 18 19
  • 10. intenções. Animado, retomou o que chamava de suas garatujas, mo uma espécie à parte, coexistindo às turras com os tipos sau- embora só voltasse a publicar alguma coisa na década de 1920. dáveis e irreflexivos que poderiam ser definidos como os "mais aptos" do jargão darwiniano. Com Darwin - lido através de Predominantemente italiana em sua cultura, a Trieste dos uma lente schopenhaueriana - Svevo manteve uma teimosa tempos de Svevo ainda assim fazia parte do império dos Habs- implicância a vida inteira. Seu primeiro romance pretendia tra- burgo. Era uma cidade próspera, o principal porto marítimo de zer no título uma alusão a Darwin: Un inetto, "um inepto", ou Viena, onde uma classe média esclarecida tocava uma econo- "mal-adaptado". Mas seu editor foi contrário, e ele acabou esco- mia baseada na navegação, nos seguros e nas finanças. A imigra- lhendo o bem mais inexpressivo Una vita. Num estilo exemplar- ção levara para lá gregos, alemães e judeus; o trabalho braçal mente naturalista, o livro acompanha a história de um jovem era feito por eslovenos e croatas. Em sua heterogeneidade, Tries- bancário que, quando finalmente se vê obrigado a admitir que te era um microcosmo de um império etnicamente variado em sua vida é desprovida de qualquer desejo ou ambição, toma a pro- que eram cada vez maiores as dificuldades para manter sob con- vidência correta do ponto de vista evolucionário, e se suicida. trole inúmeros ressentimentos interétnicos. Quando esses ódios Num ensaio posterior, intitulado "O homem e a teoria dar- explodiram, em 1914, o império mergulhou na guerra, arrastan- winiana", Svevo mostra Darwin por um viés mais otimista, que do a Europa consigo. acaba conduzindo às páginas de Zeno. Nossa sensação de nunca Embora acompanhassem Florença nas questões culturais, estarmos à vontade no mundo, sugere ele, resulta de um certo os intelectuais triestinos tendiam a mostrar-se mais abertos às inacabamento da evolução humana. Para fugir a essa triste con- correntes do norte que seus equivalentes da Itália. No caso de dição, há os que tentam adaptar-se a seu meio. Outros preferem Svevo, primeiro Schopenhauer e Darwin, e mais tarde Freud, des- o contrário. De fora, os inadaptados podem parecer formas rejei- tacam-se como as principais influências filosóficas. tadas pela natureza, mas, paradoxalmente, podem mostrar-se mais Como qualquer bom burguês do seu tempo, Svevo preo- aptos que seus vizinhos bem-adaptados para enfrentar o que o cupava-se muito com sua saúde: o que constituiria a boa saú- futuro imprevisível possa nos trazer. de, de que modo podia ser adquirida, e como mantê-Ia? Em sua obra, a saúde acabou assumindo uma ampla gama de sentidos, A língua de casa de Svevo era o triestino, uma variante do indo do físico e do psíquico ao social e ético. De onde vem a dialeto veneziana. Para tornar-se escritor, ele precisava dominar sensação insatisfeita, própria da humanidade, que nos diz que o italiano literário, baseado no dialeto toscano. Mas jamais alcan- não estamos bem e de que tanto desejaríamos ver-nos curados? çou o domínio que almejava. Para aumentar suas dificuldades, E essa cura, será possível? E se nos obrigar a nos conformarmos tinha pouca sensibilidade para as qualidades estéticas da lingua- com a maneira como as coisas são, será essa cura necessariamen- gem, e especialmente nenhum ouvido para a poesia. Arreliava te uma coisa boa? seu amigo, o jovem poeta Eugenio Montale, dizendo que lhe pa- Aos olhos de Svevo, Schopenhauer foi o primeiro filósofo a recia um desperdício usar apenas uma parte da página em bran- tratar as pessoas acometidas do mal do pensamento reflexivo co- co quando pagara por toda ela. P. N. Furbank, um dos melhores 20 21
  • 11. tradutores de Svevo [para o inglês], rotula sua prosa de "uma escrever em italiano. [... ] Com cada palavra toscana que em- espécie de italiano 'comercial', quase um esperanto - uma lin- pregamos, nós mentimos!") Aqui, Svevo trata a passagem de um guagem bastarda e desgraciosa, totalmente desprovida de poesia dialeto a outro, do triestino em que foi alfabetizado ao italiano ou ressonância".2 Logo depois do seu lançamento, Una vita foi em que escrevia, como inerentemente traiçoeira (traditore tra- criticado por seus erros gramaticais, por seu uso indiscriminado duttore). Só em triestino ele podia dizer a verdade. A questão que do dialeto e pela pobreza geral da sua prosa. E muito foi dito na tanto os não italianos quanto os italianos devem ponderar é se mesma linha sobre Senilidade. Quando Svevo ficou famoso, e existiriam de fato verdades triestinas que Svevo sentia jamais con- Senilidade foi, pois, reeditado, ele concordou em reler o texto seguir traçar na página em italiano. e corrigir seu italiano, mas sem aplicar muito esforço à tarefa. De si para si, parecia duvidar de que meras alterações editoriais A origem de Senilidade foi um caso amoroso que Svevo man- pudessem produzir algum efeito. teve em 1891-2 com uma jovem, como diz delicadamente um Até certo ponto, a controvérsia quanto ao domínio do italia- dos seus críticos, de profissão indeterminada, que mais tarde se no por Svevo pode ser ignorada como uma questão que só in- transformaria em equestrienne de circo. No livro, ela se chama teressa aos italianos, irrelevante para estrangeiros que o leem em Angiolina. Emilio Brentani, o protagonista, vê Angiolina como tradução. Para o tradutor, porém, o italiano de Svevo coloca uma uma inocente que ele irá instruir nos aspectos mais sutis da vida substancial questão de princípio. Será que seus defeitos, numa ga- enquanto ela, em contrapartida, irá dedicar-se ao seu bem-estar. ma que vai do uso de preposições erradas ao emprego de um fra- Mas é Angiolina quem, na prática, dá as lições; e a iniciação que seado arcaico ou livresco e a um estilo em geral laborioso, devem ela proporciona a Emilio nas evasões e nas baixezas da vida eró- ser reproduzidos ou corrigidos em silêncio? Ou, para formular tica bem valeria o dinheiro que ela o faz gastar a rodo, não esti- a questão na forma inversa, como é que, sem lançar mão de uma vesse ele envolvido demais no autoengano da sua fantasia para prosa deliberadamente truncada, o tradutor poderá transmitir absorvê-Ia devidamente. Anos depois de Angiolina ter fugido com uma ideia do que Montale chama de "esclerose" do mundo de um escriturário de banco, Emilio irá relembrar o tempo que pas- Svevo, impregnada em sua própria linguagem? sou com ela filtrando-o por uma névoa rosada (Joyce sabia de cor Svevo não era indiferente ao problema. Sua recomendação as maravilhosas últimas páginas do livro, banhadas em clichês ao tradutor de Zeno para o alemão foi traduzir seu italiano por românticos e ironia impiedosa, e chegou a recitá-Ias para Svevo). um alemão gramaticalmente correto, mas sem embelezar ou me- A verdade é que esse caso amoroso fora senil desde o início, no lhorar seu texto. sentido único que Svevo dá à palavra: nada tinha de juvenil ou vi- Svevo costumava definir o triestino, em tom de desprezo, tal, mas antes subsistindo desde o início graças à mentira egoísta. como um dialettaccio, um dialeto menor, ou uma linguetta, uma Em Senilidade, o autoengano é um estado da existência deli- sublíngua, mas não estava sendo sincero. Muito mais convin- berado mas não reconhecido. A ficção que Emilio constrói para si cente é Zeno quando deplora que os estrangeiros "não sabem o mesmo quanto a quem ele é, quanto a quem é Angiolina e quan- que representa para aqueles de nós que falam dialeto [il dialetto] to ao que os dois fazem juntos é ameaçada pelo fato de Angiolina 22 23
  • 12. dormir promiscuamente com outros homens e mostrar-se incom- a fim de livrar-se da "infamia" (a desonra, mas também o horror) petente, indiferente ou maliciosa demais para escondê-Ia. Ao la- do toque desse homem, mergulha imediatamente na cama com do de A sonata Kreutzer e No caminho de Swann, Senilidade é outro. O texto de Svevo quase não é metafórico: com um segun- um dos grandes romances do ciúme sexual masculino, explo- do ato sexual Angiolina tentaria limpar-se ("nettarsí") dos vestí- rando o repertório técnico legado por Flaubert a seus sucessores gios que Volpini deixara nela. De Zoete omite a limpeza: Angio- para entrar e sair da consciência de uma personagem com um lina "busca refugiar-se daquele enlace infame".4 mínimo de incômodo e emitir juízos sem parecer fazê-Io. A ma- Noutros pontos, De Zoete simplesmente elide ou sinteti- neira como Svevo mostra as relações entre Emilio e seus rivais é za trechos que - com ou sem razão - julga não terem contri- especialmente perceptiva. Emilio quer e ao mesmo tempo não buição para o sentido do texto, ou serem coloquiais demais para quer que seus amigos cortejem sua amante; quanto mais clara- funcionarem em inglês. Também acontece de superinterpretar, mente consegue visualizar Angiolina com outro homem, mais acrescentando o que ela acha estar acontecendo entre as per- intensamente ele a deseja, a ponto de chegar a desejá-Ia porque sonagens quando o próprio original se cala. As metáforas comer- ela esteve com outro homem. (A presença de correntes homos- ciais que caracterizam a relação entre Emilio e as mulheres às sexuais no triângulo do ciúme foi evidentemente assinalada por vezes se perdem. Numa ocasião, De Zoete interpreta o sentido Freud, mas só anos depois de Tolstói e Svevo.) de uma delas de maneira catastroficamente errada, atribuindo a As traduções-padrão [para o inglês] de Senilidade e Zeno Emilio a decisão de forçar Angiolina a uma relação sexual ("ele são até aqui as de Beryl de Zoete, uma britânica de ascendên- a possui"), quando o protagonista só pretendia esclarecer quem cia holandesa e conectada ao grupo de Bloomsbury cuja faceta seria seu proprietário ("ele é seu possuidor"). mais famosa é ter sido uma das pioneiras mundiais no estudo da A nova tradução de Senilidade, de autoria de Beth Archer dança balinesa. Na apresentação da sua nova tradução de Zeno, Brombert, constitui um avanço considerável. Invariavelmente, William Weaver discute as soluções de De Zoete e sugere, com recupera as metáforas submersas que De Zoete prefere ignorar. a delicadeza possível, que bem pode ter chegado a hora de tirá-Ias Seu inglês, embora claramente datado do final do século xx, tem de circulação. uma formalidade que reflete de certa forma uma era anterior. Se A tradução de Senilidade publicada por De Zoete em 1932, alguma crítica pode ser feita é que num esforço excessivo para com o título As a Man Grows Older [Enquanto um homem en- mostrar-se atualizada ela emprega expressões que tendem a enve- velhece], é particularmente datada. Senilidade fala muito de sexo; lhecer em pouco tempo.5 o sexo usado como arma na batalha entre os sexos, o sexo como Os títulos de Svevo sempre representaram uma dor de ca- mercadoria negociada. Embora sua linguagem nunca seja exa- beça para seus tradutores e editores. Como título, Una vita é tamente imprópria, Svevo tampouco pisa em ovos em torno da simplesmente banal. Por recomendação de Joyce, Senilidade questão. A versão de De Zoete, porém, é de um decoro excessi- foi lançado em inglês com o título As a Man Grows Older, em- vo. Por exemplo, Emilio pensa nos feitos sexuais de Angiolina e bora o romance nada tenha a ver com o envelhecimento. Beth imagina que ela deixa a cama do rico mas repulsivo Volponi, e, Brombert reverte a um título de trabalho anterior, Emilio's Car- 24 25
  • 13. nival [A orgia de Emilio], apesar de na edição revista em italiano cia como industrial à Confederação Fascista das Indústrias. E Svevo se ter recusado a abrir mão de Senilidade: "Eu teria a sen- sua mulher foi participante ativa do "Fascio das Mulheres"J sação de estar mutilando o livro ... Esse título foi o meu guia, era Se ficou moralmente comprometido devido à sua associa- ele que me orientava".fi ção com os Veneziani, Svevo/Schmitz pelo menos não escondia isso de si mesmo, a julgar pelo que escrevia. Basta lembrar do A carreira literária de Svevo se estende por quatro décadas velho do conto "La novella deI buon vecchio e della bella fan- turbulentas da história de Trieste, mas ainda assim muitíssimo ciulla" [A história do bom velho e da moça bonita]' escrito em pouco dessa história se reflete, direta ou indiretamente, em sua 1926 mas ambientado durante a Primeira Guerra: "Todos os si- obra ficcional. A partir do que contam os dois primeiros livros, nais da guerra lhe lembravam, dolorosamente, que, graças a ela, ambientados na Trieste da década de 1890, jamais se poderia ele ganhava tanto dinheiro. A guerra lhe trouxera riqueza e hu- imaginar que àquela época a classe média italiana de Trieste vi- milhação ... Já estava acostumado ao remorso causado por seu via entregue a uma febre típica do Risorgimento, reivindicando sucesso nos negócios, e continuava ganhando dinheiro a despei- a união com a pátria-mãe. E, embora as confissões de Zeno te- to do seu remorso".8 nham sido supostamente escritas durante a guerra de 1914-8, o A atmosfera moral desse texto tardio pode ser mais sombria, conflito só vai lançar alguma sombra sobre a obra em suas últi- e a autocrítica, mais corrosiva, do que encontramos no essencial- mas páginas. mente cômico Zeno, mas isso é apenas uma questão de grau de Graças aos contratos com o governo de Viena, a família Ve- sombra ou potencial de corrosão. De Sócrates a Freud, a filoso- neziani ganhou muito dinheiro com a guerra. Ao mesmo tempo, fia ética do Ocidente subscreveu ao Conhece-ti a ti mesmo délfi- seus membros apresentavam-se em Trieste como irredentistas co. No entanto, de que serve conhecer a si mesmo se, seguidor apaixonados, partidários da incorporação ao solo italiano de to- do caminho apontado por Schopenhauer, um indivíduo acre- dos os territórios sob domínio estrangeiro. John Gatt-Rutter, bió- dita que o caráter se baseia num substrato de vontade, e duvida grafo de Svevo, classifica essa atitude de "farsa hipócrita", e acredi- que a vontade queira mudar? ta que o próprio Svevo foi no mínimo conivente com a encenação. Gatt-Rutter critica acerbamente as posições políticas de Svevo Zeno Cosini, o herói do terceiro romance de Svevo, sua durante a guerra e depois da tomada do poder pelos fascistas em obra-prima da maturidade, é um homem de meia-idade, confor- 1922. Como muitos triestinos da classe alta, os Veneziani apoia- tavelmente casado, próspero, ocioso, vivendo de uma renda que ram Mussolini. O próprio Svevo parece ter acatado o novo regime recebe do negócio fundado por seu pai. Por um capricho, a fim de um modo que Gatt-Rutter define como "de perfeita má-fé", de ver se consegue curar-se de seja lá qual for o seu problema, considerando o fascismo um mal menor que o bolchevismo. Em submete-se à psicanálise. Preliminarmente, seu terapeuta, o dr. S., 1925, na pessoa de Ettore Schmitz, ele aceitou uma comenda pede-lhe que escreva suas memórias da maneira como lhe ocor- menor do Estado pelos serviços que prestou à indústria nacional. rerem. Zeno obedece, produzindo cinco capítulos da extensão Embora nunca se tenha tornado um fascista de carteira, perten- de um conto cada, cujos temas são: o fumo; a morte do seu pai; 26 27
  • 14. seu namoro; um dos seus casos amorosos; uma das suas socieda- Zeno tem dúvidas quanto aos poderes terapêuticos da psicanáli- des comerciais. . se, assim como tem suas dúvidas diante da própria ideia da cura; Decepcionado com o dr. S., que considera obtuso e dogmá- no entanto, quem se atreveria a dizer que o paradoxo que aca- tico, Zeno para de manter suas notas sistemáticas. Visando inde- ba adotando ao final da sua história - de que a suposta doença nizar-se pelos honorários perdidos, o dr. S. publica o manuscrito é parte da condição humana, de que a verdadeira saúde consiste de Zeno. E eis o que constitui o livro que temos à nossa frente: em aceitar quem você é ("ao contrário das outras moléstias ... não as memórias de Zeno mais a narrativa que lhe serve de moldu- existe cura para a vida") - não instiga ele próprio uma interro- ra, sobre como elas foram escritas, "uma autobiografia, mas não gação cética e zenoniana?lO a minha", como diz Svevo numa carta a Montale. E Svevo ainda A psicanálise era uma espécie de mania na Trieste da época explica como sonhava aventuras para Zeno, plantava-as em seu em que Svevo trabalhava em Zeno. Gatt-Rutter cita um professor próprio passado e depois, ignorando deliberadamente a divisa en- triestino: "Aderentes fanáticos à psicanálise [... viviam trocando :1 tre a fantasia e a memória, "'lembrava-se' delas".9 histórias, interpretações de sonhos e lapsos significativos, produ- Zeno é um fumante compulsivo que quer parar de fumar, zindo eles próprios seus diagnósticos amadores" (p. 306). O pró- embora sem força de vontade suficiente para consegui-Io de fa- prio Svevo colaborou numa tradução da Interpretação dos sonhos, to. Não duvida que fumar lhe faça mal, e sonha com os pul- de Freud. Apesar das aparências, não achava que Zeno fosse um mões cheios de ar fresco - as três grandes cenas de morte em ataque contra a psicanálise em si, só contra suas pretensões cura- Svevo, uma em cada romance, mostram pessoas que morrem tivas. A seu ver, não era um seguidor de Freud mas um seu igual, arquejando e lutando desesperadas para respirar -, mas ainda dedicado também por seu lado a investigar o inconsciente e o assim revolta-se contra a cura. Desistir do cigarro, sabe ele em domínio do inconsciente sobre a vida consciente; considerava algum nível instintivo, é reconhecer a primazia de pessoas como seu livro fiel ao espírito cético da psicanálise da maneira como a sua mulher e o dr. S., que, com a melhor das intenções, gosta- era praticada pelo próprio Freud, embora não por seus discípu- riam de transformá-Io num cidadão comum e saudável, subtrain- los, e chegou a enviar um exemplar a Freud (que entretanto não do-lhe assim os poderes que cultiva: o poder de pensar, o poder acusou o recebimento). E de fato, visto de uma perspectiva mais de escrever. Com um simbolismo tão grosseiro que nem mesmo ampla, Zeno é mais que uma simples aplicação da psicanálise a Zeno consegue deixar de rir, o cigarro, a caneta e o falo acabam uma vida ficcional, ou que um mero questionamento cômico da representando uns aos outros. O conto "La novella deI buon psicanálise. É uma exploração das paixões, inclusive as mais mes- vecchio e della bella fanciulla" termina com o velho morto em quinhas, como a cobiça, a inveja e o ciúme, na tradição do roman- sua escrivaninha, uma caneta presa entre os dentes cerrados. ce europeu, paixões para as quais a psicanálise acaba sendo ape- Dizer que Zeno é ambivalente sobre o fumo e, portanto, nas um guia muito parcial. A doença da qual Zeno quer e não quer sobre a possibilidade de cura de sua doença indefinida não passa ser curado é, no fim das contas, não menos que o mal du síiJele de um arranhão na superfície do ceticismo corrosivo porém en- da própria Europa, uma crise da civilização a que tanto a teoria graçado de Svevo quanto à nossa capacidade de aprimoramento. freudiana como A consciência de Zeno procuram responder. 28 29
  • 15. ':' ':' * em vez de mais atualizados teóricos da psique, na verdade ela atribui os males do marido a uma predisposição de caráter. E A consciência de Zeno [La coscienza di Zeno] é mais um essa sua intervenção leva Zeno e seus amigos a longas conversas dos títulos difíceis de Svevo. "Coscienza" pode significar o que de muitas páginas sobre o fenômeno do malato immaginario modernamente se chama de "consciência"; mas também pode em contraposição ao malato reale ou malato vero: não pode uma significar o que em inglês se chama de "self-consciousness" [a doença provinda da imaginação ser mais grave que uma doença "consciência de si mesmo" ou "o embaraço"]' como na frase "verdadeira" ou "real", embora não seja genuína? E Zeno leva de Hamlet "A consciência nos converte a todos em covardes" a interrogação ainda mais além quando pergunta se, em nosso [Conscience does make cowards of us all]. No livro, Svevo alterna tempo, o mais doente de todos pode não ser o sano immaginario, o tempo todo entre os dois significados, de um modo que o in- o homem que se imagina são. glês moderno não tem como imitar. Evitando o problema, De Toda a disquisição é conduzida com muito mais precisão Zoete deu à sua tradução de 1930 o título de Confessions ofZeno. e humor no italiano de Svevo do que seria possível num inglês Em sua nova tradução, William Weaver capitula ante a ambi- circunlocutório. Aqui, De Zoete está um passo à frente de Wea- guidade e usa Zeno's Conscience. ver ao desistir do inglês e recorrer ao francês: "malade imaginaire" Weaver publicou traduções, entre outros escritores italia- para "malato immaginario". nos, de Luigi Pirandello, Cado Emilio Cadda, EIsa Morante, Italo Calvino e Umberto Eco. Sua tradução de Zeno numa pro- Publicado às expensas do próprio Svevo em 1923, quando sa inglesa devidamente comedida e discreta é do melhor padrão. contava 62 anos de idade, Zeno foi resenhado em algumas publi- Num detalhe, porém, é a própria língua inglesa que trai o seu cações, mas nunca por algum dos líderes da opinião crítica. Um trabalho. Zeno costuma contrastar muito o malato immaginario resenhista triestino declarou ter sido pressionado a ignorar o livro, com o sano immaginario, traduzidos por Weaver como "imagina- posto que, fosse o que fosse, era um insulto evidente à cidade. ry sick man" e "imaginary healthy man". (pp. 171, 176; capítulo 6 Em nome dos velhos tempos, Svevo enviou um exemplar do original) No entanto, "immaginario", aqui, não corresponde para Joyce em Paris. Joyce mostrou o livro a Valéry Larbaud e estritamente ao inglês "imaginary", mas a "self-imaginedly", e um outras figuras influentes da cena literária francesa. A reação foi malato immaginario não é, no sentido próprio, um imaginário de entusiasmo. Callim'ard encomendou uma tradução, com a homem doente ("ímaginary sick man"), mas um homem que se condição de serem feitos certos cortes; uma revista literária pu- imagina doente ("a man who imagines himself sick"). blicou todo um número sobre Svevo; o PEN clube organizou um O malato immaginario de Zeno vem da mesma origem que banquete em homenagem a Svevo em Paris. o malade imaginaire de Moliere, e é sem dúvida Moliere que a Em Milão, foi publicada uma nova apreciação positiva da mulher de Zeno tem em mente quando, depois de ouvi-Io falar obra de Svevo, assinada por Montale. Senilidade foi relança- durante horas sobre os seus males, explode numa risada e diz-lhe do em versão revista. Os italianos começaram a ler amplamente que ele não passa de um malato immaginario. Ao invocar Moliere Svevo; uma nova geração de romancistas adotou-o como patro- 3° 31
  • 16. no. A direita reagiu com hostilidade. "Na vida real, Italo Svevo 2. Robert Walser tem um nome semita - Ettore Schmitz", escreveu La Sera, e sugeriu que toda aquela onda em torno de Svevo fazia parte de uma vasta conspiração judaica." Envaidecido com o sucesso inesperado de Zeno, exultante com sua nova fama, Svevo pôs-se a trabalhar numa série de tex- tos cujo tema comum era o envelhecimento e os apetites insacia- dos da velhice. Talvez pretendesse usá-los num quarto romance, uma continuação de Zeno. Em inglês, podem ser encontrados, em traduções de P. N. Furbank e outros, nos volumes 4 e 5 da edição uniformizada em cinco volumes das obras de Svevo pu- blicada na década de 1960 pela U niversity of California Press nos Estados Unidos e por Secker & Warburg na Grã-Bretanha, mas hoje fora de catálogo. Já é mais que tempo de uma reedição. a volume 5 contém ainda uma tradução da peça teatral La No dia de Natal de 1956, a polícia da cidade de Herisau, no Rígenerazíone [Regeneração]' obra tardia. Svevo nunca perdeu leste da Suíça, recebeu um telefonema: um grupo de crianças o interesse pelo teatro, e escreveu inúmeras peças ao longo dos tinha tropeçado no corpo de um homem que morrera congela- anos, mesmo enquanto trabalhava para os Veneziani. Só uma do num campo nevado. Chegando ao local, primeiro os policiais delas, Terzetto sjJezzato [a triângulo partido], foi encenada du- tiraram algumas fotos e depois removeram o corpo. rante a sua vida. a morto logo foi identificado: era Robert Walser, de 78 anos, Svevo morreu em 1928 de complicações provocadas por um que desaparecera de um hospital psiquiátrico local. Na juventu- acidente automobilístico sem importância. Foi enterrado no ce- de, Walser conquistara certa reputação, na Suíça e também na mitério católico de Trieste com o nome de Aron Hector Schmitz. Alemanha, como escritor. Alguns de seus livros ainda estavam Livia Veneziani Svevo, reclassificada como judia, passou os anos em catálogo; outro fora publicado a seu respeito, uma biografia. da guerra, juntamente com a filha do casal e o terceiro filho des- Ao longo de um quarto de século passado de hospício em hospí- ta, escondida dos esquadrões de purificação. Esse terceiro filho cio, entretanto, sua obra acabara secando. Longas caminhadas foi morto pelos alemães por ocasião do levante triestino de 1945. pelo campo - como aquela em que finalmente faleceu - ti- A essa altura, seus dois irmãos mais velhos já tinham morrido na nham se transformado na sua principal distração. frente russa, lutando pela Itália e pelo Eixo. As fotografias da polícia mostram um velho de sobretudo e botas estendido na neve, com os olhos muito abertos e o maxilar (2002) distendido. Essas fotos foram ampla (e descaradamente) reprodu- zidélSna literatura crítica sobre Walser que vem florescendo des- 32 33
  • 17. de a década de 1960.1 A suposta loucura de Walser, sua morte pelo nome de "Monsieur Robert". Em pouco tempo, todavia, solitária e o esconderijo postumamente encontrado de escritos descobriu que poderia sustentar-se com os proventos do que es- secretos tornaram-se os pilares sobre os quais se erigiu toda uma crevia. Seus textos começaram a aparecer em revistas literárias lenda que tem em Walser um gênio escandalosamente negligen- de prestígio; passou a ser admitido nos círculos artísticos mais ciado. E o repentino crescimento do interesse por Walser tor- sérios. Mas o papel de intelectual da metrópole não lhe era fácil. nou-se também parte do escândalo. "Eu me pergunto", escreveu Algumas doses de bebida e ele tendia a mostrar-se grosseiro e Elias Canetti em 1973, "se, entre todos os que constroem uma agressivamente provinciano. Aos poucos foi se retirando da so- vida acadêmica confortável, segura e regular a partir da existên- ciedade, refugiando-se numa vida solitária e frugal em modes- cia de um escritor que viveu na miséria e no desespero, existe tos conjugados. E nesse cenário escreveu quatro romances, dos um único que sinta vergonha de si mesmo."2 quais três sobreviveram: Os irmãos Tanner (1906), Der Gehülfe [O factótum) (1908), e Jakob von Gunten (1909). Em todos eles Robert Walser nasceu em 1878 no cantão de Berna. Foi o os temas foram extraídos das experiências do autor; mas no caso sétimo de oito irmãos e irmãs. Seu pai, treinado no ofício de de Jakob von Gunten - merecidamente o mais conhecido dos encadernador, mantinha uma papelaria. Aos catorze anos, Ro- três - essas vivências são assombrosamente transmutadas. bert foi tirado da escola e começou a trabalhar como aprendiz num banco, onde cumpria exemplarmente seus deveres de es- "Aqui se aprende muito pouco", observa o jovem Jakob von criturário até o dia em que, sem aviso, dominado pelo sonho de Gunten ao final do seu primeiro dia no Instituto Benjamenta, tornar-se ator, abandonou o emprego e fugiu para Stuttgart. Lá onde se matriculou como estudante. Um único livro é usado, fez um teste, que resultou num fracasso humilhante: foi reprova- O que pretende a Escola Benjamenta para Rapazes?, e uma úni- do por se mostrar muito rígido e inexpressivo. Abandonando as ca matéria é lecionada, "Como um menino deve se comportar". ambições cênicas, decidiu tornar-se - "com a ajuda de Deus" Os professores da escola são inertes como mortos. E toda a ati- - poeta.> Andou de emprego em emprego, sempre escrevendo vidade efetiva de ensino cabe à srta. Lisa Benjamenta, irmã do poemas, pequenos textos em prosa e pequenas peças teatrais em diretor. O próprio sr. Benjamenta não sai nunca do seu gabinete, verso ("dramolets") para a imprensa periódica, não sem algum onde conta e reconta seu dinheiro como um ogro de conto de sucesso. Logo foi contratado pela Insel Yerlag, editora de Rilke e fadas. Na verdade, a escola parece um mero embuste.4 Hofmannstahl, que publicou seu primeiro livro. Ainda assim, tendo deixado o que define como "uma me- Em 1905, pensando no progresso de sua carreira literária, trópole muitíssimo pequena" em troca de uma cidade grande acompanhou seu irmão mais velho, ilustrador de livros e cenó- - cujo nome não é revelado mas só pode ser Berlim -, Jakob grafo teatral de sucesso, numa viagem a Berlim. Por medida de não tem a menor intenção de recuar. Procura se dar bem com os prudência, matriculou-se ao mesmo tempo numa escola de for- seus colegas; não se incomoda de usar o uniforme da Benjamen- mação de criados domésticos, e trabalhou por algum tempo co- ta; além disso, adora ir ao centro da cidade para andar de elevador, mo mordamo numa casa de campo, onde usava libré e atendia o que o faz sentir-se um filho pleno da era moderna (p. 40). 34 35
  • 18. Jakob von Gunten alega ser um diário mantido por Jakob Quanto ao sr. Benjamenta, hostil a Jakob num primeiro durante sua permanência no Instituto. Contém principalmen- . momento, logo acaba manipulado ao ponto de suplicar ao rapaz te suas reflexões sobre o tipo de formação que recebe ali - uma que se torne seu amigo, deixando a escola para trás e saindo para educação na humildade - e sobre o estranho par de irmãos correr o mundo em sua companhia. Jakob declina com modos responsável por ela. A humildade lecionada pelos irmãos Benja- afetados: "Mas como irei comer, senhor diretor? ... Seu dever é menta não é da variedade religiosa. A maioria dos rapazes que se me conseguir um emprego decente. Tudo que quero é um em- formam na escola aspira ao ofício de criado ou mordomo, e não prego". Ainda assim, na última página do seu diário, Jakob anun- à santidade. Mas Jakob é um caso à parte, um aluno para quem cia que mudou de ideia: decidiu abandonar a pena e partir para as lições de humildade adquirem uma ressonância interior su- o desconhecido na companhia do sr. Benjamenta. Ao que o lei- plementar. "Como tenho sorte", escreve ele, "de não ver em mim tor só pode reagir pensando: Com um companheiro desse cali- nada digno de ser respeitado ou observado! Ser pequeno e per- bre, Deus proteja o sr. Benjamenta! (p. 172) manecer pequeno." (p. 155) Como personagem literária, Jakob von Gunten não deixa de Os irmãos Benjamenta são um par misterioso e, à primeira ter seus precedentes. No prazer que sente em criticar seus pró- vista, intimidador. E Jakob decide assumir a tarefa de desven- ,prios motivos, lembra o Homem do Subterrâneo de Dostoiévski dar o mistério dos dois. E passa a tratá-l os não com respeito, mas e, por trás deste, o Jean-Jacques Rousseau das Confissões. Mas com a autossuficiência atrevida das crianças acostumadas a ter - como afirma a primeira tradutora de Walser para o francês, suas travessuras perdoadas e julgadas adoráveis. Combina a des- Marthe Robert - há também em Jakob algo do herói dos contos façatez com uma autodepreciação evidentemente insincera, rin- tradicionais populares alemães, o rapaz que invade o castelo do do à socapa da sua insinceridade e confiando que a candura de- gigante e emerge vitorioso. Franz Kafka admirava a obra de Wal- sarmará qualquer crítica, e não se incomodando muito quando ser (Max Brod registra com quanto encantamento Kafka lia em isso não acontece. A palavra que desejaria aplicar a si mesmo, a voz alta as passagens mais engraçadas de Walser). Barnabas e Je- palavra que gostaria que o mundo aplicasse a ele, é endiabrado. remias, os "assistentes" demoniacamente obstrutivos do agrimen- Um diabrete é um espírito malicioso; mas é também um demô- sor K. em O castelo, têm seu protótipo em Jakob. mo menor. Em Kafka também podemos perceber alguns ecos da prosa Logo Jakob começa a adquirir uma certa ascendência so- de Walser, com sua lúcida organização sintática, suas justaposi- bre os irmãos Benjamenta. A srta. Benjamenta dá-lhe a enten- ções casuais do elevado com o banal, e sua lógica paradoxal as- der que se afeiçoou a ele, que em resposta faz de conta que sustadoramente convincente. Aqui temos Jakob numa disposição não entendeu. Na verdade, ela acaba revelando que o que sen- reflexiva: te por ele pode ser mais que simples carinho: talvez seja amor. Jakob responde com um longo discurso evasivo repleto de sen- Usamos uniformes. Ora, usar um uniforme nos humilha e ao timentos respeitosos. Rejeitada, a srta. Benjamenta definha e aca- mesmo tempo nos exalta. Parecemos gente sem liberdade, o que ba morrendo. é possivelmente uma desgraça, mas também ficamos bem em 36 37
  • 19. nossos uniformes, o que nos distingue da desgraça profunda des- e seu gosto por pregar peças maliciosas nos outros - todos es- sas pessoas que andam pelas ruas com suas próprias roupas, mas ses traços, vistos em conjunto, apontam para o tipo de peque- sujas e esfarrapadas. Para mim, por exemplo, usar um uniforme no-burguês do sexo masculino que, num tempo de confusão é muito agradável porque eu nunca sabia, antes, que roupa devia social mais intensa, podia sentir-se atraído pelos camisas pardas usar. Mas nisso, também, permaneço por enquanto um mistério de Hitler. (p. 124) para mim mesmo. Walser nunca foi um escritor declaradamente político. Ain- da assim, seu envolvimento emocional com a classe de que pro- Qual é o mistério em si mesmo ou acerca de si mesmo que vinha, a classe dos pequenos comerciantes, dos funcionários e Jakob acha tão instigante? Num ensaio sobre Walser especial- dos professores primários, era profundo. Berlim lhe acenava com mente notável por basear-se num conhecimento muito incom- uma oportunidade clara de escapar a suas origens sociais e tras- pleto da sua obra, Walter Benjamin sugere que as pessoas mos- ladar-se, como fez seu irmão, para a intelligentsia cosmopolita tradas por Walser são como personagens de um conto de fadas dos déclassés. Walser tenta o mesmo caminho, mas fracassa, ou que chegou ao fim, personagens que a partir desse momento desiste, preferindo retomar aos braços da Suíça provinciana. Mas passam a viver no mundo real. Todas são marcadas por "uma nunca perdeu de vista - na verdade, nunca lhe foi permitido superficialidade sistematicamente dilacerante e desumana", co- perder de vista - as tendências iliberais e conformistas da sua mo se, tendo sido libertadas da loucura (ou de um feitiço), de- classe, e a intolerância que esta sempre manifestou diante de pes- vessem agir com muita cautela por medo de serem novamente engolfadas pelo delírio.5 soas como ele próprio, os sonhadores e vagabundos. Jakob é uma criatura tão estranha, e o ar que respira no Ins- tituto Benjamenta, tão rarefeito, tão próximo da alegoria, que é Em 1913 Walser deixou Berlim e voltou para a Suíça "um difícil imaginá-Io como uma personagem representativa de qual- escritor ridicularizado e sem sucesso" (em suas próprias palavras quer elemento da sociedade. Entretanto, o cinismo de Jakob quan- autodepreciativas).6 Alugou um quarto num hotel que não servia to à civilização e aos valores em geral, seu desprezo pela vida bebidas, na cidade industrial de Biel, perto da sua irmã, e passou mental, suas convicções simplistas sobre o modo como o mundo os sete anos seguintes vivendo precariamente, de textos curtos realmente funciona (é comandado pelas grandes empresas para para suplementos literários. Fora isso, fazia longas caminhadas explorar o homem comum), sua elevação da obediência à qua- pelos campos e ainda cumpriu seu serviço na Guarda Nacional. lidade de mais alta das virtudes, sua determinação de não fazer Nas coletâneas de sua poesia e prosa curta que continuavam a nada à espera do chamamento do destino, sua alegação de des- ser publicadas, cada vez falava mais da paisagem social e na- cender de nobres e guerreiros (ao mesmo tempo em que a eti- tural da Suíça. Além dos três romances mencionados, escreveu mologia que ele próprio indica para o nome Von Gunten - von ainda mais dois. O manuscrito do primeiro, Theodor, foi perdi- unten, "de baixo" - sugere o contrário), bem como o prazer que do pelos seus editores; o segundo, Tobold, foi destruído pelo pró- encontra no ambiente exclusivamente masculino do internato prio Walser. 38 39
  • 20. Depois da Primeira Guerra Mundial, o gosto do público pe- da, e Walser preferiu permanecer internado. Em 1933, sua fa- lo tipo de literatura que respondia pelos rendimentos de Walser, . mília o transferiu para o asilo de Herisau, onde ele recebia uma textos descartáveis de caráter excêntrico e beletrístico, reduziu-se pensão e preenchia seu tempo com tarefas simples como colar muito. Ele vivia afastado demais da sociedade alemã mais ampla sacos de papel e separar feijões. Permanecia em plena posse das para manter-se a par das novas correntes de pensamento; quanto suas faculdades; continuava a ler jornais e revistas populares; mas, à Suíça, o público leitor local era pequeno demais para susten- depois de 1932, não escreveu mais. "Não estou aqui para escre- tar um corpo significativo de escritores. Embora se orgulhasse da ver, estou aqui para ser louco", disse ele a um visitante.lO Além sua frugalidade, Walser acabou precisando fechar o que chama- disso, o tempo dos líttérateurs tinha ficado para trás. va de "minha pequena oficina de peças em prosa" J Seu precá- (Anos depois da morte de Walser, um dos funcionários do rio equilíbrio mental começou a falhar. Sentia-se cada vez mais asilo de Herisau afirmou que via Walser escrevendo sistemati- oprimido pelos olhares de censura dos vizinhos, pela exigência camente durante seus plantões. No entanto, mesmo que isso se- de respeitabilidade que o cercava. Deixou Biel, mudando-se pa- ja verdade, nenhum manuscrito de data posterior a 1932 chegou ra Berna, onde assumiu um cargo no Arquivo Nacional; mas ao aos nossos dias.) cabo de poucos meses foi demitido por insubordinação. Vivia mudando de residência. Bebia muito; sofria de insônia, ouvia vo- Ser um escritor, uma pessoa que usa as mãos para transfor- zes imaginárias, tinha pesadelos e ataques de ansiedade. Tentou mar pensamentos em traços no papel, era difícil para Walser no o suicídio, fracassando porque, como admitiu com desconcertan- mais elementar dos níveis. Na juventude, ele tinha uma letra ní- te sinceridade, "nem um laço eu consegui fazer certo". 8 tida e bem desenhada de que se orgulhava muito. Os manuscri- Ficou claro que não podia mais morar sozinho. Vinha de tos que conhecemos desses dias - as versões finais de seus textos uma família que, na terminologia da época, era degenerada: sua - são verdadeiros modelos de bela caligrafia. A caligrafia, entre- mãe sofria de depressão crônica; um dos seus irmãos se suicida- tanto, foi uma das primeiras áreas em que as perturbações psíqui- ra; outro morrera num hospício. Pressionaram uma de suas irmãs cas de Walser se manifestaram. Em algum momento entre os seus a recebê-Io em casa, mas ela recusou. E assim ele permitiu que trinta e os seus quarenta anos de idade (ele é vago quanto à da- o internassem no sanatório de Waldau. "Acentuadamente depri- ta), começou a sofrer de cãibras psicossomáticas na mão direita. mido e gravemente inibido", afirma seu primeiro relatório mé- Atribuía o problema a uma animosidade inconsciente contra a dico. "Deu respostas evasivas às perguntas quanto a estar farto caneta como instrumento de trabalho, e só conseguiu superá-Ias da vida."9 quando finalmente abandonou a caneta em favor do lápis. Em avaliações posteriores, os médicos de Walser discor- Escrever a lápis era tão importante que Walser batizou o pro- dariam quanto à natureza do seu problema, se é que problema cesso de "sistema do lápis" ou "método do lápis"." E o método havia, e chegariam mesmo a insistir com ele para que voltasse do lápis significava bem mais que o mero uso de um lápis. Quando a morar no mundo exterior. No entanto, a rotina da instituição passou a escrever a lápis, Walser também mudou radicalmente parece ter-se transformado numa base indispensável para sua vi- sua caligrafia. Ao morrer, deixou cerca de quinhentas folhas de 4° 41
  • 21. papel cobertas de fora a fora de linhas de delicados sinais cali- terrupto, introvertido, movido a sonho, que se tornara indispen- gráficos diminutos, desenhados a lápis, uma letra tão difícil de sável para a sua postura criadora. ler que num primeiro momento seu inventariante julgou ter à sua frente um diário escrito num código secreto. Mas Walser não A mais longa das obras tardias de Walser é Der Riiuber, es- mantinha um diário, nem essa escrita é um código. Seus ma- crita em 1925-6, mas decifrada e publicada apenas em 1972. A nuscritos tardios foram na verdade compostos em alemão lite- história é tão rala que chega a ser insubstancial. Narra os envol- rário, mas com tantas abreviações idiossincráticas que, mesmo vimentos sentimentais de um homem de meia-idade conheci- para os editores mais familiarizados com ela, sua decifração ine- do simplesmente como o Ladrão, um homem sem ocupação quívoca nem sempre é possível. E foi só em rascunhos produ- que consegue subsistir à margem da sociedade cultivada de Ber- zidos pelo "método do lápis" que as inúmeras obras tardias de na graças a um legado modesto. Walser, entre elas seu romance Der Riiuber [O Ladrão] (24 folhas Entre as mulheres que o Ladrão persegue com muita reser- de microescrita, correspondentes a cerca de 150 páginas impres~ va, há uma garçonete chamada Edith; entre as mulheres que com sas), chegaram até nós. reserva pouco menor perseguem a ele estão várias proprietárias Mais interessante que decifrar a letra propriamente dita é a de imóveis que o querem, seja para as suas filhas ou para elas questão do que o método do lápis permitia a Walser mas a cane- próprias. A ação culmina numa cena em que o Ladrão sobe ao ta não era mais capaz de produzir (embora ele ainda fosse ca- púlpito e, perante uma vasta assembleia, reprova Edith por pre- paz de usar a caneta quando apenas transcrevia, ou para escrever ferir um rival medíocre a ele. Enfurecida, Edith dispara um re- cartas). A resposta parece ser que, como um desenhista com um vólver contra ele, ferindo-o de raspão. Segue-se uma torrente de bastão de carvão entre os dedos, Walser precisava desencadear comentários animados. Quando a poeira baixa, o Ladrão está um movimento regular e rítmico da mão antes de conseguir en- colaborando com um escritor profissional para contar o seu lado trar num estado de espírito em que o devaneio, a composição e o fluxo do instrumento de escrita se tornavam uma coisa só. Num da história. texto intitulado "Bleistiftskizze" [Esboço a lápis], datado de 1926-7, Por que ele deu o nome "o Ladrão" [der Riiuber] a esse con- ele menciona a "bem-aventurança singular" que o método do lá- quistador inseguro? A palavra remete, claro, a "Robert", o nome pis lhe permitia." "Ele me acalma e me anima", disse noutra oca- do próprio Walser. Um quadro de Karl Walser, irmão de Robert, sião.'3 Esses textos de Walser avançam não de acordo com a lógi- nos fornece mais uma pista. Na aquarela de Karl, Robert, aos ca nem acompanhando uma narrativa, mas segundo mudanças quinze anos, aparece vestido como seu herói predileto, Karl de humor, fantasias e associações: por temperamento, ele é me- Moor, da peça da juventude de Schiller Die Riiuber [Os ladrões, nos um pensador que persegue uma argumentação ou mesmo 1781]. O Ladrão da história de Walser, entretanto, não é um sal- um contador de histórias seguindo a linha de uma narrativa que teador heroico como o de Schiller, mas um plagiário desonesto um autêntico beletrista. O lápis e a notação estenográfica de sua que se limita a roubar o afeto de algumas jovens e as fórmulas da invenção lhe permitiam um movimento manual produtivo, inin- ficção popular. 42 43
  • 22. Por trás do Ladrão, ou Robert/Rauber, assoma uma figura, Ele estava sempre [00.] só como um pobre cordeirinho perdido. o autor nominal do livro, que o trata ora como um protegido, ora As pessoas o perseguiam para ajudá-lo a aprender como se vive. como um rival, ora como um simples fantoche a ser conduzido Ele dava uma impressão tão vulnerável. Parecia a folha que um de situação em situação. Esse diretor de cena o critica por cuidar menino separa do tronco com um golpe de vara só porque sua mal das suas finanças, por sair com moças da classe operária e, singularidade a torna conspícua. Noutras palavras, ele atraía a de maneira geral, por comportar-se como um Tagedíeb, um ocio- perseguição. (p. 40) so ou "ladrão de dias", em vez de proceder como um bom bur- guês suíço, muito embora, admite ele, precise estar sempre to- Como Walser também observa, com igual ironia mas ín mando cuidado para não confundir a si próprio com Robert/ propría persona, numa carta do mesmo período: "Às vezes me Rauber. Seu caráter lembra muito o do rival, zombando de si sinto devorado, ou melhor, parcial ou totalmente consumido, mesmo enquanto cumpre suas rotinas sociais sem sentido. De pelo amor, pela preocupação e pelo interesse de meus tão ex- celentes concidadãos" .14 tempos em tempos sente uma pontada de ansiedade quanto ao Der Riiuber nunca foi preparado para publicação. Na ver- livro que está escrevendo debaixo dos nossos olhos - porque a dade, em nenhuma de suas muitas conversas com seu amigo e obra progride devagar, porque seu conteúdo é trivial, por causa da vacuidade do seu herói. benfeitor durante seus anos de internação, Carl Seelig, Walser sequer mencionou a existência da obra. Ela se baseia em epi- Fundamentalmente, Der Riiuber "trata" apenas da aven- sódios mal disfarçados da sua vida; ainda assim, precisamos de tura da sua própria composição. Seu encanto reside nas suas sur- muita cautela se quisermos considerá-Ia um texto autobiográ- preendentes reviravoltas e mudanças de direção, no seu trata- fico. Robert/Rauber só encarna um dos aspectos de Walser. Em- mento delicadamente irônico das fórmulas do jogo amoroso, e bora haja referências a vozes persecutórias, e embora ele sofra do em sua exploração flexível e inventiva dos recursos da língua ale- que, no jargão psiquiátrico e psicanalítico, é chamado de delírio mã. A figura do seu autor, alvoroçado diante da multiplicidade de referência - suspeitando que haja significados ocultos, por de fios narrativos que precisa administrar depois que o lápis em exemplo, na maneira como os homens assoam o nariz na sua suas mãos entra em movimento, lembra acima de tudo Laurence presença -, o lado mais melancólico e mais autodestrutivo do Sterne, o Sterne tardio, mais suave, livre da malícia e dos duplos Walser real mantém-se sistematicamente fora do quadro. sentidos. Num episódio crucial, Robert/Rauber procura um médico Os efeitos de distanciamento produzidos pela identidade de e, com grande franqueza, lhe descreve seus problemas sexuais. autor que se destaca da personagem de Robert/Rauber, e por um Nunca sentiu o desejo de passar a noite com uma mulher, diz, estilo em que o sentimento é admitido desde que coberto por um mas acumula "estoques assustadores de potencial amoroso", tan- véu fino de paródia, permitem a Walser momentos em que con- to que "toda vez que saio para a rua, começo imediatamente a segue falar de maneira pungente sobre seu próprio desamparo - me apaixonar". O estratagema que imaginou para alcançar a fe- ou seja, de Robert/Rauber - às margens da sociedade suíça: licidade é inventar histórias envolvendo o objeto do seu desejo 44 45
  • 23. em que ele próprio se transforma no [indivíduo] "subordinado, A engenhosidade do neologismo "emborboletado" (em in- obediente, sacrificado, dissecado e tutelado". Na verdade, con- glês "embutterflíed") para "umschmetterlíngelt" é admirável, as- fessa, às vezes acha que no fundo é uma garota. Ao mesmo tem- sim como o talento de Bernofsky para adiar o impacto da frase po, contudo, também tem um menino dentro de si, um menino até sua última palavra. Mas a frase também serve para ilustrar que se comporta mal (sombras de Jakob von Gunten). A reação um dos problemas mais exasperantes dos textos microescritos do médico é eminentemente sensata. O senhor parece se conhe- de Walser. A palavra aqui traduzida como "jovem aristocrata", cer muito bem, diz ele - não tente mudar. (pp. 105-6) "Herrentochter", é decifrada por outro dos editores do original de Noutra passagem notável Walser simplesmente deixa o lá- Walser como "Saaltochter", que no alemão da Suíça quer dizer pis correr (deixa o censor dormir) e conduzi-Io, a partir dos pra- "garçonete". (A mulher em questão, Edith, é sem dúvida uma zeres da vivência imaginária de uma vida interior feminina, a garçonete, nem de longe uma aristocrata.) Se não podemos ter uma participação de intenso erotismo na experiência de um casal certeza do texto, será possível confiar na sua tradução? de amantes operísticos, para os quais a bem-aventurança de ex- Aqui e ali, Walser propõe desafios a cuja altura Bernofsky ternar seu amor na forma de canto e a bem-aventurança do amor não consegue responder. Não tenho certeza de que a expressão propriamente dito são uma coisa só. (p. 101) em inglês "scalawaggíng hís way through [the) arcades" ["zigue zaguendo em meio aos arcos"] evoque exatamente a imagem Christopher Middleton foi um dos pioneiros do estudo da que Walser pretendia, a de um menino que mata aula. Uma das obra de Walser, e um dos grandes mediadores da literatura ale- viúvas com quem Rauber/Robert flerta é caracterizada como eín mã moderna para o mundo de língua inglesa. Sua exemplar Dummchen; e pelas duas páginas seguintes Walser opera mudan- tradução de Jakob von Gunten foi lançada em 1969. Em sua tra- ças em todos os aspectos da palavra "Dummchen". Bernofsky em- dução de 2000 para Der Rduber, intitulada The Robber, Susan prega sistematicamente "nínny" [aproximadamente "pateta", ou Bernofsky sai-se igualmente bem do desafio da obra posterior de "tola"] para "Dummchen", e "nínníhood" [mais ou menos "pate- Walser, especialmente no caso dos jogos do autor com as forma- tice"] para "Dummheít". Mas "nínny" tem conotações claras de ções derivadas que o alemão permite tão bem.'5 incompetência mental e até mesmo de idiotice, ausentes das pa- Num ensaio acerca de alguns dos problemas que Walser apre- lavras em Dumm- em alemão, e de qualquer modo é vocábulo senta para o tradutor, Bernofsky nos dá como ilustração a seguin- raro no inglês de hoje. Nem "nínny" nem nenhuma outra palavra te passagem: única em inglês poderia ser usada para traduzir sistematicamen- te "Dummchen", que às vezes tem o sentido de "dummy" [mais Ele estava sentado no tal jardim, entrelaçado de cipós, emborbo- aproximadamente "imbecil", pessoa que é estúpida ou tapada- letado de melodias, e arrebatado pela radicalidade do seu amor sentido mais forte no inglês americano que no britânico], às ve- pela mais linda jovem aristocrata a jamais baixar dos céus do abri- zes de "nítwít" ["bobo"], e às vezes de "cabeça-oca". (pp. 42, 26-27) go paterno para a apreciação do público de modo a, com seus Walser escrevia em alemão literário (Hochdeutsch), a lín- encantos, desferir no peito de um Ladrão uma fatal estocacla.,6 gua que as crianças suíças aprendem na escola. O alemão literá- 46 47
  • 24. l:~ ,;, ,;, rio difere em inúmeros detalhes linguísticos, e ainda no tempe- ramento, do alemão suíço que é a língua materna de três quartos do povo suíço. Escrever em alemão literário - a única escolha Der Rduber é mais ou menos contemporâneo, em sua com- possível para Walser, se pretendia ganhar alguma coisa com sua posição, do Ulysses de Joyce e dos derradeiros volumes de Em pena - acarretava automaticamente uma postura cortês e so- busca do tempo perdido de Proust. Caso tivesse sido publicado cialmente refinada, atitude que não o deixava confortável. Em- em 1926, poderia ter afetado o curso da moderna literatura ale- bora tivesse pouco tempo para uma literatura regional (Heimat- mã, inaugurando e até legitimando como tema as aventur~s da líteratur)suíça, dedicada a reproduzir o folclore helvético e a identidade que escreve (ou sonha) e da linha de tinta (ou lápis) celebrar costumes populares obsolescentes, Walser, depois de cheia de meandros que emerge ao correr da mão. Mas não foi sua volta ao país natal, começou a introduzir deliberadamente assim. Embora um projeto de reunir os textos de Walser tenha o alemão suíço em seus textos, e de maneira geral tentava soar sido iniciado antes da sua morte, foi só depois que começaram a distintamente suíço. aparecer os primeiros volumes de uma edição mais criteriosa de A coexistência de duas versões da mesma língua no mesmo suas Obras Reunidas em 1966, e depois de chamar a atenção espaço social é um fenômeno pouco familiar ao mundo metro- de leitores na Inglaterra e na França, que Walser atraiu uma am- politano de língua inglesa, e cria problemas insolúveis por quem pla atenção na Alemanha. traduz esses textos para o inglês. A resposta de Bernofsky aos usos Hoje Walser é valorizado principalmente por seus roman- do dialeto por Walser - que não se limitam à inclusão ocasional ces, muito embora estes só constituam um quinto da sua produ- de uma palavra ou expressão local, mas produzem todo um co- ção total e o romance não tenha sido propriamente o seu forte 10l·idosuíço de sua linguagem que é difícil atribuir precisamente (as quatro obras de ficção mais longas que deixou pertencem na a um ou outro elemento - é, candidamente, a de ignorá-los, ou verdade à tradição menos ambiciosa da novela). Walser está mais pelo menos não fazer qualquer esforço em favor de sua reprodu- à vontade em formas mais breves. Contos como "Helbling" (1914) ção. Como diz ela com razão, traduzir os momentos em que o ou "Kleist in Thun" (1913), em que nuances aquareladas de sen- alemão de Walser é mais suíço lançando mão de algum diale- timento são esquadrinhadas com a mais ligeira das ironias e a to regional ou social do inglês produziria apenas uma falsifica- prosa responde a lufadas ocasionais de sentimento com a sensi- ção cultural. 17 bilidade das asas de uma borboleta, mostram Walser no seu me- Tanto Middleton quanto Bernofsky escrevem apresentações lhor. Seu único tema verdadeiro foi sua vida pouco movimen- muito instrutivas das suas traduções, embora a esta altura o texto tada mas, a seu modo, muito pungente. Cada um dos seus textos de Middleton esteja desatualizado em relação aos estudos sobre em prosa, sugeriu ele em retrospecto, pode ser lido como um Walser. Nenhum dos dois recorre a notas explicativas. A ausên- capítulo de uma "narrativa longa, realista e sem enredo", um "li- cia de notas é sentida especialmente em The Robber, salpicado vro recortado ou desmembrado do eu [Ich-Buch]" .•8 de fartas referências à literatura, inclusive os confins mais obs- Mas terá sido Walser um grande escritor? Se no final das curos da literatura suíça. contas ainda hesitamos em qualificá-lo de grande, assinala Ca- 48 49
  • 25. netti, é só porque nada poderia ser-lhe mais estranho que a gran- deza.'9 Num poema tardio, Walser escreveu: 3. Robert Musil, O jovem Torless Não desejaria a ninguém que fosse eu. Só eu sou capaz de me suportar. Saber tanto, ter visto tanto, e Não dizer nada, ou quase nada.20 (2000) Robert Musil nasceu em 1880 em Klagenfurt, na província austríaca da Caríntia. A mãe, proveni~nte da alta burguesia, era uma mulher muito nervosa e interessada pelas artes, o pai, um engenheiro empregado no governo imperial que, mais adiante, acabaria recompensado por seus serviços com um título menor de nobreza. O casamento era "progressista": Musil pai aceitava sem reclamar uma ligação entre sua mulher e um homem mais jovem, Heinrich Reiter, iniciada logo após o nascimento de seu filho. Reiter acabaria indo morar com o casal Musil, num ménage à trais que persistiria por um quarto de século. O próprio Musil era filho único. Mais jovem e menor que seus colegas de escola, cultivava uma força física que conser- varia pela vida inteira. A atmosfera em casa parece ter sido tem- pestuosa; a pedido da mãe - e, diga-se de passagem, com o consentimento entusiástico do próprio menino -, ele foi in- ternado aos onze anos numa Unterrealschule militar nos arredo- res de Viena. De lá transferiu-se em 1894 para a Oberrealschule em Mahrisch-Weisskirchen perto de Brno, capital da Morávia, 5° 51
  • 26. onde passou três anos. Essa escola tornou-se o modelo para o cantou-se com MaIlarmé e Maeterlinck, rejeitando o credo na- "W." de O jovem Torless. turalista segundo o qual a obra de arte precisava refletir fiel- Decidindo não seguir uma carreira militar, aos dezessete mente ("objetivamente") a realidade que já existia. Buscou apoio anos Musil ingressou na Technische Hochschule em Brno, onde filosófico em Kant, Schopenhauer e (especialmente) Nietzsche. se entregou a intensos estudos de engenharia, desdenhando as Em seus diários, criou para si mesmo a persona artística de "Mon- humanidades e o tipo de estudante atraído por elas. Seus diários sieur le vivisecteur", um homem dado a explorar os estados de da época revelam-no preocupado com o sexo, mas de um modo consciência e as relações afetivas com um bisturi intelectual. Prá- incomumente consciente. Relutava em aceitar o papel sexual ticava imparcialmente suas técnicas de vivissecção, em si mes- que os costumes da sua classe prescreviam para os rapazes, a sa- mo e nos seus familiares e amigos. ber, que espalhasse a sua semente com prostitutas e jovens tra- Apesar de suas emergentes aspirações literárias, Musil con- balhadoras até que chegasse a hora de um casamento adequado. tinuava a preparar-se para a carreira de engenheiro. Passou com Embarcou numa relação com uma moça tcheca chamada Her- distinção nos exames e mudou-se para Stuttgart como assisten- ma Dietz que trabalhara na casa da sua avó; enfrentando a resis- te de pesquisa na prestigiosa TechnÍsche HochsGlwle. Mas o tra- tência da mãe, e correndo o risco de perder seus amigos, insta- balho científico começou a entediá-Io. Enquanto ainda escrevia lou-se com Herma primeiro em Brno e depois em Berlim. artigos técnicos e trabalhava num aparelho que inventara para Ligando-se a Herma, Musil deu um passo importante no ser usado em experimentos de óptica (mais tarde patentearia o sentido de romper o magnetismo erótico que sua mãe exercia instrumento, na esperança não muito realista de conseguir viver sobre ele. Por alguns anos, Herma continuou a ser o foco da sua do que a invenção rendesse), embarcou num primeiro roman- vida emocional. A relação do casal - mais objetiva da parte de ce, O jovem Torless. Começou também a preparar o terreno pa- Herma, mais complexa e ambivalente da parte de Robert - se- ra uma guinada acadêmica. Em 1903, abandonou formalmen- ria mais tarde a base para o conto "Tonka", publicado na coletâ- te a engenharia e partiu para Berlim disposto a estudar filosofia nea Três mulheres (1924). e psicologia. Em conteúdo intelectual, a educação que Musil recebeu O jovem Torless ficou pronto no início de 1905. Depois que em suas escolas militares foi decididamente inferior à oferecida foi recusado por três editoras, Musil encaminhou o original pa- nos Cymnasia clássicos. Ainda em Brno, começou a frequentar ra ser comentado pelo respeitado crítico berlinense Alfred Kerr. concertos e conferências sobre literatura. O que começou como Kerr deu apoio a Musil, sugeriu revisões e resenhou o livro em um projeto de alcançar seus contemporâneos de melhor forma- termos entusiasmados quando foi lançado, em 1906. Apesar do ção logo se transformou numa absorvente aventura intelectual. sucesso de O jovem Torless, entretanto, e apesar da marca que Os anos de 1898 a 1902 marcam uma primeira fase de aprendi- começava a deixar nos círculos artísticos de Berlim, Musil sen- zado literário. O jovem Musil se identificava especialmente com tia-se inseguro demais quanto ao seu talento para se comprome- os escritores e intelectuais da geração que florescera na década ter com toda uma vida de produção literária. Continuou seus es- de 1890 e tanto contribuíra para o movimento modernista. En- tudos de filosofia, obtendo o grau de doutor em 1908. 52 53
  • 27. A essa altura já conhecera Martha Marcovaldi, mulher de ramente por seu editor e uma confraria de admiradores, Musil origem judaica sete anos mais velha que ele, separada do segun- dedicou todas as suas energias a O homem sem qualidades. do marido. Com Martha - ela própria artista e intelectual, to- O primeiro volume apareceu em 1930, sendo recebido com talmente au courant do feminismo da época - Musil estabele- tamanho entusiasmo tanto na Áustria quanto na Alemanha que ceu uma relação íntima e eroticamente intensa que durou pelo Musil - no geral um homem antes modesto - achou que po- resto da sua vida. Os dois se casaram em 1911 e fixaram resi- deria ganhar o Prêmio Nobel. Já o segundo volume foi mais dência em Viena, onde Musil aceitou a posição de arquivista na difícil de escrever. Convencido pelas lisonjas do seu editor, mas Technische Hochschule. cheio de apreensões, permitiu que um fragmento extenso fosse No mesmo ano, Musil publicou um segundo livro, Uniões, publicado em 1933. Em segredo, começou a temer jamais con- contendo as novelas "O aperfeiçoamento de um amor" e "A ten- seguir chegar ao fim da obra. A mudança de volta para o ambiente intelectualmente mais tação da silenciosa Veronika". Essas obras foram compostas com animado de Berlim logo foi interrompida pela ascensão dos na- uma obsessividade cuja base era obscura para o autor; embo- zistas ao poder. Musil e a mulher transferiram-se de volta para ra curtas, sua composição e revisão ocuparam Musil, dia e noite, Viena, onde encontraram uma atmosfera carregada de maus por dois anos e meio. presságios. Musil começou a sofrer de depressão e problemas Na guerra de 1914-8, Musil serviu com distinção na frente de saúde generalizados. Em seguida, a Áustria foi absorvida pelo italiana. Depois da guerra, perturbado pela sensação de que os Terceiro Reich em 1938, e os Musil se retiraram para a Suíça, melhores anos da sua vida criativa lhe escapavam, esboçou nada que deveria ser apenas uma escala intermediária a caminho de menos do que vinte novas obras, entre elas uma série de roman- um refúgio que lhes fora oferecido pela filha de Martha nos Es- ces satíricos. Uma peça teatral, Die Schwéirmer [Os visionários, tados Unidos. A entrada deste país na guerra, todavia, pôs fim a 1921], e a coletânea de contos Três mulheres conquistaram prê- todo o plano. Juntamente com dezenas de milhares de outros mios. Foi eleito vice-presidente do ramo austríaco da Organiza- exilados, Musil e a mulher ficaram sem saída. ção dos Escritores Alemães. Apesar de não amplamente lido, in- "A Suíça é famosa pela liberdade que lá se pode ter", obser- gressara no mapa literário. vou Bertolt Brecht. "O problema é que para tanto você precisa Em pouco tempo, os romances satíricos que planejara fo- ser turista." O mito da Suíça como país do asilo foi muito preju- ram abandonados ou absorvidos por um projeto mestre: um ro- dicado pela maneira como o país tratou os refugiados durante mance em que a camada mais alta da sociedade vienense, in- a Segunda Guerra Mundial, quando sua prioridade principal, diferente às nuvens negras que se acumulavam no horizonte, acima de qualquer consideração humanitária, era evitar qualquer pondera com todo o vagar sobre a forma que deve assumir sua antagonismo com a Alemanha. Assinalando que suas obras ti- próxima festa autocongratulatória. O romance tinha a intenção nham sido banidas na Alemanha e na Áustria, Musil pediu asilo de apresentar uma visão "grotesca" (nas palavras de Musil) da argumentando que não havia outro lugar no mundo de língua Áustria às vésperas da Guerra Mundial.' Sustentado financei- alemã onde pudesse ganhar a vida como escritor. Embora lhe 54 55
  • 28. permitissem que ficasse residindo no país, ele nunca se sentiu políticas herdadas do Iluminismo não eram adequadas à nova em casa na Suíça. Era pouco conhecido no país; não tinha ta- civilização de massa que vinha crescendo nas cidades. lento para a autopromoção; e era desdenhado pelo mecenato da Para Musil, o traço mais obstinadamente retrógrado da cul- Suíça. Ele e a mulher sobreviviam graças à generosidade de uns tura alemã (da qual a cultura austríaca fazia parte - ele não le- poucos outros. "Hoje eles nos ignoram. Mas depois que morrer- vava a sério a ideia de uma cultura austríaca autônoma) era sua mos irão se gabar de nos ter dado asilo", declarou amargamente tendência a manter o intelecto e o sentimento em compartimen- Musil a Ignazio Silone. Sentia-se deprimido demais para avan- tos separados, para em seguida entregar-se à estupidez irrefletida çar em seu romance. Em 1942, aos 61 anos de idade, depois de das emoções. Encontrava mais claramente essa divisão entre os uma sessão de exercícios vigorosos numa cama elástica, teve um cientistas com quem trabalhou, homens de intelecto levando derrame e morreu.2 uma vida emocional a seu ver rudimentar. A educação dos sen- "Ele achava que ainda tinha muitos anos pela frente", dis- tidos por um refinamento da vida erótica lhe parecia conter al- se a viúva. "O pior é que um volume inacreditável de material guma promessa de elevar a sociedade a um plano ético mais - esboços, anotações, aforismos, capítulos de romance, diá- alto. Ele deplorava os papéis rígidos que se estendiam inclusive rios - fica para trás, e só ele poderia organizar esses escritos." ao território da intimidade sexual, impostos tanto às mulheres Ante a recusa de editoras comerciais, a viúva publicou por sua quanto aos homens pelos costumes burgueses. "Nações inteiras conta um terceiro volume do romance, constituído de fragmen- da alma se perderam e naufragaram em consequência disso", escreveu ele.4 tos numa ordem não muito rigorosa.3 Devido à concentração que exibe em sua obra, a partir de Musil pertenceu a uma geração de intelectuais de fala ale- O jovem Torless, nos funcionamentos mais obscuros do desejo sexual, Musil costuma ser visto como um freudiano. Mas ele não mã que viveu especialmente de perto as etapas sucessivas do des- reconhecia essa dívida. Não gostava da moda da psicanálise, re- moronamento da ordem europeia entre 1890 e 1939: primeiro, a provava sua reivindicação de ampla abrangência e seus padrões crise premonitória nas artes, encarnada na primeira onda do mo- nada científicos de argumentação e prova. Preferia a psicologia vimento modernista; em seguida, a guerra de 1914-8 e as revolu- da variedade que, ironicamente, qualificava de "rasa" - ou seja, ções propiciadas pela guerra, destruindo instituições tanto tra- a psicologia empírica e experimental.5 dicionais quanto liberais; e finalmente os anos desgovernados do Tanto Musil quanto Freud na verdade faziam parte de um pós-guerra, culminando com a tomada do poder pelo fascismo. movimento maior do pensamento europeu. Ambos se mostra- O homem sem qualidades - um livro até certo ponto ultrapassa- vam céticos quanto ao poder da razão para servir de guia à con- do pela própria história enquanto era escrito - propunha-se a duta humana; ambos formularam diagnósticos sobre a civilização diagnosticar esse colapso, que Musil cada vez mais julgava ter-se centro-europeia do fin-de-siecle e seus males; e ambos decidiram originado na incapacidade demonstrada pela elite liberal euro- explorar o continente sombrio da psique feminina. Para Musil, peia em reconhecer, depois de 1870, que as doutrinas sociais e Freud era antes um rival que uma referência. 56 57
  • 29. o guia preferido de Musil no território do inconsciente era abrem em nós. O único vislumbre que nos é concedido de Tür- Nietzsche. Em Nietzsche Musil encontrava uma abordagem das less mais adiante na vida sugere que ele não se transformou ne- questões éticas que ia além de uma simples polarização entre o cessariamente num homem mais sensato ou melhor, e sim ape- bem e o mal; o reconhecimento de que a arte pode ser ela pró- nas num homem mais prudente. pria uma forma de exploração intelectual; e um modo de filo- Mais perto do final da sua vida, Musil negava que O jovem sofar, mais aforístico do que sistemático, que convinha perfei- Torless tratasse de experiências da sua própria juventude ou mes- tamente ao seu temperamento cético. A tradição do realismo mo da adolescência em geral. Ainda assim, as figuras em que fo- ficcional nunca fora forte na Alemanha; à medida que Musil se ram inspirados Basini e seus algozes Beineberg e Reiting podem desenvolvia como escritor, sua ficção se tornava cada vez mais ser facilmente identificadas em meio aos rapazes que Musil co- ensaística na estrutura, fazendo acenos apenas precários na dire- nhecera em Mahrisch-Weisskirchen, enquanto uma das confu- ção da narrativa realista. sões mais profundas de Türless - quanto à natureza dos seus sen- timentos em relação à própria mãe - é espelhada nos diários da Die Verwirntngen des Zoglings Torless (Verwirrungen são juventude do próprio Musil. A distância entre o sangfroid da apa- perplexidades, estados perturbados da mente; Zogling é um ter- rência externa de Türless e as forças que fervilham dentro dele, mo bastante formal, com ressonâncias de classe alta, para um entre a operação bem calibrada da escola durante o dia e as sinis- aluno de internato) se constrói em torno de uma história de vio- tras flagelações noturnas do sótão, tem seu paralelo na distância lência sádica numa academia de rapazes da elite. Mais especi- entre a fachada burguesa bem-arrumada apresentada pelos pais ficamente, é o relato de uma crise que um dos rapazes, Türless de Türless e o que o filho, consternado, sabe que deve ocorrer (seu primeiro nome jamais é revelado), atravessa em decorrên- em particular. cia de ter participado da promoção deliberada e destrutiva do A metáfora principal que Musil utiliza para capturar essas colapso de um colega, Basini, que tem a infelicidade de ser sur- incomensurabilidades (o que o próprio Türless chama de "in- preendido no ato de roubar. A exploração da crise interior de comparabilidades") vem da matemática. Entre os números intei- Türless, crise moral, psicológica e em última instância epistemo- ros e as frações de números inteiros - que reunidos constituem lógica, apresentada em grande parte a partir da consciência do próprio rapaz, constitui a substância do romance. os chamados números racionais -, e de algum modo entrelaça- No final, o próprio Türless tem um colapso e é discretamen- dos com eles pelas operações do raciocínio matemático, existem te removido da escola. Olhando em retrospecto, ele sente que os infinitamente mais numerosos números irracionais, núme- conseguiu resistir à tormenta e sair inteiro. Mas não fica claro ros que não podem ser representados como números inteiros. Os até que ponto devemos confiar em sua autoavaliação, pois ela adultos, tendo à frente os professores de Türless, parecem não ter parece basear-se na decisão de que a única maneira de sair-se a menor dificuldade em admitir a coabitação do racional com o bem no mundo é evitar o exame muito próximo dos abismos que irracional, mas para Türless esta última dimensão encontra-se as experiências extremas, especialmente as experiências sexuais, vertiginosamente fora do seu alcance. 58 59
  • 30. Concluindo o seu depoimento no inquérito sobre o caso caminho, será que a procura do artista deve incluir dar vazão a Basini, Türless afirma ter encontrado uma solução para a sua seus impulsos mais sombrios, para ver aonde o levam? A arte sem- confusão mental ("eu sei que na verdade estava enganado") e ter pre vale mais que a moral? A obra da juventude de Musil nos chegado a salvo no início da vida de jovem adulto ("Não tenho propõe essa questão, mas só responde da maneira mais incerta. mais medo de nada. E sei: as coisas são as coisas, e continuarão Musil nunca chegou a renegar O jovem Torless. Ao contrá- a sê-lo para sempre"). Os professores reunidos passam longe de rio, continuava a avaliar com uma surpresa favorável o que con- compreender o que ele tenta dizer-lhes: ou nunca tiveram expe- seguira realizar, inclusive no plano técnico, quando tinha uma riências como a dele ou então as reprimiram com energia. Tür- idade tão tenra. Sua metáfora principal, com sua decorrência de less é fora do comum na meticulosidade com que enfrenta _ que o nosso mundo real, racional e cotidiano não tem bases reais ou é levado a enfrentar - suas trevas interiores; achemos nós ou e racionais, estende-se a O homem sem qualidades, em que Mu- não que ele se trai ao adotar mais tarde a pose do esteta absorto sil compara o espírito em que os irmãos Ulrich e Agathe em- em si mesmo, sem dúvida ele encarna, em sua juventude con- preendem sua "viagem ao limite do possível", uma arriscada fusa (confusão, Verwirnmg, é uma palavra que Musil emprega exploração do limite até onde podem ir os sentimentos que se sempre com ironia), a figura do artista dos tempos modernos, vi- encontra no cerne do livro, à "liberdade com que a matemáti- sitando os rincões mais distantes da experiência e de lá nos tra- ca às vezes recorre ao absurdo para chegará verdade"J A obra de zendo seu relato.6 Musil, do começo ao fim, é contínua: o registro cada vez mais A despeito do amoralismo que faz de O jovem Torless um evoluído do confronto entre um homem de sensibilidade suma- produto evidente da sua época, as questões morais suscitadas por mente inteligente e a época que o viu nascer, tempos que ele sua história permanecem conosco. Beineberg, o mais intelec- classifica, em tom amargo mas justo, de "malditos".8 tualmente inclinado dos colegas de Türless, tem uma justifica- tiva nitzschiana em versão vulgar, protofascista, para o tormento (2001) infligido a Basini: eles três pertencem a uma nova geração, a que as regras antigas não se aplicam mais ("a alma está mudada"); quanto à compaixão, ela é um dos impulsos mais rasteiros do ho- mem, e suas imposições precisam ser suplantadas. Türless não é Beineberg. Ainda assim, sua perversidade peculiar - a de fazer Basini falar sobre o que fizeram com ele - não é nada moral- mente superior às chibatadas aplicadas pelos outros dois; en- quanto no ato homossexual que pratica com Basini ele faz o pos- sível para não demonstrar qualquer ternura para com o garoto. Num mundo em que não existem mais regras ditadas por Deus, em que agora é ao filósofo-artista que cabe mostrar-nos o 60 61
  • 31. 4· Walter Benjamin, Passagens o que estaria na mala, e onde foi parar, só podemos espe- cular. Gershom Scholem, amigo de Benjamin, sugere que a obra perdida era a versão mais recente do ainda inacabado Passa- gen-Werk, conhecido em inglês como The Arcades Project.'" ("Para os grandes escritores", escreveu Benjamin, "as obras aca- badas pesam menos que os fragmentos em que trabalham por toda a vida.") Mas foi devido a seu esforço heroico de salvar seu manuscrito das fogueiras do fascismo e transportá-Io para o que via como a segurança da Espanha e, mais tarde, dos Estados Unidos, que Benjamin se transformou num ícone do intelectual do nosso tempo.2 Claro que a história acaba bem. Uma cópia do manuscrito das Passagens deixada em Paris fora guardada na Bibliotheque Nationale por Georges Bataille, amigo de Benjamin. Recupera- A história tornou-se tão conhecida que praticamente não do ao final da guerra, foi publicado em 1982 nas condições em precisa ser lembrada. O cenário é a fronteira franco-espanhola, a que estava, ou seja, em alemão com grandes trechos em fran- data, 1940. Walter Benjamin, em fuga da França ocupada, pro- cês. E agora a magnum opus de Benjamin nos chega em tradu- cura a mulher de um certo Fittko, que conhecera num campo de ção integral para o inglês, feita por Howard Eiland e Kevin Mc- refugiados. Pelo que entendeu, conta ele, Frau Fittko saberá con- Laughlin, e estamos finalmente em posição de perguntar: por duzir a ele e a seus companheiros, através dos Pireneus, até a Es- que tanta preocupação com um tratado sobre o comércio lojista panha neutra. Partindo com o grupo à procura da rota mais ade- na Paris do século XIX? quada, Frau Fittko percebe que Benjamin carrega consigo uma mala pesada. Será a mala realmente necessária, pergunta ela? Walter Benjamin nasceu em Berlim em 1892, numa família Contém um original, ele responde. "Não posso correr o risco de de judeus assimilados. Seu pai era um bem-sucedido leiloeiro de perdê-Ia. Precisa ser salvo... É bem mais importante do que eu.'" arte com investimentos no mercado de imóveis; os Benjamin No dia seguinte, eles atravessam as montanhas. Benjamin, eram, por praticamente qualquer padrão, bastante ricos. Ao final que tem o coração fraco, precisa fazer pausas de poucos em pou- de uma infância doentia e superprotegida, Benjamin foi enviado, cos minutos. Na fronteira, são todos detidos. Seus papéis não aos treze anos, para um internato progressista no interior, onde estão em ordem, diz a polícia espanhola; precisam voltar para a caiu sob a influência de um dos diretores, Gustav Wyneken. Por França. Em desespero, Benjamin toma uma dose letal de morfi- alguns anos depois de sair da escola ainda permaneceu ativo no na. A polícia faz uma lista dos pertences do falecido, e essa rela- ção não faz qualquer referência a um manuscrito. * Passagens. Trad. Irene Aron. Belo Horizonte: UFMG, 2006. (N. E.) 62 63
  • 32. movimento juvenil de Wyneken, baseado num credo antiautori- cante. "Toda vez que senti um grande amor, sofri uma mudan- tário e de volta à natureza; só romperia com ele em 1914, quando ça tão fundamental que me vi perplexo", escreveu Benjamin em Wyneken declarou seu apoio à guerra. retrospecto. "Um amor autêntico sempre me fazia ficar parecido Em 1912 Benjamin matriculou-se como estudante de filolo- com a mulher que eu amava."3 Nesse caso, a transformação acar- gia na Universidade de Friburgo. No entanto, não achou o am- retou uma reorientação política. "O rumo das pessoas pensantes biente intelectual de lá a seu gosto, e ingressou na militância em e progressistas em pleno uso dos seus sentidos leva a Moscou, e favor de uma reforma educacional. Quando começou a guerra, não à Palestina", declarou-lhe Asja Lacis em tom peremptório.4 evitou o serviço militar primeiro simulando problemas médicos Todos os vestígios de idealismo em seu pensamento, para não e depois mudando-se para a Suíça neutra. Lá permaneceu até falar do seu flerte com o sionismo, precisavam ser postos de lado. 1920, ensinando filosofia e preparando uma dissertação de dou- Seu dileto amigo Scholem já tinha emigrado para a Palestina, torado para a Universidade de Berna. Sua mulher se queixava da falta de vida social. acreditando que Benjamin viria em seguida. Benjamin arranjou uma desculpa para não ir, e continuou inventando novas descul- Benjamin sentia-se tão apegado às universidades, assinalou pas até o fim. seu amigo Theodor Adorno, quanto Kafka às companhias de se- O primeiro fruto da ligação entre Benjamin e Asja Lacis foi guro. Apesar de suas desconfianças, porém, Benjamin cumpriu um artigo a quatro mãos para o Frankfurter Zeítung. Tratando todos os rituais necessários para obter a Habílítatíon (o douto- aparentemente da cidade de Nápoles, num nível mais profundo rado superior) que lhe permitiria tornar-se catedrático, subme- fala de um ambiente urbano de tipo diferente, que o intelectual tendo sua dissertação, sobre o teatro alemão da época barroca, à berlinense explora pela primeira vez: um labirinto de ruas onde Universidade de Frankfurt, em 1925. Surpreendentemente, a dis- sertação não foi aceita. Ficou a meio caminho das cadeiras de as casas não têm número e as fronteiras entre a vida particular e literatura e de filosofia, e faltou a Benjamin um patrono acadê- . a vida pública são porosas. mico disposto a encaminhar seu caso. (Quando foi publicada em Em 1926, Benjamin viajou até Moscou para um encontro 1928, a dissertação foi tratada com atenção e respeito pela crítica, com Asja Lacis, que não o recebeu de muito boa vontade (es- apesar das queixas de Benjamin afirmando o contrário.) tava envolvida com outro homem); em seu registro da visita, Com o fracasso dos seus planos acadêmicos, Benjamin en- Benjamin fala de sua própria infelicidade, além de especular cetou uma carreira de tradutor, radialista e jornalista free-lancer. se deveria ou não se filiar ao Partido Comunista e submeter-se Entre os trabalhos que lhe encomendaram estava uma tradução à respectiva linha partidária. Dois anos mais tarde, ele e Asja se da Recherche de Proust; completou três dos sete volumes. reencontraram por algum tempo em Berlim. Moravam juntos, e juntos compareciam às reuniões da Liga dos Escritores Proletá- Em 1924, Benjamin visitou Capri, na época a estação de fé- rios-Revolucionários. A ligação entre os dois acabou por preci- rias preferida dos intelectuais alemães. Lá conheceu Asja Lacis, pitar um processo de divórcio em que Benjamin se comportaria diretora teatrallituana e comunista militante. O encontro foi mar- com notável crueldade em relação à sua mulher. 64 65
  • 33. Na viagem a Moscou, Benjamin manteve um diário que Por muitos anos depois de conhecer Lacis, Benjamin ainda mais tarde revisaria para publicação. Benjamin não falava rus- repetia as verdades comunistas - "a burguesia [...] está conde- so. E em vez de recorrer a intérpretes, lançava mão do que mais nada ao declínio devido às suas contradições internas, que se tarde chamaria de seu "método fisionômico", lendo Moscou de tornarão fatais com o desenvolvimento" - sem na verdade ja- fora para dentro, evitando qualquer abstração ou juízo, apresen- mais ter lido Marx.6 "Burguês" era a ofensa que reservava a um tando a cidade de tal maneira que "toda a factualidade já é teo- determinado tipo de espírito - materialista, desprovido de curio- ria" (a frase vem de Goethe).5 sidade, egoísta, puritano e, acima de tudo, conformado na satis- Algumas das afirmações de Benjamin sobre a experiência fação consigo mesmo - que lhe despertava uma hostilidade "mundialmente histórica" que viu em curso na União Soviética visceral. Proclamar-se comunista era uma escolha de lado, mo- - por exemplo, sua ideia de que com uma penada o Partido ti- ral e histórica, contra a burguesia e suas próprias origens burgue- nha de fato rompido a ligação entre o dinheiro e o poder - ho- sas. "Uma coisa [... ] nunca será plenamente resolvida: termos je soam ingênuas. Ainda assim, seu olho permanece aguçado. falhado em abandonar nossos pais", escreve ele em Rua de mão Muitos dos novos moscovitas ainda eram camponeses, observa única, a coletânea de anotações de diários, sonhos, aforismos, mi- ele, levando uma vida de aldeia subordinada a um ritmo de al- niensaios e fragmentos satíricos, inclusive observações corrosivas deia; as distinções de classe podem ter sido abolidas, mas no in- sobre a Alemanha de Weimar, com que se proclamou um inte- terior do Partido desenvolvia-se um novo sistema de castas. Uma lectual independente em 1928. (V.l, p. 446) Não ter abandonado cena de um mercado de rua captura a posição da religião, re- em tempo a casa paterna significava uma condenação a passar o duzida à humildade: um ícone à venda ladeado por dois retra- resto da vida evitando Emil e Paula Benjamin: em sua reação à tos de Lênin, "como um prisioneiro entre dois policiais". (v. 2, ansiedade dos seus pais em se assimilarem à classe média alemã, pp. 32,26) Benjamin lembra muitos outros judeus de fala alemã de sua ge- Embora Asja Lacis seja uma constante presença coadju- ração, entre eles Franz Kafka. O que incomodava os amigos de vante no "Diário de Moscou", e embora Benjamin sugira que as Walter Benjamin em seu marxismo era que parecia haver nele relações sexuais entre eles eram problemáticas, quase não conse- algo de forçado, de puramente reativo. guimos formar uma ideia da presença física da mulher. Como Os primeiros textos de Benjamin marcados pelo discurso de escritor, Benjamin não tinha talento para descrever as outras esquerda são uma leitura deprimente. Existe uma deriva para o pessoas. Nos escritos da própria Lacis encontramos uma impres- que só pode ser definido como estupidez deliberada ao longo das são muito mais nítida de Benjamin: seus óculos comparados a rapsódias que compõe sobre Lênin (cujas cartas teriam "a doçu- pequenos refletores, suas mãos desajeitadas. ra de uma grande epopeia", diz Benjamin num texto que não foi republicado pelos editores de Harvard), ou então a repetição dos Pelo resto da vida, Benjamin se diria comunista ou sim- terríveis eufemismos do Partido: "O comunismo não é radical. patizante. Mas quão profunda terá sido sua ligação com o co- Por isso, não tem a intenção de simplesmente abolir as relações munismo? familiares. Limita-se a submetê-Ias à prova a fim de determinar 66 67
  • 34. quanto podem ser transformadas. E especula: poderá a família reta" com o "progressismo" da técnica, e apelar mais uma vez à ser desmontada, de maneira que seus componentes possam ser evocação dos encantos da engenharia: o escritor, tanto quanto o socialmente reaproveitados?"J engenheiro, é um especialista técnico e assim precisa ser ouvido Essas palavras saíram da crítica a uma peça de Bertolt Brecht, nas questões técnico-literárias. (v. 2, pp. 769, 770) que Benjamin conheceu por intermédio de Lacis e cujo "pensa- Uma argumentação rudimentar a esse ponto não era fácil mento em bruto", um pensamento despojado dos ornamentos para Benjamin. Será que sua decisão de seguir a linha do Partido burgueses, atraiu Benjamin por algum tempo. "Esta rua tem o não lhe causava certo desconforto, na mesma época em que a nome de rua Asja Lacis por causa daquela que, como uma en- perseguição de Stálin aos artistas estava no auge? (A própria Asja genheira, abriu-a através do autor", diz a dedicatória de Rua de Lacis se tornaria uma das vítimas de Stálin, passando anos da sua mão única. A comparação tenciona funcionar como um elogio. vida num campo de trabalho.) Um texto curto escrito no mesmo O engenheiro é o homem ou a mulher do futuro, aquele que, ano, 1934, pode nos dar uma pista. Aqui Benjamin escarnece dos impaciente diante da parolagem excessiva, armado do conhe- intelectuais que "transformam em ponto de honra permanecer íntegros, até o fim, em todas as questões", recusando-se a enten- cimento prático, age de maneira decisiva transformando a paisa- der que, a fim de obter sucesso, precisam apresentar rostos di- gem. (Stálin também admirava os engenheiros. E acreditava que ferentes a diferentes públicos. Eles são, compara ele, como um os escritores deviam ser engenheiros da alma humana, encarre- açougueiro que se recusasse a desmanchar uma carcaça, fazen- gados de "reciclar" a h umanidade de dentro para fora.) do questão de só vendê-Ia numa única peça. (v. 2, p. 743) Dos escritos mais conhecidos de Benjamin, "O autor como Como devemos entender esse texto? Estará Benjamin lou- produtor", composto em 1934 como discurso para o Instituto de vando em tom irônico uma integridade intelectual antiquada? Estudos sobre o Fascismo em Paris, mostra mais claramente a Estará apresentando uma confissão velada de que ele próprio, influência de Brecht. Em questão, a surrada discussão da esté- Walter Benjamin, não é quem pode parecer? Estará examinan- tica marxista: o que é mais importante, a forma ou o conteúdo? do a questão prática, embora amarga, das pressões vividas pelo Benjamin propõe que uma obra literária só pode ser "politica- escritor? Uma carta a Scholem (a quem nem sempre, entretan- mente correta" caso também seja "literariamente correta". "Po- to, costuma contar toda a verdade) sugere a última leitura. Nela liticamente correto" é, claro, um mero chavão; na prática, signifi- Benjamin defende seu comunismo como "a tentativa óbvia e de- cava que estava de acordo com a linha do Partido. "O autor como liberada de um homem, que se vê completa ou quase comple- produtor" é uma defesa da ala esquerda da vanguarda modernis- tamente privado de qualquer meio de produção, de proclamar ta, tipificada para Benjamin pelos surrealistas, contrários à linha seus direitos a ele". Noutras palavras, ele adere ao Partido pelo literária do Partido, com sua preferência por histórias realistas mesmo motivo que deve impelir qualquer proletário: porque o de compreensão fácil impregnadas de enfática mensagem pro- gesto atende a seus interesses materiais. (v. 2, p. 853) gressista. Para defender sua visão, Benjamin se sente obrigado a apontar o hoje esquecido romancista soviético Serguei Tretiakov No momento em que os nazistas chegam ao poder, mui- como um exemplo da convergência da "tendência política cor- tos dos companheiros de Benjamin, entre eles Brecht, já tinham 68 69
  • 35. interpretado corretamente os sinais e deixado a Alemanha. Ben- mo seus líderes lhes pediam para ser. O fascismo combinava a jamin, que já se sentia de qualquer maneira deslocado na Ale- força da grande arte do passado - o que Benjamin chama de manha havia muitos anos, e que viajava para passar um bom "arte aurática" - com o poder multiplicador dos novos meios tempo na França ou em Ibiza sempre que podia, logo partiu de comunicação "pós-auráticos", acima de tudo o cinema, para também. (Seu irmão mais moço, Georg, foi menos prudente: criar os seus novos cidadãos fascistas. Para os alemães comuns, a preso por atividades políticas em 1934, morreu em Mauthausen única identidade disponível, aquela com que se deparavam com em 1942.) Instalou-se em Paris, onde levava uma existência pre- insistência nas telas, era uma identidade fascista, com figurinos cária contribuindo para jornais alemães sob uma série de pseu- fascistas e posturas fascistas de dominação ou obediência. dônimos alemães de aparência ariana (DetlefHolz, K. A. Stemp- A análise de Benjamin do fascismo como teatro suscita vá- flinger), ou então vivendo de favores. Com o início da guerra, rias questões. Estará de fato a política enquanto espetáculo no foi detido como estrangeiro inimigo. Libertado graças aos esfor- cerne do fascismo alemão, em lugar do ressentimento e dos so- ços do PEN clube da França, fez arranjos imediatos para partir nhos de revanche histórica? Se Nuremberg era a política este- para os Estados Unidos, e em seguida encetou sua viagem fatal ticizada, não seriam os grandes desfiles de Primeiro de Maio e rumo à fronteira espanhola. outras tentativas de espetáculo organizadas por Stálin formas As ideias mais aguçadas de Benjamin sobre o fascismo, o equivalentes de esteticização da política? Se a genial idade do fas- inimigo que o privou de sua casa, da carreira e em última instân- cismo estava em apagar a linha que separa a política dos meios de cia da própria vida, tratam do meio usado pelo movimento pa- comunicação, onde estará o elemento fascista na política condu- ra convencer o povo alemão: converter-se em teatro. Essas ideias zida pelos meios de comunicação de massa das democracias oci- aparecem com mais plenitude em "A obra de arte na era de sua dentais? Não existem variedades diferentes de política estética? reprodutibilidade técnica" (1936), mas já eram anunciadas des- Menos questionável que a sua análise do fascismo é o que de 1930, na resenha de um livro organizado por Ernst Jünger. Benjamin tem a dizer sobre o cinema. Sua avaliação de que o É lugar-comum observar que os grandes comícios de Hitler cinema tem um potencial de ampliar a experiência é profético: em Nuremberg, com sua mescla de declamação, música hipnó-. "O cinema [...] derrubou as paredes do [nosso] mundo-presídio tica, coreografia de massas e iluminação dramática, tinham como com a dinamite do décimo de segundo, e agora, em meio a seus modelo as montagens de Wagner em Bayreuth. O que é original escombros e ruínas espalhados por uma vasta área, podemos via- nos textos de Benjamin é sua afirmação de que a política apre- jar calma e aventurosamente".8 E essa visão é surpreendente por- sentada como um teatro grandioso, e não como discurso e de- que já em 1936 sua teoria do cinema estava ultrapassada. Ele bate, não se limitava a explicar o fascínio do fascismo, mas era o atribuía um valor excessivo à montagem, no que concordava fascismo em essência. com Serguei Eisenstein (e só com ele), subestimando a rapidez Tanto nos filmes de Leni Riefenstahl quanto nos cinejornais com que as pIa teias do cinema passariam a dominar uma gra- exibidos em todos os cinemas do país, as massas alemãs podiam mática mais extensa da narrativa cinematográfica. E não fazia contemplar aquelas imagens em que elas próprias figuravam co- qualquer menção ao prazer visual: para ele, o cinema consistia 7° 71
  • 36. em assistir a montagens surpreendentes que, pelo impacto, des- Em "A obra de arte", a ideia de aura é estendida, de manei- pertariam novas maneiras de ver as coisas (e aqui, novamente, ra bastante descuidada, das antigas fotografias às obras de arte pode-se perceber claramente a influência de Brecht). em geral. O fim da aura, diz Benjamin, será mais que compen- O conceito-chave de Benjamin (embora ele sugira em seu sado pelo potencial emancipatório das novas tecnologias de re- diário que tenha sido criado na verdade pela livreira e editora produção. Será o cinema a substituir a arte aurática. Adrienne Monnier) para descrever o que sucede com a obra de Mesmo os amigos de Benjamin acharam a ideia da aura arte na era de sua reprodutibilidade técnica (principalmente a difícil de aceitar em sua versão ampliada. Brecht, para quem era da câmera - Benjamin pouco fala da imprensa) é a "perda Benjamin explicou o conceito durante longas visitas à casa do da aura". Até meados do século XIX, diz ele, persistia uma rela- dramaturgo na Dinamarca, escreve o seguinte no seu diário: ção intersubjetiva de certo tipo entre a obra de arte e seu espec- "[Ben jamin] diz: quando você sente o olhar de alguém pousado tador: o espectador olhava e a obra de arte, por assim dizer, de- em você, mesmo que seja nas suas costas, você responde (!), e volvia o seu olhar. E era essa reciprocidade que clefinia a aura: a expectativa de que tudo que você contempla também olha "Perceber a aura de um fenômeno [significa] atribuir-lhe a capa- para você cria a aura [... ] tudo muito místico, apesar das suas cidade de, por sua vez, olhar para nós".9 Em torno da aura existe, atitudes antimÍsticas. E é assim que a abordagem materialista assim, algo de mágico, derivado de laços antigos, hoje em vias de é adaptada! É assustador".lO Outros amigos não se mostraram desaparição, entre a arte e o ritual religioso. mais entusiasmados. Benjamin fala pela primeira vez de aura em sua "Pequena Ao longo da década de 1930, Benjamin esforça-se para de- história da fotografia" (1931), em que tenta explicar por que (a seu senvolver uma definição devidamente materialista da aura e da ver) os primeiros retratos fotográficos que conhecemos - os in- perda da aura. O filme é "pós-aurático", diz ele, porque a câme- cunábulos da fotografia, por assim dizer - são dotados de uma ra, sendo um aparelho, não enxerga. (Uma afirmação questio- aura, que já se perdeu nas fotografias da geração seguinte. Uma nável: não há dúvida de que os atores reagem à câmera como se explicação que propõe para esse estado de coisas é a de que, à ela olhasse para eles.) Numa revisão posterior, Benjamin suge- medida que as emulsões fotográficas foram sendo aperfeiçoa-· re que o fim da aura pode ser situado no momento da história das e os tempos de exposição, reduzidos, o que se capturava nos em que as massas urbanas se tornaram tão numerosas que as pes- negativos deixou de ser a interioridade de um indivíduo que se preparava para ser retratado, mas um instante isolado da vida soas - os passantes - pararam de trocar olhares. Em Passagens, corrente do fotografado. Outra sugestão que ele faz é de que a ele vai além e transforma a perda da aura em parte de um de- primeira geração de fotógrafos tinha uma formação em artes plás- senvolvimento histórico mais amplo: a percepção desencanta- ticas, enquanto os das gerações seguintes eram meros artesãos. da de que a singularidade, inclusive a singularidade da obra de Outra ainda é de que alguma coisa teria acontecido com os re- arte tradicional, transformou-se em mercadoria como outra qual- tratados entre as décadas de 1840 e 1880, algo que teria a ver com quer. A indústria da moda, dedicada à fabricação de produtos o agrosseiramento da burguesia. artesanais únicos - que chama de "criações" - destinados a 72 73
  • 37. serem copiados e reproduzidos numa escala maciça, é quem mos- tremeados de reflexões acerca da natureza da autobiografia, e no tra aqui esse novo caminho. final trata mais das vicissitudes da memória - é forte a presen- Em pouco tempo, Benjamin moderaria seu otimismo quan- ça de Proust - que de fatos concretos ocorridos na infância de to ao potencial libertador da tecnologia. Em 1939, já comparava Benjamin. Ele recorre a uma metáfora arqueológica para expli- o ritmo do projetor de cinema ao ritmo da correia transportado- car por que se opõe à autobiografia como a narrativa de uma vi- ra ele uma fábrica. Mesmo o seu ensaio de 1936, "O narraelor", já da. O autobiógrafo deve olhar para si mesmo como um arqueó- mostra uma mudança em sua atitude. A memória é a principal logo, diz ele, cavando cada vez mais fundo nos mesmos poucos responsável pela preservação ela tradição, diz ele, e a narração de lugares, à procura dos restos sepultados do passado. histórias é sua principal forma de transmissão; mas o processo Ao lado do "Diário de Moscou" e da "Berliner Chronik", de privatização da vida que caracteriza a cultura moderna tende os volumes 1 e 2 contêm vários outros textos curtos autobiográfi- a mostrar-se fatal para as histórias assim contadas. Contar histó- cos: uma narrativa bastante literária de como ele foi abandona- rias teria sido artificialmente confinado aos romances, uma cria- do por uma amante; registros de suas experiências com o haxi- ção da tecnologia da impressão e da burguesia. xe; a transcrição de sonhos; fragmentos de diários (Benjamin se preocupava com o suicídio em 1931 e 1932); e um diário de Pa- Benjamin não se interessava especialmente pelo romance ris, trabalhado para publicação, incluindo a visita a um bordel enquanto gênero. A julgar por sua ficção, publicada nas Seleeted masculino frequentado por Proust. Entre as revelações mais sur- Wrítíngs [Obras escolhidas], de Harvard, não tinha um grande preendentes: uma admiração por Hemingway ("que nos ensina talento de narrador. Seus textos autobiográficos trazem momen- como pensar direito através da escrita correta") e uma antipatia tos intensos e descontínuos. Seus dois ensaios sobre Kafka, que por Flaubert (que acha "arquitetônico demais"). (v. 2, p. 472) podem ser proveitosamente complementados pela longa carta escrita a Scholem em 12 de junho de 1938, tratam Kafka antes Os fundamentos da filosofia da linguagem ele Benjamin fo- como professor e autor de parábolas do que como propriamente ram lançados ainda no início da sua carreira. Embora suas ideias um romancista. Mas a hostilidade mais persistente de Benjamin sobre a linguagem tenham permanecido notavelmente estáveis, reserva-se à história narrativa. "A história se decompõe em ima- seu interesse arrefeceu durante sua fase mais política, tornando gens, e não em narrativas", escreveu ele. A história narrativa nos a emergir apenas no final ela década de 1930, quando voltou a impõe a causalidade e a motivação externa; devia-se dar às coisas explorar o pensamento místico judaico. Seu ensaio fundamen- a oportunidade de falarem por si mesmas.H tal na área, "Sobre a linguagem enquanto tal e a linguagem do "Uma infância em Berlim em torno de 1900", o texto auto- homem", data de 1916. Aqui, acompanhando Schlegel e Nova- biográfico mais interessante de Benjamin, permaneceu inédi- lis, bem como o que aprendera com Scholem sobre o misticis- to durante a sua vida. Apesar de seu título, a "Berliner Chronik" mo judaico, Benjamin afirma que a palavra não é um signo, um [Crônica berlinense] que ele escrevera antes não se construía cro- substituto para outra coisa, mas o nome de uma releia. Em "A nologicamente, mas como uma montagem de fragmentos, en- tarefa do tradutor" (1921), ele tenta dar corpo à sua noção da 75 74
  • 38. Ideia, apelando para o exemplo de Mallarmé e de uma lingua- pondem ao mundo de acordo com ele. À medida que essa fa- gem poética liberada da sua função comunicativa. culdade mim ética foi-se deteriorando ao longo da história, a Não fica claro como essa concepção simbolista da lingua- linguagem escrita transformou-se no seu mais importante repo- gem pode reconciliar-se com o materialismo histórico posterior sitório. Daí o interesse constante de Benjamin pela grafologia, de Benjamin, mas este sempre afirmava que uma ponte podia o estudo da caligrafia como "movimento expressivo" do caráter. ser construída entre os dois, por mais "tensa e problemática" que (v. 2, p. 399) pudesse ser.12 Em seus ensaios literários da década de 1930, ele Em ensaios escritos em datas posteriores a 1933, Benjamin sugere que aparência essa ponte poderia ter. Em Proust, em Kaf- esboça uma teoria da linguagem baseada na mimese. A lingua- ka e nos surrealistas, diz ele, o mundo deixa de ter uma signifi- gem adâmica era onomatopaica, diz ele; os sinônimos em dife- cação no sentido "burguês" e recupera seu poder elementar e rentes línguas, embora possam não soar parecidos nem ter uma gestuaI. O mundo como gesto é "a forma suprema em que a ver- aparência semelhante (a teoria pretende funcionar tanto para a dade pode apresentar-se a nós numa época desprovida de dou- linguagem falada como para a escrita), teriam semelhanças "as- trina teológica" .1) sensoriais" ["nonsensuous"] com aquilo que significam, como Nos tempos de Adão, a palavra e o gesto de nomear eram a as teorias "místicas" ou "teológicas" da linguagem sempre reco- mesma coisa. De lá para Cé1, a linguagem teria sido submetida a nheceram. (v. 2, p. 696) Assim, as palavras pain, Brot e xleb, em- uma queda duradoura, de que BabeI foi apenas o primeiro está- bora diferentes na superfície, assemelham-se num nível mais gio. A tarefa da teologia é recuperar as palavras, em seu poder profundo na medida em que corporificam a Ideia de pão. (Con- mimético original, dos textos sagrados em que foram preser- vencer-nos de que essa sua afirmativa é profunda, e não uma vadas. A tarefa da crítica é substancialmente similar, pois as lin- guagens decaídas ainda podem, na totalidade de suas inten- simples inanidade, demanda o máximo dos poderes de Benja- ções, indicar-nos de que lado se encontra a linguagem pura. Daí min.) A linguagem, o desenvolvimento supremo da faculdade o paradoxo da "função do tradutor": que uma tradução possa mimética, traria em si um arquivo dessas semelhanças assenso- transformar-se em algo mais elevado do que seu original, na me- riais. E a leitura teria o potencial de se transformar numa espécie dida em que aponta para a linguagem anterior a BabeI. de experiência onírica que nos dá acesso a um inconsciente hu- Benjamin escreveu ainda vários textos sobre a astrologia, mano comum, o lugar da linguagem e das Ideias. essenciais para seus escritos sobre a filosofia da linguagem. A ciên- A maneira como Benjamin aborda a linguagem diverge in- cia astrológica que temos hoje, diz ele, é uma versão degene- teiramente do entendimento da ciência linguística do século xx, rada de um antigo corpo de conhecimentos oriundo de tempos mas lhe confere um acesso privilegiado ao mundo do mito e da em que a faculdade mimética, muito mais forte do que hoje, per- fábula, especialmente ao "mundo lamacento" de Kafka que, a mitia haver correspondências reais e imitativas entre as vidas seu ver, é primevo e quase pré-humàno. (v. 2, p. 808) Uma leitura dos seres humanos e os movimentos das estrelas. Hoje são só as intensiva de Kafka deixaria marcas indeléveis nos últimos escri- crianças que preservam um poder mimético comparável, e res- tos, pessimistas, do próprio Benjamin. 76 77
  • 39. );t Y,( * quisa Social, que fora transferido por Adorno e Horkheimer de Frankfurt para Nova York e lhe pagava um estipêndio). A história das Passagens é, grosso modo, a seguinte. De Adorno, Benjamin recebeu críticas tão severas que deci- No final da década de 1920, Benjamin imaginou uma obra diu deixar o projeto temporariamente de lado e extrair um livro inspirada pelas antigas passagens de Paris. Ela teria a ver com a sobre Baudelaire da massa de material que acumulara para ele. experiência urbana; seria uma versão da história da Bela Ador- Parte desse livro saiu em 1938 como "A Paris do Segundo Impé- mecida, um conto de fadas dialético narrado de maneira surrea- rio em Baudelaire", ainda composto pelo método da monta- lista pela montagem de textos fragmentários. Como o beijo do gem. Novamente, Adorno mostrou-se crítico: os fatos eram apre- príncipe, destinava-se a despertar as massas europeias para a ver- sentados para falar por si mesmos, disse ele; não havia teoria suficiente. Benjamin produziu uma nova revisão, "Sobre alguns dade da sua vida sob o capitalismo. Teria cerca de cinquenta pá- ginas; nos preparativos para escrevê-Ia, Benjamin começou a temas em Baudelaire" (1939), que teve recepção mais calorosa. Baudelaire era central a Passagens porque, na visão de Ben- copiar citações de suas leituras sob títulos como Tédio, Moda, jamin, foi Baudelaire, nas Flores do mal, o primeiro a revelar a Poeira. À medida que alinhavava o texto, porém, ele não parava de crescer com novas citações e notas. Benjamin discutiu seus cidade moderna como tema para a poesia. (Benjamin parece não ter lido Wordsworth que, cinquenta anos antes de Baudelaire, es- problemas com Adorno e Max Horkheimer, que o convenceram crevera sobre o sentimento de fazer parte da massa de transeun- de que não poderia escrever sobre o capitalismo sem um melhor tes numa rua de Londres, bombardeado de todos os lados por conhecimento de Marx. A ideia da Bela Adormecida perdeu o seu brilho. olhares, atordoado pelos cartazes publicitários.) Ainda assim, Baudelaire expressava a sua experiência da ci- Em 1934, Benjamin formulou um novo plano, mais ambi- dade sob a forma de alegoria, um modo literário fora de moda cioso do ponto de vista filosófico: usando o mesmo método de desde o Barroco. Em "Le Cygne", por exemplo, alegorizava o montagem, iria reconstituir a superestrutura cultural da França poeta como uma nobre ave, um cisne, que caminha a passos do século XIX, a partir das mercadorias e do seu poder de se trans- grotescos pelo calçamento do mercado, incapaz de abrir as asas formarem em fetiches, do qual adquirira consciência a partir da e alçar voo. leitura de História e consciência de classe, de Georg Lukács. Por que Baudelaire usa a alegoria? E Benjamin recorre ao Conforme suas notas se tornavam mais volumosas, ele as orga- Capital de Marx para responder a essa pergunta. A transforma- nizava de acordo com um elaborado sistema de arquivamento ção do valor de mercado em única medida do valor, diz Marx, baseado em 36 "convolutas" (do alemão Konvolut, pilha, arqui- reduz toda mercadoria a um simples signo - o signo do preço vo) com palavras-chave e referências cruzadas. Com o título de pelo qual é vendida. Sob o império do mercado, as coisas se re- "Paris, capital do século XIX", escreveu um resumo do material lacionam ao seu valor efetivo tão arbitrariamente quanto, por que reunira até então, e apresentou tudo a Adorno (na ocasião, exemplo, na emblemática barroca uma caveira tem a ver com a Benjamin estava em alguma medida ligado ao Instituto de Pes- sujeição do homem ao tempo. Os emblemas retomam assim ines- 78 79
  • 40. peradamente ao palco histórico na forma de mercadorias, que no sentido convencional. Tiedemann o compara aos materiais sob o capitalismo deixam de ser o que parecem, mas, como ad- de construção de uma casa. Na casa hipoteticamente construí- vertiu Marx, começam a apresentar "[inúmeras] sutilezas meta- da, esses materiais seriam organizados pelo pensamento de Ben- físicas e nuances teológicas". (Areades Projeet, p. 196) A alegoria, jamin. Temos acesso a boa parte desse pensamento na forma das afirma Benjamin, é exatamente o modo de expressão correto pa- interpolações de Benjamin, mas nem sempre conseguimos ver ra uma era das mercadorias. como o pensamento encaixaria ou abordaria esses seus materiais. Enquanto trabalhava no livro sobre Baudelaire (que nunca N uma situação assim, diz Tiedemann, poderia parecer me- ficou pronto - o manuscrito seria publicado postumamente co- lhor publicar apenas as palavras do próprio Benjamin, deixando mo Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo), Ben- de fora as citações. Mas a intenção de Benjamin, por mais utópi- jamin continuava a tomar notas para as Passagens e a acumular ca que fosse, era de, em algum ponto do processo, remover dis- novas convolutas. O que foi recuperado depois da guerra no es- cretamente os seus comentários do todo, deixando que o mate- conderijo da Bibliotheque Nationale foram cerca de novecentas rial citado arcasse sozinho com o peso integral da estrutura. pélginas de textos copiados, especialmente de escritores do sécu- lo XIX, mas também de contemporâneos de Benjamin, reunidos As passagens de Paris, diz um guia de viagem de 1852, são sob vários títulos, com comentários entremeados, além de uma "bulevares internos [...] cobertos de vidro, corredores revestidos de mármore que se estendem por vários quarteirões de edifícios grande variedade de planos e sinopses. Esses materiais foram pu- [...] Dos dois lados [...] encontramos as lojas mais elegantes, de blicados em 1982, editados por Rolf Tiedemann, com o título maneira que cada uma dessas galerias é uma verdadeira cidade, de Passagen-Werk. O Areades Projeet de Harvard usa o texto de um mundo em miniatura". (Areades Projeet, p. 31) Essa arqui- Tiedemann, mas omite boa parte de seu material de apoio e tetura arejada de vidro e aço logo foi imitada em outras cidades aparato editorial. Traduz todas as passagens em francês para o in- do Ocidente. E o apogeu das passagens se sustentaria até o fim do glês e acrescenta notas muito úteis, bem como uma fartura de século, quando acabaram eclipsadas pelas lojas de departamen- ilustrações. É um belo volume: a maneira como lida com os com- tos. Para Benjamin, esse declínio fez parte da lógica implacável plexos mecanismos de remissão de Benjamin é um verdadeiro da economia capitalista; ele não antevia seu retorno, em fins do triunfo de engenhosidade tipográfica. século xx, na forma dos shopping eenters urbanos. A história das Passagens, uma história de procrastinação e O livro das Passagens nunca pretendeu ser uma história eco- começos em falso, de peregrinações por labirínticos meandros nômica (embora parte da sua ambição fosse ter o efeito de um de arquivos em busca de uma exaustividade típica do tempera- corretivo para toda a disciplina da história econômica). Um dos mento de colecionador, de um terreno teórico cambiante, de crí- primeiros esboços sugere algo que lembra muito mais "Uma in- ticas que provocaram respostas rápidas demais e, de maneira ge- fância em Berlim": ral, de quanto Benjamin não sabia muito bem o que pensava, significa que o livro que chegou até nós é radicalmente incom- Sabemos de lugares na antiga Crécia onde havia caminhos que pleto: incompleto na sua concepção e não exatamente escrito desciam ao submundo. Nossa existência consciente também é uma 80 81
  • 41. terra que, em certos pontos ocultos, tem passagens que conduzem base no princípio da montagem, justapondo fragmentos textuais para o mundo inferior - uma terra repleta de lugares inconspí- do passado e do presente na expectativa de que arrancassem faís- cuos de onde emergem os sonhos. Durante o dia todo, sem sus- cas uns dos outros e se iluminassem mutuamente. Assim, por peitar de nada, passamos por esses pontos sem nos darmos conta, exemplo, se o item 2.1 da Convoluta L, referindo-se à abertura mas assim que o sono chega logo enveredamos de volta, às apal- de um museu de arte no palácio de Versalhes em 1837, fosse lido padelas, para tornarmos a nos perder em seus escuros corredores. em conjunção com o item 2-4 da Convoluta A, que acompanha Durante o dia, o labirinto de habitações urbanas lembra a cons- a transformação das galerias cobertas em lojas de departamen- ciência; as passagens [... desembocam despercebidas nas ruas. À 1 tos, idealmente a analogia "o museu está para a loja de departa- noite, porém, por baixo da massa tenebrosa das casas, sua escu- mentos como a obra de arte para a mercadoria" iria acender-se ridão ainda mais densa se destaca como uma ameaça, e o cami- na mente do leitor. (Arcades Project, pp. 37,408) nhante noturno passa às pressas por elas - a menos, porém, que Segundo Max Weber, o que distingue os tempos modernos o tenhamos encorajado a enveredar pela alameda estreita. (Arca- é a perda da fé e o desencanto. Benjamin tem uma visão diferen- des Profeci, p. 84) te: acredita que o capitalismo adormeceu as pessoas e que elas só irão despertar de seu feitiço coletivo quando conseguirem fa- Dois livros serviram de modelo a Benjamin: Un paysan de zê-Ias entender o que lhes aconteceu. A inscrição da Convoluta Paris [Um camponês de Paris], de Louis Aragon (traduzido para N vem de Marx: "A reforma da consciência consiste apenas em o inglês com o título de Nightwalker em 1970, e como Paris Pea- [...] despertar o mundo de seu sonho acerca de si mesmo". (Arca- sant em 1971), com seu afetuoso tributo à Passage de l'Opéra, e des Project, p. 456) Spazieren in Berlin [Passear em Berlim], de Franz Hoessel, que Os sonhos da era capitalista estão encarnados em mercado- concentra o foco na Kaisergalerie e no poder que esta tem de rias. Em seu conjunto, constituem uma fantasmagoria, que mu- invocar uma era passada. Sua obra seria informada pela teoria da da constantemente de forma de acordo com as marés da moda e memória involuntária de Proust, mas o sonho e o devaneio se- é exibida a multidões de adoradores enfeitiçados como a concre- riam mais historicamente específicos que em Proust. Pretendia tização dos seus desejos mais profundos. E a fantasmagoria sem- capturar a experiência "fantasmagórica" dos passeios parisienses pre esconde a sua origem (que residiria no trabalho alienado). A em meio às mercadorias em exibição, uma experiência ainda fantasmagoria, em Benjamin, é portanto um pouco como a ideo- mais fácil de recuperar em seu tempo, quando "as passagens se logia em Marx - uma trama de mentiras públicas sustentada espalham pela paisagem metropolitana como cavernas em que pelo poder do capital -, porém mais parecida com um mundo se abrigam os restos fósseis de um monstro extinto: o consumidor dos sonhos de Freud operando num nível coletivo e social. da era pré-imperialista do capitalismo, o último dinossauro da Europa". (Arcades Project, p. 540) "Não preciso dizer nada. Basta mostrar", diz Benjamin; e A grande inovação de Passagens seria a sua forma. Como o noutro ponto: "As ideias estão para os objetos como as constela- ensaio sobre Nápoles e o Diário de Moscou, ele funcionaria com ções para as estrelas". Se o mosaico de citações for construído da 82 83
  • 42. maneira correta, um padrão deverá emergir, um padrão que é te, aberto para exame, "a dialética imobilizada". "Só as imagens mais do que a soma das suas partes, mas não tem existência inde- diaIéticas são imagens genuínas". (Arcades Project, p. 462) pendente delas: eis a essência da nova forma de literatura histó- E não passa daí a .teoria, embora engenhosa, a que apela o rico-materialista que Benjamin julgava estar praticando.14 livro profundamente antiteórico de Benjamin. Para o leitor ain- O que contrariava Adorno no projeto de 1935 era quanto da não convencido pela teoria, entretanto, o leitor para quem as Benjamin se mostrava convicto de que uma simples coLIgem de imagens dialéticas nunca chegam a adquirir toda a vida que de- objetos (no caso, citações fora de contexto) fosse capaz de sus- veriam assumir, o leitor talvez irreceptivo à narrativa grandiosa tentar-se por conta própria. Benjamin, escreveu ele, encontra- do longo sono do capitalismo seguido pelo raiar do socialismo, o va-se "na encruzilhada entre a mélgica e o positivismo". Em 1948, que as Passagens têm a oferecer? Adorno teve a oportunidade de ver todo o corpo das Passagens, e A mais sumária das listas conteria o seguinte: tornou a manifestar suas reservas diante da precariedade da teo- (1) um tesouro de informações curiosas sobre a Paris do iní- rização da obra.15 cio do século XIX (por exemplo, homens sem nada de melhor a A resposta de Benjamin a esse tipo de crítica baseava-se na fazer costumavam ir ao necrotério contemplar corpos nus); noção de imagem dialética, que ele buscava na emblemática do (2) citações instigantes, colhidas por um espírito perspicaz e idiossincrático que percorreu milhares de livros no decorrer de Barroco - ideias representadas por imagens - e na alegoria muitos anos (Tiedemann relaciona cerca de 850 títulos que são baudelairiana, em que a interação de ideias era substituída pela concretamente citados), alguns deles da autoria de escritores interação de objetos emblemáticos. A alegoria, sugeriu ele, po- que julgamos conhecer bem (Marx, Victor Hugo), outros de es- dia assumir o papel do pensamento abstrato. Os objetos e as fi- critores menos conhecidos que, considerando o que se apresenta guras que povoam as galerias - jogadores, prostitutas, espelhos, aqui, mereceriam voltar à cena - como Hermann Lotze, autor poeira, estátuas de cera, bonecos mecânicos - são (para Ben- de Mikrokosmos (1864); jamin) emblemas, e as interações entre eles geram significados, (3) uma infinidade de observações sucintas, lustradas até significados alegóricos que prescindem da intrusão da teoria. adquirir um intenso fulgor aforístico, sobre uma variedade dos Ainda na mesma linha, fragmentos de texto colhidos no passa- assuntos favoritos de Benjamin. "A prostituição pode reivindicar do e dispostos no campo carregado do presente histórico conse- ser vista como um 'trabalho' no momento em que o trabalho se guem comportar-se como os elementos que compõem uma ima- transforma em prostituição." "O que torna as primeiras fotogra- gem surrealista, interagindo espontaneamente com o resultado fias tão incomparáveis talvez seja que elas apresentam a imagem de produzir energia política. ("Os acontecimentos que cercam o mais antiga que se conhece do encontro entre a máquina e o ho- historiador e dos quais ele participa", escreveu Benjamin, "irão mem"; (Arcades Project, pp. 348,678) estar presentes na sua apresentação como um texto escrito em (4) a oportunidade de vislumbrar as experiências de Benja- tinta invisível.")16E no processo os fragmentos constituem a ima .. min com um novo modo de ver a si mesmo: como um colecio- gem dialética, o movimento dialético congelado por um instan- nador de "palavras-chave num dicionário secreto", compilador 84 85
  • 43. de uma "enciclopédia mágica". De uma hora para outra, Benja- vida lendo sobre a história econômica, ele era notavelmente ig- min, leitor esotérico de uma cidade alegórica, apresenta uma nOl"ante sobre aquelas partes do mundo onde o capitalismo do proximidade do seu contemporâneo Jorge Luis Borges, fabulista século XIX mais floresceu, especialmente a Grã-Bretanha e os de um universo reescrito. (Areades Projeet, pp. 211, 2°7) O que os Estados Unidos. Em sua discussão sobre a loja de departamen- aproxima é, obviamente, a Cabala, sobre a qual Borges se debru- tos, ele deixa de perceber uma diferença crucial entre os grands çou por longo tempo e para a qual Benjamin volta sua atenção à magasins de Paris e as lojas de departamentos de Nova York e medida que se enfraquece a sua fé na revolução proletária. Chicago: enquanto os primeiros erguiam barreiras contra uma A certa distância, a magnum opus de Benjamin lembra curio- clientela de massas, as últimas julgavam ser seu papel educar os samente outra imponente ruína da literatura do século xx, os fregueses da classe trabalhadora nos hábitos de consumo da clas- Cantos de Ezra Pound. As duas obras resultam de anos de lei- se média. Também não dá a devida importância ao fato de tanto turas profusas. Ambas se compõem de fragmentos e citações, e as galerias quanto as lojas de departamentos preocuparem-se aci- aderem à estética alto-modernista da imagem e da montagem. ma de tudo em atender aos desejos das mulheres, ao mesmo tem- Ambas têm veleidades econômicas, e economistas como figuras po em que faziam o possível para dar forma a esses desejos e até inspiradoras (Marx num caso, Gesell e Douglas no outro). Os criar outros novos. dois autores investem em corpos arcaicos de conhecimento cuja relevância para o tempo em que vivem tendem a superestimar. A gama de interesses representados nos primeiros dois vo- Nenhum dos dois sabe a hora de parar. E ambos foram final- lumes das Seleeted Writings de Benjamin é vasta. Junto aos tex- mente consumidos pelo monstro do fascismo, Benjamin tragica- tos examinados neste ensaio, encontramos ainda uma seleção mente, Pound de maneira vergonhosa. de seus textos mais antigos, de um idealismo bastante declarado, Foi o destino dos Cantos ter excertados vários dos textos de sobre a educação; vários ensaios de crítica literária, entre eles antologia, e o resto (Van Buren, os Malatesta, Confúcio etc.) dis- dois longos textos sobre Goethe: o primeiro uma interpretação cretamente abandonado. E o destino das Passagens pode ser com- das Afinidades eletivas, o outro uma revisão magistral da carreira parável. Pode-se antever uma edição condensada para estudan- de Goethe; surtidas sobre vários tópicos filosóficos (lógica, me- tes, retirada principalmente das Convolutas B ("Moda"), H ("O tafísica, estética, filosofia da linguagem, filosofia da história); colecionador"), I ("O interior"), J ("Baudelaire"), K ("Cidade ensaios sobre pedagogia, sobre os livros infantis, sobre os brin- dos sonhos"), N ("Sobre a teoria do conhecimento") e y ("Foto- quedos; um envolvente texto pessoal sobre colecionar livros, e grafia"), em que as citações seriam reduzidas a um mínimo e a uma variedade de textos de viagem e tentativas ficcionais. O en- maior parte do texto sobrevivente seria do próprio Benjamin. O saio sobre as Afinidades eletivas destaca-se como um desempe- que não seria uma coisa de todo má. nho particularmente estranho: uma extensa ária, em prosa su- Mesmo no terreno que ele próprio escolhe, há muitos mo- persutil, quase mandarim, sobre o amor e a beleza, o mito e o tivos para se condenar Benjamin. Para alguém que, embora não destino, que adquire uma alta intensidade pelas semelhanças fosse exatamente historiador da economia, passou anos da sua secretas que Benjamin via entre o enredo do romance e um tra- 86 87
  • 44. gicômico quadrilátero amoroso erótico em que ele e sua mulher texto são incluídas no livro, por motivos que não ficam claros. se viram envolvidos. Traduções existentes de textos alemães citados por Benjamin são O terceiro e o quarto volumes das Selected Wrítíngs contêm usadas, embora sejam traduções claramente abaixo do padrão.'7 os resumos de 1935, 1938 e 1939 das Passagens; "A obra de arte" em duas versões; "O narrador"; "Uma infância em Berlim"; as O que foi Walter Benjamin: um filósofo? Um crítico? Um "Teses sobre o conceito de história"; e uma série de cartas funda- historiador? Um mero "escritor"? A melhor resposta talvez seja mentais para e de Adorno e Scholem, entre elas a importante a de Hannah Arendt: ele foi "um dos inclassificáveis [... ] cuja carta de 1938 sobre Kafka. obra nem se enquadra na ordem existente nem cria um gênero As traduções, feitas por várias pessoas, são excelentes de fora novo".,8 a fora. Se algum dos tradutores merece ser destacado é Rodney Sua abordagem típica - em que sempre começa a falar de Livingstone, por sua eficiência discreta em dar conta das mu- seu tema não diretamente, mas de viés, avançando passo a passo danças bruscas de estilo e tom que marcam o desenvolvimento de argumento em argumento, todos formulados com perfeição de Benjamin como escritor. As notas explicativas são quase do - é tão reconhecível à primeira vista quanto inimitável, depen- mesmo alto padrão, mas não chegam a tanto. As informações dendo de uma agudeza intelectual, de uma erudição apresen- sobre as figuras referidas por Benjamin são às vezes anacrônicas tada com leveza e de um estilo de prosa que, depois que ele de- (Robert Walser) ou incorretas: as datas de nascimento e morte sistiu de se ver como professor-doutor Benjamin, tornou-se uma de Karl Korsch, em quem Benjamin se apoiava muito para sua verdadeira maravilha de precisão e concisão. Subjacente a seu interpretação de Marx (Korsch foi expulso do Partido Comunis- projeto de chegar à verdade do nosso tempo está o ideal de Goe- ta Alemão por suas opiniões independentes), são apresentadas the, de apresentar os fatos de tal maneira que os fatos se cons- como 1892 e 1939, quando são na verdade 1886 e 1961 (v. 2, p. 790 tituam em sua própria teoria. As Passagens, qualquer que seja nota 5)· Há erros de grego e de latim, e o francês é às vezes mal- nosso veredicto a seu respeito - ruínas, fracasso, projeto impos- tratado: chamar um bando de padres de soutane de "corvos civi- sível-, sugerem um modo novo de escrever sobre uma civiliza- lizados" passa ao largo da intenção do autor - melhor seria dizer ção, usando como material seus restos, em vez de suas obras de "corvos domesticados" ("cívílísed crows" vs. "domestícated crows"). arte: a história vista de baixo para cima, e não de cima para bai- (v. 2, p. 354, nota 35) Afirmativas misteriosas - por exemplo, so- xo. E seu apelo (nas "Teses") por uma história que se centralize bre a "difusão sinistra do culto aos andarilhos" na Alemanha da no sofrimento dos vencidos, em vez de focar as conquistas dos década de 1920 - são deixadas sem explicação. (v. 1, p. 454) vencedores, prenuncia profeticamente a maneira como a histo- Algumas práticas gerais observadas por editores e tradutores riografia começou a se ver em nosso tempo. também são questionáveis. Benjamin tinha o hábito de escre- ver parágrafos imensos, que se prolongavam por várias páginas: o (2001) tradutor deveria certamente sentir-se autorizado a dividi-l os em partes menores. Às vezes duas versões preliminares do mesmo 88 89
  • 45. cados por uma estética mística mas coerentemente idealista, Lojas 5. Bruno Schulz de canela (1934) e Sanatório (1937) são obras únicas e surpreen- dentes, que parecem ter surgido do nada. Bruno Schulz nasceu em 1892, terceiro filho de pais judeus da classe mercantil, e recebeu o nome do santo católico do dia. Sua cidade natal, Drohobycz, era um centro industrial menor numa província do Império Austro-Húngaro que, depois da Pri- meira Guerra Mundial, voltaria a fazer parte da Polônia. Embora houvesse uma escola judaica em Drohobycz, Schulz foi mandado para o Cymnasium polonês. (Joseph Roth, na cida- de próxima de Brody, estudou num Cymnasium alemão.) As lín- guas que usava eram o polonês e o alemão; não falava o iídiche das ruas. No colégio, destacava-se nas artes, mas sua família o dissuadiu de seguir a profissão de artista. Matriculou-se para es- Numa das suas memórias mais remotas da infância, o jo- tudar arquitetura na escola politécnica de Lwow, mas em 1914, vem Bruno Schulz está sentado no chão, cercado pela admira- quando a guerra foi declarada, precisou interromper os estudos. ção de vários membros de sua família, enquanto rabisca um "de- Devido a um problema cardíaco não foi convocado para o exér- senho" atrás do outro em velhas folhas de jornal. Entregue a seu cito. De volta a Drohobycz, iniciou um programa intensivo de arrebatamento criador, a criança ainda vive uma "era da genial i- autoformação, lendo e aperfeiçoando sua habilidade de dese- dade", ainda tem um acesso desprovido de censura ao domínio nhista. Reuniu uma série de obras com temas eróticos intitulada do mito. Ou pelo menos é isso que pensaria o homem em que Xif?ga Balwochwalcza [O livro da idolatria] e tentou vender có- essa criança se tornou; todo o seu esforço da maturidade seria no pias, com alguma insegurança e sem muito sucesso. sentido de recuperar o contato com esses seus poderes iniciais, e Incapaz de ganhar a vida como artista e, depois da morte do "amadurecer infância adentro".' pai, encarregado de sustentar uma família inteira com problemas Esses esforços resultariam em dois corpos de obras: gravuras de saúde, aceitou o cargo de professor de arte numa escola local, e desenhos que hoje provavelmente não teriam muito interesse emprego em que permaneceria até 1941. Embora respeitado pe- caso seu criador não se tivesse tornado famoso por outros cami- los alunos, achava a vida escolar estupidificante e escreveu carta nhos; e dois livros curtos, coletâneas de contos e flagrantes sobre atrás de carta implorando às autoridades que lhe concedessem a vida interior de um menino no interior da Galícia, na Europa licenças para se dedicar à sua obra artística, súplicas que, a bem Central, que o elevou ao primeiro plano da literatura polone- da justiça, nem sempre foram recebidas com ouvidos moucos. sa dos anos do entreguerras. Ricos em fantasia, sensuais em sua Apesar de seu isolamento na província, Schulz conseguia apreensão do mundo vivo, elegantes no estilo, espirituosos, mar- expor suas obras nos centros urbanos e travar correspondência 9° 91
  • 46. com espíritos afins. Em suas milhares de cartas, cerca de 156 das terra em que nasceu. Partiu para a cidade que em retrospecto quais sobreviveram, ele despejava boa parte da sua energia cria- definiria como "a mais exclusiva, autossuficiente e exibicionista dora. ]erzy Ficowski, biógrafo de Schulz, define-o como o últi- cidade do mundo" na esperança dúbia de conseguir organizar mo expoente notável da arte epistolar na Polônia.2 Todos os indí- ali uma exposição de suas obras de arte, mas fez poucos contatos cios sugerem que os textos que compõem Lojas de canela vieram e acabou voltando de mãos vazias.' à luz em cartas à poetisa Debora Vogel. Em 1939, nos termos do acordo de partilha da Polônia entre Lojas de canela foi recebido com entusiasmo pela intellí- nazistas e soviéticos, Drohobycz foi absorvida pela Ucrânia sovié- gentsia polonesa. Em visitas a Varsóvia, Schulz era celebrado tica. Sob o domínio dos sovietes não havia oportunidades para nos salões artísticos e convidado a escrever para revistas literá- Schulz como escritor ("Não precisamos de Prousts", disseram-lhe rias; em sua escola, recebeu o título de "professor". Ficou noivo sem rodeios). No entanto, encomendaram-lhe a produção de qua- de ]ózefina SzeliI1ska, judia convertida ao catolicismo, e, embo- dros de propaganda política. Ele continuou a ensinar até que, no ra ele próprio não se tenha convertido, retirou-se formalmente verão de 1941, a Ucrânia foi invadida pelos alemães e todas as da comunidade religiosa judaica de Drohobycz. Sobre a noiva, escolas foram fechadas. As execuções de judeus começaram de escreveu: "[Ela] constitui a minha participação na vida. Graças imediato, e em 1942 as deportações em massa. a ela sou uma pessoa, e não apenas uma aparição ou gnomo ... Por algum tempo, Schulz conseguiu escapar do pior. Teve Ela é a pessoa que me é mais próxima na terra". (Ficowski, p. 112) a sorte de ser adotado por um oficial da Gestapo com pretensões Ainda assim, o noivado chegou ao fim depois de dois anos. artísticas, adquirindo assim a posição de "judeu necessário" e a A primeira tradução para o polonês do Processo de Kafka foi preciosa faixa para o braço que o protegia cada vez que os judeus publicada em 1936 com o nome de Schulz, mas a tradução fora eram reunidos para deportação. Pela decoração das paredes da feita de fato por SzeliI1ska. residência do seu patrono e do cassino dos oficiais, ele era pago Sanatório, o segundo livro de Schulz, foi em sua maior par- em rações de alimentos. Enquanto isso, empacotou seus quadros te reunido a partir de textos anteriores, alguns deles ainda hesi- e manuscritos em fardos e os entregou à guarda de amigos não tantes e amadorísticos. Schulz tendia a falar mal do livro, embo- judeus. Benfeitores de Varsóvia lhe contrabandearam dinheiro e ra, na verdade, uma parte de seus contos esteja à altura do padrão conseguiram papéis falsos, mas antes que ele conseguisse reunir de Lojas de canela. a coragem para deixar Drohobycz estava morto, cercado e fuzila- Sobrecarregado com suas aulas e responsabilidades familia- do na rua durante um dia de anarquia promovido pela Gestapo. res, ansioso com os desdobramentos políticos na Europa, em fi- Em 1943, não restava mais nenhum judeu em Drohobycz. nais da década de 1930 Schulz declinava para um estado de depressão que lhe impunha dificuldades para escrever. Nem ter No final da década de 1980, à medida que a União Soviética sido premiado com os Lauréis de Ouro da Academia Polonesa se desfazia, chegou ao acadêmico polonês ]erzy Ficowski a notí- de Literatura o deixou animado. E nem mesmo uma viagem de cia de que uma pessoa anônima com acesso aos arquivos da KGB três semanas a Paris, sua única surtida substancial para além da encontrara um dos pacotes de Schulz, e se dispunha a entregá-Io 92 93
  • 47. a ele por um certo preço. Embora a informação não desse em dos nos Estados Unidos, tem reservas quanto às traduções exis- nada, serviu de base para a insistente esperança de Ficowski de tentes de Schulz para o inglês, assinadas por Celina Wieniewska que escritos perdidos de Schulz ainda pudessem ser recupera- e publicadas em 1963; foi por elas, sob o título coletivo de The dos. Entre esses textos estão um romance inacabado, Messias, de Street of Crocodíles [A rua dos crocodilos], que Schulz passou a que temos notícia porque Schulz chegou a ler trechos para al- ser conhecido no mundo de língua inglesa.5 As traduções de Ce- guns amigos, e as anotações que vinha escrevendo na época da lina Wieniewska merecem críticas por vários motivos. Primeiro, morte, memorandos de conversas com judeus que tinham visto baseiam-se em textos imprecisos: uma edição confiável e bem em primeira mão as operações dos esquadrões de fuzilamento e estudada dos escritos de Schulz só seria publicada em 1989. Se- de transportes, que pretendia usar como base para um livro sobre gundo, há ocasiões em que a tradutora emenda em silêncio o as perseguições. (Um livro do tipo exato que Schulz planejava texto de Schulz. No texto "A Second Autumn" [Um segundo foi publicado em 1977 por Henryk Grynberg.4 O próprio Schulz outono], por exemplo, Schulz decide dizer que a cidade onde figura como personagem secundário no primeiro dos relatos de vive Robinson Crusoé é Bolechow, uma cidade próxima de Dro- Grynberg.) hobycz. Quaisquer que tenham sido os motivos de Schulz para Na Polônia, Jerzy Ficowski (falecido em 2006) era conhe- não indicar sua própria cidade, cabe à sua tradutora respeitá-Ios. cido como poeta e estudioso da vida dos ciganos. Sua reputação Mas Celina Wieniewska troca "Bolechow" por "Drohobycz". (p. deve-se acima de tudo, porém, à sua obra sobre Bruno Schulz. 190) Terceiro, e mais sério de todos: há vários momentos em que Desde a década de 1940, Ficowski revirou incansavelmente to- Celina Wieniewska faz cortes na prosa de Schulz para torná-Ia da a Polônia, a Ucrânia e outras partes do mundo, contra todos menos prolixa ou adornada, ou universaliza alusões especifica- os obstáculos, burocráticos e materiais, à procura do que restava mente judaicas. de Schulz. Sua tradutora, Theodosia Robertson, o define como A favor de Celina Wieniewska deve-se dizer que suas tradu- um arqueólogo, o principal arqueólogo dos restos artísticos de ções são boas de ler. Sua prosa tem uma riqueza, uma elegância Schulz. (Ficowski, p. 12) Regions of the Great Heresy [Regiões e uma unidade de estilo raras. Quem se dedicar à tarefa de retra- da grande heresia] é a tradução que Theodosia Robertson fez da duzir Schulz irá achar difícil escapar da sua sombra. terceira edição revista (1992) da biografia de Ficowski, a que ele próprio acrescentou dois capítulos - um sobre o romance per- Como guia a Lojas de canela, não podemos fazer melhor dido Messias e outro sobre o destino dos murais que Schulz pin- do que recorrer à sinopse escrita pelo próprio Schulz quando tou em Drohobycz no último ano da sua vida -, além de uma tentava despertar o interesse de uma editora italiana pelo livro. cronologia detalhada e uma seleção das cartas de Schulz que (Seus planos não deram em nada, assim como os planos de tra- chegaram até nós. duzi-Io para o francês e o alemão.) Ao longo da sua tradução, Theodosia Robertson decidiu re- Lojas de canela, diz ele, é a história de uma família contada traduzir todos os trechos citados da obra de Schulz. Isso porque, não no modo biográfico ou psicológico, mas no modo do mito. concordando com outros estudiosos da literatura polonesa sedia- Assim, pode-se dizer que o livro tem uma concepção pagã: como 94 95
  • 48. entre os antigos, o tempo histórico do clã se perde no tempo mi- a dominar sua imaginação: uma carruagem que emerge com as tológico dos ancestrais. Mas nesse livro os mitos não provêm do lanternas acesas de uma floresta escura, e um pai que caminha coletivo. Emergem das névoas da infância remota, das esperan- pela escuridão, dizendo palavras reconfortantes para a criança ças e dos medos, das fantasias e premonições - o que em outro encolhida em seus braços, embora a criança só consiga escutar ponto ele define como "os balbucios do delírio mitológico" _ os sons sinistros da noite. A origem dessa primeira imagem, diz que formam a sementeira do pensamento mítico. (p. 370) ele, é obscura para ele; a segunda vem da balada de Goethe No centro da família em questão está ]acob, comerciante de "Der Erlkanig" [O rei dos elfos], que o afetou até o fundo da al- profissão, mas preocupado com a redenção do mundo, missão a ma quando sua mãe a leu para ele aos oito anos de idade. que se dedica através de experiências de mesmerismo, galvanis- Imagens como essas, continua ele, sempre nos são apre- mo, psicanálise e outras artes mais ocultas oriundas do que cha- sentadas no início da vida. E constituem "uma capital eterna do ma de Regiões da Grande Heresia. ]acob vive cercado de gente espírito". Para o artista, demarcam os limites dos seus poderes de estúpida que não tem a menor compreensão de seus empreen- criação: todo o resto da sua vida consiste em explorá-Ias, inter- dimentos metafísicos, comandada por sua arqui-inimiga, a criada pretá-Ias e tentar dominá-Ias. Depois da infância ninguém des- Adela. cobre nada de novo, só dá voltas e mais voltas pelo mesmo terre- Em seu sótão, ]acob cria, a partir de ovos que importa dos no num esforço sem possibilidade de desenlace. "O nó em que quatro cantos do mundo, esquadrões de aves mensageiras - con- a alma se vê atada não é um nó falso que se desfaça quando suas dores, águias, pavões, faisões, pelicanos - cuja existência física pontas são puxadas. Pelo contrário, ele aperta cada vez mais." E ele às vezes parece à beira de compartilhar. Com suas vassouras, da nossa contenda com esse nó emerge a arte. (p. 368) porém, Adela espalha suas aves aos quatro ventos. Derrotado, Quanto ao significado mais profundo de Lojas de canela, amargurado, ]acob começa a encolher e a secar, metamorfo- diz Schulz, normalmente não é de bom alvitre para um escritor seando-se finalmente numa barata. De vez em quando ele reas- submeter sua obra a um excesso de análise racional. Seria o mes- sume sua forma original a fim de fazer sermões a seu filho sobre mo que pedir a um ator que abandonasse a sua máscara - o que . temas como fantoches, manequins de alfaiate e o poder, detido poria fim à peça. "Numa obra de arte, o cordão umbilical que a pelo heresiarca, de trazer o lixo à vida. liga à totalidade dos nossos pensamentos ainda não foi cortado, Esse sumário não foi o fim dos esforços de Schulz para ex- o sangue do mistério ainda circula; as extremidades dos vasos plicar o que pretendia com Lojas de canela. Para os olhos de um sanguíneos desaparecem na noite circundante e dela retornam amigo, o escritor e pintor Stanislaw Witkiewicz, Schulz ampliou repletas de um fluido escuro." (pp. 368-9) seu relato, produzindo um texto de análise introspectiva de força Ainda assim, se instado a fornecer uma explicação, ele di- e acuidade notáveis que resultou num credo poético. ria que o livro apresenta uma certa visão primitiva e vitalista do Começa rememorando imagens da sua própria "era da ge- mundo, em que a matéria se encontra num estado de fermen- nialidade", sua infância mitologizada, "quando tudo resplande- tação e germinação permanentes. Não existe matéria morta, nem cia com cores divinas". (p. 319) Duas dessas imagens continuam a matéria jamais permanece numa forma fixa. "A realidade só 96 97
  • 49. assume certas formas por uma questão de aparência, como piada te em "contorcer-se e estender-se para formar mil conexões, co- ou uma forma de brincadeira. Uma pessoa é humana e outra é mo a cobra cortada da lenda cujos pedaços procuram uns pelos uma barata, mas a forma não penetra na essência, é apenas um outros no escuro". O pensamento sistemático, devido à sua na- papel que a personagem adota naquele momento, uma pele ex- tureza, mantém os pedaços da cobra separados a fim de exami- terior que logo adiante descarta ... [AJ migração das formas é a ná-Ios; o poeta, com seu acesso à "semântica arcaica", permite essência da vida." E vem daí a "aura invariável de ironia" que se que as partes das palavras tornem a encontrar seu lugar nos mitos encontra neste mundo: "o simples fato de uma existência indivi- de que se constitui todo conhecimento. (pp. 371-3) dual isolada tem a sua ironia, é uma peça que nos pregam". Com base em duas obras ficcionais, ambas preocupadas Para essa visão de mundo Schulz não se sente obrigado a com a experiência do mundo por uma criança, Schulz muitas apresentar uma justificação ética. Lojas de canela, especialmen- vezes é visto como um escritor naíf, uma espécie de artista popu- te, opera a uma profundidade "pré-moral". "O papel da arte é ser lar urbano. Como suas cartas e ensaios demonstram, porém, era uma sonda que mergulha no que não tem nome. O artista é um um pensador original com poderes notáveis de autoanálise, um aparelho destinado a registrar os processos que ocorrem naquele intelectual sofisticado que, a despeito das suas origens provincia- estrato profundo em que os valores se formam." No nível pessoal, nas, conseguia cruzar espadas em termos de igualdade com con- porém, ele admite que suas histórias emergem de e representam frades como Witkiewicz e Witold Gombrowicz. "meu modo de viver, meu destino pessoal", um déstino marcado Numa dessas trocas, Gombrowicz conta a Schulz uma con- por "uma solidão profunda, um isolamento da substância da vi- versa com uma desconhecida, a mulher de um médico, que lhe da cotidiana". (pp. 369, 370) diz que, na sua opinião, o escritor Bruno Schulz é "ou um ma- O ensaio "Mityzacja rzeczywistosci" [A mitologização da níaco pervertido ou um poseur, mais provavelmente um posem". realidade]' escrito um ano mais tarde, em 1936, apresenta de Gombrowicz desafia Schulz a se defender por escrito, acrescen- maneira sucinta o pensamento de Schulz sobre a tarefa do poe- tando que devia ver nesse desafio um caráter tanto substantivo ta, pensamento por sua vez antes mítico que sistemático em seu como estético: para sua resposta, precisava encontrar um tom que modo de operação. A procura do conhecimento, diz Schulz, é não fosse nem arrogante nem desafiador, nem elaborado nem no fundo uma jornada em que se tenta recuperar um estado ori- solene. (p. 374) ginal, unitário, do ser, um estado do qual sofremos uma espé- Em sua resposta, Schulz ignora a tarefa que Gombrowicz cie de queda, resultando fragmentado. O método de atuação da lhe propõe, preferindo abordar a questão de maneira oblíqua. O ciência é - com paciência e método e usando a indução - pro- que, pergunta-se ele, faz com que Gombrowicz, e os artistas em curar reunir novamente esses fragmentos. A poesia tem a mesma geral, concentrem-se tanto, e até encontrem tanto prazer, nas finalidade, mas atua "de maneira intuitiva, dedutiva, por atalhos expressões mais hipócritas e estúpidas da opinião pública? (Por ousados e grandes aproximações". O poeta - ele próprio uma que, por exemplo, Gustave Flaubert passou meses e anos cole- criatura mítica envolvida numa busca mítica - trabalha no nível cionando bêtises, asneiras, e as publicou no Dicionário das ideias mais básico, o nível da palavra. A vida interior da palavra consis-' feitas?) "Você não fica admirado", perguntou ele a Gombrowicz, 98 99
  • 50. "diante da [sua] simpatia e solidariedade involuntárias para com recriação, ou talvez a fabulação, de uma consciência infantil, algo que, no fundo, é estranho e hostil a você?". (p. 377) povoada de terror, obsessão e glória enlouquecida; sua metafí- A simpatia inconfessa com a opinião popular desajuizada, sica é a metafísica da matéria. Nada de semelhante se encontra sugere Schulz, vem de modos atavísticos de pensar que são im- em Kafka. postos a todos nós. Quando algum desconhecido prefere achar Para a tradução do Processo feita por Józefina Szeliúska, que ele, Schulz, é um poseLlr sem importância, "uma verdadeira Schulz escreveu um posfácio notável por sua sensibilidade e seu multidão sombria e desarticulada ergue-se em você [Gombro- poder aforístico, mas ainda mais impressionante por sua tentati- wicz]' como um urso treinado ao som da flauta de um cigano". va de atrair Kafka para a órbita schulziana, e transformar Kafka isso por causa da maneira como a própria psique é organiza- 1-1: num Schulz avant Ia Iettre. da: como uma multidão de subsistemas superpostos, alguns mais "O método de Kafka, o da criação de uma realidade doppeI- racionais, outros menos. Daí a "natureza confusa, múltipla" do ganger, ou substituta, era virtualmente sem precedente", es- nosso pensamento em geral. (pp. 377,378) creve Schulz. "Kafka enxerga a superfície realista da existência com uma precisão incomum, e conhece de cor, como se fosse Schulz também é comumente visto como um discípulo, ou um código de gestos, toda a mecânica exterior dos aconteci- epígono, ou mesmo um imitador do seu contemporâneo mais mentos e situações, de que maneira eles se encaixam e se entre- velho Franz Kafka. As semelhanças entre sua história pessoal e a laçam, mas para ele isso tudo não passa de uma epiderme solta de Kafka são de fato notáveis. Ambos nasceram durante o reinado ,I sem raízes, que ele desprega como uma membrana delicada e li li do imperador Francisco José I, em famílias de judeus da classe usa para recobrir seu mundo transcendental, enxertando-a na mercantil; ambos eram doentios e tinham dificuldades com os sua realidade." il relacionamentos sexuais; ambos trabalhavam com dedicação em Embora o processo que Schulz descreve aqui não chegue 'il empregos regulares; eram ambos assombrados pelas figuras pa- ao fundo do que faz Kafka, até onde ele vai está admiravelmen- Ili;i III ternas; os dois tiveram morte prematura, deixando complicadas e te definido. Mas Schulz ainda continua: "A atitude [de Kafka] problemáticas heranças literárias. Além disso, acredita-se (erro- diante da realidade é radicalmente irônica, traiçoeira e profun- neamente) que Schulz foi tradutor de Kafka. Finalmente, Kafka damente mal-intencionada - a relação de um prestidigitador escreveu uma novela em que um homem se transforma num in- com o seu material bruto. Ele só simula a atenção com o deta- seto, enquanto Schulz escreveu relatos em que um homem se lhe, a seriedade e a precisão elaborada da sua realidade a fim de transforma não só num inseto depois do outro, mas também num comprometê-Ia ainda mais integralmente". De certo ponto em caranguejo. (O avatar crustáceo de Jacob, o pai, é atirado na água diante, Schulz deixa o verdadeiro Kafka para trás e começa a fervente por uma cozinheira, mas depois disso ninguém conse- descrever outro tipo de artista, o artista que ele próprio é ou gos- gue comer a massa gelatinosa em que ele se transforma.) taria de ser aos olhos dos outros. E é uma medida.da sua confian- Os comentários de Schulz sobre sua obra literária deviam ça em sua força que ele possa ter tentado mudar Kafka, moldan- deixar claro como esses paralelos são superficiais. Sua meta é a do-o à sua própria imagem. (p. 349) 100 101
  • 51. * ):' * nante como aquele! Como seria melhor ser súdito do fogoso ar- quiduque Maximilianol o mundo que Schulz cria em seus dois livros é notavel- "A primavera" é o conto mais longo de Schulz, aquele em mente impermeável à história. A Grande Guerra e as convulsões que se percebe seu esforço mais intenso para desenvolver uma que a sucederam não lançam nenhuma sombra sobre ele; não linha narrativa - noutras palavras, para se transformar num con- há sinal, por exemplo, de que os filhos do camponês descalço, tador de histórias de tipo mais convencional. Sua base é a histó- que no conto "Estação morta" é escarnecido pelos caixeiros ju- ria de uma procura; o jovem herói empreende a busca de sua deus, décadas mais tarde possam voltar à mesma loja, saqueá-Ia amada Bianca (Bianca das pernas nuas e finas) num mundo ins- e surrar os filhos e as filhas dos caixeiros. pirado pelo álbum de selos. Como narrativa, o conto é previsí- Há sinais de que Schulz sabia não ser possível viver para vel; depois de algum tempo, declina e se transforma num pasti- sempre apenas com o capital acumulado na infância. Descre- che de drama de costumes, e em seguida perde o interesse. vendo seu estado de espírito numa carta de 1937, ele diz ter a Mas a meio caminho, assim que começa a perder o interes- impressão de estar sendo puxado para fora de um sono pesado. se pela história que está inventando, Schulz volta o olhar para "A peculiaridade e a natureza incomum dos meus processos in- dentro e se lança numa densa meditação de quatro páginas sobre teriores me fecharam hermeticamente, tornaram-me insensível, seus próprios processos de composição literária que só se pode irreceptivo às incursões do mundo. Agora estou me abrindo para imaginar escrita num transe, uma rapsódia especulativa que de- o mundo ... Tudo ficaria bem não fossem [o] terror e o encolhi- senvolve pela última vez a imagem da sementeira subterrânea mento interno, como que diante de uma missão arriscada que da qual o mito deriva seus poderes sagrados. Venha comigo pa- pode levar sabe Deus até onde." (p. 408) ra debaixo da terra, diz ele, até o lugar das raízes onde as palavras O conto em que ele mais claramente se volta para o mundo se decompõem e retomam às suas etimologias, o lugar da anam- mais amplo e o tempo histórico é "A primavera". O jovem nar- nese. E depois viaje ainda mais para dentro, até o fundo, até "as rador encontra seu primeiro álbum de selos, e nesse álbum em bases obscuras, em meio às Mães", o reino das histórias que ain- chamas, no desfile de imagens de terras de cu ja existência ele da não nasceram. (p. 140) jamais suspeitara - Hyderabad, Tasmânia, Nicarágua, Abraca- Nessas profundezas distantes, qual é a primeira narrativa que dabra -, a ardente beleza de um mundo para além de Droho- desdobra suas asas quando deixa o casulo do sono? E descobri- bycz de repente se revela. Em meio a essa plenitude mágica ele mos que é Um dos dois mitos fundadores da existência espiritual encontra os selos da Áustria dominados pela efígie de Francisco do próprio Schulz: a história do rei Elfo, a história da criança José, imperador da prosa (aqui a voz do narrador não consegue cujo pai não tem o poder de o defender dos doces perigos das mais fingir que seja de uma criança), um homem ressecado e trevas - noutras palavras, a história que, ouvida da boca da mãe, tedioso acostumado à atmosfera das chancelarias e das delega- anunciou ao jovem Bruno que seu destino o obrigaria a abando- cias de polícia. Que ignomínia, ser de um país com um gover- . nar o seio dos progenitores e ingressar nos domínios da noite. 102 1°3
  • 52. narrador à infantilidade estendendo-lhe uma das pernas e apre- Schulz era incomparavelmente bem dotado como explora- dor da sua própria vida interior, ao mesmo tempo a vida interior sentando-lhe o pé para ser adorado. A ficção e a criação pictóri- recuperada da sua infância e o seu próprio funcionamento cria- ca pertencem ao mesmo universo; alguns dos desenhos destina- tivo. Da primeira vêm o encanto e o frescor das suas histórias; vam-se a ilustrar essas histórias. Mas Schulz nunca afirmou que do segundo, o seu vigor intelectual. Mas ele tinha razão quando sua produção visual, com suas ambições limitadas, estivesse à sentia que não poderia viver para sempre com o que tirava desse altura do que escrevia. poço. De algum lugar ele precisaria renovar as fontes da sua ins- O livro de Ficowski traz uma seleção dos desenhos e obras piração: a depressão e a esterilidade do final da década de 1930 gráficas de Schulz. Seleção mais rica pode ser encontrada em podem ter vindo precisamente da conclusão de que seu capital sua edição das Obras reunidas. Todos os desenhos sobreviventes se esgotava. Nos quatro contos que temos e foram escritos depois de Schulz estão disponíveis em reprodução num belo volume de Sanatório, um deles escrito não em polonês, mas em alemão, bilíngue publicado pelo Museu Literário Adam Mickiewicz.ó não há sinal de que essa renovação já tivesse ocorrido. Se para o (2°°3) seu Messias ele tinha conseguido encontrar novas fontes, é algo que provavelmente - malgrado a insistente esperança de Ficows- ki - nunca viremos a saber. Schulz era um artista plástico de algum talento nos limites de uma certa faixa técnica e emocional. A série Xi?ga Balwoch- walcza [O livro da idolatria]' em particular, registra uma obses- são masoquista: homens curvados e nanicos, entre os quais o próprio Schulz é reconhecível, rastejam aos pés de moças impe- riosas com pernas longas e nuas. Por trás do desafio narcisista das moças de Schulz, pode-se detectar a Maja despida de Goya. A influência do expressionis- mo também é forte, especialmente de Edvard Munch. Há sinais do belga Félicien Rops. Curiosamente, em vista da importância ,~., 'li dos sonhos para a obra ficcional de Schulz, os surrealistas não " deixaram qualquer marca em seus desenhos. Em vez disso, à me- dida que ele amadureceu, um elemento de comédia sardônica tornou-se cada vez mais forte. As moças dos desenhos de Schulz são coerentes com Adela, a criada que governa a casa de Lojas de canela e, reduz o pai do 104 105
  • 53. para resistir aos exércitos da Rússia, da Sérvia e da Itália nas suas 6. J oseph Roth, os contos fronteiras, e fez-se em pedaços. "A Austro-Hungria não existe mais", escreveu Sigmund Freud para si mesmo no Dia do Armistício, em 1918. "Não quero viver em nenhum outro lugar [...] Vou continuar vivendo apenas com o torso, e fazer de conta que é o corpo inteiro."! Freud fala- va por muitos judeus de cultura austro-germânica. O desmem- bramento do Velho Império, e a redefinição do mapa da Euro- pa oriental para criar novas pátrias baseadas na etnicidade, quase sempre operou principalmente em detrimento dos judeus, pois não havia território que eles pudessem indicar como ancestral- mente próprio. O antigo Estado imperial supranacionallhes era conveniente; a divisão do pós-guerra foi para eles uma calamida- de. Os primeiros anos do novo Estado austríaco, destituído e pra- No apogeu de um reinado que começou em 1848 e durou ticamente inviável, com crises de escassez de alimentos seguidas até 1916, Francisco José, imperador da Áustria e rei da Hungria, por níveis de inflação que consumiram toda a poupança da clas- reinou sobre cerca de 50 milhões de súditos. Desses, menos de se média, além da violência nas ruas entre as forças paramilitares um quarto tinha o alemão como língua materna. Mesmo no ter- da esquerda e da direita, só intensificaram seu desconforto. Hou- ritório austríaco propriamente dito, metade dos habitantes tinha ve quem começasse a encarar a Palestina como um lar nacional; origem eslava de algum tipo - fossem tchecos, poloneses, ucra- outros se voltaram para o credo supranacional do comunismo. nianos, sérvios, croatas ou eslovenos. Cada uma dessas naciona- A nostalgia diante de um passado perdido e a ansiedade pe- lidades étnicas aspirava a se transformar num Estado-Nação in- rante um futuro sem abrigo estão no cerne da obra da maturida- dependente, com todos os deveres e privilégios que acompanham de do romancista austríaco Joseph Roth. Roth lembrava-se com essa posição, inclusive uma língua e uma literatura nacionais. carinho da monarquia austro-húngara como a única pátrIa que O erro do governo imperial, podemos ver hoje em retros- jamais tivera. "Eu amava essa nação", escreveu ele num prefácio pecto, foi encarar com excesso de ligeireza essas aspirações, e crer para Radetzkymarsch [A marcha Radetzky]. "Ela me permitia ser que os benefícios da filiação a um Estado esclarecido, próspero, patriota e cidadão do mundo ao mesmo tempo, e entre todos os pacífico e multiétnico acabariam superando o impulso do sepa- povos da Áustria também um alemão. Eu amava as virtudes e ratismo e a pressão dos preconceitos antigermânicos (ou, no caso os méritos dessa pátria, e hoje que ela desapareceu amo inclu- dos eslovacos, antimagiares). Quando a guerra - precipitada sive seus defeitos e fraquezas."z Radetzkymarsch é a obra-prima por um espetacular ato terrorista perpetrado por nacionalistas de Roth, um grande poema de elegia à Áustria dos Habsburgo étnicos - irrompeu em 1914, o Império viu que era fraco demais composto por um súdito de um território distante do império; 106 1°7
  • 54. ~- r I . ; uma grande contribuição à literatura em língua alemã de um es- critor que mal fazia parte da comunidade das letras alemãs. I colegas eram judeus: para jovens judeus do Leste, uma educa- ção alemã abria as portas do comércio e da cultura dominante. Em 1914, Roth se matriculou na Universidade de Viena. A Moses Joseph Roth nasceu em 1894 em Brody, uma cidade de porte médio a poucos quilômetros da fronteira russa, no terri- tório imperial da Calícia ou Calitsia. A Calícia tornara-se parte do Império Austríaco em 1772, depois do desmembramento da I capital austríaca, a essa altura, abrigava a maior comunidade ju- daica da Europa central, cerca de 200 mil almas reunidas no que consistia, na verdade, em uma espécie de gueto voluntário. "Já é difícil ser um Ostjude", um judeu do Leste, conta Roth; mas "não existe destino pior que o de um Ostjude perdido em Viena." I 1 Polônia; era uma região pobre densamente habitada por ucrania- Os Ostjuden, além do antissemitismo, precisavam enfrentar ain- nos (conhecidos na Áustria como rutênios), poloneses e judeus. da a distância com que eram tratados pelos judeus ocidentais.3 A cidade de Brody fora um dos centros da Haskalah, o ilumi- Roth era um excelente aluno, especialmente de literatura nismo judaico. Na década de 1890, dois terços de sua população iI alemã, embora menosprezasse quase todos os professores, que cram judeus. achava pedantes e servis. E,sse desdém se reflete em seus primei- Nas partes do império onde se falava o alemão, os judeus da ros escritos, que descrevem o sistema educacional público como Calícia eram relativamente malvistos. Ainda jovem, enquanto I o domínio de carreiristas ou então de pessoas pouco inteligentes, começava a vida em Viena, Roth tendia a camuflar suas origens, modestas e sem inspiração. alegando ter nascido em Schwabendorf, uma cidade de maioria alemã da região (invenção que aparece inclusive em seus papéis oficiais). Seu pai, segundo ele, seria (conforme o caso) dono de fábrica, oficial do Exército, alto funcionário do governo, pintor I t Como trabalho de meio expediente, dava aulas particulares para os filhos de uma condessa, e no processo adquiriu maneiris- mos de dândi como beijar a mão das senhoras, portar bengala e usar monóculo. Começou a publicar poemas. ou ainda um aristocrata polonês. Na verdade, porém, Nahum I, Sua formação, que parecia destiná-lo a uma carreira acadê- Roth trabalhava em Brody como agente para uma firma de co- mica, foi infelizmente interrompida pela guerra. Superando suas merciantes alemães de cereais. Moses Joseph nunca chegou a inclinações pacifistas, alistou-se em 1916, abandonando ao mes- conhecê-lo: em 1893, pouco depois de se casar, Nahum sofreu mo tempo o nome Moses. As tensões étnicas eram tão fortes no algum tipo de colapso mental numa viagem de trem para Ham- exército imperial que foi transferido de sua unidade de língua burgo. Foi levado para um sanatório, e de lá passou às mãos de alemã; passou 1917-8 numa unidade de língua polonesa na Ca- um rabino milagreiro. Nunca mais se recuperou, e nunca retor- lícia. Seu período de serviço militar permitiu novos acréscimos nou a Brody. j' fantasiosos à sua biografia, entre eles histórias de que chegara ao Moses Joseph foi criado pela mãe na casa dos pais desta, oficialato e fora prisioneiro de guerra na Rússia. Anos mais tarde, judeus prósperos e assimilados. Frequentou uma escola da comu- ainda temperava suas conversas com palavras do jargão militar. nidade judaica onde a língua de instrução era o alemão, e depois Depois da guerra, Roth começou a escrever para a impren- entrou para o Cymnasium alemão de Brody. Metade dos seus sa, e logo conquistou admiradores entre os vienenses. Antes da 108 1°9
  • 55. guerra, Viena era a capital de um grande império; agora, era urna datou-se a urna viagem à Rússia. Seu hábito de (nas suas pala- cidade empobreci da, com 2 milhões de habitantes, num país que vras) "tratar de maneira irônica certas instituições, certos hábitos mal chegava aos 7 milhões. À procura de melhores oportunida- morais e certos costumes do mundo burguês" não devia, alega- des, Roth e a mulher com quem acabara de se casar, Friederike, va, ser usado para desqualificar sua capacidade de escrever so- mudaram-se para Berlim. Lá ele escrevia para jornais liberais, bre a Rússia e as "duvidosas consequências" da Revolução Russa. mas também para o esquerdista Vorwéírts, assinando seus textos Sua série de despachos fez grande sucesso; seguiram-se repor- corno "Der rote Joseph": Joseph, o Vermelho. Logo lançou o pri- tagens sobre a Albânia, a Polônia e a Itália. Ele se orgulhava da meiro de seus Zeitungromane, "romances de jornal", assim cha- sua obra jornalística. "Não me limito a escrever os chamados mados não só porque tinham os mesmos ternas de suas matérias comentários espirituosos. Eu rascunho os grandes traços da épo- jornalísticas, mas também porque o texto era dividido em partes ca [... ] Sou um jornalista, não um repórter; sou um escritor, não curtas e ágeis. A teia de aranha (1923) trata, profeticamente, da um mero autor de artigos segundo as fórmulas correntes."6 ameaça moral e espiritual da direita fascista. Foi publicado três O tempo todo, ele continuava a escrever ficção. Em 1930, dias antes do primeiro putsch de Hitler. publicou seu nono romance, Já - Romance de um homem sim- Em 1925, Roth foi nomeado correspondente em Paris do ples. A despeito - ou talvez por causa - do seu final sentimental, digno de um conto de fadas - um envelhecido Mendel Singer, I Frankfurter Zeitung, o mais importante jornal liberal da época, com um salário que fez dele um dos jornalistas mais bem pagos esgotado pelos golpes da má sorte e imerso na penúria dos corti- da Alemanha. Mudara-se para Berlim disposto a urna carreira de ços de Nova York, acaba resgatado pelo filho idiota que abando- I escritor alemão, mas na França descobriu que no fundo era fran- nara no Velho Mundo, um filho que, sem ele saber, transforma- cês - "um francês do Leste".4 Ficou maravilhado com o que de- ra-se num músico de fama mundial-, Já transformou-se num finia corno a qualidade sedosa das mulheres francesas, especial- sucesso internacional (Roth confessava que não teria consegui- mente as que viu na Provence. do escrever o final sem recorrer à bebida). Depurando o livro dos Mesmo na sua juventude, Roth já dominava um alemão lú- seus elementos judaicos, Hollywood transformou-o em filme com cido e flexível. Agora, usando Stendhal e Flaubert - especial- o título de Sins of Man [Pecados do homem]. Dois anos mais mente o Flaubert de Un Canlr simple [Um coração simples] _ tarde, seguiu-se o livro mais ambicioso de Roth, Radetzkymarsch. corno modelos, aperfeiçoou seu estilo da maturidade, de urna E publicaria ainda mais seis romances durante a sua vida, todos exatidão característica. (Falando de Radetzkymarsch, Roth obser- de escala menor, além de inúmeros contos. vou: "Der Leutnant Trotta, der bin ich" [O tenente Trotta, ele Radetzkymarsch, sem dúvida o maior dos romances de Roth, sou eu], ecoando conscientemente as palavras de Flaubert, "Ma- e o único em que trabalhou sem muita pressa, acompanha o des- dame Bovary, c'est moi".)5 Chegou a cogitar instalar-se na Fran- tino de três gerações da família Trotta, todos servidores da Co- ça e começar a escrever em francês. Ao final de um ano, porém, o Frankfurter Zeitung decidiu substituí-l o em seu escritório parisiense. Decepcionado, candi- I roa: o primeiro Trotta é um simples soldado elevado à nobreza menor por um ato de heroísmo; o segundo é um alto administra- dor de província; e o terceiro, um oficial do exército cuja vida se 110 I, TA 'I ~ 111
  • 56. desperdiça em futilidades à medida que a mística dos Habsbur- na Alemanha e na Áustria; quando os nazistas assumiram o con- go perde a força sobre ele, e que morre na Grande Guerra sem trole, seria uma das escolhidas para ser submetida à eutanásia. deixar descendentes. Em 1933, Roth deixa a Alemanha de uma vez por todas e, A trajetória dos Trotta reflete a história do Império. O ideal depois de passar algum tempo vagando pela Europa, torna a do serviço desinteressado, encarnado no Trotta intermediário, instalar-se em Paris. Traduções da sua obra vinham sendo publi- deixa de manifestar-se em seu filho não porque o Império tenha cadas em uma dúzia de línguas; segundo praticamente qualquer fracassado em alguma instância objetiva, mas devido à mudança critério, tornara-se um escritor de sucesso. No entanto, sua vida financeira era um caos. Além disso, já fazia algum tempo que geral de atmosfera que torna insustentável o antigo idealismo (a bebia muito, e em meados da década de 1930 se tornara alcoóla- mesma mudança de ares que é o ponto de partida para a dissec- tra. Em Paris, montou sua base num pequeno quarto de hotel e ção da antiga Áustria em O homem sem qualidades de Robert passava os dias no café do térreo, escrevendo, bebendo e rece- Musil). O mais jovem dos Trotta, nascido na década de 1890, bendo amigos. pode ser o representante da geração de Roth e Musil ("Der Leut- Hostil tanto ao fascismo como ao comunismo, Roth procla- nant Trotta, der bin ich"), mas é seu pai, obrigado no fim da mou-se católico e envolveu-se em intrigas políticas monarquistas, vida não só a engolir a vergonha dos fracassos do filho como ain- mais especificamente em esforços para restaurar Otto von Habs- da a descobrir - como descobre, com uma humildade como- burg, sobrinho-neto do último imperador, no trono austro-hún- vente - que as crenças a que sempre foi devotado saíram de garo. Em 1938, diante da ameaça de anexação pela Alemanha, moda, a figura mais trágica do livro, mostrando o quanto Roth é viajou para a Áustria como representante dos monarquistas com mais complexo como artista crítico do que como o apologista dos a missão de tentar convencer o governo a entregar a chancelaria Habsburgo em que mais tarde iria transformar-se. a Otto. Foi obrigado a bater em retirada ignominiosa, sem sequer Nos livros de Roth, é entre os súditos mais marginais que o ter obtido uma audiência. De volta a Paris, passou a defender a Império encontra seus mais fiéis seguidores. Os Trotta, seus aus- criação de uma Legião Austríaca para libertar a Áustria pela força. tro-húngaros exemplares, não são alemães, mas eslovenos na ori- Oportunidades de mudar-se para os Estados Unidos surgi- gem. Tendo declarada extinta uma linhagem do clã, Roth de- ram, mas ele as deixou passar. "Por que você bebe tanto?", per- cide inventar um distante primo Trotta por intermédio do qual guntou-lhe um amigo preocupado. "E você, acha que vai esca- pode empreender, em Díe Kapuzínergruft (1938; traduzido para par? Você também vai ser exterminado", respondeu-lhe Roth.7 o inglês como The Emperor's Tomb), uma continuação bastante Morreu num hospital parisiense em 1939, ao cabo de vários dias inferior da Radetzkymarsch, sua história ficcional da decadência de delíríum tremens. Tinha 44 anos. do ideal imperial, transformado no cinismo e na decadência da Viena do pós-guerra. Embora Roth tenha feito experiências intermitentes no gê- Enquanto isso, Friederike Roth sucumbira à doença mental nero do conto, sua reputação no mundo de língua inglesa de- e fora hospitalizada. Passou a década de 1930 internada em asilos via-se até há pouco aos seus romances, sobretudo Radetzkymarsch. 112 113
  • 57. Então, em 2001, seus contos foram publicados numa tradução de Left and The Legend of the Holy Drinker (Nova York, Ovedook Michael Hofmann, com uma apresentação em que Hofmann Press, 1992). afirma que Roth, nos seus melhores textos, é um contista tão gran- A primeira evidente obra-prima da coletânea é "Station- de quanto Anton Tchekhov.8 master Fallmerayer" [O chefe da estação Fallmerayer] (1933)' O título The Colleeted Stories ofJoseph Roth [Contos reuni- Fallmerayer é um homem tranquilo e autossuficiente de um ti- dos de Joseph Roth] parece conter uma promessa, e nada am- po que encontramos com frequência na obra de Roth, cumprin- bígua: que nos está sendo apresentada a totalidade dos contos de do fielmente mas sem muito sentimento os deveres do amor, do Roth. Mas o que são exatamente contos? Em vez de tentar es- casamento e da paternidade. E aí intervém o destino. Um aciden- tabelecer critérios formais - uma tarefa condenada ao fracas- te de trem ocorre perto da cidade do interior da Áustria onde ele so -, Hofmann, com muita sensatez, toma como sua província é chefe de estação. Uma das passageiras, a condessa Walewska, toda a prosa ficcional de Roth para além dos seus romances. Nos uma russa (e um traço irritante dessas traduções é o uso das con- tomos relevantes dos canônicos Werke em alemão, em seis volu- venções alemãs na transliteração dos nomes russos), é levada pa- mes organizados por Fritz Hackert, encontramos dezoito textos ra a sua casa a fim de se recobrar do choque. Depois de sua par- ficcionais não rotulados de Roman, "romance". As Colleeted Sto- tida, Fallmerayer reconhece. que se apaixonou por ela. TÍes reúnem dezessete desses dezoito textos; e não levam em conta Dali a poucos meses - o ano é 1914 -, a Áustria e a Rússia que alguns desses dezoito sequer são contos acabados com co- entram em guerra. Fallmerayer combate no front oriental, so- meço, meio e fim, mas fragmentos de projetos maiores aban- brevivendo apenas graças à força de sua decisão de tornar a ver donados a meio caminho; ou nem que quatro deles foram publi- a condessa. Nas horas vagás, aprende russo por conta própria. cados, durante a vida de Roth ou postumamente, como livros E, claro, um dia descobre que se encontra nas proximidades da independentes: April: The History of a Love (1925); The Blind propriedade Walewski. Anuncia-se; ele e a condessa tornam-se Mirrar: A Short Novel [O espelho cego, 1925]; A lenda do santo amantes. beberrão (1939); e O leviatã (impresso em 1940, mas distribuído O idílio entre os dois é interrompido pela Revolução Bol- apenas em 1945). chevique. Fallmerayer salva a condessa dos comunistas e a acom- O décimo oitavo texto, omitido da coletânea, é A lenda do panha por mar até a segurança da propriedade da família em santo beberrão, corretamente classificado por Hackert como uma Monte Cado. Mas justo quando a felicidade dos dois parece ga- Novelle, uma novela ou conto longo, e não um Roman. O moti- rantida o conde Walewski, que todos julgavam morto, reapa- vo para a sua ausência das Colleeted Stories, mencionado de pas- rece. Velho e alquebrado, demanda cuidados, e sua mulher não sagem na apresentação, é que já havia uma tradução sua (do tem como recusar. Fallmerayer avalia a situação e, sem uma pa- próprio Hofmann) disponível no mercado. As Colleeted Stories, lavra, vai embora. "E nunca mais se ouviu nada a seu respeito." portanto, não são os contos reunidos em sentido estrito: precisam (Colleeted Stories, p. 201) ser complementadas seja por A lenda do santo beberrão (Lon- A intuição de Roth acerca do que pode e não pode ser al- dres, Chatto & Windus, 1989) ou pelo volume misto Right and cançado na forma do conto é segura. Aos olhos de um romancis- 114 115
  • 58. J f ta - Tolstói, por exemplo, cuja influência pode ser claramente "; a burocracia do Estado. Mas agora perdeu o poder e a influên- detectada não apenas nesse conto, mas no recém-finalizado Ra- I ~ cia. Ainda assim, os aldeões - judeus, polacos, rutênios - con- detzkymarsch - a sequência de acontecimentos que leva do pri- tinuam a respeitá-Io. E essas pessoas merecem respeito, comenta meiro encontro entre o chefe de estação e a condessa até a che- gada do conde pode parecer limitar-se a criar o pano de fundo para a questão que de fato interessa: o que poderá fazer da vida um austríaco de meia-idade que abandona a família e seu país I '. ••••.•. , veis da história mundial". "O vasto"aosos governantes diferente da pequena aldeia de Lopatyny quanto caprichos tão e os dema- o narrador, por resistirem assim mundo não é incompreensí- gogos gostariam de fazer-nos acreditar", acrescenta ele em tom para seguir uma mulher, e agora se vê à deriva na Europa do sombrio. (p. 241) pós-guerra? Mas Roth nem sequer aborda a questão. Sem negar Quando as novas autoridades polonesas ordenam que ele o poder que o amor, mesmo o amoltr fou, tem de nos transformar retire o busto do imperador, Morstin supervisiona um enterro em seres humanos mais plenos, ele conduz Fallmerayer até o solene da estátua. Em seguida, refugia-se no sul da França para limiar do e agora?, e então o deixa lá. terminar seus dias e escrever suas memórias. "Meu antigo lar, a "O busto do imperador" (1935) pertence claramente à fase monarquia ... era uma morada com muitas portas e muitos quar- ultraconservadora de Roth. Passado na Galícia imediatamente tos para muitos tipos diferentes de pessoas", escreve ele. "Mas a depois da Grande Guerra, fala do quixotesco conde Franz Xa- morada foi dividida, esfacelada, arruinada. Nada tenho a ver com vier Morstin, que, embora suas propriedades agora se encontrem o que existe hoje em seu lugar. Estou acostumado a viver numa em território polonês, mantém um busto do imperador Francis- casa, e não em cabanas." (p. 247) co José diante da sua residência e costuma ostentar o uniforme Obras como "O busto do imperador" e "O túmulo do impe- de oficial da cavalaria austríaca. A história é contada por um nar- rador" são conservadoras não apenas na postura política, mas rador sem nome para o qual esse protesto obscuro e discreto con- também na técnica literária. Roth não é modernista. Parte do tra o curso da história parece merecer todo o louvor. motivo é ideológica; parte, uma questão de temperamento; e parte, O narrador não perde seu tempo em nos externar sua opinião para falarmos com franqueza, o fato de ele não ter acompanha- sobre os tempos modernos. Ao longo do século XIX, observa ele em do os desenvolvimentos no mundo literário. Roth não lia muito; tom cáustico, concluíra-se que "cada indivíduo precisa ser mem- gostava de citar Karl Kraus: "Um escritor que passa o tempo len- bro de uma determinada raça ou nação". E então todas essas pes- do é como um garçom que passa o tempo todo comendo".9 soas que nunca tinham sido outra coisa senão austríacos ... come- "O Leviatã" é uma narrativa de tipo totalmente diverso. A çaram, obedecendo a essa "ordem do dia", a ver-se como membros reticência de Roth em relação às suas origens de Ostfude desa- das "nações" polonesa, tcheca, ucraniana, alemã, romena, eslo- parece por completo. Passado não na Galícia, mas na região vena, croata. Entre os poucos que continuam a ver-se "para além vizinha da Volínia, no Império Russo, é um conto expansivo, lírico no tom, folclórico no estilo. Em seu centro se encontra da nacionalidade" estava o conde Morstin. (pp. 232,233,228) Antes da guerra, o conde costumava exercer um papel so- cial e funcionar como uma espécie de mediador entre o povo e , o judeu Nissen Piczenik, que embora ganhe a vida vendendo contas de coral a camponesas ucranianas nunca viu o mar. No 116 117
  • 59. "'"'" oceano da sua imaginação, todos os seres, inclusive os corais, que animam a grande literatura. "Juventude" mal se esforça para vivem sob os cuidados de um animal fabuloso, o Leviatã da Sa- passar por ficção: temos a impressão de estarmos diante de uma grada Escritura. autoanálise do próprio Joseph Roth, implacável e muito preca- Piczenik torna-se amigo de um jovem marinheiro, em cuja riamente velada. companhia começa a frequentar tavernas e faltar às orações. "O espelho cego" (1925) é a história de uma jovem comum, Abandona a família para ir até Odessa com o novo amigo e fica sonhadora, submissa e sexualmente inocente da classe operária, semanas por lá, fascinado com a vida do porto. Fini - uma síísse Miídel ("jovem ingênua"), no jargão vienense. De volta à sua terra, descobre que está perdendo a freguesia Aqui Roth se entrega a um pastiche do estilo da noveleta, miti- para um rival que vende contas novinhas de celuloide. Cedendo gando o sentimentalismo xaroposo com toques irônicos e alguns à tentação, começa a misturar contas de celuloide às de coral. rasgos poéticos em tom sombrio. Fini trabalha num escritório do Mas nem assim recupera a boa sorte. E decide emigrar. A cami- centro e vive numa casa pequena com a mãe perseguidora e um nho do Canadá, seu navio naufraga. "Que descanse em paz ao pai reformado do exército por invalidez. Seduzida por um ho- lado do Leviatã até a vinda do Messias" são as últimas palavras mem mais velho, ela logo descobre como é escasso o prazer na desse mais ostensivamente judaico dos contos de Roth. (p. 276) vida quase marital com um amante que nunca toma banho, an- "Stationmaster Fallmerayer", "O busto do imperador" e "O da de chinelo pela casa e costuma esquecer de abotoar a bragui- Leviatã" são obras da maturidade de Roth. Os contos mais an- lha. "Uma vez por semana, ou talvez duas, os dois mantinham tigos das Colleeted Stories são muito desiguais, incluindo inex- congresso no sofá do gabinete, uma entrega infeliz, silenciosa e pressivos textos naturalistas, experiências frustradas e fragmentos acompanhada por lágrimas silenciosas, como a comemoração abandonados. Entre os contos completos dessa fase anterior, dois desesperada de aniversário de um paciente terminal". (p. 128) se destacam. "O aluno brilhante" (1916) é uma estreia de notá- Tardiamente, Fini encontra o verdadeiro amor nos braços vel segurança. Passado numa pequena cidade da Áustria alemã, de um intrépido revolucionário. Quando seu amante desapare- acompanha com um olhar satírico a ascensão de Anton Wanzl, ce, ela se suicida por afogamento. Sua história - uma descon- o aluno brilhante do título, zeloso, disciplinado, obsequioso, as- fortável mescla de paródia, sentimentalismo e realismo urbano tuto - uma criatura perfeitamente adaptada ao progresso na _ acaba com seu cadáver estendido na mesa de dissecção de uma burocracia educacional. Como muitos dos contos iniciais, porém, escola de medicina. este também começa cheio de ideias e de energia, depois perde Em suas cartas da década de 1920, Roth faz menções repe- o vigor e acaba mal. tidas a um grande romance em que viria trabalhando. O roman- A personagem de Wanzl é recuperada e retrabalhada cer- ce nunca chegou a ser concluído; e só restaram dois fragmentos ca de quinze anos mais tarde, numa narrativa de primeira pessoa _ fieiras de anedotas, de caráter fantástico e pontilhadas de ima- intitulada "Juventude". O narrador se apresenta como um ho- gens notáveis, baseadas nos seus anos de juventude na Galícia. mem frio e cínico, sensual, mas impiedoso com as próprias emo- Mais tarde, Roth transporia esse material num tom mais som- ções, destacando-se em estudos literários mas estranho às paixões brio e o usaria num vigoroso romance curto, Das falsehe Gewieht 118 119
  • 60. [O peso falso], traduzido para o inglês como Weights and Measu- inglês" burnish" deriva do francês "brunir", "lustrar", que nada res, outra obra em que um homem só encontra o amor tarde tem a ver com o calor ou queima, pode ser posta de lado, pois demais na vida e não tem como viver seus prazeres. ocorre que todas as palavras começadas por brun- e burn- têm suas raízes emaranhadas no passado indo-europeu. O único pro- Michael Hofmann já traduziu Roth antes, e foi premiado blema é que nenhuma parte desse engenho verbal se encontra por suas traduções. O inglês de Hofmann é expressivo, contido e em Roth, em cujo alemão o sol se limita a "refletir-se" ("spiegelte preciso como o alemão de Roth no que tem de melhor. Entre- sich") no par de samovares. (p. 261) tanto, nem sempre Roth escreveu tão bem quanto podia, e o que Às vezes Hofmann dá a impressão de empurrar Roth nu- Hofmann faz quando Roth não está no auge da forma é causa ma direção em que o original não estava indo: a pressão dos de- para alguma preocupação. dos de um homem no braço de uma jovem torna-se "insistente" Em "O Leviatã", por exemplo, Roth descreve no original os quando no original era apenas suave. Às vezes, por outro lado, trajes noturnos da mulher do vendedor de coral Piczenik como ele deixa passar uma ênfase significativa. Para o narrador de "O "uma camisola comprida, salpicada de uma série de manchas busto do imperador", a geração que herdou o poder na Europa irregulares e pretas, indícios da presença de pulgas". Hofmann depois de 1918 já era ruim, mas não tanto quanto (na versão de condensa isso em "a long flea-spotted nightgown" ("uma compri- Hofmann) "os herdeiros ainda mais progressistas e assassinos" da camisola manchada de pulgas"). No mesmo conto, Piczenik que a sucederam - uma clara alusão a Mussolini, Hitler e suas é saudado por suas freguesas, no texto de Roth, "com abraços e hordas. Mas como alguém poderia chamar os fascistas de "pro- beijos, rindo e chorando, como se nele elas recuperassem um gressistas"? No alemão, a palavra é "moderneren", "mais mo- amigo que não viam havia décadas, e cuja falta sentiram por dernos": para Roth em sua fase tardia, é a linha de pensamento muito tempo". Na versão de Hofmann ele é recebido "com abra- moderno que dá origem ao Estado-Nação europeu que também ços e beijos, como um amigo perdido". Nos dois casos, Hofmann sanciona os ódios étnicos que haveriam de levar a Europa à ca- parece ter decidido transmitir melhor o que Roth pretendia re- tástrofe. (pp. 105,237) formando ou condensando o original, em vez de traduzir cada Hofmann é britânico, e vez por outra emprega locuções de palavra do texto. Mas será mesmo parte do trabalho do tradutor uso britânico cujo significado pode escapar ao leitor americano. tentar dar lições de economia ao autor que traduz? (pp. 263, 260) Um rapaz planeja "to see off" ("afugentar") um rival pelo afeto Há casos em que Hofmann melhora o texto de Roth a pon- de uma jovem. Uma garota pergunta a outra se ela já "has been to de na verdade reescrevê-Io. Em Hofmann, encontramos um par poorly" ("teve a sua menstruação"). Alguém "havers" ("hesita") de samovares de cobre "brunidos pelo sol poente" ("burnished à porta de um hospital. Assim como se pode defender a tradução by the setting sun"). Brunir um metal é o mesmo que lustrá-Io, para o dialeto do inglês que o tradutor domina com mais clareza, fazê-Io brilhar. Mas dentro da palavra inglesa "burnish", por um também se pode defender, ao contrário, que deve usar o dialeto feliz acidente linguístico, encontra-se a palavra "burn" - e as- mais linguisticamente neutro que puder. (pp. 25, 102, 118) sim o cobre é levado a reluzir pelo ardor ("burning") da luz do sol, por assim dizer. Qualquer objeção que nos lembre que o (2002) 120 121
  • 61. 7· Sándor Márai 1 I1 i! No devido tempo, os dois jovens se formam na academia e entram para a Guarda. Enquanto Henrik leva uma vida conven- j .~. cional de oficial militar, Konrad começa a passar as noites sozi- I; nho, entregue à leitura. Ainda assim, mesmo depois que Henrik se casa com a linda Krisztina, o laço entre os dois jovens perma- I, nece intacto. O flashback termina. O velho general abre uma gaveta se- ·1: creta e tira dela um revólver carregado. I I1 Em meio à escuridão Konrad chega (e como ele fez para 1I atravessar a Europa ocupada pelos alemães, não cuida de expli- car). Durante o jantar, descreve sua vida desde que ele e Henrik I1 seguiram caminhos separados, quarenta anos antes. Passou anos trabalhando na Malásia, para uma empresa mercantil inglesa. Tornou-se cidadão britânico e vive na Inglaterra. Henrik, por sua Estamos com o velho general, Henrik, em seu castelo na I' vez, conta como, depois que a monarquia austríaca foi abolida, Hungria. O ano é 1940. Vinte anos se passaram, depois da queda decidiu renunciar à sua patente de oficial. da monarquia dos Habsburgo, sem que o general aparecesse em Os dois concordam que a dissolução do Império pós-1919 público. Agora ele espera um visitante, seu outrora grande ami- pôs fim aos sentimentos de lealdade de qualquer um deles. Kon- go Konrad. rad: "A pátria para mim era um sentimento. Esse selltimento foi O general contempla os retratos dos progenitores: seu pai, ferido. [...] Nada daquilo a que juramos fidelidade existe mais. oficial da Guarda, e sua mãe, aristocrata francesa que fez o pos- [...] Havia um mundo pelo qual valia a pena viver e morrer. Esse sível para encher de cor e música aquele mausoléu de granito mundo morreu". Mas Henrik objeta: "Para mim aquele mundo perdido na floresta, mas ao final sucumbiu sob seu peso frio. continua vivo, mesmo se na realidade não existe mais. Está vivo Num longo flashback, ele rememora como, na infância, fora le- porque jurei fidelidade a ele". (pp. 74-5) vado para Viena a fim de se alistar numa academia militar; co- Um raio atinge a rede elétrica. No castelo, os dois velhos mo lá conhecera Konrad, como os dois se tornaram insepará- continuam seu jantar à luz de velas. Quase cem páginas se pas- veis. Durante as férias, em casa, ele e Konrad cavalgavam juntos saram. Estamos na metade de As brasas (o título em húngaro e esgrimiam juntos, jurando permanecer castos. "Não há nada diz, literalmente, Extinguem-se as velas). É hora de Henrik co- mais delicado do que uma relação como esta. Tudo o que a meçar a tratar do que interessa. vida propiciar mais tarde, sentimentos de ternura ou desejos Ao longo de todos esses ú1ti~TIOS quarenta anos, conta ele a brutais, paixões impetuosas e ligações fatais, será mais rude e Konrad, viveu atormentado por uma pergunta para a qual fi- desumano."! nalmente quer uma resposta. Na verdade, se Konrad não tivesse 122 123
  • 62. vindo visitá-Ia naquela noite, ele teria partido à sua procura, mes- mo que fosse nas próprias entranhas do inferno. Lembra a Kon- rad o que aconteceu num dia fatídico de 1899, quando bateu à I~l ª" I! ~, I~ i ! .. começamos a aceitar que nossos desejos não encontraram jamais encontrarão um eco verdadeiro no mundo. "As pessoas que amamos não retribuem o nosso amor, ou pelo menos não nem porta do apartamento de solteiro de Konrad e, para sua surpresa como gostaríamos." (p. 106) Assim, de Konrad ele não pede mais - nunca estivera lá antes, e esperava um cenário espartano _, que a verdade. O que de fato acontecia entre ele e Krisztina? encontrou o lugar repleto de belos objetos, "tapeçarias e tapetes, f- Às perguntas, acusações, ameaças e pedidos de Henrik, Kon- bronzes e prataria antiga, cristais e móveis, tecidos raros". (p. 94) i' rad não dá nenhuma resposta e, ao amanhecer, vai embora. A Enquanto contemplava tudo aquilo, maravilhado, Krisztina en- 11 última página está virada, o revólver não é usado. trou pela porta, e os antolhos caíram de suas vistas. As brasas é um romance - na realidade uma novela - em I, I' Konrad e Krisztina o traíam e enganavam - eis por que I que pouca coisa acontece. Do trio de personagens, Krisztina é I Konrad fugira do país. Mas será que sua traição fora ainda mais uma sombra e Konrad, um silêncio obstinado. O castelo, a tem- I1 .,; profunda? Não consegue esquecer o momento em que, saindo pestade, a visita noturna de Konrad resultam em não mais que para a caça com Konrad, um sexto sentido lhe avisa que a arma um cenário e uma ocasião para que Henrik possa fazer em voz de Konrad estava apontada não para o cervo, mas para a sua nuca. (E ele não se vira: não quis passar pelo "sentimento de vergonha [...] que deve sentir a vítima quando é obrigada a olhar na cara de seu assassino".) Teriam planejado juntos assassiná-Ia e, se era mesmo esse o caso, por que seu plano fracassara? Só por- I II li ~I alta suas reflexões sobre as mutações sofridas por sua dor e seu ciúme ao longo do tempo, e proferir suas meditações sobre a vi- da. O livro dá a impressão de uma transcrição narrativa, às vezes até canhestra, de uma peça teatral. Entre os tópicos acerca dos quais Henrik expõe suas ideias que faltara a Konrad a coragem de puxar o gatilho? (p. 114) II bastante convencionais estão a guerra recém-irrompida (um mun- Henrik rememora o veredicto particular de seu pai sobre I do enlouqueeido); os povos primitivos (ao menos conservaram Konrad: que no fundo ele não era um soldado. Como Krisztina, uma noção da natureza sagrada do homicídio); as virtudes mas- morta há tanto tempo, Konrad era amante da música. E Henrik culinas do silêncio e da solidão, e a inviolabilidade da palavra não compartilha essa paixão. Lembrando o herói patologicamen- dada; a amizade (um sentimento conhecido apenas pelos ho- te ciumento da Sonata Kreutzer de Tolstói, ele acusa a música de mens, e mais nobre que o desejo sexual porque não pede nada ser um apelo à libertinagem e à anarquia, uma linguagem secre- em troca); e a caça (a única arena onde os homens ainda podem ta usada por "certas pessoas" para manifestar "coisas vagas, insó- experimentar uma alegria proibida, a saber, o impulso, nem bom litas; às vezes [...] até [...] algo inconveniente, imoral". (p. 138) nem mau em si mesmo, de exterminar seu antagonista). "Você matou algo dentro de mim", conta ele a Konrad. "E esta As opiniões de Henrik são as que poderíamos esperar de noite matarei algo dentro de você." (pp. 110-1) qualquer enferrujado general da reserva. Mas ele é mais que No entanto, no mesmo momento em que tem Konrad à sua isso. Também é um seguidor da interpretação vulgarizada de mercê, seu desejo de vingança parece esvair-se. De que pode lhe Nietzsche, com sua romantização da violência e sua mística ho- valer, afinal, a morte de Konrad? Com a idade, ao que parece, moerótica, que predominou em meio à inconformada elite mi- 124 125
  • 63. ----~ litar europeia da virada do século XIX para o XX. Uma das manei- ras de ler As brasas é como uma obra irônica, escrita de maneira I ;;O, II li podemos falar com mais ninguém. Ainda assim, sabemos quem somos, e aquilo de que não podemos falar constitui a "verda- a permitir aos Henriks do mundo expor a crueza das suas ideias em suas próprias palavras, sem qualquer intervenção autoral. Pa- ra que essa leitura tenha valor, porém, o leitor precisa aceitar o Illi I; i de". Somos aquilo a cujo respeito guardamos Landi. .., p. 83) silêncio. (Land, li ,'ª" ::e' livro como uma impostura acabada, em que os sentimentos do ,,' E noutro ponto Márai observa que, na arena do amor, a mu- próprio Márai são deliberadamente silenciados. A linguagem li lher que revela seu segredo corre o risco de perder o jogO.3 recheada de clichês espelharia então a sensibilidade sem poli- II Numa segunda leitura de As brasas, talvez sejam Kon- mento de Henrik, bem como a míse-en-scene igualmente deslus- .1 rad, com sua recusa deliberada em apresentar suas desculpas, e trada: o castelo gótico assombrado por "presenças intangíveis"; II Krisztina, que entre o dia fatídico da fuga de Konrad e sua morte a mesa adornada com uma porcelana "de raro encanto"; laços não diz uma palavra ao marido ("ela se mostrou superior", co- :11 "profundos demais para as pálavras" entre o patrão e o antigo cria- menta ele cheio de admiração), que são mais fiéis a si mesmos. do que atende às suas necessidades; "antigos textos" que ele con- 1I .. 1 (As brasas, p. 161) sulta à procura do sentido da vida etc. etc. A leitura de As brasas, publicado em Budapeste em 1942, Uma leitura alternativa desse livro enigmático - enigmáti- pode ganhar muito se for feita em paralelo com a novela O le- co porque tão deliberadamente fora de contato com o seu tempo gado de Eszter, lançada três anos antes.4 Como As brasas, O lega- (foi lançado durante a Segunda Guerra Mundial) - daria mais do de Eszter parece ter sido concebido como uma peça teatral. peso ao pessimismo de Márai quanto à nossa capacidade de co- Tem o mesmo foco numa personagem única que passa o tempo nhecer os outros, e a sua resignação estoica a não ser, ele pró- todo em cena, e uma psicologia críptica e similar que resulta prio, conhecido. "Na literatura, como na vida", escreve ele em num ato inesperado: uma mulher de meia-idade em circunstân- suas memórias Land, Land! ... [Terra, Terra!. ..], "só o silêncio é cias difíceis transfere suas propriedades a um homem que, como 'sincero'."2 Depois que você revela seu segredo mais íntimo, de- sabe perfeitamente, usa mentiras sentimentais sistemáticas pa- siste da sua identidade e, nesse sentido, deixa de ser quem é. (Daí ra enganá-Ia. Como assinala ela com um humor distanciado, há o desdém que Márai sente pela psicanálise, com suas ambições em si algo que parece a compelir a ser enganada. Ela poderia terapêuticas.) Mesmo que no fundo o general sinta não ser a ca- resistir, mas fazê-Io seria contrariar o seu caráter. Resistir seria re- ricatura que parece, não tem como protestar nem se debater, e jeitar essa versão caricatural da feminilidade, da mulher como a só pode desempenhar seu papel até o fim. Num trecho crucial, criatura que ama ouvir mentiras, que adora ceder. Resistir a essa Márai escreve: caricatura seria insurgir-se contra o teatro da vida, debater-se pa- ra emergir do sonambulismo do destino. O heroísmo mais pro- Não nos limitamos a agir, falar, pensar e sonhar; também guar- fundo, somos levados a inferir, reside na aceitação estoica. damos silêncio sobre algo. Passamos a vida toda sem falar so- O legado de Eszter é mais direto que As brasas em sua es- bre quem somos, sobre aquilo que só nós sabemos e de que não tratégia narrativa, mais transparente quanto à sua ascendência 126 127
  • 64. r I' II Em 1928 voltou à Hungria para estabelecer-se em definitivo - Tchekov, Strindberg -, e assim talvez seja uma apresentação menos enigmática ao fatalismo austero e radical de Márai. li e reaprender devidamente a língua. Escreveu em abundância, i I' i tanto peças teatrais quanto romances. Entre 1930 e 1939 lançou dezesseis livros, com os quais começou a conquistar um contin- Sándor Márai nasceu em 1900 na cidade interiorana de Kassa, que depois do fim da Dupla Monarquia, em 1919, deixou gente substancial de leitores tanto na Hungria como no mundo I i, de ficar na Hungria e, com o nome de Kosice, foi entregue à de língua alemã. Não pertencia a nenhum partido político, le- recém-criada nação da Tchecoslováquia. Do lado de seu pai, vava uma vida discreta. Seu tributo ao romancista Gyula Krúdy um advogado, a família era de origem saxã: o nome era Grossch- fala muito dos seus valores: "Ele não estava preparado para es- midt, mas após os levantes de 1848, em que lutaram do lado na- crever a certa classe social nem para o Volk, só para a classe e o cionalista húngaro, decidiram mudá-Io. Em casa, a família fala- Volk das pessoas independentes. Nunca se esforçou para ser o va mais alemão do que húngaro. queridinho da pátria".5 A formação de Márai foi interrompida pela Primeira Guer- Veio a Segunda Guerra, mas o fluxo das suas obras conti- ra Mundial. Convocado aos dezessete anos, parece ter passado mIOU a ser publicado sem interrupção. Entre elas estava um re- a maior parte do seu tempo de serviço internado num hospital. lato autobiográfico do seu retorno a Kassa, agora restituída à Depois da guerra, viveu um rápido flerte com a esquerda estu- Hungria. Em 1943, juntamente com outros escritores húngaros, dantil e partiu em seguida para o estrangeiro. Em Leipzig, matri- assinou uma carta aberta em favor da defesa da cultura hún- culou-se no recém-criado Instituto de Jornalismo, mas achou as gara, que considerava ameaçada, contra as influências externas. aulas acadêmicas demais e decidiu mudar-se para Frankfurt, on- Começou a escrever um diário, composto já tendo em vista a de a atmosfera intelectual mais estimulante o deixava mais à publicação futura, e o primeiro volume, cobrindo 1943-4, saiu vontade. Tinha um talento genuíno para fazer novos contatos, e em 1945. logo começou a escrever no prestigioso Frankfurter Zeítung. Leu Entre o fim da guerra, em 1945, e o ano de 1948, Márai pu- Kafka e traduziu alguns dos seus contos para o húngaro. blicou mais oito livros. Mas, à medida que a tomada das insti- De Frankfurt avançou para Berlim. Seu plano era conseguir tuições do país por ordens de Moscou ia ganhando ímpeto, a um diploma alemão, aculturar-se plenamente e depois construir atitude oficial em relação a ele tornava-se cada vez mais glacial. _ uma carreira de escritor em língua alemã - na verdade, a fim Interpretando corretamente os sinais, Márai partiu para o exílio, de retomar seu legado Grosschmidt. Em lugar disso, contudo, casou-se com uma jovem de Sassa, abandonou os estudos e foi primeiro na Suíça, depois na Itália e finalmente em Nova York. morar em Paris, onde levava uma vida de intelectual descom- O levante húngaro de 1956 renovou suas esperanças. Voltou para prometido com uma incerta identidade centro-europeia. Por cin- a Europa, só para deparar-se com uma verdadeira torrente de co anos, usou Paris como base para viagens extensas. Escreveu refugiados expulsos pela derrota. Em 1979, ele e a mulher se- para jornais húngaros; escreveu também um primeiro romance, guiram o filho adotivo, um órfão de guerra, de mudança para a que mais tarde decidiria repudiar. Califórnia. Márai morreu em 1989, por suas próprias mãos. 128 129
  • 65. Durante seu exílio, Márai foi publicado em húngaro pela que resta ao escritor é usar a experiência de sua viagem para editora Vorosvary-Weller, de Toronto, e teve traduções lança das refletir sobre o fato de que naquele continente é estrangeiro, um na França e na Alemanha. Ao todo, entre 1931 e 1978, 22 dos seus europeuJ livros foram lançados em traduções para o alemão. O fato de a admiração por sua obra não ter sido afetada pelas mudanças no O maior sucesso popular obtido por Márai foi com um li- clima político sugere que sua noção do que significava permane- vro intitulado Confissões de um burguês. Quando foi lançado cer acima da política corrente encontrava eco na classe média em 1934, o livro foi considerado autobiográfico. Alarmado, Má- alemã. Enquanto isso, Márai continuava a trabalhar nos seus Diá- rai acrescentou uma nota do autor à terceira edição, enfatizando rios: mais cinco volumes foram publicados entre 1958 e 1997. que o que escrevera era uma "biografia ficcional" cujas perso- Em 1990, foi-lhe atribuído postumamente o Prêmio Kossuth, a nagens "não vivem nem jamais viveram no mundo real". Ainda maior honraria húngara. assim, a trajetória do herói das Confissões acompanha bem de O único livro a emergir diretamente da experiência ameri- perto os contornos conhecidos da vida anterior de Márai, en- cana de Márai é The Wind Comes fTOm the West [O vento vem quanto suas opiniões são de todo consistentes com as de Márai. do oeste], uma coletânea de textos baseados numa viagem que Fica para um biógrafo futuro separar que parte delas foi exata- fez na década de 1950 através elo Sudoeste e do Sul dos Estados mente inventada. Unidos, com uma rápida escapada até o México. Um dos cri- O primeiro volume das Confissões nos leva a percorrer a térios para avaliar a qualidade de um livro de viagem é verificar infância e a juventude do herói sem nome, primeiro no lar con- se ele oferece aos nativos alguma nova perspectiva acerca de si fortável dos seus pais em Kassa, depois num internato de Buda- mesmos. E Márai não passa nesse teste. Suas informações sobre peste. Essa evocação amorosa e extensa de um modo de vida há os Estados Unidos parecem vir mais dos jornais americanos do muito desaparecido é o que o livro tem de mais atraente. Trata-se que de uma observação pessoal; seus comentários sobre o que vê de um modo de vida - o da Mittlestand da Europa central, raramente são originais ou marcantes. É difícil imaginar que al- trabalhadora, patriota, socialmente responsável, respeitosa do co- gum americano possa achar esse livro muito interessante, salvo nhecimento - a cuja memória Márai ainda se aferrava bem de- talvez tangencialmente, como um registro de como um europeu pois de ter desaparecido. da geração e da formação de Márai via o seu país (San Diego, O segundo volume acompanha os Wanderjahre'" do herói por exemplo, é elogiada por ter um centro compacto e uma ele- enquanto ele vagueia pela Europa do pós-guerra, primeiro como gância que evoca o sul da Itália).6 um estudante não exatamente aplicado e mais tarde como escri" O próprio Márai via com outros olhos seu comentário sobre tor free-Iancer, de Leipzig a Frankfurt a Berlim a Paris e a Floren- a América. Nos velhos tempos, afirma ele, um visitante europeu ça até que, em 1928, ele retoma a Budapeste para dedicar-se se- à América podia fazer de conta que era um explorador percor- riamente a uma vida de escritor. rendo terras por descobrir. Mas na América de hoje não existe mais nada a descobrir, porque nada mais é desconhecido. Tudo ':' Período sabátíco dos jovens europeus antes de se estabelecerem. (N. E.) 13° 131
  • 66. fi Em Berlim, com o marco local cada vez mais desvalorizado ' nha de Goethe e Thomas Mann. Quem poderá saber qual delas e com os bolsos cheios de florins húngaros, ele se vê numa situa- I é a verdadeira? (pp. 334-5) ção confortável. Associado a alguns amigos, aluga um escritório O segundo volume termina com o herói instalado em seu e começa a publicar uma revista literc'íria. Tem aventuras eróti- gabinete em Budapeste, cheio de maus presságios quanto à ma- cas; escreve sua primeira peça de teatro. A vida nunca tinha sido neira como o mundo vem evoluindo e suas próprias perspectivas tão alegre e despreocupada. pessoais. Nos dez anos que passou no estrangeiro, perdeu o do- Em Paris, ele e a mulher que acabara de desposar entre- mínio da língua materna. Por toda a Europa o nível da cultura ganHe a la vÍe boheme. E sofrem bastante. A comida é ruim, as baixa dramaticamente, os padrões de civilização desaparecem, o instalações sanitárias são indizíveis, não entendem a fala das instinto de manada predomina. Entretanto, mesmo ao risco de ruas. "Vivíamos exilados numa cidade grosseira e mal-intencio- parecer um sexagenário prematuro, ele ergue a voz em defesa nada." Ao cabo de um ano decidem abandonar a experiência; do Iluminismo burguês, "houve um tempo e viveram algumas mudam-se para a Rive Droite, alugam um apartamento confor- nações que proclamaram a glória da razão sobre os instintos, e tável, importam uma criada de Kassa, compram um carro, vivem acreditaram no poder de resistência do espírito, capaz de conter com mais largueza. Márai ainda se sente atraído por Montpar- o desejo de mOlte da horda". (pp. 450-2) nasse ("ao mesmo tempo seminário acadêmico, banho a vapor e Lidas como uma narrativa de ficção, as Confissões são epi- conferência ao ar livre"), mas preferivelmente na qualidade de sódicas e escassas em dramaticidade. Como memórias da vida espectador, não de participante.8 artística na Berlim e na Paris dos anos 1920, são carentes de ob- Aos poucos, aprende a ser mais compreensivo com os fran- servação e superficiais nos seus juízos. Melhor aceitá-Ias como ceses. Podem ser um povo obstinado e avarento, a guerra pode o que seu título proclama: uma declaração de fé de um jovem ter minado sua confiança, mas não perderam o sentido de pro- que, tendo experimentado a vida de boêmio expatriado e tendo porção que lhes é peculiar, nem a noção do que lhes é favorável. visto em primeira mão os inquietantes desdobramentos políticos Sua modéstia e falta de gosto - "consciente, quase humilhan- da Itália e da Alemanha, sente a confirmação do que já parecia te" - transformam-se numa característica positiva. E não preci- saber desde o início: que em todos os aspectos mais relevantes sam de muito para se abrirem e dispensarem um tratamento mais ele pertence a uma estirpe em extinção, a burguesia progressista caloroso aos outros. (p. 395) do Império Austro-Húngaro. Quanto aos alemães, com seu sentimento de culpa de fun- do mítico, impossível de expiar, com sua tendência ao compor- Entre os húngaros, parece haver um consenso de que Má- tamento de massa, sua belicosidade nervosa e complicada, seus rai ficará lembrado pelos seis volumes dos seus diários. Ainda uniformes perturbadores, sua fome impiedosa de ordem e sua não estão disponíveis em inglês; a recente edição alemã foi mui- falta de ordem interior, bem podem representar um perigo para to criticada pelo descuido do seu trabalho editorial. a Europa. Ainda assim, por trás da Alemanha "pedante e pertur- Entre os diários poderiam ser incluídas as memórias que re- bada" cintila uma Alemanha alternativa e mais suave, a Alema- ceberam o infeliz título de Land, Land!. .. (em húngaro Fold, 132 133
  • 67. Fold), lançado em Toronto em 1972. (O título húngaro evoca o Quanto a Márai, em sua disposição de espírito spengleria- grito do marinheiro de vigia na gávea a bordo da capitânia da na, preferia reunir soviéticos e chineses sob o mesmo rótulo de frota de Colombo ao avistar o Novo Mundo.) Em 1996, Land, "orientais". Entre as variedades oriental e ocidental de consciên- LandJ ... foi relançado em inglês com o título igualmente desgra- cia supunha haver um golfo intransponível: a consciência orien- cioso de MemoÍr of Hungary 1944-48.9 A tradução de 1996 é exe- tal contém espaços internos criados pelas vastas geografias, e his- crável, e não é usada neste ensaio. Mesmo assim, até que te- tórias de sujeição que os ocidentais não têm como acompanhar. nhamos traduções dos diários e de maior parte do corpo da obra Os russos podem ter expulsado os alemães da Hungria, "mas li- ficcional de Márai, essa será a parte mais substancial da sua obra berdade não poderiam trazer, [pois eles próprios] não desfrutam a que leitores de língua inglesa terão acesso, e nossa avaliação do dela". Aqueles jovens russos mal podem ser diferenciados da HÍ- seu valor precisará apoiar-se muito nela. tlerjugend: "Em suas almas, o brilho da cultura herdada se apa- Land, Landt. .. são memórias da vida de Márai entre a che- gou". (pp. 64-6,19,35) gada do Exército Vermelho aos arredores de Budapeste em 1944 e Embora perfeitamente cônscio de que os nazistas, que des- sua partida para o exílio, em 1948. Não é forte em incidentes - prezava, usavam uma leitura vulgarizada de Spengler em sua Márai não testemunhou nenhum combate, e para a família Má- teoria da história, é a Spengler que Márai recorre na sua inter- rai o período do imediato pós-guerra foi dedicado acima de tudo pretação histórica da expansão da Rússia para o oeste. E por quê? à mera sobrevivência precária numa cidade devastada. Consiste Em parte porque a interfusão de cultura e raça em Spengler é antes numa crônica das mudanças políticas, sociais e espirituais compatível com a ideia de cultura inata de que o próprio Márai ocorridas na capital húngara à medida que o Partido Comunista estava tão impregnado desde a origem, e em parte porque o pes- intensifica seu controle sobre todos os aspectos da vida do país. simismo de Spengler em relação ao destino do Ocidente (isto é, Por algumas semanas do verão de 1944, Márai precisou com- da cristandade europeiaocidental) é semelhante ao seu, mas em partilhar sua vílla ao norte de Budapeste com soldados russos, e parte também porque Spengler pertence ao fundo de leituras de a propinquidade forçada entre o europeu central alto e elegante Márai, e um dos artigos mais respeitados do credo conservador que passava seu tempo absorvido na leitura do DeclínÍo do OcÍ- de Márai é nunca ceder sem resistência. dente, de Spengler, e aqueles jovens camponeses russos, quir- Depois da expulsão dos alemães, Márai e a mulher retomam guizes e buriatos, em conversas rudimentares mediadas por uma para a área urbana de Budapeste, onde encontram seu aparta- jovem que falava tcheco, serviu de alerta para as duas partes. "O mento em ruínas e a biblioteca quase toda destruída. Mudam-se senhor não é um burguês", disse um dos russos mais perspicazes para uma residência improvisada, esperando com seus conci- a Márai, "[porque] não vive da riqueza [herdada] nem do traba- dadãos o passo seguinte da libertação, a saber, a volta da Hun- lho dos outros, mas do seu próprio trabalho. Ainda assim ... no gria ao seio da Europa cristã e católica. Quando começam a per- fundo da alma o senhor é um burguês. E se apega a uma coisa ceber que aquela espera era vã (o Esperando Godot de Beckett, que não existe mais". (Land, Land! ... , p. 53) diz Márai, captura com exatidão o espírito dominante naquele 134 135
  • 68. interregno), e que a Hungria fora abandonada aos russos, uma é, quando tive a oportunidade, não ter levado uma vida mais onda de ódio um tanto aleatório espalha-se pelo país. Na verda- confortável e mais variada." (pp. 125, 127) de, diz Márai, um dos traços do período do pós-guerra em geral É preciso muita autoconfiança, até mesmo bastante arro- foi a difusão de ondas de ódio psicótico - daí o surgimento de gância, para escrever assim. Land, LandJ. .. é uma confessio mais tantos movimentos revolucionários com sede de vingança por profundamente reveladora que as Confissões (1934). Em relação todo o mundo. a si mesmo, Márai é franco: como o resto da elite húngara, não Bem mais interessantes que as teorias de Márai sobre a his- conseguiu dar nenhuma resposta imaginativa às crises do sécu- tória do mundo são as histórias que ele tem para contar sobre as lo xx. Comportou-se como uma verdadeira caricatura do inte- vidas das pessoas comuns de Budapeste, primeiro sob a ocupa- lectual burguês, desprezando tanto a ralé da direita quanto a ralé ção russa e depois sob o domínio dos próprios comunistas hún- da esquerda, e recolhendo-se aos seus prazeres particulares. garos. Além da vida social, a inflação devasta igualmente a vi- Mas esse fracasso, afirma ele, não significa necessariamen- da moral do país. Retoma a polícia secreta, reunindo esses tipos te que a Mittelstand da Europa devesse ser condenada à lata de humanos desprezíveis bem conhecidos, recrutados como antes lixo da história. A identidade não é uma questão puramente pes- entre os "proletários" mas envergando novos uniformes. Uma soal. Não somos apenas quem somos em nossa vida particular, notável anedota contada em oito páginas fala de um judeu, ca- mas também ostentamos a versão caricatural de nós mesmos que çado durante a guerra mas agora poderoso oficial de polícia, que circula pelo espaço social. E, já que não temos como escapar se instala no elegante Café Emke e pede ao conjunto de ciga- à caricatura, talvez o melhor seja adotá-Ia. Além disso, "não era nos que toque para ele canções patrióticas dos anos 1930 fascis- eu a única caricatura circulante na ... fase entre as duas guerras tas, sorrindo com prazer enquanto soldados quirguizes assistem mundiais; em tudo, em toda a vida na Hungria - em suas insti- a tudo com ar desconfiado da mesa ao lado. "Saído diretamente tuições, na maneira como as pessoas viam as coisas - havia algo das páginas de Dostoiévski", comenta Márai. (pp. 157, 145) de caricatural. É bom saber que não estamos sós". (p. 132) Terá sido um erro voltar para a Hungria?, pergunta-se Má- Um ano depois do final da guerra, Márai permite-se uma raio Ele rememora o dia de 1938 em que recebe a notícia de que excursão à Suíça, à Itália e à França. A Suíça lhe provoca rumi- o chanceler austríaco Schusnigg capitulara diante das ameaças nações melancólicas sobre a morte do humanismo, o maior le- de Hitler, renunciando. Como todo mundo, Márai sabia que o gado da Europa para o mundo, em Auschwitz e Katyn. O que mundo estava mudando debaixo dos seus pés. Ainda assim, no uma Europa que perdeu seu sentido de missão humanista pode dia seguinte, jogaria sua partida costumeira de tênis, seguida de prometer a um "europeu do arrabalde" como ele próprio? Os suí- um chuveiro e uma massagem. Mas não se orgulha da maneira ços olham com desprezo para seus visitantes pobres e mal-ves- como se comportou. "Sempre sentimos vergonha quando acha- tidos. Os russos, pelo menos, não agem assim. (p. 196) mos que não fomos heróis, e sim logrados - logrados pela his- Na França ele se põe à procura da "autocrítica corajosa e tória." Mas o que fazer agora? Despejar cinzas sobre a cabeça? precisa, a distribuição de responsabilidades morais" que espera Bater no peito? São reações que ele recusa. "Tudo que lamento dos franceses, mas disso não encontra nem sinal. Os franceses, 136 137
  • 69. ao que parece, só querem retomar a vida onde a interromperam A irrupção recente do interesse por Márai não é fácil de ex- em 1940, recusando-se a ver que os quatrocentos anos de ascen- plicar. Durante a década de 1990, cinco livros seus foram publi- dência do "homem branco" estão chegando ao fim. (p. 206) cados na França, atraindo apenas resenhas respeitosas. E então, Na Hungria, começa a debacle final. A polícia secreta está em 1998, promovido por Roberto Calasso da editora Adelphi, As em toda parte. Márai para de escrever para os jornais, mas conti- brasas chegou às listas dos mais vendidos na Itália. Adotado pelo nua a publicar seus livros, inclusive dois volumes de uma trilogia grande promoter da crítica literária alemã, Marcel Reich-Ra- sobre o período hitlerista que Georg Lukács arrasa numa rese- nicki, As brasas, em sua roupagem alemã, vendeu 700 mil exem- nha, escolhendo ler o que Márai tem a dizer sobre os fascistas plares de capa dura. "Um novo mestre", proclamou com entu- como uma crítica velada aos comunistas. A partir de então Má- siasmo um resenhista de Die Zeit, "que no futuro haveremos de rai se cala, vivendo modestamente de seus direitos autorais. Pas- situar ao lado de Joseph Roth, Stephan Zweig, Robert Musil e sa os dias imerso nos romancistas menores da Hungria do século quem sabe quais outros de nossos gastos semideuses, talvez até XIX, com suas histórias do mundo em que crescera. de Thomas Mann e Franz Kafka."1O Uma pressão cada vez maior se exerce sobre os intelectuais As brasas, com O título Embers, foi lançado em inglês em burgueses para que apoiem o regime. Logo fica claro que mes- 2001, numa tradução de Carol Brown Janeway não direta do hún- mo a liberdade de permanecer em silêncio, essa forma de exí- garo, mas em segunda mão, a partir da tradução alemã - práti- lio interno, será recusada a pessoas como ele. Márai consulta ca profissional um tanto questionável. Os resenhistas america- seu amado Goethe, e Goethe lhe diz que, se ele tem um desti- nos parecem ter aceitado sem duvidar a afirmação dos editores no, é seu dever viver esse destino. Faz preparativos para partir. de que As brasas era "desconhecido do leitor moderno" antes de Estranhamente, nenhum obstáculo oficial se ergue barrando seu 1999 (na verdade, uma tradução para o alemão fora publicada caminho. em 1950 e uma tradução para o francês, em 1958, depois reedi- Anos se passam no exílio, anos de impotência, longe da "ma- ta da em 1995), tratando Márai como um mestre perdido e redes- ravilhosa e solitária língua húngara", mas ainda assim sua fé na coberto. O sucesso do livro na Europa repetiu-se no mundo de classe em que nasceu, e na missão histórica dessa classe, perma- língua inglesa. nece inabalada: É difícil deixar de acreditar que esse sucesso seja em grande parte uma resposta aos elementos de romance popular presentes Eu era um burguês (ainda que apenas em caricatura) e conti- no livro - o castelo na floresta, a história de paixão, adultério e nuo a sê-Ia, embora velho e num país estrangeiro. Ser um bur- vingança, a apaixonada amante oriental de Konrad, a linguagem guês nunca foi para mim apenas uma questão de posição de exagerada, e assim por diante -, ou seja, exatamente à camada classe - sempre julguei que fosse uma vocação. O burguês sem- caricatural e kitsch que Márai, a seu modo complexamente irô- pre foi, a meu ver, a melhor coisa produzida pela moderna cul- nico, ao mesmo tempo prefere ver de longe mas aceita como ine- tura ocidental, pois foi o burguês que produziu a moderna cultu- vitável; embora no caso dos leitores europeus não se deva igno- ra ocidental. (p. 86) rar um movimento histórico mais profundo, a saber, a exaustão, 138 139
  • 70. ou mesmo a mera impaciência, com uma visão do século xx amor verdadeiro. Mas percebe que a paixão dele não está à altu- cm que tudo ou bem nos conduz para o buraco negro do Ho- ra da sua. Ele só é fiel à sua arte. Quando vai embora, ela profe- locausto ou bem nos afasta dele, e uma nostalgia correspon- tiza uma velhice terrível para Casanova, tomada pelos remorsos. dente dos tempos em que as questões morais ainda tinham di- A substância do livro de Márai é composta por esses dois mensões praticáveis. extensos diálogos, na verdade praticamente dois monólogos (o Em 2004, um segundo romance de Márai, Vendégjáték Bol- do duque se estende por cinquenta páginas), mais as rumina- zanóban (1940) [Conversas em Bolzano], foi publicado em tradu- ções de Casanova a respeito de ambos. Como sugere o título ção para o inglês com dois títulos diferentes: Conversations in Bol- original, o romance brinca com a ideia da performance elo céle- zano no Reino Unido, Casa nova in Bolzano nos Estados Unidos. H bre conquistador, parecendo cultivar uma expectativa quanto ao A ação desse livro é exígua, e faz parte de sua concepção espetáculo que deverá ocorrer no baile de máscaras do duque e que seja assim. Ele começa com a chegada a Bolzano de Giaco- depois, talvez, ainda no quarto da duquesa; enquanto o prólogo, mo Casanova, que acaba de fugir da prisão em Veneza e preten- que se passa no quarto de Casa nova e no qual se pergunta se essa de retomar negócios interrompidos. Cinco anos antes, disputara performance deve mesmo acontecer, acaba sendo o único espe- um duelo com o duque de Parma por causa da noiva do duque, táculo que teremos. Por sua qualidade estática - em vez de uma Francesca, de quinze anos. O duque lhe avisara para nunca rea- ação no presente, temos a memória da ação passada e a reflexão parecer. Mas ei-Io de volta. sobre a possibilidade de ação futura - e por sua linha narrati- Avisado da presença de Casanova, o duque vai visitá-Io no seu va limitada, Vendégjáték Bolzanóban, assim como As brasas, re- quarto da taverna. E lhe propõe um acordo: em troca da liberda- vela um autor mais à vontade com o teatro do século XIX que com de para cortejar Francesca e talvez obter uma noite com ela, Ca- o romance. sanova precisa jurar que nunca mais tornará a vê-Ia. E, em com- Como também ocorre em As brasas, há pouca coisa que se pensação, receberá mil ducados e uma carta de salvo-conduto. possa chamar de desenvolvimento. Todas as três personagens, E o que o senhor ganha?, pergunta Casanova ao duque. Vai mesmo a jovem duquesa, têm posições fixas a partir das quais ser um presente meu para minha mulher, responde o duque: a falam, e seus discursos nada mais fazem que enunciar essas mes- experiência de uma noite com um grande artista do amor, e uma mas posições. Individual e coletivamente (como participantes aula de como ele só pode ser pouco capaz do verdadeiro amor. na performance), são personagens típicas de Márai. "Você, como Como fruto dessa lição, o duque espera conquistar a gratidão e eu", diz o duque a Casanova, "é apenas um pau-mandado, um o afeto da mulher. ator, o instrumento do destino que joga com cada um de nós Casanova aceita o que o duque vê como um negócio, mas dois, um destino cuja finalidade às vezes parece insondável." (p. que para o próprio Casanova é um desafio. 202) Francesca pode sugerir a Casanova que se revolte contra o Pouco depois que o duque vai embora, Francesca apare- papel imaginado para ele - o do sedutor empedernido -, mas ce. Seu marido a subestima, declara. Ela está preparada a largar nada do que ela diz sugere que tenha alguma esperança de mo- tudo para ir viver com Casanova e mostrar-lhe como pode ser o dificá-Io. Os amantes parecem conscientes de que estão repre- 14° 141
  • 71. sentando uma espécie de tragédia em que a promessa do amor quais precisa, por sua vez, ser descartada para que finalmente será sufocada em nome da domesticidade, de um lado, e da sen- possamos conhecer o rosto verdadeiro e nu do outro." (p. 261) sualidade do outro; ainda assim, eles próprios nem sequer cogi- E é na carta em que apresenta ao duque as suas despedi- tam rebelar-se contra o papel que nela desempenham. O que se das que Casanova de fato dá a resposta do artista. O amor se ba- vê é um estoicismo melancólico, no lugar da coragem trágica. seia em ilusões, diz ele. "E há outra coisa que eu sabia e a duque- Em nenhum ponto Márai sugere que as memórias deixadas sa de Parma ainda não tem como saber: que a verdade só pode pelo Casanova histórico tenham provado que se tratava de um sobreviver na medida em que os véus ocultos do desejo e da grande artista. Ainda assim, na facilidade com que conseguia saudade formem uma cortina à sua frente, mantendo-a coberta." atrair as mulheres e no desconforto instintivo que despertava nas (p. 291) A triste verdade em que a arte de Casanova nos inicia é autoridades - foi encarcerado em Veneza não por algo que ti- que, além de estarmos sempre mascarados, não temos como so- vesse feito, mas por "sua maneira de ser, por sua alma" -, Casa- breviver desprovidos de máscara. nova acaba encarnando o artista-rebelde romântico, da maneira Vendégiáték Bolzanóban começa como uma ficção históri- como é concebido pela imaginação popular. (p. 107) O núcleo ca de tipo rotineiro, mas a laboriosa introdução de pormenores intelectual das Vendégiáték Bolzanóban consiste no confronto de fundo, bem como a recriação dos ambientes, felizmente logo entre a concepção ingênua - mantida em vida por Francesca se encerra, permitindo que o livro se dedique a ser o que Márai - do artista como a figura da verdade e o contraexemplo, dado pretende, um veículo para as suas ideias sobre a ética da arte. por Casanova, do artista que se submete, tanto ética quanto es- Novas traduções da obra ficcional de Márai estão prometidas; teticamente, à prática da ilusão, e mesmo da ilusão do tipo mais mas nada do que foi posto até agora à disposição de leitores ile- tomado pelos clichês. O artista da sedução obtém o que deseja, trados em húngaro contradiz a impressão de que, por mais que sugere Casanova, porque abre os olhos da jovem para quem ela possa ter sido um cronista ponderado da sombria década de 1940, realmente é; não porque a cegue com suas mentiras, mas porque por mais corajosamente (ou talvez só impassivelmente) que pos- tanto ele quanto ela sentem que as mentiras repetidas pelos se- sa ter falado em nome da classe em que nasceu, por mais pro- dutores, geração após geração, acabam adquirindo uma certa ver- vocativa que possa ser a sua filosofia paradoxal da máscara, sua dade própria. concepção da forma do romance ainda assim era antiquada; seu Quando Francesca e Casanova ocupam o palco para a sua domínio de suas potencialidades, limitado e suas realizações na grande cena a dois, eles o fazem (em consequência de uma intri- área, consequentemente, de bem pouca monta. ga pouco convincente) usando disfarces: Francesca está mas- carada e fantasiada de homem; Casanova, travestido de mulher. (2002) Francesca expõe a visão ingênua do amor: o amor provoca o desnudamento da ilusão e a adoção da verdade nua da pessoa amada. "Ainda somos apenas figuras mascaradas, meu amor", diz ela, "e há muitas outras máscaras entre nós, cada uma das 1{2 143
  • 72. 8. Paul Celan e seus tradutores ocupada, onde morreram, a mãe com uma bala na cabeça quan- do se tornou incapaz de trabalhar. O próprio Antschel passou os anos da guerra fazendo trabalhos forçados na Romênia aliada ao Eixo. Libertado pelos russos em 1944, trabalhou por algum tem- po como assistente num hospital psiquiátrico, depois em Buca- reste como editor e tradutor, adotando o pseudônimo de Celan, um anagrama de Antschel em sua transliteração romena. Em 1947, antes de ficar encerrado pela cortina de ferro de Stálin, viajou para Viena e de lá transferiu-se para Paris. Em Paris, pres- tou exame para obter sua Lícense es Lettres e foi nomeado profes- sor de literatura alemã na prestigiosa École Normale Supérieure, posição que ocuparia até a morte. Casou-se com uma francesa, católica de origem aristocrática. Paul Antschel nasceu em 1920 em Czernowitz, no territó- O sucesso da sua mudança do Leste para o Ocidente logo rio de Bukovina, que depois do esfacelamento do Império Aus- foi toldado. Entre os escritores que Celan vinha traduzindo para tro-Húngaro em 1918 tornou-se parte da Romênia. Czernowitz, o alemão estava o poeta francês Yvan Goll (1891-1950). A viúva nesse tempo, era uma cidade de muito movimento intelectual, de Goll, Claire, discordou de Celan quanto às suas versões, e em com uma considerável minoria de judeus de língua alemã. Ants- seguida acusou-o publicamente de plagiar em alemão alguns chel foi criado falando alto-alemão; durante sua formação, parte dos poemas que Goll escrevera. Embora as acusações fossem em alemão e parte em romeno, passou ainda um período na es- infundadas, e talvez até insanas, Celan sentiu-se atingido por cola hebraica. Na juventude, escrevia versos e reverenciava Rilke. elas a ponto de convencer-se de que Claire Goll fazia parte de Depois de um ano (1938-9) numa escola de medicina na um complô contra a sua pessoa. "O que nós, os judeus, precisa- França, onde travou contato com os surrealistas, esteve em ca- remos suportar ainda?", escreveu ele à sua confidente Nelly Sachs, sa de férias e lá ficou encurralado pela irrupção da guerra. Nos como ele uma judia que escrevia em alemão. "Você não faz ideia termos do pacto entre Hitler e Stálin, a Bukovina foi absorvida de quantas pessoas devem ser incluídas entre os seres vis, não, pela Ucrânia: por um breve período, ele foi cidadão soviético. Nelly Sachs, você não faz ideia!. .. Devo dizer-lhe os nomes? Vo- Em junho de 1941, Hitler invadiu a União Soviética. Os ju- cê ficaria hirta de horror."l deus de Czernowitz foram confinados num gueto; logo come- A reação de Celan não pode ser classificada de simples pa- çaram as deportações. Aparentemente advertido, Antschel con- ranoia. À medida que a Alemanha do pós-guerra começava a sen- seguiu esconder-se na noite em que seus pais foram capturados. tir-se mais confiante, correntes antissemitas voltavam a fluir, não Os pais foram despachados para campos de trabalho na Ucrânia apenas na direita, mas também, o que era bem mais perturba- 144 145
  • 73. dor, em plena esquerda. E Celan suspeitava, não sem motivo, You lie amid a great listening que se tinha transformado num foco conveniente para a campa- enbushed, enflaked. nha pela arianização da cultura alemã que não cessara de todo Go the Spree, to the Havel, em 1945, mas apenas se tornara subterrânea. go to the meathooks, Claire Goll nunca desistiu da sua campanha contra Celan, the red apple stakes continuando a persegui-Io mesmo após a morte; sua perseguição from Sweden - envenenou a vida do escritor e muito contribuiria para seu co- lapso final. Here comes the gift table, it turns around an Eden - Entre 1938 e sua morte, em 1970, Celan escreveu cerca de oitocentos poemas em alemão; além disso, deixou ainda um cor- The man became a sieve, the Frau po de textos anteriores em romeno. O reconhecimento do seu had to' swim, the sow, dom veio cedo, com a publicação de Mohn und Gedaehtis [A for herself, for no one, for everyone - papoula e a memória J, em 1952. Consolidou sua reputação co- mo um dos mais importantes jovens poetas da língua alemã com The Landwehr Canal won't make a mumwr. Spraehgitter [Grade da fala, 1959J e Die Niemandsrose [A rosa Nothing de ninguém, 1963J. Dois outros volumes ainda foram publicados stops. durante a sua vida, e três postumamente. Essa poesia posterior, Jazes em meio a muita escuta fora de fase com a guinada para a esquerda da intellígentsia ale- amoitado, em flocos. mã depois de 1968, não foi recebida com o mesmo entusiasmo. Pelos padrões do modernismo internacional, Celan foi bas- Vá até o Spree, até o Havel, tante acessível até 1963. Sua poesia posterior, porém, torna-se vá até os ganchos de açougueiro, extremamente difícil, e mesmo obscura. Atônitos diante do que as estacas de maçãs vermelhas lhe parecia um simbolismo arca no e referências particulares, os da Suécia- críticos classificaram os poemas tardios de Celan de herméticos, um rótulo que ele rejeitava com grande veemência. "Nem um E eis a mesa dos presentes, pouco hermético", respondia ele. "Leiam! Continuem lendo, o ela gira em torno de um Éden - entendimento vem por conta própria."z Típico do Celan "hermético" é o seguinte poema sem tí- o homem tornou-se uma peneira, a Frau tulo, publicado após a sua morte, que cito na tradução de John teve de nadar, a porca, Felstiner.3 por si, por ninguém, por todos - 147 146
  • 74. r o Canal de Landwehr nem murmura. :~ de receptividade? Será possível reagir a uma poesia como a de Nada Celan, e mesmo traduzi-Ia, sem compreendê-Ia plenamente? para. f Michael Hamburger, um dos mais eminentes tradutores de Celan, parece achar que sim. Embora não tenha dúvida de que Do que, no mais elementar dos níveis, trata o poema? Difí- os estudiosos iluminaram para ele a poesia de Celan, diz Ham- cil dizer, antes de nos inteirarmos de certas informações, infor- burger, ele não tem certeza de "entender", no sentido corrente mações forneci das por Celan ao crítico Peter Szondi. O homem da palavra, nem mesmo os poemas que ele próprio traduziu, que se tornou uma peneira foi Karl Liebknecht, "a Frau [...] a quanto mais todos eles.5 porca" nadando no canal é Rosa Luxemburgo. "Eden" é o nome "Exige demais do leitor", é o veredicto de Felstiner quanto de um bloco de prédios de apartamentos construído no local on- ao poema sobre Rosa Luxemburgo. Por outro lado, prossegue de os dois militantes foram fuzilados em 1919, enquanto os gan- ele, "o que será demais, diante dessa história?". E é esta, em chos de açougueiro são os ganchos do Plótzensee no rio Havel, poucas palavras, a resposta do próprio Felstiner às acusações de de onde penderam enforcados os pretensos assassinos de Hitler hermetismo dirigidas contra Celan. Dada a enormidade das per- em 1944. À luz dessas informações, o poema emerge como um seguições antissemitas no século xx, dada a necessidade muito comentário pessimista acerca da contínua sede de sangue da di- compreensível dos alemães, e do Ocidente cristão em geral, de reita na Alemanha, e do silêncio dos alemães a respeito dela. escapar a um monstruoso íncubo histórico, que memória, que O poema sobre Rosa Luxemburgo transformou-se num 10- conhecimento será demais exigir? Mesmo que os poemas de Ce- cus classicus menor quando o filósofo Hans-Georg Gadamer, lan fossem totalmente incompreensíveis (e não é exatamente defendendo Celan contra as acusações de hermetismo, apresen- isso que Felstiner diz, mas a extrapolação parece válida), ainda tou uma leitura sua na qual argumentava que qualquer leitor assim assomariam diante de todos nós como um mausoléu, um receptivo e de mente aberta, com uma boa formação cultural mausoléu erguido por um "poeta, sobrevivente, judeu" (o subtí- alemã, é capaz de entender o que importa entender em Celan tulo do estudo de Felstiner), insistindo com sua presença para sem qualquer ajuda, e que a informação de fundo deveria ocupar que nos lembremos, embora as palavras nele inscritas pareçam uma posição secundária em relação ao "que o [próprio] poema pertencer a uma língua indecifrável. (Felstiner, p. 254) sabe".4 Em jogo há mais que um simples confronto entre uma Ale- A argumentação de Gadamer é combativa, mas não se sus- manha impaciente para esquecer seu passado e um poeta judeu tenta. O que ele esquece é que não podemos ter certeza de que que insiste em trazer esse passado à memória da Alemanha. Ce- a informação que decifra o poema - no caso, a identidade dos lan ficou famoso, e ainda hoje é mais amplamente conhecido, mortos - tem importância secundária antes de sabermos qual pelo poema "Fuga da morte": seja. Ainda assim, as questões que Gadamer levanta são impor- tantes. Será que a poesia oferece um tipo de conhecimento dife- Black milk of daybreak we drink you at night rente do apresentado pela história, demandando um tipo diverso we drink you at noon death is a master from Germany 148 149
  • 75. we drink you at sundown and in the moming we drink imenso impacto emocional quando se encontram com ele. No and we drink you entanto, esse argumento precisaria abrir uma exceção para a ma- death is a master {rom Germany his eyes are blue neira como "Fuga da morte" foi recebido, de braços aparente- he strikes you with leaden bullets his aim is true mente abertos. Na verdade, o próprio Celan jamais confiou totalmente no Negro leite da aurora tomamos-te à noite espírito com que seu poema foi recebido, e até mesmo celebra- tomamos-te ao meio-dia a morte é um mestre da Alemanha do, na Alemanha Ocidental. Na linha que os críticos alemães tomamos-te ao pôr do sol e de manhã tomamos-te assumiam diante de "Fuga da Morte" - para citar um crítico e tomamos-te eminente, a de afirmar que o poema demonstrava o quanto Ce- a morte é um mestre elaAlemanha com olhos ele anil lan teria "[conseguido escapar] à câmara sangrenta dos horrores tem mira certeira e te alveja com balas de fuzil da história para alçar voo até o éter da pura poesia" -, Celan sentia que estava sendo interpretado erroneamente no sentido (Cito parte da tradução de Hamburger, em Paems af Paul histórico mais profundo, e interpretado erroneamente de propó- Celan, p. 63, porque a versão de Felstiner do mesmo trecho, pra- sito.6 E tampouco ficava satisfeito ao saber que, nas salas de au- ticamente tão marcante quanto ela a seu modo, apresenta uma la, os estudantes alemães eram instados a ignorar o conteúdo do solução controversa fora de contexto.) "Fuga da morte" foi o pri- poema e a concentrar-se na sua forma, especialmente em sua meiro poema publicado de Celan: terá sido composto em 1944 imitação da estrutura musical da fuga. ou 1945, e saiu, em tradução para o romeno, em 1947. Absorve Quando Celan escreve sobre os "cabelos de cinza" de Sula- dos surrealistas tudo que valia a pena absorver. Não é criação ex- mita, invoca o cabelo dos judeus que caía na forma de cinza so- clusiva de Celan: aqui e ali ele utiliza frases, entre elas "A mor- bre os campos da Silésia; quando escreve sobre a "porca" deba- te é um mestre da Alemanha", de outros poetas dos seus dias de tendo-se nas águas do Landswehr Canal, refere-se, na voz de um Czernowitz. Ainda assim, seu impacto foi imediato e universal. de seus assassinos, ao corpo de uma judia morta. Opondo-se à "Fuga da morte" é um dos poemas mais marcantes do século xx. pressão para recuperá-Io como um poeta que teria transformado "Fuga da morte" vem sendo amplamente lido no mundo de o Holocausto em algo maior, a saber, a poesia, e opondo-se à or- língua alemã, incluído em antologias, estudado nas escolas, como todoxia crítica das décadas de 1950 e 1960, com sua visão do poe- parte do programa conhecido como Vergangenheitsbewaltigung, ma ideal como um objeto estético completo contido em si mes- entrar em acordo com, ou superar, o passado. Nas palestras pú- mo, Celan insiste em dizer que pratica uma arte do real, uma arte blicas que Celan dava em alemão, "Fuga da morte" sempre era que "nada transfigura nem torna 'poético'; ela nomeia, ela afir- pedido. É o mais direto dos poemas de Celan em nomear e ma, ela tenta medir a área do que é dado e do que é possível".7 acusar: nomeia o que ocorria nos campos de extermínio, acusa Com sua música percussiva e repetitiva, "Fuga da morte" a Alemanha. Alguns dos defensores de Celan afirmam que ele é a abordagem mais direta do tema que um poema poderia apre- só é rotulado de "difícil" porque os leitores costumam sentir um sentar. E também faz duas importantes afirmações implícitas 15° 151
  • 76. quanto àquilo de que a poesia é capaz, ou deveria ser capaz, em Vinda de um judeu, tal profissão de fé na língua alemã po- nosso tempo. Uma é de que a linguagem pode dar conta de de parecer estranha. No entanto, Celan não estava de modo al- qualquer tema: por mais indizível que possa ser o Holocausto, gum sozinho: mesmo depois de 1945, muitos judeus continua- existe uma poesia capaz de falar dele. A outra é de que a língua vam a reivindicar como suas a língua e a tradição cultural alemãs. alemã em particular, corrompida até o osso durante a era nazista Entre eles estava Martin Buber. Celan fez uma visita a Buber pa- pelo eufemismo e um certo duplipensar oblíquo, é capaz de di- ra perguntar-lhe o que achava de continuar escrevendo em ale- zer a verdade sobre o passado imediato da Alemanha. mão. A resposta de Buber - que era mais que natural escrever A primeira delas foi dramaticamente rejeitada pela declara- na língua materna, e que era preciso tomar uma posição de per- ção de Theodor Adorno, divulgada em 1951 e reiterada em 1965, dão em relação aos alemães - deixou-o decepcionado. Como diz de que "escrever poesia sobre Auschwitz é um gesto bárbaro".8 Felstiner: "A necessidade vital que Celan sentia, de ouvir algum Adorno poderia ter acrescentado: e um gesto duplamente bár- eco do seu tormento, Buber não conseguiu ou não quis perce- baro escrever um poema em alemão. (Adorno retiraria suas pa- ber".9 O que atormentava Celan era que, se o alemão era a "sua" lavras, um tanto a contragosto, em 1966, talvez em concessão a língua, só era sua de um modo complexo, contestável e doloroso. "Fuga cIa morte ".) , Durante os anos que viveu em Bucareste depois da guer- Celan evita a palavra "Holocausto" em sua obra, assim co- ra, Celan aperfeiçoou seus conhecimentos de russo, traduzindo mo evitava todos os usos que pudessam dar a impressão de que- Lermontov e Tchekhov para o romeno. Em Paris, continuava rer dizer que a linguagem cotidiana estivesse em posição de no- a traduzir poesia russa, encontrando na língua russa um lar aco- mear, e desse modo delimitar e controlar, aquilo que assinala. Celan fez dois importantes pronunciamentos públicos ao longo lhedor e antigermânico. Em particular, leu intensamente Óssip da vida, ambos discursos de aceitação de prêmios, em que, com Mandelstam (1891-1938). Em Mandelstam encontrou não só um grande escrúpulo na escolha das palavras, respondia às dúvidas homem cuja biografia correspondia à sua própria, a seu ver de quanto ao futuro da poesia. No primeiro, em 1958, falou de sua maneira quase sobrenatural, mas um interlocutor fantasma que fé persistente de que a língua, mesmo a língua alemã, tivesse so- respondia às suas necessidades mais profundas, capaz de lhe ofe- brevivido "ao que aconteceu" sob o domínio nazista. recer, nas palavras de Celan, "o que é fraterno - no sentido mais reverencial que posso dar a essa palavra". Pondo de lado sua Restava em meio às perdas esta única coisa: a língua. própria obra de criação, Celan passou a maior parte dos anos de Ela, a língua, permanecia, não perdida, sim, apesar de tudo. 1958 e 1959 vertendo Mandelstam para o alemão. Suas tradu- Mas precisava passar através da sua própria falta de respostas, pas- ções constituem um ato extraordinário de transmigrar-se para ou- sar através da mudez assustadora, passar através das mil escuri- tro poeta, embora Nadejda Mandelstam, a viúva do poeta, tenha dões da fala que traz a morte. Ela passou através disso e não pro- razão de considerá-Ias "muito distantes do texto original". (Felsti- duziu palavras para o que aconteceu; ainda assim, passou através ner, pp. 131, 133) desse acontecimento. Passou através dele e conseguiu retomar à A concepção de Mandelstam, do poema como diálogo, mui- luz, "enriquecida" por tudo isso. (sPp) to contribuiu para modificar a teoria poética de Celan. A partir 152 153
  • 77. de então, os poemas de Celan começam a dirigir-se a um Tu que tanto pode estar mais ou menos distante quanto ser mais ou me- , if ~ t judaica, e Buber sobre o hassidismo. Palavras em hebraico - Zív, a luz sobrenatural da presença de Deus; Yízkor, a lembran- nos conhecido. No espaço entre o Eu que fala e o Tu, eles en- ça - aparecem em sua poesia. O tema do testemunho, do de- contram um novo campo de tensão. poimento, avança para o primeiro plano, juntamente com o amargo subtema pessoal: "Ninguém/ dá testemunho sobrei a tes- (I know you, you're the Ol1ebel1t over low, temunha." ("No onel Bears wítness for! the wítness.", SPP, p. 261) and I, the Ol1epierced through, am in your need. O "Tu" da sua poesia dialógica agora insistente transforma-se, de Where flames a word to witness for us both? maneira intermitente mas inconfundível, em Deus: ecos emer- You - wllOlly real. 1- wholly mad.) gem dos ensinamentos cabalísticos de que toda a criação é um texto composto na linguagem divina. (Eu te conheço, és aquele que está muito curvado, A captura de Jerusalém pelas forças israelenses na guerra de e eu, o trespassado, necessito de ti. 1967 enche Celan de júbilo. E ele escreve um poema comemo- Onde arde a palavra que testemunhe por nós dois? rativo que circula amplamente em Israel: Tu - totalmente real. Eu - totalmente louco.) Just think: your (Essa é a tradução de Felstiner. Na versão mais livre, de own hand Heather McHugh e Nikolai Popov, o último verso diz: "Tu és has held minha realidade. Eu sou a tua miragem.". [You're my realíty. I'm this piece of your mírage. ])'0 habitable earth, again suffered Se existe um tema singular que domina a biografia de Ce- up il1tOlife. (sPp, p. 307) lan escrita por John Felstiner, é que Celan, de poeta alemão cujo destino era ser judeu, transformou-se num poeta judeu cujo Imagine só: a sua destino era escrever em alemão; que superou a afinidade com própria mão Rilke e Heidegger para encontrar em Kafka e Mandelstam seus conservou verdadeiros patronos espirituais. Embora durante a década de este pouco de 1960 Celan tenha continuado a visitar a Alemanha para fazer terra habitável, palestras, qualquer esperança de que ele pudesse desenvolver um trazida de volta à vida envolvimento emocional com a Alemanha reerguida foi aos pou- pelo sofrimento. cos desaparecendo, a ponto de ser classificada por ele de "um erro muito trágico e na verdade muito infantil". (Felstiner, p. Em 1969 Celan visitou Israel pela primeira vez ("Tantos ju- 226) Começa a ler Gershom Scholem sobre a tradição mística deus, só judeus, e não num gueto", admirou-se ele em tom irô- 154 155
  • 78. nico). (Felstiner, p. 268) Deu palestras e fez leituras, encontrou-se esse veredicto sobre o suicídio de Celan é verdadeiro. Mas não com escritores israelenses, retomou uma relação romântica com podemos descartar causas mais mundanas como a vcndctta pro- uma mulher dos seus tempos de Czernowitz. longada e enlouquecida de Claire Goll, ou a natureza dos cuida- Na infância, Celan frequentara por três anos uma escola dos psiquiátricos que teve. Felstiner não faz comentários diretos hebraica. Embora tenha estudado a língua de má vontade (pois sobre o tratamento a que os médicos de Celan o submeteram, a associava a seu pai sionista, em contraposição à sua amada mãe mas a partir das próprias observações amargas de Celan fica cla- germanófila), adquirira um domínio surpreendente e profundo. ro que eles precisariam responder por muita coisa. Aharon Appelfeld, a essa altura israelense, mas na origem um natural de Czernowitz, como Celan, achava o hebraico de Ce- Mesmo durante a vida de Celan, desenvolvera-se uma ani- lan "bastante bom". (Felstiner, p. 327) Quando Yehuda Amichai mada troca acadêmica, especialmente na Alemanha, em torno leu em voz alta suas traduções dos poemas de Celan, Celan pô- da sua obra. E esse comércio transformou-se hoje em verdadeira de sugerir alguns melhoramentos. indústria. Celan passou a ser, para a poesia alemã, o que Kafka é De volta a Paris, Celan se perguntava se não teria feito a es- para a prosa. colha errada ao permanecer na Europa. Brincou com a ideia de Apesar das traduções pioneiras de Jerome Rothenberg, Mi- aceitar uma posição de professor em Israel. Memórias de Jerusa- chael Hamburger e outros, Celan só foi realmente penetrar no lém deram origem a um breve período de composição, poemas mundo de língua inglesa depois de consagrar-se na França; e na ao mesmo tempo espirituais, alegres e exóticos. França Celan era lido como um poeta heideggeriano, ou seja, Havia muito que Celan sofria de crises de depressão. Em eomo se a sua carreira poética, culminando no suicídio, exem- 1965 internou-se numa clínica psiquiátrica, e mais tarde subme- plificasse o que ocorre eom a arte em nosso tempo, num fim em teu-se à terapia de eletrochoque. Em casa, como descreve Fels- paralelo ao fim da filosofia diagnosticado por Heidegger. tiner, era "ocasionalmente violento". Ele e a mulher resolveram Embora Celan não seja o que se pode chamar de poeta fi- viver separados. Um amigo de Bucareste que o visitou achou-o losófico, um poeta das ideias, essa ligação com Heidegger não é "profundamente alterado, prematuramente envelhecido, tacitur- fantasiosa. Celan leu Heidegger com atenção, assim como Hei- no, de cara fechada". "Estão fazendo experiências comigo", con- degger lia Celan; Halderlin foi uma influência decisiva sobre tou-lhe Celan. À sua amante israelense, escreveu em 1970: "Eles a formação de ambos. Celan concordava com a opinião de Hei- me curaram tanto que acabaram comigo". Dois meses mais tar- degger de que a poesia tinha uma capacidade especial de dizer de ele se mataria por afogamento. (Felstiner, pp. 243, 330) a verdade. A explicação que dava dos motivos por que escrevia Para o historiador Erich Kahler, com quem Celan se cor- - "para falar, para me orientar, para descobrir onde eu estive e respondera, o suicídio de Celan provou que"ter sido "tanto um aonde devia ir, para desenhar a realidade para mim mesmo" - grande poeta alemão quanto um jovem judeu da Europa Cen- está em plena harmonia com Heidegger. (sPp, p. 396) tral, criado à sombra dos campos de concentração", era um far- Apesar do passado nacional-socialista de Heidegger e do do pesado demais para qualquer um.U Num sentido profundo, seu silêncio acerea dos campos de extermínio, ele era a tal ponto 156 157
  • 79. importante para Celan que este, em 1967, decidiu fazer-lhe uma ele parece ter encontrado nela uma espécie de compressão, sin- visita em seu refúgio da Floresta Negra. Em seguida, escreveu tática e metafórica, com a qual tinha muito a aprender. Quan- um poema ("Todtnauberg") sobre aquele encontro e a "pala- to a Shakespeare, voltaria muitas vezes aos sonetos. Suas versões vra/ do coração" que esperava ouvir de Heidegger, mas este não são ofegantes, urgentes, interrogativas: nem tentam imitar a gra- lhe disse. ça de Shakespeare. Como diz Felstiner, Celan às vezes "chega Qual poderia ser a palavra que Celan esperava? "Perdão", quase a uma discussão, para além do diálogo, com o inglês", rees- sugere Philippe Lacoue-Labarthe em seu livro sobre Celan e crevendo Shakespeare de acordo com a noção que tinha do tem- Heidegger. Mas logo reformula seu palpite. "Foi engano meu po em que ele próprio vivia. (p. 205) achar... que bastaria pedir perdão. [O extermínio] é absoluta- Quanto às suas próprias traduções de Celan, Felstiner pro- mente imperdoável. Eis o que [Heidegger] deveria ter dito."12 cura indicações - como nenhum tradutor antes dele jamais fi- Para Lacoue-Labarthe, a poesia de Celan é "em sua tota- zera - nas revisões manuscritas de Celan e em suas leituras gra- lidade, um diálogo com o pensamento de Heidegger". (p. 33) vadas, bem como nas versões francesas aprovadas por Celan. Um E foi essa abordagem de Celan, predominante na Europa, que exemplo pode mostrar o uso que faz dessas pesquisas. O mais mais contribuiu para retirá-Io da órbita do leitor culto comum. longo dos poemas de Celan, "Engführung" ("Stretto"), começa Mas existe uma escola discordante, à qual Felstiner adere de for- com as palavras "Verbracht ins/ Gelande/ mit der untrüglichen ma clara, que vê em Celan um poeta fundamentalmente judeu Spur" [removidos para o terreno (ou o território) com os trilhos cuja maior realização foi forçar a reintrodução, na alta cultura (ou os rastros) infalíveis (ou inconfundíveis)]. Qual a melhor tra- alemã (com sua ambição de fazer remontar suas origens ideais dução para "verbracht"? Uma tradução do poema para o francês, à Grécia antiga) e na língua alemã, da memória de um passado revista por Celan, emprega a palavra "déporté". No entanto, se judaico que toda uma linha de pensadores alemães, culminando formos verificar a versão do poema para o alemão na narração do em Heidegger, tentara obliterar. Desse ponto de vista Celan sem documentário de Alain Resnais sobre os campos de extermínio, dúvida responde a Heidegger, mas, tendo-lhe respondido, deixa-o Nuit et bruillard [Noite e nevoeiro], encontraremos o francês "dé- para trás. porter" traduzido pelo alemão "deportieren". "Deportieren" é a pa- lavra regularmente usada nos documentos oficiais para a depor- Celan começou sua vida profissional como tradutor, e con- tação de prisioneiros ou populações, nos quais assume um certo matiz abstrato e eufemístico. Para evitar esse eufemismo, Felstiner tinuou a traduzir até o fim da vida, principalmente do francês para o alemão, mas também do inglês, do russo, do romeno, do rejeita a palavra cognata inglesa "deported". Em lugar dela, evo- italiano, do português e (em colaboração) também do hebrai- cando o uso idiomático de "verbracht" por prisioneiros, ele pre- co. Dois volumes dos seis das suas Obras reunidas são dedicados fere traduzi-Ia por "taken off" [removidos]: "Taken off into/ the às suas traduções. Em inglês, Celan dedicou-se especialmente terrain ..." [Removidos para/ o terreno ...]. (ssP, pp. 118-9) a Emily Dickinson e a Shakespeare. Embora sua Dickinson em Muitas das traduções de Felstiner incluídas em Selected alemão seja menos ritmicamente entrecortada que a original, Poems and Prose of Paul Celan já tinham aparecido em seu livro 159 158
  • 80. Paul Celan: Paet, SurvÍvar, Jew [Paul Celan: poeta, sobrevivente, pov-McHugh vêm principalmente da obra tardia. As coincidên- judeu]' mas na republicação foram revistos e, em muitos casos, cias entre os dois trabalhos são raras: menos de vinte poemas. Só refinados. Parte do empreendimento de 1<'elstinerno livro ante- um punhado de poemas é comum aos três tradutores. rior fora explicar, em termos compreensíveis para um leitor que Entre Felstiner e Popov-McHugh a escolha é difícil. As so- desconheça o alemão, a natureza dos problemas a que Celan luções que Popov-McHugh encontrou para os problemas pro- submete seu tradutor, das alusões inexplicadas de um lado às pa- postos por Celan são às vezes de uma cria tivida de fulgurante, lavras comprimidas, compostas ou inventadas de outro, e como mas Felstiner também tem seus momentos de brilho, mais espe- ele, Felstiner, decidira agir em cada caso. Inevitavelmente, isso cialmente em sua "Deathfugue", em que a própria língua ingle- acarreta a justificativa de suas próprias estratégias e escolhas de sa, no final, é afogada pelo alemão ("Death Ís eÍn MeÍster aus palavras, e produz assim um dos traços mais infelizes do livro: Deutschland"). (ssP, pp. 31-3) De tempos em tempos encontra- certo elemento de autopromoção. mos diferenças substanciais na maneira de decompor, e portanto Entre os tradutores recentes de Celan, o próprio Felsti- compreender, a sintaxe emaranhada e compactada de Celan; nes- ner, a dupla Popov e McHugh (a que me referirei como Popov- ses casos, Felstiner é geralmente quem inspira maior confiança. -McHugh) e Pierre Joris se destacam. Se Joris é menos imediata- Felstiner é um especialista formidável em Celan, mas Po- mente atraente que os demais, pode ser porque escolheu a tarefa pov-McHugh não deixou a desejar no campo da erudição. As li- mais difícil: enquanto Felstiner e Popov-McHugh arrogam-se a mitações de Felstiner ficam mais evidentes sempre que Celan liberdade de escolher os poemas que lhes parecem mais conve- pede um toque mais leve, por exemplo, no poema "Selbdritt, nientes (e, por implicação, evitar os que frustraram seus melho- selbviert", que utiliza padrões de canções folclóricas e fórmulas res esforços), Joris nos traz as duas coletâneas tardias Attemwende ~ sem sentido. A versão de Popov-McHugh é engraçada e lírica, a (Breathturn, 1967) e Fadensannen (Threadsuns, 1968) na íntegra, de Felstiner, sóbria demais. num total de quase duzentos poemas. Como hoje é amplamente A música de Celan não é expansiva: ele parece compor pa- aceito que Celan compunha em sequências e ciclos, em que os lavra a palavra, locução a locução, em vez de empregar unidades poemas de um mesmo dado volume se referem aos poemas an- de mais fôlego. E, enquanto atribui seu pleno peso a cada palavra teriores e posteriores do mesmo grupo, esse projeto só pode ser e locução, o tradutor também precisa criar certo ímpeto rítmico. aplaudido. No entanto, os problemas são muitos. Há inúmeros poemas incompletos em Celan, e, mais a propósito, muitos mo- ich ritt durch des Schnee, horst du, mentos de obscuridade quase total. Assim, é compreensível que ich ritt Cott in die Feme - die Nahe, er sang, o brilho das páginas de Joris não seja sempre cegante. 1) es war Felstiner escolhe e traduz cerca de 160 poemas, distribuídos unser letzter Ritt ... por toda a extensão da carreira de Celan, entre eles algumas to- cantes peças líricas da juventude. Os poemas escolhidos por Po- escreve Celan. 160 161
  • 81. I rode through the snow, do you hear, de atirar, é lançado ao espaço e retoma. Felstiner traduz a pa- I rode God into the distance - the neamess, he sang. lavra como "boomeral1g". Popov-McHugh, inexplicaveImente, co- it was mo "flUl1g wood" (literalmente, "pau arremessado"). (sPP, p. 179; our last ríde... Popov-McHugh, p. u) Noutro poema, Celan fala de uma palavra que cai no fos- escreve Felstiner. (spp) so atrás da sua testa e ali continua a crescer: ele a compara à "Siebel1stem" ("sete-estrelas"), a flor cujo nome erudito é Triel1- I rode through the snow, do you read me, talís europea. Numa versão de resto excelente, Popov-McHugh I rode God {ar - I rode God traduz Síebel1stem simplesmente como "starflower" ("flor es- near, he sang. trelada"), deixando de captar as ressonâncias especificamente it was judaicas das seis pontas da estrela de davi e dos sete braços da our last ride... mel1orah. Felstiner expande a palavra e chega a "sevel1bral1ch starflower" ("flor estrelada em sete ramos"). (ssP, p. 195; Popov- escreve Popov-McHugh. (p. 5) -McHugh, p. 12) Os versos de Felstiner não têm vida rítmica. Em Popov- Por outro lado, a flor conhecida em alemão como díe Zeít- -McHugh, "I rode Cod {ar - I rode Cod l1ear" não está no origi- lose, um tipo de sempre-viva (Colchíum autuml1ale), é inimagi- nal, mas seria difícil argumentar que o impulso para a frente que nativamente traduzida por Felstiner como "Lhe meadow saffrol1" transmite seja inadequado. [Uma tradução "intermediária" pa- ("o açafrão da campina"), enquanto Popov-McHugh, com jus- ra o português: "cavalguei pela neve, me ouves,! cavalguei Deus tificável liberdade, a rebatiza de "the ímmorLelle". (sPp, p. 201; para longe - perto, cantava ele,! e foi/ nossa última cavalga- Popov-McHugh, p. 13) da ...". (N. T.)] Às vezes, assim, é Felstiner quem encontra a fórmula exata, Há muitos pontos, por outro lado, em que esses papéis são e às vezes Popov-McHugh, a tal ponto que o leitor acaba com a trocados e Felstiner aparece como o tradutor mais ousado e inven- sensação de que poderia obter, com a costura de trechos das res- tivo. "Wel1l1 díe Totel1muschel heral1schwímmt/ wíll es hier lautel1", pectivas versões - mais uma ou outra solução de Joris -, um escreve Celan ["quando a casca dos mortos sobrenadarl ouvire- texto compósito superior a cada um dos três. E esse procedimen- mos aqui dobres de sinos"]. "Whel1 death's shell washes up 011 to não seria muito excêntrico nem impraticável, dada a afini- shore", escreve Popov-McHugh, simplesmente dando conta do dade estilística entre as suas versões, afinidade que emana, claro, de Celan. sentido geral. (p. 1) "Whel1 the deadmal1's cOl1ch swíms up", escre- ve Felstiner, saltando de "shell" para "col1ch" e evocando a fun- Todos os três - Felstiner em sua biografia de Celan, Po- ção de trombeta da anunciação desempenhada por esse tipo de pov-McHugh em suas notas, Joris em suas duas apresentações concha. (sPp, p. 89) - têm coisas esclarecedoras a dizer sobre a linguagem de Ce- Há alusões aparentemente óbvias que Popov-McHugh pa- lan. Joris é particularmente revelador ao falar da relação agonís- rece deixar de perceber. Num poema, um Wur{holz, um bastão tica entre Celan e a língua alemã: 162 163
  • 82. o alemão de Celan é uma língua sombria, quase fantasmagórica; é ao mesmo tempo uma língua materna, firmemente ancorada, 9. Günter Grass e o Wílhelm portanto, no reino dos mortos, e uma língua que o poeta precisa Gustloff formar, recriar, reinventar, para devolvê-Ia à vida ... Radicalmente despojado de qualquer outra realidade, ele se propõe a criar uma linguagem própria - uma linguagem tão absolutamente exila- da quanto ele próprio. Tentar traduzi-Ia como se fosse o alemão corrente, comumente falado ou disponível- isto é, encontrar uma "Umgangssprache" inglesa ou americana de corrência equivalen- te -, seria deixar de perceber um aspecto essencial dessa poesia. (Breathtllm, pp. 42-3) Celan é o mais alto poeta europeu das décadas intermediá- rias do século xx, um poeta que, em vez de transcender seu tem- po - não tinha o menor desejo de transcendê-Io -, atuou como Günter Grass irrompeu na cena literária em 1959 com O um para-raios de suas descargas mais terríveis. Seus embates in- tambor, romance que, com sua mistura entre a fábula - um cansáveis e Íntimos com a língua alemã, que formam o substrato herói menino que, como protesto contra o mundo à sua volta, de toda a sua produção poética tardia, só podem ser transmitidos recusa-se a crescer - e o realismo - uma evocação densa em numa tradução, na melhor das hipóteses, como algo escutado de sua textura da Danzig anterior à guerra -, anunciou a chegada relance, em vez de claramente ouvido. Nesse sentido, a tradu- do realismo mágico à Europa. ção dos seus poemas tardios só pode necessariamente fracassar. Tendo adquirido a independência financeira graças ao su- Ainda assim, duas gerações de tradutores se esforçaram, com um cesso de O tambor, Grass mergulhou na campanha pelos sociais- engenho e uma devoção notáveis, a reproduzir em inglês o que -democratas de Willy Brandt. Depois que o partido chegou ao pode ser trasladado. Outros sem dúvida hão de seguir-se. poder em 1969, porém, e especialmente depois da renúncia de Brandt em 1974, Grass começou a se afastar da política institu- (2001) cional, preferindo dedicar-se cada vez mais às causas feminista e ecológica. Ao longo dessa evolução, porém, continuou a crer no debate ponderado e no progresso social deliberado, ainda que cau- teloso. Como totem, escolheu o caracol. Tendo sido um dos primeiros a atacar o consenso de silên- cio em torno da cumplicidade entre os alemães comuns e o do- mínio nazista - um silêncio cujas causas e consequências fo- 164 165
  • 83. ram examinados por Alexander e Margarete Mitscherlich em e uma figura envolta em sombras, tão parecida com o escritor sua obra pioneira de psico-história, Díe Unfahígkeít zu Trauem Günter Grass que vou dar-lhe o nome de "Grass". [A incapacidade de prantear] -, Grass é mais livre que a maioria Pokriefke é o sobrenome da mãe de Paul; a identidade do para entrar no debate atual na Alemanha quanto ao silêncio e o silenciamento, assumindo, de modo caracteristicamente cau- teloso e nuançado, uma posição que até a virada do século só a direita radical tinha ousado propalar em público: a de que os I pai nem mesmo sua mãe conhece. Mas ela diz a Paul que ele tem um parentesco acidental com um nazista importante, o Lan- desgnlPIJenleíter loff - (comandante regional) Wilhelm Gustloff. Gust- uma personagem da vida real - esteve postado na Suíça alemães comuns - e não só os que pereceram nos campos ou na década de 1930, com ordens de reunir informações e recrutar morreram opondo-se a I-Iitler - podem incluir-se entre as víti- expatriados alemães e austríacos para a causa fascista. Em 1936, mas da Segunda Guerra Mundial. um estudante judeu de origem balcânica e de nome David Frank- Questões sobre a condição de vítima, sobre o silêncio e furte r bateu à porta de Gustloff em Davos e matou-o a tiros, en- sobre a revisão da história encontram-se no cerne do romance tregando-se à polícia em seguida. "Atirei nele porque sou judeu. que Grass escreveu em 2003, Passo de caranguejo, cujo narra- E. .. não me arrependo" parecem ter sido as palavras de Frank- dor e principal personagem chega ao mundo durante os últimos furter.' Julgado por um tribunal suíço e condenado a dezoito anos momentos do Terceiro Reich. O aniversário de Paul Pokriefke de prisão, Frankfurter acabou expulso do país depois de cumprir é em 30 de janeiro, uma data com alguma ressonância simbóli- metade da pena. Transferiu-se para a Palestina e em seguida tra- ca na história alemã. Os nazistas tomaram o poder em 30 de balhou no Ministério da Defesa de Israel. janeiro de 1933. E no mesmo dia, em 1945, a Alemanha sofreu N a Alemanha, a morte de Gustloff foi aproveitada como uma sua pior catástrofe marítima de todos os tempos, um desastre da oportunidade de criar um mártir do nazismo e atiçar sentimen- vida real no meio do qual teria nascido a personagem fictícia tos antijudaicos. O corpo foi levado cerimonialmente de volta Paul. Paul é portanto uma espécie de filho da meia-noite no da Suíça e as cinzas, enterradas num monumento fúnebre às mar- sentido usado por Salman Rushdie, uma criança escolhida pe- gens do lago Schwerin, com uma lápide de quatro metros de los fados para dar voz a seu tempo. Paul, contudo, acharia me- altura. Ruas e escolas foram batizadas com o nome de Gustloff, lhor evitar esse destino. Passar pela vida despercebido seria mais e até um navio. de acordo com sua preferência. Jornalista profissional, recolhe O cruzador Wílhelm Gustloff foi lançado ao mar em 1937 as velas sempre que os ventos políticos sopram forte demais. Nos como parte do programa nacional-socialista de lazer para a clas- anos 1960, publica na conservadora editora Springer. Quando se operária, um programa conhecido como Kraft durch Freude, os sociais-democratas chegam ao poder, transforma-se num li- "força através da alegria". Tinha a capacidade de transportar 1500 beral de esquerda um tanto tímido; mais tarde, dedica-se a cau- passageiros de cada vez em acomodações de classe única, para sas ecológicas. viagens aos fiordes da Noruega, à ilha da Madeira e ao Mediter- Existem, porém, duas pessoas poderosas por trás dele, que o râneo. Em pouco tempo, contudo, usos mais urgentes foram en- espicaçam a escrever a história da noite em que nasceu: sua mãe contrados para a embarcação. Em 1939, foi enviada à Espanha 166 167
  • 84. para transportar a Legião Condor de volta de lá. Quando a guer- maradas eram na verdade nada mais nada menos que seu filho ra começou, foi transformado em navio-hospital. Mais adiante, Konrad, estudante secundário, que vê raramente depois que o tornou-se navio de treinamento para a Marinha alemã, e final- jovem decidiu morar em Schwerin com sua avó TuBa. mente um transporte para refugiados. Konrad, descobre-se, ficara obcecado pelo caso GustlofE. Em janeiro de 1945, o Gustloff zarpou do porto alemão de Para o curso de história, escreve um trabalho sobre o programa Gotenhafen (hoje Gdynia, na Polônia), rumando para o oeste Kraft durch Freude, que seus professores o proíbem de apresen- abarrotado com cerca de 10 mil passageiros, na maioria civis ale- tar à turma, alegando que o tema era "inadequado" e o trabalho, mães que fugiam do avanço do Exército Vermelho, mas tam- "gravemente contaminado por ideias nacional-socialistas". Kon- bém soldados feridos, tripulantes de submarino em treinamento rad tenta apresentar o mesmo trabalho numa reunião dos neona- e membros do corpo feminino auxiliar alemão. Sua missão, por- zistas locais, mas o texto é acadêmico demais para seu püblico tanto, não deixava de ter um lado militar. Nas águas geladas do de cabeça raspada embriagado de cerveja. A partir de então ele Báltico, foi torpedeado por um submarino russo sob o comando se confina ao seu website, onde adota o codinome "Wilhelm" e do capitão Aleksandr Marinesko. Cerca de 1200 sobreviventes apresenta Gustloff ao mundo como um autêntico herói e mártir foram recolhidos; todos os demais morreram. O número de bai- alemão, repetindo as palavras de sua avó, segundo a qual os na- xas transformou esse naufrágio no pior desastre marítimo de toda vios de cruzeiro de classe única do programa Kraft durch Freude a história. eram uma representação concreta do autêntico socialismo. (pp. Entre os sobreviventes estava uma jovem (fictícia) chamada 196,202). Ursula ("TuBa") Pokriefke, em avançado estado de gravidez. No "Wilhelm" logo precisa enfrentar uma reação hostil. Escre- barco que a resgata, TuBa dá à luz um filho, Paul. Desembar- vendo para o site com o pseudônimo de "David", um leitor afir- cando com o bebê nos braços, ela tenta avançar para o oeste atra- vés das linhas russas, mas acaba em Schwerin, na zona russa, sede ma que o verdadeiro herói da história foi Frankfurter, um herói do monumento em memória de GustlofE. da resistência judaica. Na tela do seu computador, Paul obser- Por seu nascimento, assim, Paul tem de fato uma tênue li- va enquanto seu filho e o judeu presumido sustentam uma pro- gação com Wilhelm GustlofE. Um laço mais perturbador reve- longada controvérsia. la-se décadas mais tarde, em 1996, quando, percorrendo alea- Mas um mero debate verbal não basta para Konrad. Ele con- toriamente a internet, Paul encontra um website denominado vida "David" - um jovem da mesma idade que ele - para vir www.blutzeuge.de. no qual os "Camaradas de Schwerin" man- a Schwerin, e no local onde ficava o monumento demolido a têm viva a memória de GustlofE. (Um Blutzeuge é um juramen- Gustloff mata o rapaz a tiros, como Frankfurter fizera com Gust- to de sangue. O dia do Blutzeuge, 9 de novembro, era uma data 10fE.Logo se descobre que o verdadeiro nome da sua vítima era sagrada do calendário nazista, o dia em que os membros da ss Wolfgang, e que, apesar de não ser judeu de fato, sentia-se tão pos- reafirmavam seu juramento.) Devido a certas fórmulas e expres- suído por sentimentos de culpa ligados ao Holocausto que che- sões usadas no site, Paul começa a suspeitar que os supostos Ca- gara a tentar viver como judeu na casa de sua família alemã, 168 169
  • 85. usando sempre um solidéu e exigindo que sua mãe só lhe prepa- rasse comida kosher. r I Lucy Rennwand de O tambor possa ser considerada sua precur- sora. Em Gato e rato ela é "uma criança magra e pequena [de II Konrad não se deixa abalar pela descoberta. "Atirei porque sou alemão", diz ele em seu julgamento, ecoando as palavras de Frankfurter, "e porque o eterno judeu falava através de David." Interrogado, admite que jamais conhecera um judeu de verda- i -I dez anos] com pernas que lembram palitos", que sai para nadar com os meninos no porto de Kaisershafen e a quem eles permi- tem assistir a seus concursos de masturbação.2 Em Anos de cão I (1963), agora estudante secundária, ela acusa falsamente um dos de, mas nega que isso seja relevante. Embora não tenha nada seus professores à polícia: ele é mandado para o campo de tra- contra os judeus em abstrato, diz ele, o lugar dos judeus é Israel, balhos forçados de Stutthof e lá acaba morrendo. Por outro lado, e não a Alemanha. Os judeus que homenageiem Frankfurter, se quando uma nuvem malcheirosa recai sobre Kaisershafen, TuBa I quiserem, ou o russo Marinesko; já estava na hora de os alemães é a única a declarar o que todos sabem: que o cheiro vem dos ca- prestarem sua homenagem a Gustloff. (p. 204) minhões de ossos humanos de Stutthof. O tribunal faz o possível e o impossível para ver Konrad co- No último ano da guerra, TuBa trabalha como condutora mo um fantoche movido por forças além do seu alcance. TuBa de bonde e faz o possível para engravidar. Em seguida, desapare- faz uma aparição dramática no banco das testemunhas para de- ce: em Die Réittin [O rato, 1986], o ex-menino do tambor Oskar fender o neto e acusar seus pais de o terem abandonado. E deixa Matzerath, agora com quase sessenta anos, lembra-se dela como de contar que foi ela quem deu ao jovem a arma do crime. uma "vadia muito especial" que, até onde ele sabe, morreu no Acompanhando os trabalhos, Paul fica convencido de que naufrágio do Gustloff3 Konrad é a única personagem do julgamento que não tem me- do de dizer o que pensa. Entre os advogados e juízes, detecta um As posições políticas de TuBa são difíceis de reduzir a qual- cobertor pesado que a tudo abafa. E piores ainda são os pais do quer sistema coerente. Carpinteira treinada e proletária impe- jovem morto, intelectuais liberais impecáveis que só põem a cul- cável, ela é devotada aos negócios do Partido no novo Estado pa de tudo em si mesmos e negam qualquer desejo de vingança. alemão oriental, acabando reconhecida e premiada por seu ati- Seu filho decidira ser judeu, descobre Paul, justamente devido vismo. Seguidora invariável da linha de Moscou, chora quando ao hábito do pai de ver dois lados em todas as questões, inclusive Stálin morre em 1953 e acende velas por ele. No entanto, en- o episódio do Holocausto. quanto num momento saúda a tripulação do submarino que qua- Condenado a sete anos de detenção juvenil, Konrad tor- se a matou, definindo-os como "heróis da União Soviética, unidos na-se um prisioneiro-modelo, usando seu tempo para preparar pela amizade aos trabalhadores", no instante seguinte consegue seus exames de admissão à universidade. O único momento de descrever Wilhelm Gustloff como "o filho tragicamente assassi- desgaste ocorre quando vê recusado seu pedido de ter em sua ce- nado da nossa linda cidade de Schwerin" e propor que o modelo la um retrato do Landesgruppenleiter Gustloff. da Kraft durch Freude fosse copiado pelo comunismo. (pp. 49, 93) Apesar de suas posturas incorretas, TuBa conserva sua posi- TuBa Pokriefke, nascida em 1927, o mesmo ano que Günter ção no coletivo, vista com afeto mas também temida por seus Grass, faz sua primeira aparição em Gato e rato (1961), embora a camaradas. Quando, depois do colapso do regime em 1989, o que 17° 171
  • 86. Grass chama de "die Berliner Treuhand", e seu tradutor para o própria do que ocorreu na Alemanha e no mundo no século xx, inglês chama engenhosamente de "the Berlin Handover Trust" uma versão que pode ser distorcida, caótica e subordinada a seus [o Consórcio para a Entrega de Berlim], instala-se na antiga Ale- interesses próprios, mas ainda assim é ligada a sentimentos pro- manha Oriental para comprar as antigas empresas estatais, ela fundos; que se ressente por se ver banida do discurso civilizado cuida de receber a sua parte. Ao final do livro, consegue com- e ser geralmente reprimida pelos bien-pensants; e que se recusa binar o catolicismo a seu eclético sistema de crenças: na sala da a ceder. sua casa da rua Gagarin, não muito longe do monumento a Lê- Por mais feio que possamos considerar o fenômeno TuBa nin, ela mantém um altar em que o velho tio Josef fuma o seu Pokriefke, Passo de caranguejo apresenta um argumento de peso cachimbo lado a lado com a Virgem Maria. a favor de permitir que as TuBas e os Konrads da Alemanha te- Paul vê na sua mãe a última verdadeira stalinista. O que isso nham seus heróis, seus mártires, seus memoriais e suas cerimô- quer dizer exatamente ele não explica; mas TuBa emerge do seu nias comemorativas. E a posição contrária à repressão e favorável relato como uma mulher sem princípios, astuta, intrigante, te- a uma história nacional que inclua a todos é a postura que Paul, naz, impaciente com a teoria, impiedosa, difícil de matar, acima diante do destino do filho, acaba apreciando cada vez mais, a sa- de tudo nacionalista e antissemita, o que constitui um perfil na- ber: se paixões com raÍzes profundas forem reprimidas, acabarão da inexato de um stalinista. Também ela deu à luz uma criança emergindo em algum outro lugar em formas diferentes e impre- em pleno mar, na mesma noite em que viu milhares de crianças mortas boiando de borco em seus salva-vidas ineficazes e ouviu visíveis. Se Konrad vê recusado o direito de ler seu trabalho para a turma, transforma-se num assassino; se é preso, outro website o último grito coletivo dos passageiros do Wilhelm Gustloff en- surge na intemet: o www.kameradschaft-konrad-pokriefke.de com quanto caíam no mar. "Um grito como aquele nunca mais sai do seu juramento de sangue: "Acreditamos em você, esperaremos seu ouvido", diz ela. E, como que para prová-Io, seu cabelo fica todo branco naquela noite. Além de stalinista, TuBa também por você, nós o seguiremos". (p. 234) é, assim, uma alma atormentada: atormentada pelo que viu e ouviu, e incapaz de superar a sua dor até que o tabu quanto à As partes mais pessoais de Passo de caranguejo são aquelas descrição do que houve em 30 de janeiro de 1945 possa ser rom- em que Grass ou "Grass" aparece por cima do ombro de Paul pido e os mortos possam ser pranteados como merecem. (p. 155) Pokriefke, e ficamos sabendo como a narrativa de Paul, justa- TuBa Pokriefke é a personagem mais interessante de Passo mente Passo de caranguejo, foi escrita. Quando era estudante de caranguejo - e talvez, depois de Oskar, o menino do tambor em Berlim Ocidental, trinta anos atrás, Paul frequentou um curso de lata, a mais interessante de toda a obra de Grass, não só no de composição literária em que "Grass" lecionava. Agora "Grass" nível humano, mas também pelo que representa para a socieda- torna a fazer contato com ele, instando-o a escrever o livro sobre de alemã em geral: um populismo étnico que sobreviveu melhor o Gustloff, afirmando que, na qualidade de fruto daquela noite no Leste que no Ocidente, mas que não consegue ser captura- trágica, ele está singularmente bem situado para a tarefa. Anos do nem pela direita nem pela esquerda; que mantém uma versão atrás, "Grass" reuniu material para um livro próprio sobre o Gust- 172 173
  • 87. loff, mas decidira mais tarde que "estava farto do passado" e não fuga do Leste, a Schrecklichkeit do bombardeio incendiário das chegara a escrevê-Io; agora era tarde demais. (p. 80) cidades alemãs, a indiferença glacial dos Aliados em relação ao As pessoas da sua geração mantinham um silêncio discreto sofrimento da população alemã depois da guerra - que a direi- sobre os anos da guerra, revela "Grass", porque seu sentimento ta radical alemã encontra as fontes de ressentimento duradouro pessoal de culpa era avassalador e porque "a necessidade de as- que pode explorar, e sim no silêncio exigido daqueles que se sumir a responsabilidade e demonstrar remorso tinha adquirido veem como vítimas ou herdeiros das vítimas - um silêncio im- a precedência". Mas agora ele percebe que isso fora um erro: posto primeiro pelos invasores estrangeiros, e depois adotado co- desse modo, a memória histórica dos sofrimentos da Alemanha mo uma medida política calculada pelos próprios alemães. acabara entregue à direita radical. (p. 103) Esse tabu, hoje, vem sendo reexaminado num amplo deba- "Grass" tem vé'íriassessões de trabalho com Paul em que o te nacional. Passo de caranguejo tornou-se um best-seller ao ser pressiona a encontrar palavras para descrever os horrores dos úl- lançado na Alemanha no início de 2002. Não porque as histórias timos meses da guerra, quando os alemães em fuga morriam de Gustloff e do Gustloff nunca tivessem sido abordadas. Pelo às centenas de milhares, talvez aos milhões. Para ajudar Paul, contrário, pouco mais de um ano depois da morte de Wilhelm "Grass" chega a produzir uma amostra de texto (ajuda enganosa, Gustloff, o popular escritor Emil Ludwig publicou, em alemão, porém, pois a passagem não descreve o que realmente aconte- embora não na Alemanha, um romance sobre o episódio em que ceu, mas o que ele vira num filme sobre o fim do Gustloff). Frankfurter aparece como herói, um homem que, ao ferir um Paul tende a desconfiar de quais sejam os motivos do pedi- nazista proeminente, espera inspirar os demais judeus à resistên- do de "Grass". O verdadeiro motivo pelo qual "Grass" deixou de cia. Em 1975, o diretor suíço Rolf Lyssy fez um filme, Konfronta- escrever seu livro, suspeita, é que suas energias se esgotaram. tion, sobre o mesmo tema. Além do mais, a verdadeira pressão deve vir da obsessão de Tulla A última viagem do Gustloff serviu de base para o filme por trás de "Grass", torcendo-lhe o braço. "Grass" afirma só co- Nacht fiel über Gotenhafen (1959) do diretor teuto-americano nhecer Tulla superficialmente, dos velhos tempos em Danzig. Frank Wisbar. Um sobrevivente da viagem, Heinz Schon, publi- Mas a verdade, suspeita Paul, é que "Grass" pode ter sido aman- cou ano após ano suas pesquisas sobre o fatídico incidente e a te dela e até ser seu verdadeiro pai. Suas suspeitas são reforçadas por um comentário que "Grass" faz sobre os seus esboços: que identidade dos mortos. Em inglês, foi lançado The Cntelest Night: ele devia cercar Tulla de mais mistério, de um "fulgor mais difu- Germany's Dunkirk and the Sinking of the Wilhelm Gustlof{ [A so". "Grass" parece continuar sob o encantamento da mulher mais cruel das noites: o dunquerque da Alemanha e o afunda- feiticeira dos cabelos brancos. (p. 104) mento do Wilhelm Gustloff, 1979], de Christopher Dobson, John Miller e Thomas Payne. O próprio Grass já se referira ao Gust- "Quem semeia ventos colhe tempestades", diz um provér- lof{ em vários dos seus livros, desde O tambor, bem como ao afun- bio corrente também na Alemanha. E nem é tanto na tempesta- damento, por aviões britânicos, de outro antigo cruzador, o Cap de - as atrocidades cometidas contra os alemães étnicos em sua Arcona, carregado de sobreviventes de campos de concentração. 174 175
  • 88. Assim, nem Gustloff nem o Gustloff estavam esquecidos no calar o ressentimento agudo mas inarticulado das Tulla Pokriefkes sentido de cortados ou omitidos dos registros históricos. Mas exis- da Alemanha e liberar seus netos do peso do passado. te uma diferença entre fazer parte da história registrada e fazer Mas o que de fato significa para a história do Gustloff ser parte da memória coletiva. A raiva e o ressentimento das pessoas escrita por um Paul Pokriefke? Uma coisa é reviver aquelas terrí- como Tulla Pokriefke emanam da sensação de que seu sofrimen- veis horas derradeiras na imaginação e então reproduzi-Ias em to não foi levado na devida conta, de que um acontecimento palavras que transmitam seus terrores para quem lê, a tarefa que suficiente para causar o luto coletivo tenha sido reduzido à força "Grass" parece propor a Paul. Mas o projeto literário diante do a mera fonte de dores individuais. Sua provação, e a provação de qual Paul hesita é mais vasto e muito mais exigente: tomar-se o milhares como ela, é capturada de maneira mais pungente quan- escritor que, no momento presente da história - os primeiros do, disposta a celebrar a memória dos mortos, ela não encontra anos do século XXI -, escolhe transformar o afundamento do nenhum lugar onde possa depor as suas flores que não o sítio do Gustloff em tema, ou seja, que escolhe romper o tabu afirman- antigo memorial nazista. E a pergunta que ela formula, em sua do que um crime de guerra, ou pelo menos uma atrocidade, foi forma mais emocional, é a seguinte: será que o motivo de não cometida contra alemães naquela noite. podermos prantear, conjuntamente, e em público, as mortes des- A relutância de Paul em escrever essa história maior, e a ses milhares de crianças afogadas é o simples fato de que eram dança semelhante à marcha de um caranguejo que ele execu- alemãs? ta enquanto conta a história dessa sua relutância - uma dança Desde 1945, a questão da culpa coletiva assinala uma divi- durante a qual, por um movimento lateral, a história maior de são na Alemanha, e hoje Grass tenta abordá-Ia não de frente, algum modo acaba sendo contada -, se justifica. Para um jor- mas de lado, como caminha um caranguejo. Passo de carangue- nalista obscuro chamado Pokriefke, que por um feliz ou infeliz jo é anunciado como eÍne Novelle, uma novela ou romance cur- acaso nasceu na própria cena do acontecido, contar a história to; seu tema é não o afundamento do Gustloff, mas a necessidade não significa nada. Para o presente, as histórias sobre o sofrimen- de que fosse escrita, e como finalmente foi escrita, a história do to dos alemães durante a guerra continuam inseparáveis de quem afundamento do Gustlof{. as conta e dos motivos que os levam a contá-Ias. A melhor pessoa E é nesse ponto que Günter Grass e a figura indistinta de para contar de que maneira os 9 mil alemães inocentes ou "ino- "Grass" chegam mais perto de se fundirem: através de "Grass", centes" morreram não é Pokriefke nem "Grass", mas Günter Günter Grass apresenta suas desculpas por não ter escrito e, con- Grass, o decano das letras alemãs, vencedor do prêmio Nobel, o tristado, por não ter mais condições de escrever o grande roman- praticante mais consistente e exemplo mais duradouro dos va- ce alemão em que os muitíssimos alemães que pereceram en- lores democráticos na vida pública da Alemanha. Para Günter quanto o Terceiro Reich agonizava fossem trazidos de volta à Grass, contar essa história ao raiar do novo século significa algu- vida para poderem ser enterrados e pranteados da maneira certa, ma coisa. Pode até assinalar que agora é aceitável, adequado e de modo que, completado o luto, uma nova página da história próprio que todas as histórias do que aconteceu nesses anos ter- pudesse enfim ser virada; um ato de rememoração que pudesse ríveis sejam admitidas na arena pública. 176 177
  • 89. * * * de caranguejo é fiel, inclusive à construção de frase ocasional- mente desgraciosa, típica de Crasso (pp. 191, 18o) Cünter Crass nunca foi um grande estilista em prosa, nem O principal desafio ao engenho de Krishna Winston vem um pioneiro da forma ficcional. Sua força está alhures: na pers- de TuBa Pokriefke. TuBa fala um alemão demótico da Alema- picácia da sua observação da sociedade alemã em todos os níveis, nha Oriental, com ecos dos subúrbios operários da Danzig ante- em sua capacidade de sondar as correntezas mais profundas da rior à guerra. Encontrar um equivalente no inglês americano é psique nacional e em sua firmeza ética. A narrativa de Passo de tarefa ingrata. Locuções como "Ain't it good enough that I'm out caranguejo compõe-se de fragmentos soltos que funcionam efi- here breaking my back for them no-goods?" soam estranham ente cazmente em sua ordem presente, embora sem produzir uma datadas; mas talvez a fala de TuBa também soe estranhamen- forte sensação de inevitabilidade estética. O recurso autoral de te datada aos ouvidos dos alemães ocidentais. (p. 69) acompanhar passo a passo o submarino e sua presa enquanto convergem para o encontro fatal como que conduzidos por um (2°°3) destino superior é especialmente desgastado. Como escrita, Pas- so de caranguejo perde em comparação com outras incursões de Crass na forma da Novelle, especialmente Gato e rato e, mais recentemente, Maus presságios (1992), uma obra de construção elegante que paira entre o satírico e o elegíaco, na qual um casal idoso e decente funda uma associação para permitir que os ale- mães expulsos de Danzig (hoje a cidade polonesa de Cdansk) possam ser enterrados na cidade onde nasceram, mas seu em- prendimento escapa a seu controle e é transformado num gran- de golpe para arrecadar dinheiro.4 Ralph Mannheim foi o primeiro e melhor dos tradutores de Crass para o inglês, admiravelmente sintonizado com a lingua- gem do escritor. Depois da morte de Mannheim em 1992, a to- cha passou primeiro para Michael Henry Heim e depois para Krishna Winston. Embora haja um ou dois pontos em torno dos quais se possa fazer alguma reclamação - TuBa possui um cer- tificado de mestre num ofício ("Meisterbrief") e não um "diploma de mestrado", que soa acadêmico demais; o capitão Marinesko não é "degradado" ("degradiert") em seu retorno ao porto, mas rebaixado de patente -, a versão de Krishna Winston para Passo 178 179
  • 90. ra, já estava acostumado com a travessia contumaz e, a bem di- 10. W. G. Sebald, After Nature zer, o pisoteamento sistemático das fronteiras entre a ficção e a não ficção).l Nos livros de Sebald, as pessoas são na maioria o que só podemos chamar de melancólicas. O tom de suas vidas é defini- do por uma sensação difícil de articular de que não fazem parte do mundo, e de que os seres humanos em geral talvez não deves- sem estar aqui. São modestos o suficiente para não reivindica- rem uma sensibilidade sobrenatural às correntes da história - na verdade, tendem a crer que é neles que alguma coisa está errada -, mas o teor do empreendimento de Sebald é sugerir que suas pessoas são proféticas, muito embora no mundo moder- no o destino do profeta seja permanecer obscuro, sem que nin- guém lhe dê ouvidos. W. G. Sebald nasceu em 1944 no canto do sul da Alemanha Qual será a base de tanta melancolia? Sebald sugere e torna onde a própria Alemanha, a Áustria e a Suíça se encontram. Com a sugerir que são todos prejudicados pelo peso da história recen- pouco mais de vinte anos viajou para a Inglaterra a fim de apro- te da Europa, uma história em que assoma gigantesco o Holo- fundar seus estudos de literatura alemã, e passou a maior parte causto. Internamente, sentem-se dilaceradas pelo conflito entre da sua vida de trabalho lecionando numa universidade do inte- o impulso autoprotetor de manter bloqueado um passado sofri- rior da Inglaterra. Na altura em que morreu, em 2001, tinha um do e um avanço às cegas em busca de alguma coisa, não sabem sólido conjunto de publicações acadêmicas em seu nome, espe- bem o quê, que se perdeu. cialmente sobre a literatura da Áustria. Embora nas histórias de Sebald a superação da amnésia se- Mas nos anos intermediários Sebald também floresceu co- ja muitas vezes apresentada como a culminação de um grande mo escritor, primeiro com um livro de poesia e depois com uma esforço de pesquisa - cavando em arquivos, rastreando testemu- sequência de quatro obras de ficção. A segunda delas, Os emi- nhas -, a recuperação do passado só confirma o que as pessoas grantes (1992), valeu-lhe ampla atenção, especialmente no mun- já sabiam num nível mais profundo, como sua melancolia em do de língua inglesa, onde sua mistura de fabulação, diário de face do mundo já manifestava e como, em suas crises ou catalep- viagem, biografia fictícia, ensaio sobre os antigos, sonho e rumi- sias intermitentes, seus corpos desde sempre já vinham dizen- nação filosófica, executada numa prosa elegante embora um do em sua linguagem própria, a linguagem do sintoma: que não tanto lúgubre e complementada por uma documentação foto- existe cura nem salvação. gráfica de irresistível qualidade amadorística, representou uma A forma que assume a crise de melancolia em Sebald é bem nota decisivamente inédita (o público leitor alemão, a essa altu- definida. Existe um momento prévio tomado por uma atividade 180 181
  • 91. compulsiva, quase sempre caminhadas noturnas, e dominado parte de sua tristeza generalizada se deva à destruição do habitat por sentimentos de apreensão. O mundo parece repleto de men- em nome do progresso, ele não é conservador no sentido de de- sagens em código secreto. Os sonhos se sucedem, densos e rápi- sejar a volta a uma idade de ouro em que a humanidade teria dos. E então vem a experiência propriamente dita: uma delas é habitado a terra de uma forma boa e natural. Ao contrário, sub- à beira de um desfiladeiro ou a bordo de uma aeronave, olhando para baixo e vendo o espaço vazio, mas ao mesmo tempo divisan- I mete os conceitos de lar e de lugar que se habita a um contínuo escrutínio cético. Um dos seus livros de crítica literária é um do o passado; o homem e suas atividades parecem minúsculos estudo da noção de Heimat ("terra natal" - o equivalente ao ao ponto da insignificância; todo sentido de finalidade se dissol- ve. E essa visão precipita uma espécie de desmaio em que a men- te entra em colapso. I inglês homeland) na literatura austríaca. Jogando com a ambi- guidade da palavra unheimlieh ("estranho", "não familiar", e daí "assustador"), ele sugere que para os austríacos de hoje, cidadãos Vertigem (1990), a primeira obra mais longa em prosa de de um Estado que teve seu território e sua população profunda- Sebald, enfatiza a dimensão apocalíptica dessa crise mental. Na mente alterados a cada guinada da história europeia moderna, parte final do livro, o narrador em primeira pessoa faz uma via- deve haver algo de fantasmagórico em sentir-se em casa.3 gem ao seu torrão natal, o vilarejo de w. Ali, enquanto examina Os anéis de Saturno (1995) é, dentre os livros de Sebald, o detidamente objetos acumulados num sótão coberto de poeira, que se aproxima do que habitualmente classificamos de não fic- uma torrente de memórias é liberada, sucedida por intimações ção. É escrito para dominar o "horror paralisante" que toma con- de que a vingança está a ponto de assolar a localidade. Temendo ta do seu autor - melhor dizendo, sua figura do "eu" - em fa- a loucura, ele foge. Toda a viagem até em casa percorrendo o sul ce do declínio da parte oriental da Inglaterra e da destruição de da Alemanha é sinistra. A paisagem tem um ar extraterreno; na sua paisagem. (É óbvio que o "eu" dos livros de Sebald não deve estação do trem, as pessoas parecem exilados em fuga de cidades ser identificado com o W. G. Sebald histórico. Ainda assim, en- condenadas; diante dos seus olhos alguém lê um livro que, co- quanto escritor, Sebald sustenta um jogo malicioso com as se- mo suas pesquisas bibliográficas posteriores irão mostrar, nem melhanças entre os dois, a ponto de reproduzir em seus textos sequer existe.2 instantâneos e fotos de passaporte de "Sebald".)4 Em Sebald, 1914 muitas vezes é citado como o ano em que Depois de uma longa viagem a pé por toda a região, Sebald, a Europa enveredou pelo caminho errado. No entanto, exami- ou "eu", é hospitalizado em estado cataléptico, tomado de sinto- nado mais de perto, o idílio anterior a 1914 revela-se desprovido mas entre os quais uma sensação de estranheza absoluta asso- de qualquer fundamento. Não terá a guinada ocorrido na verda- ciada a alucinações em que se vê em algum lugar elevado, de de mais cedo, então, com o triunfo da razão iluminista e a entro- onde contempla o mundo a seus pés. A essa vertigem, ele dá uma nização da ideia do progresso? Embora se possa encontrar uma interpretação mais metafísica que meramente psicológica. "Se razoável consciência histórica em Sebald - as cidades e paisa- nos olharmos de uma grande altitude", diz ele, "é assustador per- gens que suas personagens atravessam são assombradas por fan- ceber como conhecemos pouco a nossa espécie, nossas metas e tasmas, com camadas e camadas de sinais do passado - e embora nossos fins." E uma vertigem seguida de colapso mental é o que 182 183
  • 92. nos acomete quando nos contemplamos do ponto de vista de negação da realidade do tempo fornece uma justificação retros- Deus. (p. 92) pectiva para as fotografias que salpicam os textos em prosa de Sebald não se dizia romancista - o termo que preferia era Sebald.) "prosador" -, mas ainda assim, para fazer sucesso, seu projeto Uma consequência da negação do tempo é que o passado se precisa desprender-se do biográfico ou do ensaístico - do pro- vê reduzido a uma série de memórias interconectadas nas men- saico, no sentido corrente da palavra - para ascender aos do- tes dos vivos. Austerlitz é assombrado pela consciência de que, mínios da imaginação. E a misteriosa facilidade com que ele a cada dia, uma parte do passado, inclusive o seu próprio passa- consegue operar essa decolagem é a prova mais clara da sua ge- do, desaparece à medida que pessoas morrem e memórias se nialidade. Mas Os anéis de Saturno nem sempre é bem-sucedi- extinguem. Aqui ele ecoa a ansiedade manifestada por Rainer do. Os capítulos sobre Joseph Conrad, Roger Casement, o poe- Maria Rilke em suas cartas sobre o dever do artista como porta- ta Edward Fitzgerald e a última imperatriz da China, todos os dor da memória cultural. De fato, por trás do herói erudito de quais - surpreendentemente - têm ligações com a região de Sebald, tão deslocado ao final do século xx, erguem-se vários East Anglia, não conseguem desprender-se do prosaico. mestres mortos dos últimos anos da Áustria dos Habsburgo: Em seus livros anteriores, o tema do tempo não era tratado Rilke, o Hugo von Hoffmannsthal da "Carta a Lorde Chandos", com nenhuma profundidade, talvez porque Sebald não estivesse Kafka, Wittgenstein. seguro de que sua obra pudesse comportar muita especulação filosófica. Quando o tema é abordado, tende a sê-lo por meio de Pouco antes da sua morte, Sebald publicou um livro de referências aos paradoxos idealistas de Jorge Luis Borges ou, em poemas com ilustrações da artista Tess Jaray.6 Não é uma obra de Os anéis de Saturno, a um dos mentores de Borges, o neoplatô- grande ambição, sugerindo que escrever versos era para ele um nico sir Thomas Browne. Mas em Austerlitz (2001), o mais ambi- mero passatempo. Ainda assim, seu primeiro livro de poesia, cioso dos livros de Sebald, o tempo é atacado de frente.5 f Nach der Natur (1988), traduzido para o inglês como After Na- O tempo não tem existência real, assevera Jacques Auster- ture, é uma obra de alcance considerável. Embora suas imagens litz, professor de arte e arquitetura da Europa que perdeu seu sejam mais desafiadoras que qualquer passagem da obra em pro- passado quando seus pais judeus o remeteram ainda pequeno sa de Sebald, os versos conservam as virtudes sebaldianas de ele- para a Inglaterra a fim de fugir à calamidade que se aproximava. gância e clareza retórica, e apresentam-se bem na tradução para Em vez do meio contínuo do tempo, diz Austerlitz, o que existe são bolsões interligados de espaço-tempo cuja topologia podemos I o inglês, como aliás tudo que ele escreveuJ Nach der Natur compõe-se de três poemas longos. O pri- nunca chegar a compreender, mas entre os quais os supostos vi- meiro trata de Mathias Grünewald, o pintor do século XVI cuja vos e os supostos mortos podem viajar e assim travar encontros. biografia Sebald recompõe a partir de fontes históricas dispersas As fotografias, continua, são uma espécie de olhos ou nódulos de ligação entre o passado e o presente, permitindo que os vivos ve- I e observações dos seus quadros. A principal das obras de Grü- newald é o altar que executou para o mosteiro antonino da Ise- jam os mortos e os mortos vejam os vivos, os sobreviventes. (Essa nheim, na Alsácia, no seu tempo sede de um hospital para males 184 185
  • 93. de vários tipos. Na mais soturna das pinturas de Isenheim - a O segundo dos poemas de Nach der Natur trata novamen- tentação de santo Antônio, a crucifixão e deposição de Jesus-, te de uma vastidão deserta e gelada. Seu herói, Georg Wilhelm o Grünewald de Sebald vê a criação como um campo de expe- Steller (17°9-46), é um filho do Iluminismo, um jovem intelec- riência para forças naturais amorais e cegas, já que uma das pro- tual alemão que abandona a teologia para estudar ciência natu- duções mais loucas da natureza é a própria mente do homem, ral. Ambicionando catalogar a flora e a fauna do norte congela- capaz não só de imitar seu criador e inventar engenhosos méto- do, Steller viaja para São Petersburgo, uma cidade que se ergue como um fantasma do "vazio ressoante do futuro", onde adere à dos de destruição como também de atormentar-se - como no caso do próprio Grünewald- com visões da loucura da vida. expedição liderada por Vitus Bering para mapear a passagem por mar dos portos árticos da Rússia ao oceano Pacífico. (p. 48) Igualmente sombria é a Crucifixãa, de Grünewald, em Ba- A expedição é bem-sucedida. Steller chega inclusive a de- sileia, onde a luz estranha e enevoada cria um efeito de tempo sembarcar por algumas horas em terras do continente norte-ame- que corre para trás. Por trás desse quadro, sugere Sebald, estão ricano. No caminho de volta para a Rússia, porém, os viajantes premonições do apocalipse produzidas por um eclipse do sol naufragam. O melancólico Bering morre; os sobreviventes em- ocorrido na Europa central em 1502, um "adoecimento secreto preendem a volta para casa numa embarcação improvisada, to- do mundo,! em que uma coagulação fantasmagórica de sombra/ dos menos Steller, que enceta uma viagem pelo interior da Sibé- no meio do dia como um desmaio/ despejou-se da abóbada do ria para coletar espécimes e familiarizar-se com os povos nativos. céu" [Ua secret síckeníng away af the warld,! ín which a phantas- E lá ele também acaba morrendo, deixando para trás uma lista mal encroachment af dusk/ ín the mídst af daytíme líke a faíntíng de plantas e um manuscrito que viria a tornar-se um procura- fit/ paured through the vault af the sky"]. (p. 30) do guia para caçadores. O caráter sombrio da visão de Grünewald não se deve ape- A finalidade dos poemas sobre Grünewald e Steller não é nas a um temperamento idiossincraticamente melancólico. Por biográfica nem histórica num sentido corrente. Embora a eru- força da sua associação ao profeta messiânico Thomas Münzer, dição por trás deles seja rigorosa - Sebald já publicara obras Grünewald respondia aqui aos horrores que conheceu na Guer- sobre história da arte; e fica evidente que fez pesquisas sistemáti- ra dos Trinta Anos, entre os quais uma atrocidade então muito cas sobre a expedição de Bering -, ela fica em segundo plano difundida e que causaria calafrios em qualquer artista, o arranca- diante do que intui acerca das suas personagens e talvez nelas mento dos olhos; ainda por cima, por intermédio de sua mulher, projete (o que pode dar uma pista para a maneira como Sebald uma cristã conversa nascida no gueto de Frankfurt, ele tinha ain- construía suas personagens em suas obras posteriores de ficção da uma experiência Íntima da perseguição dos judeus na Europa. em prosa). Primeiro exemplo: sua afirmação de que Grünewald, A coda desse primeiro poema consiste de uma única ima- embora casado, fosse em segredo homossexual, envolvido por gem: o mundo tomado por uma nova idade do gelo, de um bran- muitos anos "numa amizade masculina oscilando/ entre o hor- co sem vida, o que é tudo que o cérebro consegue enxergar quan- ror e a lealdade" com um colega pintor chamado Matthis Nithart, do o nervo óptico se rompe. é, entre os especialistas, altamente polêmica: "Matthis Nithart" 186 187
  • 94. pode ser apenas o nome de batismo do próprio GrÜnewald. Se- dois e maior motivo da distância em que sempre viveram, obriga gundo exemplo: o Steller histórico parece ter sido um jovem vai- Sebald a lembrar também por eles. (Pôr um fim a esse período doso e arrogante, interessado antes de tudo em criar fama, e que de amnésia histórica tornou-se um motivo de crescente inquie- teria encontrado a morte ao cair num estupor alcoólico em tem- tação nacional na Alemanha da virada do século. E é o tema de peraturas glaciais. Nada disso aparece no poema de Sebald. Luftkrieg und Literatur (1999), do próprio Sebald, traduzido pa- O melhor a fazer é considerar que Grünewald e Steller são ra o inglês como On the Natural Histary afDestructian [Sobre a persanae, máscaras que permitem a Sebald projetar no passado história natural da destruição]. 8) certo tipo de personagem, pouco à vontade no mundo, na verda- No poema, o espetáculo da destruição de Sodoma leva a de um exilado, que pode ser ele próprio, mas que ele julga pos- uma crise pessoal ("Quase enlouqueci"), que Sebald associa a suir certa genealogia que suas leituras e pesquisas podem revelar. seus episódios recorrentes de vertigem. Retrospectivamente, fi- A persana de Grünewald, com sua visão maniqueísta da criação, ca claro que também conduzirá ao esforço de reparação contido é mais completamente elaborada que a de Steller, que pouco nas suas quatro obras em prosa, e especialmente nas suas biogra- mais é que um conjunto de gestos, talvez porque Sebald não te- fias de judeus, tanto imaginários (as personagens de Os emigran- nha conseguido encontrar - ou criar - profundezas mais crí- tes; Austerlitz) quanto reais (seu amigo e hoje tradutor Michael veISpara essa personagem. Hamburger, em Os anéis de Satuma). (p. 91) "A noite escura avança", o terceiro dos poemas de Nach der O trecho mais claramente narrativo de Nach der Natur, es- Natur, é mais declaradamente autobiográfico. Aqui, Sebald, ou o "eu" do poema, faz uma autoavaliação como indivíduo, mas crito com uma indicação sutil de The prelude [O prelúdio]' o poema de William Wordsworth sobre os anos da sua formação, também como herdeiro da história alemã recente. Em imagens e fragmentos de narrativa, o poema conta a sua história desde o conta a história da primeira estada de Sebald na Manchester da nascimento, em 1944, sob o signo de Saturno, o planeta frio, até década de 1960, uma cidade em que a primeira encarnação in- a década de 1980. Algumas das imagens - e a essa altura já esta- dustrial da Europa sobrevive até o final do século xx como uma mos familiarizados com essa prática, graças às suas obras de fic- espécie de necrópole ou reino dos mortos ("Essas imagens/ mer- ção em prosa - vêm da arca do tesouro da Europa, nesse caso gulhavam-me muitas vezes num quase/ sublunar estado de pro- de dois quadros de Albrecht Altdorfer (480-1538): o primeiro mos- funda/ melancolia" - "These images/ aften plunged me inta a tra a destruição de Sodoma, e o outro, a batalha de Arbela, trava- quasí/ sublunar state af deep/ melanchalia"). (p. 103) da entre Alexandre da Macedônia e Dario, rei dos persas. A paisagem do leste da Inglaterra onde Sebald se vê mais Ver o quadro de Sodoma pela primeira vez precipita uma ex- adiante é igualmente triste: propriedades rurais substituídas por periência de déjà-vu, que Sebald associa ao bombardeio das cida- hospícios, prisões ou asilos de velhos, ou transformadas em cam- des alemãs na Segunda Guerra Mundial e à recusa de seus pais pos de teste de armamentos. E a Inglaterra moderna tampouco em tocar nesse assunto. A amnésia geral e deliberada que asso- é singular em sua feiura. Sobrevoando a Alemanha, ele tem ou- la a geração dos seus pais, maior fonte de suas queixas contra os tra de suas soturnas experiências visionárias. 188 189
  • 95. Cities phosphorescent que cada inspiração de ar fazia on the riveibank, industry's meu rosto estremecer. glowing piles waiting beneath the smoke trails Visões como essa levaram-no a ver-se como Ícaro, o jovem like ocean giants for the siren's que, voando alto pelos ares com suas asas improvisadas, vê o que blare, the twitching lights mortal nenhum podia ver. Quando ele cair, como inevitavel- of rail- and motorways, the murmur mente haverá de cair, será que alguém dará alguma atenção ou, of the millionfold proliferating molluscs, como no famoso quadro de Brueghel, o mundo simplesmente wood lice and leeches, the cold putrefaction, seguirá em frente? the groans and the rocky ribs, A vertigem lembra a Sebald problemas de equilíbrio que the mercury shine, the clouds that ele tinha na infância, e o faz abordar o segundo dos quadros de chased through the towers of Frankfurt, Altdorfer, A batalha de Arbela, um panorama de carnificina em time stretched out and time speeded up, imensa escala apresentado em pormenores tão alucinatoriamen- all this raced through my mind te minuciosos que acabam induzindo a vertigem. O quadro de- and was already so near the end veria provocar mais um dos seus colapsos melancólicos, mas con- that every breath of air made my duz em vez disso à transcendência bastante inconvincente com face shudder. que o poema se encerra: o descortino de uma visão de um novo futuro, para além do horizonte de uma guerra infinita do Orien- Cidades fosforescentes te contra o Ocidente: à beira-rio, as pilhas luminosas da indústria à espera ... still further in the distance, por trás dos rastros de fumaça towering up in the dwindling light, como gigantes do oceano pelo berro the mountain ranges, das sirenes, as luzes nervosas snow-covered and ice-bound, das estradas de ferro e asfalto, o murmúrio of the strange, unexplored, dos milhões de moluscos que proliferam, African continent. pulgões e percevejos dos bosques, a fria putrefação, os gemidos e as costelas pétreas, ... e mais ao longe ainda, o brilho de mercúrio, as nuvens que assomando à luz bruxuleante, corriam entre as torres de Frankfurt, as cordilheiras, o tempo estendido e o tempo acelerado, cobertas de neve e cercadas de gelo, tudo isso me passou correndo pela mente do estranho, inexplorado e já estava tão perto do fim continente africano. 19° 191
  • 96. Nach der Natur tem seus pontos mortos e seus momentos de grandiloquência vazia, mas no fim das contas é uma obra de 11. Hugo Claus, poeta grande vigor e seriedade, totalmente merecedora de figurar ao lado das obras em prosa da última década de vida de Sebald. (2002) Num dos derradeiros poemas de Hugo Claus, um poeta fa- moso concorda em conceder uma entrevista a um homem mais jovem, também poeta. Algumas doses de bebida logo revelam a malevolência e a inveja que motivavam a visita. Aqui entre nós, pergunta o mais jovem dos dois, por que o senhor mantém o mundo à distância? Por que dedica tanta atenção aos mestres do passado? E por que se mostra tão obcecado pela técnica? Não se ofenda, mas às vezes acho seus poemas herméticos demais. E os seus esquemas de rimas: tão óbvios, tão pueris. Qual é sua filoso- fia, sua ideia básica, em poucas palavras? O espírito do homem mais velho vaga em retorno à sua in- fância, e se detém nos mestres do passado, Byron, Ezra Pound, Stevie Smith. "Uma trilha de pedras", diz ele. "Como?", pergunta o entrevistador, surpreso. "Uma trilha de pedras em que o poema se apoia." Acompa- nha o jovem até a porta, ajuda-o a vestir o casaco. Do umbral da porta, aponta para a lua. Sem entender, o jovem fita aquele de- cIo esticado.l 192 193
  • 97. Nesse olhar desencantado sobre si mesmo pelos olhos de durante a guerra. E esses antecedentes são retratados como pano uma nova geração que o desconsidera, Claus consegue resumir de fundo em Het Verdríet van Belgíe. as características mais óbvias de sua poesia. Ele de fato se man- Claus recebeu uma sólida formação do tipo obtido no Gym- tém a certa distância do mundo moderno (embora de maneira nasíum alemão, com ênfase nas línguas clássicas e modernas, mais nuançada que seu rival se dispõe a reconhecer); cultiva de mas nunca entrou para a universidade. Começou sua carreira de fato uma consciência intensa da maneira como sua obra se rela- artista como ilustrador de livros; depois, aos dezoito anos, publi- ciona com a tradição literária, tanto nacional quanto europeia; é cou seu primeiro livro de poesia e, um ano mais tarde, um pri- de fato um mestre da forma do verso, a tal ponto que consegue meiro romance. Entre seus primeiros ídolos literários estão An- fazer com que difíceis proezas técnicas pareçam infantilmente tonin Artaud e os surrealistas franceses; logo tornou-se ativo no fáceis; e de fato é às vezes hermético - na verdade, às vezes es- movimento artístico COBRA (Copenhague-Bruxelas-Amsterdam). creve numa tradição hermética; e os leitores à procura de uma Durante a década de 1950, Claus viveu na França e na Itá- mensagem nítida, alguma "filosofia" clausiana que possa resumir lia, além da sua Bélgica natal. Em 1959, foi convidado para uma sua obra em poucas palavras, tendem a acabar de mãos vazias. viagem aos Estados Unidos pela Fundação Ford, juntamente Hoje com mais de setenta anos, Claus teve uma carreira com um grupo de escritores europeus recém-revelados, entre os imensamente produtiva, ao longo da qual foi coberto de honra- quais se incluíam Fernando Arrabal, Günter Grass e Italo Cal- rias e prêmios, não apenas em sua Bélgica natal e na Holanda, vino. "Um versículo de Lucas não lhe vale de nada aqui", regis- mas de maneira mais ampla em toda a Europa ocidental. Sua trou ele diante da imensidão impessoal de Chicago.2 o?Uvreteatral- peças originais, traduções e adaptações - trans- Dotado em várias esferas artísticas e intensamente ativo, Claus formou-o numa importante presença do teatro. Fez ainda incur- continuou a escrever poesia e ficção e a pintar, ao mesmo tem- sões notáveis no cinema, nas artes plásticas e na crítica de arte. po em que se desenvolvia como dramaturgo, roteirista, diretor Mas as criações pelas quais há de ser lembrado são, primeiro, Het de cinema e teatro e crítico de arte. Com a publicação dos seus Verdríet van Belgíe [A dor da Bélgica, 1983], um dos grandes ro- Gedíehten 1948-20°4 ele assinalou o encerramento da primeira mances da Europa do pós-guerra e, segundo, um corpo de poe- fase da sua carreira poética, fase de que Het Teken van de Hamster mas que, em sua coletânea Gedíehten 1948-2°°4 [Poemas 1948- [O signo do hamster, 1963], uma torrencial retrospectiva da sua -2004], soma cerca de 1400 páginas. vida na linha do Testamento de François Villon, emerge como Hugo Claus nasceu em 1920 em Brugge (Bruges), Flandres, ponto alto. Juntamente com Remco Campert, Gerrit Kouwe- filho de um dono de gráfica apaixonado pelo teatro. Vários dos naat, Simon Vinkenoog e Lucebert, a essa altura ele já se firma- seus professores durante a Ocupação eram nacionalistas de di- ra na linha de frente da nova geração de poetas de língua holan- reita; ele próprio chegou a sentir-se atraído pelo movimento fas- desa, geração que deixou sua marca no início da década de 1950 cista da juventude flamenga. Depois da Libertação, seu pai este- produzindo uma arte antitradicional, antirracional, antiestéti- ve preso por um breve período devido a suas atividades políticas ca e experimental, receptiva às influências do Novo Mundo mas 194 195
  • 98. que, com a chegada dos anos 1960, se dividiria, dispersando seus físico que declina, enquanto o desejo insiste em escapar a seu membros em trajetórias individuais. controle. Nessas explorações, Claus lança mão do recurso aos O tumulto revolucionário de 1968 não deixou de afetar mitos, tanto gregos quanto indianos. Sua obra teatral do mesmo Claus. Ele fez uma visita - obrigatória àquela altura para os período concentra-se em adaptações de tragédias gregas e roma- intelectuais europeus de esquerda - à utopia socialista de Cuba nas. Não seria ir longe demais dizer que o universo clausiano e elogiou suas conquistas, embora com mais comedimento que tardio é dominado por uma luta entre os princípios masculino e alguns de seus colegas. De volta à Bélgica, um tribunal conside- feminino (e isso a despeito da advertência do próprio poeta, de rou uma de suas montagens teatrais ofensivas à moral pública, que não tem "filosofia" nenhuma a defender). condenando-o a quatro meses de prisão (diante do clamor geral Hugo Claus não é um grande lírico, e embora seu estilo de protesto, a pena foi suspensa). Um malfadado caso amoroso seja conciso e agudo tampouco pode ser chamado de grande inspirou-lhe um livro de poemas, Dag, Jij [Manhã, tu; 1971]' satirista ou epigramatista. Desde o início, porém, sua poesia es- notável tanto por sua explicitude em matéria de sexo quanto por teve marcada por uma combinação incomum de inteligência e sua pungente intensidade emocional. Por muitos anos depois paixão, exprimindo-se numa linguagem sobre a qual ele tem um disso, a vida particular de Claus ver-se-ia esquadrinhada pela bis- tamanho controle sem esforço que a arte se torna invisível. Mui- bilhotice dos tabloides. tos elos poemas mais curtos de sua obra são apenas fugitivos ou Embora Claus não tenha sido um poeta político no senti- circunstanciais. Ainda assim, espalhados ao longo de toda ela com do estrito, os poemas de sua primeira fase certamente refletem a alguma abundância, há poemas cuja concentração verbal, in- atmosfera apocalíptica e a alienação da vida política formal da tensidade de sentimentos e alcance intelectual incluem seu au- intelligentsía europeia durante os anos mais sombrios da Guerra tor na primeira linha dos poetas europeus do final do século xx. Fria, uma guerra cuja realidade - tendo em vista que Bruxelas (Z005) era a sede da OTAN - os belgas tinham especial dificuldade em ignorar. Nesse aspecto, Claus se aproxima do seu contemporâ- neo alemão Hans Magnus Enzensberger. Mas a visão de Claus permanece singularmente própria dos Países Baixos. O espírito que paira sobre sua pátria pisoteada é o de Hieronymus Bosch: e Claus recorre ao mesmo imaginário popular do final da Idade Média, com seus bestiários e gnomos, em que Bosch inspirava sua visão de um mundo enlouquecido. Na poesia da fase posterior de Claus, é a exploração da rela- ção entre os sexos, num nível tanto simbólico quanto pessoal, que ocupa o primeiro plano. O espírito desses versos não tem nada de outonal: como W. B. Yeats, Claus vocifera contra seu 197 196
  • 99. 12. Graham Greene, usado como informante por Colleoni, pela quadrilha de Kite. Nu- ma ação que não é descrita, o lugar-tenente de Kite, um jovem O condenado [Brighton RockJ chamado Pinkie Brown, mata Hale, talvez enfiando na sua gar- ganta um bastão do doce vermelho e branco conhecido na In- glaterra como Brighton Rock. O corpo não apresenta marcas: o legista que conduz a autópsia conclui que Hale morreu de um ataque cardíaco. Não fosse por Ida Arnold, uma demí-mondaíne de costu- mes flexíveis que Hale conhece no último dia de vida, e por Rase, a jovem garçonete que, sem saber, derruba o álibi de Pin- kie, o caso seria arquivado. A ação do romance, assim, passa a avançar em duas linhas convergentes: as tentativas de Pinkie para silenciar Rase, primeiro casando-se com ela e depois con- vencendo-a de que precisa fazer um pacto de morte com ele; e Ao resto do mundo, a Brighton da década de 1930 apresen- os movimentos de Ida, primeiro para desvendar o mistério da tava a face de uma atraente estância de férias à beira-mar. Mas morte súbita de Hale e, em seguida, para salvar Rase das maqui- por baixo dessa aparência havia uma outra Brighton: alas inteiras nações de Pinkie. de casas de construção precária, lojas horrendas e desolados su- Pinkie é um produto da "outra" Brighton. Seus pais morre- búrbios industriais. Nessa "outra" Brighton pululavam a intole- ram; foi o pátio da escola, com seu poder hierarquizado e seu rância e a criminalidade, boa parte desta última concentrada no sadismo ocasional, mais que as salas de aula, o local da sua for- hipódromo e nos lucros que as corridas geravam. mação. O gângster Kite era seu pai adotivo, ou seu irmão mais Graham Greene fez uma série de viagens a Brighton com a velho. A quadrilha de Kite, sua família substituta. Do mundo finalidade de absorver sua atmosfera e reunir material para sua além de Brighton ele não sabe rigorosamente nada. obra ficcional. Essa pesquisa rendeu primeiro A Gun for Sale Amoral, desprovido de encanto, fervilhando de ressenti- [Uma arma à venda, 1936J, um romance em que Battling Kite, mento contra "eles" e contra os meganhas, a polícia que "eles" chefe de uma quadrilha que extorque dinheiro dos bookmakers usam para contê-Ia, Pinkie é uma figura assustadora. Desconfia em troca de proteção, tem a garganta cortada por um grupo ri- das mulheres, que a seu ver não têm nada na cabeça além do val, a quadrilha Colleoni. casamento e de filhos. A simples ideia do sexo o enoja: sente-se E é a partir da morte de Kite que se desenvolve a ação de O perseguido pelas memórias dos confrontos entre seus pais nas condenado [Bríghton Rock, 1938J, originalmente planejado ape- noites de sábado debaixo das cobertas, cujos sons era obrigado a nas como mais um romance policial do tipo facilmente adaptá- acompanhar desde a sua própria cama. Enquanto os homens que vel para a tela. O livro começa com a caça a Fred Hale, repórter passa a comandar depois da morte de Kite têm relações transitó- 198 199
  • 100. rias com mulheres, ele permanece encerrado numa virgindade My friend judge not me de que sente vergonha, mas da qual não tem a menor ideia de I Thou seest judge not thee: como escapar. Betwíxt the stirru/J and the ground, E eis que entra Rose em sua vida, uma jovem tímida e feia Mercy I asked, mercy Ifound. pronta a adorar qualquer rapaz que faça menção de percebê-Ia. A história de Pinkie e Rose é, do lado de Pinkie, a história de Amigo não julgues a mim, uma luta para barrar a entrada do amor no seu coração, e do la- Pois vês que não julgo a ti: do de Rose, da persistência canina em amar seu homem, desa- Entre o estribo e o rés do chão, fiando qualquer grau de cautela. Para impedi-Ia de testemunhar Pedi e encontrei perdão. contra ele se um dia for levado a julgamento, Pinkie casa-se com Rose numa cerimônia civil que os dois sabem ser um verdadeiro A graça de Deus, para a Igreja católica, é incognoscível, im- insulto ao Espírito Santo. E Pinkie, além de casar-se com Rose, previsível e misteriosa; contar com ela para a salvação - adiar ainda cumpre, a contragosto, o sacrifício de consumar o casamen- o remorso para o momento entre o estribo e o rés do chão - é to; e, antes que o véu de misoginia, ódio e desprezo pelas mulhe- um pecado profundo, é pecar por orgulho e presunção. Uma das realizações mais notáveis de Greene em O condenado é res torne a descer, descobre que o sexo nem é tão mau assim, e elevar seu casal de amantes improváveis, o meliante adolescen- que pode até rememorar seus momentos com certo prazer e uma espécie de orgulho. te e a jovem noiva ansiosa, a momentos de orgulho cômico mas luciferiano. E Pinkie só precisa repelir mais uma vez o assédio da reden- Mas estará Pinkie condenado ao inferno? No âmbito do ro- ção a seu coração empedernido. Enquanto conduz Rose ao lu- mance, a pergunta não faz sentido: do que se passa na alma de gar isolado onde, tudo correndo bem, ela irá se matar, ele sente Pinkie enquanto ele despenca de um penhasco no final do livro "uma emoção enorme ... como se houvesse algo tentando entrar; nada nos é dito. E quem somos nós, afinal, para dizermos que, a pressão de asas gigantescas contra o vidro ... Se o vidro quebras- em alguns casos, a confiança na misericórdia divina não pode se, se aquele bicho - ou o que quer que fosse - conseguisse advir de uma intuição genuína do espírito quanto à maneira co- entrar, Deus sabe do que seria capaz"! mo funciona o mistério da graça? Por via das dúvidas, porém, O que mantém Pinkie e Rose ligados é o fato de serem am- mais adiante na vida Greene iria declarar explicitamente que não bos "romanos", filhos da Verdadeira Igreja, de cujos ensinamen- aceitava a doutrina da maldição eterna. O mundo já continha tos têm uma noção muito vaga, mas que ainda assim lhes confere sofrimento suficiente, disse, para qualificar-se ele mesmo como uma inabalável sensação de superioridade interior. O ensina- um purgatório. mento em que confiam com mais intensidade é a doutrina da graça, resumida num poema anônimo que se fixou na memória O condenado é um romance sem herói. Mas na pessoa de de ambos: Ida Arnold, a mulher que Fred Hale escolhe por desespero no 200 201
  • 101. último dia de sua vida, Creene cria não só uma detetive nada A terra desolada [The Waste LandJ, de T. S. Eliot. Ele próprio convencional, astuta, obstinada e inabalável, mas também uma um poeta de algum peso, Creene traz Brighton à vida com ima- robusta antagonista teológica ao eixo católico constituído por gens de um sombrio vigor expressionista: "A escuridão imensa Pinkie e Rose. Pinkie e Rose acreditam no Bem e no Mal; Ida premia a boca molhada contra as vidraças". (p. 252) Em livros acredita num Certo e num Errado mais mundanos, a lei e a or- posteriores, Creene tendeu a refrear a poesia quando ela se tor- dem, embora, claro, com algum humor adicional. Pinkie e Rose nava muito evidente. creem na salvação e no castigo eterno, especialmente neste últi- Mais presente ainda nesse romance é a influência do cine- mo; em Ida, o impulso religioso é domesticado, trivializado e ma. O final da década de 1930 foi uma época de grande progres- confinado ao tabuleiro ouíja, onde espíritos se manifestam. Nas so para a indústria cinematográfica britânica. Pela lei, os cinemas cenas em que Ida, tomada pelo impulso maternal, tenta separar eram obrigados a exibir certa quota de filmes britânicos, e um Rose de seu amante demoníaco, vemos o confronto entre os ru- sistema de subsídios premiava os filmes de qualidade. Criou-se dimentos de duas visões de mundo, uma escatológica e a ou- uma escola de cinema genuinamente britânica, refletindo as rea- tra secular e materialista, sem que ocorra qualquer compreensão lidades da vida britânica, um desenvolvimento que Creene sau- recíproca. dava com satisfação. Em 1935 ele se tornou crítico de cinema do Embora a visão de Ida pareça triunfar no final, um dos fei- Spectator, e pelos cinco anos seguintes publicou cerca de qua- tos mais sutis de Creene é pôr em dúvida essa visão, talvez bito- trocentas críticas de filmes. Mais tarde ainda trabalharia na adap- lada e tirânica. No final, a história não pertence a Ida mas a Rose tação de seus próprios romances, entre eles o próprio O conde- e Pinkie, pois eles, ao contrário dela, estão preparados para en- nado, filmado por Carol Reed em 1947 e distribuído nos Estados frentar as grandes questões, ainda que de forma pueril. Unidos com o título de Young Scarface. A fé que Rose deposita em seu amado jamais vacila. Até o Já desde Stamboul Traín [Trem de Istambul, 1932]' os ro- fim ela identifica Ida, e não Pinkie, como a criatura malévola, mances de Creene traziam a marca do cinema: uma preferên- praticante da sedução sutil. "Ela é que deveria ser amaldiçoada cia pela observação de fora sem comentário, o corte seco de cena para sempre ... Ela não sabe o que é o amor." (p. 267) Se de fato em cena, ênfase igual no significante e no insignificante. "Quan- ocorrer o pior, ela, Rose, prefere sofrer no inferno com Pinkie a do descrevo uma cena", disse ele numa entrevista, "procuro cap- ser salva na companhia de Ida. (Como nunca iremos saber o que turá-Ia com o olho móvel da câmera cinematográfica, e não com terá ocorrido com a alma de Pinkie, também jamais saberemos o olho do fotógrafo - que a congela ... Trabalho com a câmera, se a fé de Rose terá conseguido resistir às palavras de ódio, pre- acompanhando minhas personagens e seus movimentos."2 Em servadas num disco de vinil, que Pinkie lhe transmite do além-tú- O condenado, a influência do estilo visual de Howard Hawks po- mulo: "Deus a amaldiçoe, pequena cadela." [p. 193]) de ser percebida na maneira como o autor manipula a violên- cia no hipódromo. O uso engenhoso do fotógrafo itinerante para Craham Creene pertenceu a uma geração cuja visão da vi- conduzir o enredo sugere Alfred Hitchcock. Os capítulos, carac- da urbana moderna foi profundamente influenciada pelo poema teristicamente, terminam com o foco recuando dos atores hu- 202 2°3
  • 102. manos para abarcar o panorama natural mais amplo - a lua so- "bitches" [o que equivale, provavelmente, ao português "vaga- bre a cidade e a praia, por exemplo. bundas"]. O "rosto semítico" de Colleoni é transformado em "ros- Na época em que escreveu O condenado, Greene também to italiano". Os lábios almofadados permanecem. vinha refinando sua técnica narrativa, usando Henry James e O fato de Greene ter achado que a ofensa poderia ser re- Ford Madox Ford como mestres e A técnica da ficção, de Percy movida com algumas penadas indica que, a seu ver, ela só tinha Lubbock, como seu manual. Embora O condenado possa não a ver com a superfície verbal do romance, e não com as atitudes ser tecnicamente perfeito - há lapsos durante os quais a nar- e ideias que o norteavam. rativa interna de Pinkie é invadida por comentários e juízos do narrador -, ele é, em sua concentração na malevolência ínti- Graham Greene nasceu em 1904 numa família de algum ma, claramente da escola de Henry James. relevo intelectual. Do lado da sua mãe, era parente de Robert O romance ainda tem outros problemas. Enquanto as sim- Louis Stevenson. Seu pai era o diretor de uma escola de renome, patias de Greene se alinham obviamente do lado dos pobres, um de seus irmãos se tornaria diretor-geral da BBC. humilhados e desempregados, a grande cena em que ele podia Na Universidade de Oxford ele estudou história, escreveu ter explorado a textura da vida destes - a visita aos pais de Rose poemas, militou por um breve período no Partido Comunista e - causa um impacto mais grotesco que perturbador. O ritmo da chegou a brincar com a ideia de entrar para o ramo da espiona- ação vai se afrouxando à medida que se aproxima do final - e gem. Depois de formar-se assumiu um emprego noturno de su- Greene ainda dedica um excesso de páginas aos destinos indivi- beditor no The Times, escrevendo literatura durante o dia. Seu duais dos membros da quadrilha de Pinkie. primeiro romance foi publicado em 1929; O condenado foi o Dado o ethos taciturno de suas personagens, em O conde- nono. nado Greene tem poucas oportunidades de exibir sua habilidade Em 1941, ao final de um período trabalhando na vigilân- como escritor de diálogos. A exceção é o advogado Prewitt, sufi- cia de ataques aéreos, Greene entrou para o SIS, o Secret Intelli- cientemente articulado para assumir uma vida verbal própria de gence Service (Serviço Secreto de Informações), onde seu supe- caráter dickensiano. rior imediato era Kim Philby, mais tarde desmascarado como Na edição de 1970 de suas obras reunidas, Creene retocou agente a serviço dos russos. Depois da guerra, trabalhou em edi- o texto original em alguns pontos. Em 1938 ele se sentia à vonta- toras até que os vencimentos da venda dos seus livros, dos rotei- de para usar termos como "judia" ("Jewess") e "preto" ("nigger" ros de filmes e da venda de direitos de filmagem tornaram desne- - na expressão "niggers with 'cushionly' lips" ["pretos de lábios cessário que tivesse um emprego. almofadados"J). Nos círculos que frequentava àquela altura, es- Greene continuou a servir informalmente ao SIS por muitos ses epítetos raciais eram correntes e aceitáveis. Depois da guerra, anos depois da guerra, relatando o que observava em suas exten- porém, deixaram de sê-Io. Assim, ele transformou os "niggers" sas viagens. Até certo ponto, não passava de um agente secreto em "negroes" ["negros"], e as "jewesses" ("judias"), em alguns con- diletante. Ainda assim, as informações que fornecia eram bastan- textos simplesmente em "women" ["mulheres"] e, noutros, em te valorizadas. 2°4 2°5
  • 103. ocondenado foi seu primeiro romance sério, sério porque justiça à condição humana: eis a essência da sua crítica a Virgi- travalhava com ideias sérias. Por algum tempo, Greene mante- nia Woolf e a E. M. Forster, cujas palavras ele achava "delgadas ve uma distinção entre suas incursões no romance sério e seus como papel", apenas cerebrais.4 chamados "divertimentos". Dos vinte e tantos volumes de fic- A narrativa de Greene dando conta de como, sendo católi- ção que publicou antes da sua morte em 1991, O poder e a gló- co e romancista, tornou-se um romancista católico, foi elabo- ria (1949), O coração da matéria (1948), Fim de caso (1951), A rada tardiamente em sua vida e não deve ser necessariamente Bumt-Out Case [Um caso encerrado J (1961), The Honorary Con- aceita ao pé da letra. Segundo esse relato, embora ele se tenha sul [O cônsul honorário, 1973J e O fator humano (1978) foram convertido ao catolicismo ainda jovem,5 para ele a religião per- os que atraíram mais atenção da crítica. maneceu uma questão particular entre o crente e Deus até pre- Nesse corpo de escritos, Greene definiu um território pró- senciar em primeira mão a perseguição da Igreja no México e prio, a chamada "Greenelândia", em que homens tão imperfei- constatar como a fé religiosa podia tomar conta da vida das pes- tos e divididos quanto qdalquer outro têm sua integridade e os soas, sacramentalizando-as integralmente. fundamentos de Suas crenças postos à prova até o limite, enquan- O que fica dessa narrativa é a atração, romântica em sua to Deus, caso exista, insiste em permanecer oculto. As histórias natureza e confirmada pelo que dizem suas primeiras obras de desses heróis dúbios são contadas com um magnetismo e um co- ficção, que o catolicismo exerceu sobre ele - a sensação de que nhecimento de causa que atraíram os leitores aos milhões. os católicos têm um acesso único a um corpo ancestral de co- Greene gostava de citar o bispo Blougram de Robert Browning: nhecimentos, e de que os católicos ingleses em especial, mem- bros de uma seita perseguida no passado, são por isso inerente- Nosso interesse é pelo extremo perigoso das coisas, mente excluídos. O ladrão honesto, o assassino terno, Por menos letrado que seja o Pinkie Brown de Greene (mas O ateu supersticioso ... nem por isso incapaz de compor frases em latim), sua ideia da própria identidade está impregnada da noção de que detém um Se precisasse escolher uma epígrafe para toda a sua obra, di~ conhecimento secreto, fora do alcance da ralé, de que um des- zia ele, seria essa. Embora idolatrasse Henry James ("tão isolado tino mais alto está reservado para ele. Essa sensação de ser um à frente na história do romance quanto Shakespeare na história eleito, compartilhada por tantas outras personagens de Greene, da poesia"), seu antecessor imediato é o Joseph Conrad de O agen- suscitou críticas como a de George Orwell: "Greene parece te secreto. De sua progênie, John le Carré é o mais celebrado.3 compartilhar a ideia, que vem pairando no ar desde Baudelaire, Greene é geralmente considerado um romancista católico, de que existe algo de distingué em ser maldito".6 Mas esse tipo de que interroga as vidas das suas personagens de um ponto de vis- crítica não é de todo justa: se em alguns momentos Greene ta especificamente católico. Não há dúvida de que julgava que, parece prestes a endossar a concepção romântica que Pinkie tem sem uma consciência religiosa, ou pelo menos uma consciência do catolicismo como a fé do marginal byroniano, há momentos da possibilidade do pecado, o romancista não tinha como fazer em que o aparato escatológico de Pinkie revela-se uma simples 206 2°7
  • 104. defesa precária erguida contra a zombaria do mundo ~ a zom- baria das suas roupas surradas, da sua gaucheríe, do seu sotaque 13. Samuel Beckett, os contos de operário, da sua juventude, da sua ignorância em matéria de sexo. Pinkie pode fazer o possível para elevar seus atos à esfera do pecado e da maldição, mas para a resoluta Ida Arnold eles não passam de crimes que merecem as penas da lei; e neste mundo, o único mundo que temos, a visão de Ida é a que tende a prevalecer. (2°°4) Embora Watt, escrita em inglês durante os anos da guerra mas publicada apenas em 1953, seja uma presença substancial no cânone beckettiano, pode-se dizer que Beckett só foi encon- trar-se como escritor depois que adotou o francês e, especialmen- te, depois dos anos de 1947-51 quando, numa das erupções criati- vas mais notáveis dos tempos modernos, escreveu as ficções em prosa Molloy, Malone morre e O Inomínável ("a trilogia"), além da peça Esperando Godot e dos treze Textos para nada.! Essas grandes obras foram antecedidas por quatro contos, igualmente escritos em francês, acerca de um dos quais - "Pri- meiro Amor" - Beckett tinha as suas dúvidas. (Também pode ter questionado a maneira como encerra "O Fim": no geral um mestre da frase contida, Beckett permitiu-se aqui a indulgência de um mergulho nada característico na plangência.) N esses contos, no romance Mercíer e Camíer (escrito em francês em 1946) e em Watt, os contornos do mundo beckettiano tardio, bem como os processos pelos quais os produtos da criação ficcional de Beckett eram gerados, começam a se tornar visíveis. 208 2°9
  • 105. Trata-se de um mundo de espaços confinados ou então de deso- As três décadas seguintes verão Beckett, em suas ficções ladas extensões vazias, habitadas por monologuistas associais e de prosa, incapaz de seguir em frente - atolado, na verdade, na na verdade misantrópicos que jamais conseguem terminar seus própria questão de saber o que significaria seguir em frente, por monólogos, vagabundos com o corpo em colapso e a mente em que devemos seguir em frente e quem deve tomar a iniciativa do vigília constante, condenados a um redemoinho purgatorial em avanço. Um filete de publicações continua a gotejar: composi- que ensaiam vezes sem conta os grandes temas da filosofia oci- ções breves e quase musicais cujos elementos são locuções e fra- dental; um mundo que nos chega na prosa característica que ses. Ping (Bing no original francês, 1966) e Lessness (Sans no ori- Beckett - baseando-se principalmente em modelos franceses, ginal francês, 1969) - textos construídos a partir de repertórios embora com o fantasma de Jonathan Swift a murmurar-lhe bai- de frases organizadas por métodos combinatórios [e ambos tra- xinho no ouvido - encontrava-se em pleno processo de aperfei- duzidos para o inglês pelo próprio BeckettJ - representam o ex- çoar para si, lírica e mordaz na mesma medida. tremo dessa tendência. A música que produzem é áspera; mas, Em Textos para nada (o título francês Textes fJour rien alude como demonstra o quarto dos Fizzles (1975), as composições de à medida inicial marcada pelo maestro ante o silêncio da orques- Beckett também podem ser de uma irresistível beleza verbal. tra) vemos Beckett esforçando-se para deixar o canto isolado que Beckett se aferra à premissa narrativa de O Inominável, e de lhe restara em O Inominável: se "o Inominável" é o signo verbal How It Is (Comment c'Est, 1961), nesses textos curtos de ficção: para o que fica depois que todas as marcas de identidade são re- uma criatura constituída de uma voz conectada, por motivos des- movidas da série de monologuistas que o antecede (MoIloy, Ma- conhecidos, a algum tipo de corpo encerrado num espaço que lone, Mahood, Worm e todo o resto), quem ou o que virá quan- lembra mais ou menos o Inferno de Dante, por um certo tem- do o Inominável for por sua vez despojado, e quem depois desse po é condenada a falar, tentar dar sentido às coisas. A situação é sucessor, e assim por diante? E - o que é mais importante _ bem descrita por um termo de Heidegger, Geworfenheit: ver-se será que a própria ficção não irá degenerar no registro desse pro- atirado sem explicação numa existência governada por regras obs- cesso de desnudamento cada vez mais mecânico? curas. O Inominável era sustentado por sua soturna energia cô- O problema da criação de alguma fórmula verbal capaz de mica. À altura do final da década de 1960, porém, essa energia delimitar e aniquilar o resíduo inominável da identidade e assim cômica; com seu poder de surpreender-nos, reduzira-se a uma alcançar finalmente o silêncio aparece formulado no sexto dos autolaceração implacável e árida. The Last Ones/Le Dépépleur Textos de Beckett. À altura do décimo primeiro, essa busca de [Os últimos, 1970] é um inferno para o leitor, e talvez também um desfecho ou finalidade - baldada, como sabemos e Beckett tenha sido um inferno para escrever. também sabe - está em pleno processo de ser absorvida numa E então, com Company/Compagnie [Companhia, 1980]' espécie de música verbal, e a feroz angústia cômica que a acom- Mal visto e mal dito (1981) e Worstward Ho [Rumo ao pior, 1983], panhava também está em pleno processo de ser esteticizada. Eis emergimos milagrosamente em águas mais claras. A prosa se a resposta a que Beckett parece ter chegado, uma resposta clara- mostra subitamente mais expansiva, e até cordata em matéria de mente precária, para a pergunta do que fazer depois. Beckett. Enquanto nas ficções anteriores a interrogação da iden- 210 211
  • 106. tidade encurralada, gcworfen, tinha uma qualidade mecânica, teso Em sua desconfiança da axiomática cartesiana, Beckett ali- como se desde o início ficasse combinado que qualquer questio- nha-se com Nietzsche e Heidegger, e com seu contemporâneo namento era fútil, nesses textos posteriores tem-se a sensação de mais jovem Jacques Derrida. A interrogação satírica a que ele que a existência individual é um mistério genuíno, merecedor submete o cogito cartesiano (estou pensando, logo devo existir) de exame mais detido. A qualidade do pensamento e da lingua- está tão próxima em espírito da decisão de Derrida de revelar as gem permanece tão filosoficamente escrupulosa como sempre, premissas metafísicas por trás do pensamento ocidental que não mas surge um elemento novo, pessoal e até mesmo autobiográ- podemos deixar de mencionar, senão uma influência direta de fico: as memórias que emergem e flutuam na mente de quem Beckett sobre Derrida, no mínimo um caso notável de vibra- fala provêm claramente da infância remota do próprio Samuel ção em sintonia. Beckett, e são tratadas com certa admiração e ternura, muito Começando como um joyceano desconfortável e um prous- embora - como imagens dos antigos filmes mudos - tendam tiano mais desconfortável ainda, Beckett acaba por instalar-se na a tremer e a desaparecer na tela do olho interior. A palavra-chave comédia filosófica como o meio mais adequado a seu tempera- beckettiana "on",':'que antes tinha uma qualidade de áspera fu- mento singularmente angustiado, arrogante, dubitativo e escru- tilidade ("I can't go on, I'll go on" - "não posso continuar, vou puloso. No espírito popular, seu nome está associado ao miste- continuar"), começa a assumir um novo significado: o significa- rioso Godot que pode ou não chegar, masque de todo modo do, se não da esperança, pelo menos da coragem. esperamos, passando o tempo da melhor maneira possível. Nes- O espírito desses últimos escritos, otimista embora de um sa criação ele parece ter definido o espírito de uma época. Mas ceticismo bem-humorado quanto ao que se pode realizar, é bem o alcance de Beckett é bem maior, e suas realizações, bem mais capturado numa carta escrita por Beckett em 1983: "A reta lon- importantes. Beckett era um artista possuído por uma visão da ga e torta é laboriosa, mas não deixa de ser animada. Enquanto vida sem consolo nem dignidade ou promessa de graça, em face ainda 'jovem' comecei a buscar consolo na ideia de que naquela da qual nosso único dever - inexplicável e de finalidade fútil, época, se em algum tempo, isto é agora, as palavras verdadeiras mas ainda assim um dever - é não mentirmos para nós mes- afinal, da mente em ruínas. E a essa ilusão continuo aferrado".2 mos. Era uma visão a que ele dava expressão numa linguagem de força viril e sutileza intelectual que o assinala como um dos Embora não seja uma descrição que ele próprio aprovasse, grandes estilistas em prosa do século xx. Beckett pode ser definido, com justiça, como um escritor filosó- fico cuja obra pode ser lida como uma série de ataques vigorosos (2°°5) e céticos a Descartes e à filosofia do sujeito fundada por Descar- * Preposição em si intraduzível, de tantos sentidos que forma em inúmeras locuções, mas que aqui equivaleria mais ou menos a "adiante", como na locu- ção "seguir adiante". (N. T.) 212 213
  • 107. 14· Walt Whitman assim. Ele é um dos milhares de nossos jovens americanos des- conhecidos das fileiras armadas sobre os quais não há registro nem se cria fama, nenhuma agitação produzida por suas mortes tão anônimas, mas vejo neles os realmente preciosos e nobres ... Pobre filho querido, embora não fosses meu filho, fui levado a amar-te como um filho, pelo curto tempo que pude ver-te ali, doente e moribundo. A carta vinha assinada "Walt Whitman", com um endereço no Brooklyn.1 Escrever cartas de condolência era apenas um dos deveres que Whitman se impunha como Missionário dos Soldados. Per- correndo os hospitais de Washington, trazia de presente para os soldados roupas de baixo limpas, frutas, sorvete, tabaco e selos Em agosto de 1863, o cabo Erastus Haskell, do 141º Regi- postais. Também conversava com eles, consolava-os, beijava e mento de Voluntários de Nova York, morreu de febre tifoide no abraçava alguns, e se precisavam morrer tentava facilitar sua Hospital de Armory Square, em Washington, capital dos Estados morte. "Nunca antes tive meus sentimentos tão integralmente e Unidos. Pouco tempo depois, seus pais receberam uma longa (até aqui) permanentemente absorvidos, até as raÍzes, como por carta de um desconhecido. "Eu estava muito ansioso pela salva- essas multidões de pobres rapazes feridos, doentes e agonizan- ção [de Erastus]", dizia ele, tes", escreveu ele. "Criei ligações no hospital que hei de con- servar até o dia da minha morte, e eles também, sem a menor assim como todos os outros - e ele era bem tratado pelos aten- dúvida."2 dentes ... Passei muitas noites no hospital ao lado da sua cama ... Entre 1862 e 1865, por seus próprios cálculos, Whitman pres- - ele sempre gostava que eu me sentasse ali, mas nunca se dava tou cuidados a cerca de 100 mil homens. Embora suas inter- ao trabalho de dizer nada - nunca me esquecerei dessas noites, venções não fossem universalmente bem recebidas - "Esse era uma cena curiosa e solene, os doentes e feridos estendidos a detestável Walt Whitman, [vindo] falar de coisas perversas e de toda a volta em suas camas ... e esse jovem tão querido ali bem descrença com os meus rapazes", escreveu uma enfermeira-, perto ... Não conheço o seu passado, mas o que sei, e o que pude cm nenhum lugar barravam sua entrada. Poderíamos nos per- ver, é que era um rapaz nobre - sinto que era alguém a que eu guntar se em nossos dias um homem de meia-idade, com fama poderia me apegar muito ... dc pornógrafo, conseguiria vagar assim pelas enfermarias, de ca- Escrevo-Ihes esta carta porque pelo menos alguma coisa quis beceira em cabeceira de rapazes atraentes, ou se não seria posto fazer em memória dele - seu destino foi muito duro, morrer 11: rua em pouco tempo por uma dupla de seguranças) 214 215
  • 108. Whitman mantinha anotações sobre suas experiências em urna rede de amor fraterno em escala nacional muito semelhan- Washington, e mais tarde as transformaria em artigos de jornal e te à afetu9sa camaradagem que ele encontrara entre os jovens conferências que, em 1876, publicou numa edição limitada sob soldados que marchavam para a guerra, e que detectava em seu o título de Memoranda during the War [Memorandos durante próprio coração quando, mais tarde, dedicava-Ihes seus cuida- a guerra J. Essa obra, por sua vez, tornou-se parte de Specimen dos. No prefácio de 1876 a Folhas de relva, ele diria: "É por meio Days [Amostras de dias, 1882J. Nem tudo nos Memoranda vem de um desenvolvimento fervoroso e aceitável da camaradagem, de urna experiência em primeira mão. Embora Whitman dê a a bela e saudável afeição de homens por homens, latente em to- impressão de ter testemunhado o assassinato de Abraham Lin- dos os jovens ... e por meio do que acompanha direta e indire- coln no Ford's Theatre e nos apresente urna descrição dramática tamente esse desenvolvimento, que os Estados Unidos do futu- desses acontecimentos, na verdade não estava lá. Mas ele de fato ro ... terão urna ligação mais eficaz, intercalados, cingidos numa acreditava ter urna relação especial com Lincoln. Os dois eram união viva".4 altos. Whitman muitas vezes viu Lincoln passar pelas ruas, e es- Para Whitman, a adesividade não era urna simples forma tava convencido de que, por cima das cabeças da multidão, o lí- sublimada da amatividade, mas urna força erótica autônoma. O der eleito do povo americano reconhecia e respondia ao aceno traço mais atraente dos Estados Unidos sonhados por Whitman do legislador extraoficial da humanidade (assim corno Shelley, é que esse país não exigiria de seus cidadãos a sublimação de eros Whitman tinha ideias elevadas sobre a sua vocação). no interesse elo Estado. E nisso o poeta diverge de outras utopias do século XIX. Quando jovem, Whitman ficara muito impressionado com Whitman não era apenas altamente adesivo corno também, urna ciência recém-criada, a frenologia. Submeteu-se a um exa- a julgar pelo que escreveu, intensamente amativo: "Tiro o noi- me frenológico básico e obteve notas altas em amatividade e ade- vo da cama e deito-me eu próprio com a noiva,! e a pressiono a sividade, Com notas apenas médias para as habilidades linguísti- noite inteira com meus lábios e coxas." ["I turn the bridegroom caso Sentia suficiente orgulho de scus resultados para divulgá-I os out ofbed and stay with the bride myself,! 1 tighten her all night nos anúncios de Folhas de relva. to my thighs and lips."). A questão de qual era exatamente a No jargão frenológico, a amatividade é o ardor sexual; a ade- forma física dessa amatividade vem absorvendo cada vez mais sividade é a conexão, a amizade, a camaradagem. A distinção abertamente os estudiosos de Whitman nos últimos tempos. (LoG, tornou-se importante para Whitman em sua vida erótica, onde p.65) ela lhe fornecia um nome, e na verdade urna certa respeitabili- Nos anos que se seguiram à guerra, Whitman criou laços dade, para seus sentimentos por outros homens. E também dava significativos com homens mais jovens, entre os quais dois se substância à sua concepção de democracia: corno variedade do destacam: Peter Doyle, que trabalhava corno condutor na fer- amor que não se limitaria ao casal sexual, a adesividade podia rovia de Washington; e Henry Stafford, aprendiz de tipógrafo. A constituir as fundações de urna comunidade democrática. A de- relação com Doyle - que era praticamente analfabeto e, segun- mocracia whitmaniana seria urna adesividade muito ampliada, do Whitman, considerava Folhas de relva "um emaranhado de 216 217
  • 109. frases loucas e palavras difíceis, tudo embaralhado, sem ordem Na forma em que sobreviveram no original, os doze poemas nem sentido" - parecia provocar uma angústia considerável em da série Líve Oak contam a história dessa ligação. Entretanto, ao Whitman. Numa anotação em código em seu caderno, Whitman chegar o momento da publicação, Whitman perdeu a coragem adverte a si mesmo: e distribuiu os doze, fora da ordem, em meio a um conjunto maior de poemas intitulado Calamus, que, de maneira geral, Desista absolutamente & de uma vez por todas, a partir de ago- celebrava antes a adesividade que a amatividade. ra, dessa perseguição febril, volúvel, inútil e indigna de [Doy- Por razões talvez estratégicas, Whitman gostava de dar a en- le] - em que vem perseverando há tempo demais (muito de- tender que tinha casos amorosos com mulheres. Chegou até a mais) -tão humilhante ... Evite tornar a vê-Ia [sic] ou encontrar-se iniciar rumores sobre crianças que teria gerado fora do casamen- com ela, ou qualquer conversa ou explicação - ou qualquer tipo to, em Nova Orleans e em outras cidades. As mulheres o acha- ele encontro, a partir do momento presente, pelo resto da viela. vam de fato atraente, e é difícil acreditar que o poeta de "I Sing the Body Electric" desconhecesse de todo os prazeres do sexo (Ao censurar seus papéis, Whitman deu-se ao trabalho de heterossexual: "Noite de amor de noivo laborando certa e suave- apagar minuciosamente cada repreensível pronome masculino, mente até a aurora prostrada,! Penetrando ondulante no dia re- substituindo-o pela forma feminina.)5 ceptivo e entregue,! Perdido na greta do dia envolvente de carne A ligação com Henry Stafford parece ter sido mais tranquila macia." ["Bridegroom night of love working surely and softly in- - Whitman era quase quarenta anos mais velho que Stafford, to the prostrate dawn,! Undulating into the willing and yielding cuja família o acolhia. Whitman passava tempos como hóspede day,! Lost in the cleave of the clasping and sweetilesh'd day."] pagante na fazenda da família, onde podia praticar à vontade seu (LoG, p. 96) ritual matutino de um banho de lama seguido de um mergulho As passagens eróticas de Folhas de relva, especialmente as no riacho, tudo acompanhado de cantoria em voz muito alta. de narcisismo e exibicionismo, em que tiradas cômicas podem Se formos ler autobiograficamente os poemas da série co- facilmente ser confundidas com jactância, incomodavam mui- nhecida como Live Oak (1859) ficaremos com a impressão de ter tos dos amigos de Whitman, entre eles Ralph Waldo Emerson, acontecido alguma ligação importante em fins da década de 1850, o contemporâneo mais velho cuja importância para Whitman levando Whitman a perceber que seus sentimentos por outros fora maior. Emerson foi o primeiro a perceber a genialidade de homens não poderiam ser mantidos em segredo para sempre. Whitman, e permaneceu ao lado de seu protegido mesmo quan- "Um atleta está enamorado por mim, e eu por ele,! Mas por ele do este usou desavergonhadamente seu nome para promover as há algo de feroz e terrível em mim a ponto de explodir,! Não me vendas do seu livro. Mas o ponderado conselho de Emerson, de atrevo a dizê-Io com palavras, nem mesmo nestes cantos." ["An que Whitman atenuasse um pouco o sexo para a edição de 1860, athlete is enamoured of me, and I ofhim,! But toward him there foi ignorado. is something fierce and terrible in me eligible to burst forth,! I O que mais surpreende nas reações imediatas a Folhas de dare not tell it in words, not even in these songs."J (LoG, p. 132) relva é que foi o sexo aparentemente heterossexual, mais que o 218 219
  • 110. homoerotismo por trás dos poemas do Calamus, que causou Num posfácio a uma recente reimpressão das Folhas de rel- grande ofensa, e acabou levando o promotor local de Boston a va (1855), David Reynolds zomba de Anthony Comstock, empe- ameaçar autor e editores de processo se a edição de 1881 não fos- nhado em sua campanha contra a literatura indecente, que de- se expurgada. nunciou o sexo heterossexual da edição de 1881 mas ao mesmo A essa altura, Whitman já reunia um considerável contin- tempo ignorava os poemas do Calamus. Como, pergunta Rey- gente de admiradores entre os intelectuais gays, especialmen- nolds, Comstock pode ter deixado de perceber o substrato que te na Inglaterra: em sua turnê aos Estados Unidos, Oscar Wilde hoje nos parece tão obviamente homossexual? "A resposta pode visitou Whitman e saiu do encontro anunciando que recebera ser que o amor entre pessoas do mesmo sexo não era interpre- um beijo nos lábios. O ensaísta John Addington Symonds pres- tado naquela época da mesma forma como é hoje." "Fosse qual sionou Whitman a admitir que o tema velado dos poemas do fosse a natureza das relações [de Whitman] com [rapazes], a maio- Calamus era um caso amoroso com um homem. Mas Whitman, ria das menções ao amor entre pessoas do mesmo sexo em seus antes por astúcia que por medo, pode-se imaginar, negou. Os poe- poemas não destoava muito de outras teorias e práticas correntes mas, respondeu ele em tom gélido, não toleravam tais "inferên- na época, afirmando a salubridade desse tipo de amor."7 cias mórbidas - [que] eu repudio & me parecem condenáveis".6 E Reynolds reitera a mesma posição em seu livro Walt Seriam assim os leitores da época de Whitman mais tole- Whítman: rantes ao amor sexual entre homens do que geralmente supo- mos, contanto que ele não se proclamasse com muito estarda- Embora Whitman tenha evidentemente tido um ou dois casos lhaço? Seria o poeta do corpo elétrico tacitamente reconhecido amorosos com mulheres, ele era principalmente um camarada como gay? romântico que teve uma série de relacionamentos intensos com jovens rapazes, a maioria dos quais em seguida se casou e teve fi- "Sou o poeta da mulher assim como do homem ...! Sou aquele lhos. Fosse qual fosse a natureza de suas relações físicas com eles, que caminha com a noite suave e crescente,! Clamo à terra e ao a maioria das menções ao amor entre pessoas do mesmo sexo em mar semissuspensos pela noite.! Abraça-me noite de peito desco- seus poemas não destoava muito das teorias e práticas correntes berto - abraça-me noite magnética e nutriz!! Noite de ventos na época, afirmando a salubridade desse tipo de amor.8 do sul - noite de grandes e escassas estrelas!! Noite silenciosa e convidativa - noite louca e nua de verão." ["I am the poet of Num tom igualmente cauteloso, Jerome Loving, em sua the woman the same as the man .. .I Iam he that walks with the biografia de 1999, afirma que Peter Doyle "pode ou não ter sido tender and growing night,! I call to the earth and sea half-held amante de Whitman". "É impossível conhecer os detalhes ínti- by the night./ Press dose bare-bosom'd night - press dose mag- mos da relação entre eles". Sobre Henry Stafford, diz Loving: netic nourishing night!! Night of south winds - night of the large "Hoje, nossa visão da relação entre Whitman e [Stafford] pode few stars!/ Still nodding night - mad naked summer night."J refletir... antes o interesse atual pelas possíveis tendências ho- (LoG, p. 49) mossexuais de Whitman do que os fatos concretos".9 220 221
  • 111. A meu ver, tanto Reynolds quanto Loving tratam a questão exemplo, para deixarmos de ruminar os "detalhes íntimos", ou com um excesso de simplicidade. O que Loving chama de "de- "fatos concretos", do que as outras pessoas fazem quando entram talhes íntimos" e Reynolds, um tanto mais delicadamente, de no banheiro. "natureza das relações físicas" entre Whitman e os rapazes só Noutras palavras, acreditar que os leitores da época de Whit- pode se referir a uma coisa: o que Whitman e os rapazes em man deixaram de perceber do que realmente falavam seus poe- questão faziam com seus órgãos da amatividade quando se viam mas de amor pode revelar mais sobre uma noção simplista do a sós. Se Comstock pode ser tratado como figura cômica, é só que seja "realmente falar" de alguma coisa do que sobre os leito- porque, com sua estupidez, deixou de perceber o conteúdo ama- res de Whitman. tivo subjacente às elevadas proclamações adesivas dos poemas A resposta de Peter Coviello à pergunta de como Whitman do Calamus. conseguiu escrever impunemente poemas sobre o amor entre Sem tomar o lado dos censores (embora ridicularizar Com- pessoas do mesmo sexo é mais sutil do que as de Loving ou Rey- stock por "ostentar suíças e pança", como faz Reynolds, não te- nolds, mas no fim das contas também erra o alvo. As ligações nha muito cabimento - uma vez que o próprio Whitman tam- afetivas subjacentes tanto aos poemas do Calamus quanto aos bém exibia suas suíças, além de uma pança nada diminuta), não Memoranda, afirma Coviello, "frustram as taxonomias disponí- será possível dizer que, entre os leitores que não se sentiram ofen- veis das relações íntimas". didos pelos poemas do Calamus, alguns teriam deixado de perce- ber seu conteúdo amativo não porque concepções prévias daqui- Houve a meu ver um excesso de preocupação um tanto reles em lo em que devia consistir a intimidade entre homens os cegasse, torno dessas ligações, devido em parte a um desejo de não des- mas porque não sentiam que lhes fosse necessário especular qual crever de maneira anacrônica certos tipos de relações - relações poderia ser o conteúdo amativo daquela intimidade, ou seja, por- desejantes entre pessoas do mesmo sexo - em termos que não que sua ideia de intimidade não dependia do que os homens em eram correntes no tempo de Whitman. Mas essa bem-inten- questão faziam com seus órgãos sexuais?lO cionada hesitação não devia levar-nos a encobrir as relações de É um lugar-comum pós-vitoriano dizer que, desde a mais Whitman entre os soldados com uma castidade forjada. (Fazê-Io tenra idade, os vitorianos aprendiam a reprimir certos pensamen- seria esquecer, em primeiro lugar, a relativa latitude concedi- tos, especialmente os pensamentos sobre "os fatos da vida", a pon- da aos homens em meados daquele século ... numa era em que a to de deixar o próprio ar embaçado pela repressão sexual. Mas o linguagem mais punitiva do desvio sexual ainda não adquirira anátema quanto à repressão é parte da agenda freudiana, uma ampla corrência.)u das armas que Sigmund Freud forjou em sua guerra íntima con- tra a geração dos seus pais. Com todo respeito a Freud, é perfei- De fato, os homens da metade do século XIX gozavam de tamente possível evitar tecer fantasias sobre a vida particular dos uma liberdade que os homens da metade do século XX já não outros, mesmo nossos pais, sem precisar reprimir essas fantasias tinham: podiam beijar-se em público, podiam andar de mãos e sofrer as consequências da repressão - sobre nossa vida psí- dadas, podiam escrever poemas para outros homens motivados quica. Não precisamos pagar nenhum alto preço psíquico, por pelo amor mais profundo (o "In Memoriam" de Tennyson é um 222 223
  • 112. desses casos), e podiam até dormir na mesma cama, sem que na- embora esse ideal social jacksoniano se tornasse cada vez mais da disso os condenasse ao ostracismo social ou fosse punido por fantasioso à medida que, em torno da metade do século, a nova alguma lei. Mas o que Coviello parece afirmar implicitamente é economia industrial tornava-se dominante e a classe artesã na- que esse comportamento não era punido porque não teria sido tiva - para não falar do intenso fluxo de imigrantes do Velho mal interpretado: especificamente, não teria sido interpretado Mundo - convertia-se no contingente dos operários assalaria- como um sinal de libertinagens nada castas com os órgãos ama- dos da indústria. tivos a partir do momento em que as luzes se apagavam. Como repórter e editor na década de 1840 e no início da A pergunta a se fazer, porém, é se esse comportamento teria seguinte, Whitman se envolveu com a ala política mais radical sido interpretado da forma que fosse, ou seja, submetido a um do Partido Democrata. Em torno de 1855, porém, desencantado questionamento qualquer quanto à sua castidade ou incastidade. com a falta de definição dos democratas em relação à escrava- Existe certa sofisticação, regi da por um consenso social tácito, tura, abandonou a vida partidária. Na essência, a essa altura suas cuja natureza reside em simplesmente aceitar as coisas como se convicções políticas estavam bem definidas: o mundo podia mu- apresentam. É essa espécie de savoír-faíre social, cujo outro no- dar à sua volta, mas ele não mudaria. me poderia ser tato, que corremos o perigo de negar aos nossos Apesar de sua oposição à escravatura, seria um excesso di- antepassados da era vitoriana. zer que Whitman estivesse à frente do seu tempo em sua visão Os estudiosos parecem concordar que, em algum momen- da questão da raça. Nunca foi partidário do abolicionismo - na to posterior a 1880, um novo paradigma opondo heterossexual a verdade, costumava perorar contra o "fanatismo abominável" homossexual, parte do que Coviello chama de "linguagem puni- dos abolicionistas.13 O motivo do conflito entre o Norte e o Sul tiva do desvio sexual", infiltrou-se no discurso cotidiano a partir era estender o direito à posse de escravos aos novos estados do da literatura ("científica") sexológica, e passou a ocupar a posi- Oeste. Como a escravidão era antidemocrática em seus efeitos, ção de distinção primária entre as variedades do erotismo. Qual pois uma economia escravista era a seu ver a antítese de uma seria o paradigma anterior é menos claro. Jonathan Ned Katz economia de pequenos agricultores independentes, Whitman sugere que, nos primeiros tempos da era vitoriana, a distinção apoiou a guerra contra os escravocratas. Não apoiava a guerra dominante era de caráter antes moral que sexológica, e se dava para conquistar uma posição justa numa ordem democrática pa- entre de um lado o apaixonado e, do outro, o sensual; entre o ele- ra os escravos negros. vado e o rasteiro, entre o amor e a luxúria. Relações apaixonadas Nem a condição do Sul em seguida à guerra foi para ele entre homens ou mulheres não eram submetidas a questionamen- motivo de regozijo. Lamentava a "imensurável degradação e in- to enquanto permanecessem do tipo mais elevado e amoroso.l2 sulto" da Reconstrução, e deplorava "a dominação dos negros, mas pouco acima da das feras", cuja persistência não se podia Whitman, nascido em 1819, foi criado numa família de de- permitir. Se a escravidão representara um problema terrível do mocratas radicais. Ao longo de toda a vida acreditou numa Amé- seu século, escreveu ele numa anotação de 1876 para seus Me- rica de pequenos agricultores e artesãos independentes, muito moranda, o que ocorreria "se a massa dos negros libertos nos 224 225
  • 113. Estados Unidos representar por todo o século vindouro um pro- cracia] é uma palavra cujo verdadeiro espírito ainda está adorme- blema ainda mais terrível e mais profundamente complicado?". cido [...] É uma palavra esplêndida, cuja história, creio eu, ainda Embora não tenha reiterado sua proposta anterior à guerra, de precisa ser escrita, porque ainda não aconteceu."15 que a melhor solução para o "problema" dos negros da América A democracia de Whitman é uma religião CÍvica energi- seria a criação de uma nação para eles em algum outro lugar, zada por um sentimento erótico amplo que os homens sentem tampouco retirou o que dissera.14 pelas mulheres, as mulheres pelos homens e as mulheres por Os longos catálogos celebratórios de americanos entregues outras mulheres, mas acima de tudo que os homens sentem pe- ao trabalho que encontramos na "Canção de mim mesmo" e em los outros homens. Por esse motivo, a visão social que se mani- "Uma canção para profissões" tendem portanto a privilegiar festa na sua poesia (a prosa é outra história) tem um colorido uma diversidade do trabalho cotidiano que, mesmo no lança- erótico abrangente. A poesia atua através de uma espécie de en- mento da primeira edição de Folhas de relva em 1855, não refle- cantamento erótico, atraindo seus leitores para um mundo onde tia mais a realidade: "O carpinteiro prepara a sua tábua ...! O reina uma afeição mais ou menos benigna e mais ou menos pro- contramestre se ergue amparado na baleeira ...! A fiandeira recua míscua de todos por todos. Mesmo a presença da morte em poe- e avança ao murmúrio da grande roda,! O agricultor... contem- mas como "Do berço infindamente embalando" tem certo ape- pla a aveia e o centeio ..." [The carpenter dresses his plank ...!The lo erótico. mate stands braced in the whale-boat...! The spinning-girl re- Não admira que, em sua meia-idade, Whitman se apresen- treats and advances to the hum of the big wheel,! The farmer... tasse envolto numa aura de sábio e profeta (a longa barba ajuda- looks at the oats and rye...]. Ainda assim, essa é a visão que Whit- va), ou que atraísse tantos admiradores de sua arte poética como man insiste em projetar como o futuro do país. Para ser o poeta verdadeiros discípulos, os whitmanianos, congraçados num de- da América, o poeta nacional, ele precisava fazer sua visão de sapreço à vida moderna, em aspirações ao cósmico, e num desejo um mundo que já se perdia no passado prevalecer sobre uma de sexo melhor e mais frequente. Em sua biografia, Loving suge- realidade cada vez mais ditada pelo mercado de trabalho huma- re que Whitman chegou inclusive a introduzir em terras ame- no e pela ideologia do individualismo competitivo. (LoG, p. 41) ricanas o fenômeno da groupie, referindo-se a certa Susan Gar- O mais impressionante em face dessa tarefa irrealizável é o net Smith, de Hartford, em Connecticutt, que sem mais escreveu otimismo de Whitman. Até morrer ele parece ter acreditado que para o poeta gay informando que seu ventre era "limpo e puro", a força que dera origem à república, uma força a que dava o e pronto para abrigar um filho seu. "Os anjos guardam o vestíbu- nome de democracia, ainda haveria de prevalecer. Sua fé vinha lo", garantiu-Ihe ela, "até que possas vir nele depositar o tesouro de uma convicção, tanto mais forte quanto mais decrescia seu mais precioso do mundo."16 interesse pela política, de que a democracia não era uma das in- Enquanto isso, sob a presidência de Ulysses S. Grant, os venções superficiais da razão humana, mas um aspecto do es- Estados Unidos se entregavam à ostentação mais irrestrita, e à pírito do homem em permanente evolução, com sua origem em caça ao dinheiro mais feroz de toda a chamada Época de Ouro, eros. "Não tenho como me exceder quando repito que [demo- entre o final da Guerra Civil e o começo da Primeira Grande 226 227
  • 114. Guerra ..E Whitman via tudo isso com clareza. Ainda assim, em gens mais ousadas, coisa com que jamais consentiu nos Estados seu papel do Sábio de Camden e num espírito que Paul Zweig Unidos. chama de "otimismo congelado", ele continuava a formular suas profecias em tom cósmico, para as quais uma leitura de Hegel Reunir os próprios poemas e lançar uma coletânea de poe- parece ter contribuído, insistindo em anunciar o triunfo da de- mas reunidos não equivale a republicar todos aqueles que o autor mocracia adesiva.'7 escreveu na vida. Por convenção, o autor que organiza a coletânea tem o direito de revisar poemas antigos e omitir sem explicação Embora Whitman só tivesse uma educação formal precá- aqueles que ele ou ela não deseja mais reconhecer. Os Poemas reu- ria, seria um erro considerá-Io inculto ou intelectualmente pro- nidos são, assim, uma forma prática de moldar o próprio passado. vinciano. Pela maior parte da sua vida ele foi dono do próprio Whitman parece ter tido em mente desde o início que as tempo, que empregava em leituras onívoras. Apesar de sua pose Folhas de relva podiam ser uma coletânea em progresso, que de trabalhador, convivia tanto com artistas e escritores quanto crescia e se alterava conforme mudava sua concepção de si mes- com o que definia como "roughs" (literalmente, "os rudes"). Du- mo. O livro teve ao todo seis edições, várias das quais ocorre- rante seus anos de jornalista, escreveu críticas a centenas de li- ram em formas variantes na medida em que Whitman costura- vros, entre eles obras sérias de filosofia e crítica social. Acompa- va novos poemas a volumes já impressos. É difícil saber - e de nhava as principais revistas britânicas e mantinha-se atualizado certa maneira é um erro perguntar - qual das seis será a me- em relação às correntes do pensamento europeu. Na década de lhor, qual devemos ler à exclusão das demais, pois elas represen- 1840 deixou-se seduzir pelos escritos de Thomas Carlyle - co- tam seis formulações e reformulações de quem era Walt Whit- mo tantos outros jovens irrequietos - e adotou as posições críti- mano Um exemplo simples: enquanto em 1855 ele era "Walt cas de Carlyle ao capitalismo e ao industrialismo. Os fracassos Whitman, um americano, um dos rudes, um kosmos", em 1881 das revoluções europeias de 1848 o abalaram seriamente. Dos ele era "Walt Whitman, um kosmos, de Manhattan o filho".,8 escritores do seu tempo, os dois que o influenciaram mais pro- ("Que [Whitman] seja um kosmos já é uma notícia para a qual fundamente e para com os quais tinha mais dificuldade em reco- não estávamos devidamente preparados. Precisamente o que se- nhecer suas dívidas foram um americano, Emerson, e um inglês, ja um kosmos, esperamos que [ele] aproveite a primeira ocasião Tennyson. para informar ao público impaciente", escreveu Charles Eliot Embora tenha proclamado, e na verdade alardeado, a auto- Norton numa crítica à edição de 1855.)'9 nomia cultural da América, Whitman sentia uma profunda atra- A regra corrente no mundo acadêmico recomenda a ado- ção pela ideia de uma turnê triunfal de leituras pela Inglaterra. ção da última edição revista pelo autor - sua última palavra - Se tal turnê jamais ocorreu, não foi porque lhe faltassem segui- como a versão definitiva de uma obra. Mas há exceções, casos dores naquele país e sim porque, como forma de entretenimen- em que o consenso crítico é de que a derradeira revisão ou é in- to, as leituras de celebridades nunca tiveram lá o mesmo suces- ferior ou mesmo trai a versão original. Assim, o mais comum é so que nos Estados Unidos. Em benefício de sua publicação na que se leia a versão de 1805 do poema autobiográfico de Words- Inglaterra, concordou em expurgar Folhas de relva de suas passa- worth The prelude, preferida à forma revista em 1850. E, de modo 228 229
  • 115. muito semelhante, poderíamos argumentar em favor da leitura dos primeiros poemas de Whitman em sua forma originalmen- 15.William Faulkner e seus te publicada, uma vez que a tendência do poeta, a partir de 1865, passou a ser revisar seus versos na direção do "poético" (a saber, biógrafos o tennysoniano), na esperança de conquistar um contingente mais vasto de leitores. Whitman pretendia que a sexta edição das Folhas de relva fosse a definitiva. Publicada em Boston em 1881, a edição foi re- tirada do mercado quando ameaçada de processo por obscenida- de. Whitman encontrou um novo editor em Filadélfia, onde sua súbita notoriedade fez maravilhas pela venda do livro. Essa sexta edição contém cerca de trezentos poemas, agru- pados por temas e numa série numerada. Seu núcleo é consti- tuído pelos sobreviventes dos doze poemas da primeira edição ele 1855, principalmente o longo poema mais tarde intitulaelo "Agora percebo pela primeira vez", escreveu William Faulk- "Canção de mim mesmo" e "Travessia da barca elo Brooklyn" ner para uma amiga, refletindo a partir de seus cinquenta e tantos ("Crossing Brooklyn Ferry", acrescentado em 1856); "Do berço anos, "que dom impressionante eu tive: sem contar com nenhu- infindamente embalando" ("Out of the Cradle Endlessly Rock- ing") e os poemas amativos (acrescentados em 186o); e "Da últi- ma educação em qualquer sentido formal, sem ter companheiros ma vez que lilases floriram no pátio" ("When Lilacs Last in the muito letrados, quanto mais literários, e ainda assim ter criado o Dooryard Bloom'd") e os poemas "Drum-Taps" (acrescentados que criei. Não sei de onde isso veio. Não sei por que Deus ou os a vários exemplares da edição de 1867). deuses, ou quem quer que tenha sido, escolheu-me para receber Esse núcleo não é grande. Apesar de todo o empenho que essa graça.'" Whitman investiu nas tarefas de reavaliar, reordenar, reintitular A perplexidade que Faulkner alega aqui é um tanto incon- e republicar seus poemas, e apesar da afirmativa que tanto gosta- vincente. Para o tipo de escritor que ele desejava ser tinha toda a va de repetir em seus derradeiros anos, de que havia em Folhas formação, e inclusive todo o conhecimento livresco, de que ne- de relva uma estrutura oculta, semelhante à de uma catedral, cessitava. Quanto à companhia, tendia a lucrar mais com a com- que ele passara a vida inteira perseguindo, parece provável que, panhia de veteranos tagarelas de dedos retorcidos e longas me- com a exceção dos especialistas, Whitman será sempre mais co- mórias do que em conversas com alquebrados líttérateurs. Ainda nhecido por alguns poemas isolados do que como o autor de um assim, cabe aqui certa medida de espanto. Quem teria adivinha- grande livro, a nova bíblia poética da América. do que um jovem sem muita distinção intelectual de uma cida- de pequena do Mississippi acabaria por se tornar não só um es- (2°°5) critor famoso, celebrado em seu país e no exterior, mas o tipo de 23° 231
  • 116. escritor em que acabou por se transformar: um dos inovadores piloto e participar de combates aéreos contra os alemães, candi- mais radicais dos anais da ficção americana, um escritor que da- datou-se à Royal Air Force em 1918. Desesperado por novos com- ria lições à vanguarda da Europa e da América Latina? batentes, o escritório de recrutamento da RAF mandou-o para De educação formal Faulkner certamente teve um míni- um curso de treinamento em solo canadense. Antes que ele pu- mo. Abandonou a escola secundária no primeiro ano do colegial desse fazer seu primeiro voa solo, porém, a guerra acabou. (seus pais não parecem ter feito muito caso), e, embora tenha E ei-lo de volta a Oxford, envergando o uniforme de oficial frequentado brevemente a Universidade do Mississippi, foi só da RAF, ostentando um sotaque britânico e puxando de uma per- graças a uma permissão especial para os militares que voltavam na, consequência, dizia ele, de um acidente aéreo. Aos mais pró- da guerra (sobre as atividades militares de Faulkner na guerra, ximos, revelava ainda que lhe tinham colocado uma placa de ver mais adiante). Sua ficha universitária não revela distinção: aço no crânio. um único semestre de inglês (nota: D), dois semestres de francês Sustentou a lenda do aviador por muitos anos; só começaria e espanhol. Para esse grande explorador do espírito do Sul do a deixar de divulgá-Ia quando se transformou em figura nacional pós-guerra, nenhum curso de história; para esse romancista ca- e o risco de ser desmascarado ficou grande demais. Seus sonhos paz de entretecer o tempo bergsoniano na sintaxe da memória, de voar, contudo, não foram abandonados. Assim que reuniu nenhum estudo de filosofia ou psicologia. dinheiro suficiente, em 1933, fez aulas de pilotagem, comprou O que o sonhador BiIIy Faulkner escolheu, no lugar da ins- seu próprio avião e operou por um curto tempo um circo voa- trução formal, foi uma leitura limitada mas intensa da poesia dor: "CIRCO AÉREO DE WILLIAM FAULKNER (Famoso Escritor)", inglesa do fin de siecle, especialmente Swinburne e Housman, dizia o anúncio.2 e de três romancistas que criaram mundos ficcionais vívidos e Os biógrafos de Faulkner deram relevo excessivo às suas his- coerentes o bastante para rivalizar com o mundo real: Balzac, tórias de guerra, tratando-as como mais do que simples inven- Dickens e Comad. Some-se a isso sua familiaridade com as ca- ções de um jovem frágil e pouco imponente desesperadamente dências do Antigo Testamento, Shakespeare e Moby-Dick e, alguns necessitado da admiração alheia. Frederick R. KarI acredita que anos mais tarde, um rápido estudo do que seus contemporâneos "a guerra transformou [Faulkner] num contador de histórias, mais velhos T. S. Eliot e James Joyce andavam aprontando, e um ficcionista, o que pode ter sido o momento decisivo da sua ei-lo totalmente armado. Quanto ao material, o que ouvia à sua vida". (p. m) A facilidade com que conseguiu lograr os bons volta em Oxford, Mississippi revelou-se mais que suficiente: a habitantes de Oxford, diz KarI, provou para Faulknex que, quan- epopeia, interminavelmente contada e recontada, do Sul, uma do é criada com arte e exposta de maneira convincente, a men- história de crueldade, injustiça, esperança, decepção, vitimiza- tira pode suplantar a verdade, e assim é possível não só criar uma ção e resistência. vida como ainda ganhar a vida com a fantasia. De volta à cidade natal, Faulkner se viu à deriva. Escrevia BiIIy Faulkner mal deixara os bancos escolares quando ecIo- poemas sobre mulheres "epicenas" (o que aparentemente se re- diu a Primeira Guerra Mundial. Cativado pela ideia de se tornar feria a seus quadris estreitos) e o desejo constante que lhe des- 232 233
  • 117. pertavam, poemas que, mesmo com a maior boa vontade do Em 1925, Faulkner faz sua primeira viagem ao estrangeiro. mundo, não podem ser qualificados de promissores; começou a Passa dois meses em Paris e gosta da cidade: compra uma boina, assinar-se não "Falkner", como tinha nascido, mas "Faulkner" deixa crescer a barba e começa a trabalhar num romance - lo- e, fiel ao padrão dos homens da família Falkner, bebia muito. go abandonado - sobre um pintor ferido na guerra que vai para Por alguns anos, até ser dispensado por seu desempenho insa- Paris aperfeiçoar-se. Frequenta o café favorito de James Joyce, e tisfatório, conservou uma sinecura como chefe de um pequeno chega a ver lá o grande homem, mas não o aborda. posto dos Correios, onde passava o horário comercial lendo e No fim das contas, nenhum elemento da história conheci- escrevendo. da sugere algo além de um pretendente a escritor de obstinação Para alguém tão determinado a seguir suas próprias inclina- incomum mas sem grande talento. No entanto, logo depois da ções, é estranho que, em vez de fazer as malas e seguir o rumo sua volta aos Estados Unidos ele se sentaria e escreveria um es- indicado pelas luzes fortes da metrópole, ele tenha decidido per- boço de 14 mil palavras repleto de ideias e personagens que ser- manecer na pequena cidade onde nasceu, onde suas pretensões viria de base para toda a série de grandes romances dos anos de só despertavam o humor sardônico dos vizinhos. Jay Parini, seu 1929 a 1942. O manuscrito continha, em embrião, o Condado biógrafo mais recente, sugere que devia achar difícil distanciar-se de Yoknapatawpha. da mãe, mulher de alguma sensibilidade que parece ter mantido uma relação mais profunda com o filho mais velho que com o Na infância, Faulkner era inseparável de uma amiga um marido tedioso e submisso.3 pouco mais velha chamada Estelle Oldham. Os dois, de certa Em idas a Nova Orleans, Faulkner criou um círculo de forma, eram noivos. Quando chegou a hora, porém, os pais de amigos boêmios e conheceu Sherwood Anderson, cronista de Estelle, descontentes com o jovem inquieto, casaram a filha com Winesburg, Ohio, cuja influência mais tarde faria o possível um advogado de melhores perspectivas. Assim, quando Estelle para minimizar. Começou a publicar textos curtos na impren- voltou para a casa dos pais já divorciada, tinha 32 anos e dois fi- sa de Nova Orleans; chegou até a se arriscar em teoria literária. lhos pequenos. Willard Huntingdon Wright, discípulo de Walter Pater, cau- Embora Faulkner pareça ter tido dúvidas quanto à sensatez sou-lhe forte impressão. No livro de Wright, The Creative Will de reatar com Estelle, não agiu de acordo com elas, e em pouco (1915), leu que o verdadeiro artista é solitário por natureza, "um tempo os dois estavam casados. Estelle também pode ter tido as deus onipotente que molda e dá forma ao destino de um mun- suas dúvidas. Durante a lua de mel, pode ou não ter tentado do novo, e o comanda até chegar a uma completude inevitável matar-se por afogamento. O casamento acabou sendo infeliz, e em que passa a sustentar-se por si só, independente, responden- pior ainda que infeliz. "Eles eram simplesmente desajustados do pelo seu próprio movimento", exaltando o espírito do seu de forma terrível um ao outro", contou a filha do casal, Jill, a Pa- criador.4 O tipo do artista-demiurgo, sugere Wright, é Balzac, rini muitos anos mais tarde. "Nada dava certo naquele casamen- muito preferível a Émile Zola, um mero copista de uma reali- to." (Parini, p. 130) Estelle era Uma mulher inteligente, mas estava dade preexistente. acostumada a gastar dinheiro a rodo e a ter criados para atende- 234 235
  • 118. rem a todos os seus desejos. A vida numa velha casa dilapidada mamente, definia como "toda uma tribo ... pairando em círculos com um marido que passava as manhãs escrevinhando e as tardes como um bando de abutres em torno de cada centavo que eu trocando vigas carcomidas e consertando o encanamento deve ganho", ao mesmo tempo em que atendia a seu daímon interior. ter sido um choque para ela. Uma primeira criança nasceu, mas Apesar de uma capacidade apolínea de mergulhar em seu tra- morreu com duas semanas. Jill nasceu em 1933. A partir de en- balho - era "um monstro de eficiência", como o define Parini tão, as relações sexuais entre os Faulkner parecem ter cessado. - tanta atividade o desgastava demais. A fim de alimentar os Juntos e cada um por si, William e Estelle bebiam em ex- abutres, o único grande gênio da literatura americana da déca- cesso. Na meia-idade, Estelle reformou-se e parou de beber; da de 1930 precisou deixar de lado seus romances, tudo que real- William nunca chegou a esse ponto. Tinha casos com mulheres mente lhe importava, primeiro para criar contos para revistas mais novas e não era competente ou cuidadoso para escondê-Ios. populares e, mais tarde, para trabalhar como roteirista em Holly- Das cenas de ciúme furioso, o casamento foi minguando, degrau wood. (Parini, pp. 319,139) a degrau, nas palavras do primeiro biógrafo de Faulkner, Joseph Blotner, até se transformar "numa vaga guerra de guerrilhas do- E o problema nem era tanto que Faulkner não fosse devi- méstica". (p. 537) damente apreciado pela comunidade das letras, mas que não Ainda assim, por 33 anos, até a morte de Faulkner, em 1962, houvesse espaço na economia dos anos 1930 para a profissão de o casamento resistiu. Por quê? A explicação mais rasteira é que, romancista de vanguarda (hoje Faulkner seria candidato natu- até quase o final da década de 1950, Faulkner não tinha como ral a alguma bolsa generosa). Os editores, revisores e agentes de pagar as despesas oriundas de um divórcio: não poderia dar-se Faulkner - com uma única e miserável exceção - zelavam por ao luxo de manter - além das tropas de Falkner ou Faulkner, seus interesses e faziam o possível para ajudá-Io, mas nunca era para não falar dos Oldham, dependentes de seus ganhos - Es- o bastante. Foi só depois da publicação de The Portable Faulkner, telle e seus três filhos no estilo que ela teria exigido e, ainda, uma coletânea habilidosamente organizada por Malcolm Cowley tornar a situar-se de maneira decente na sociedade. Menos facil- em 1945, que os leitores americanos se deram conta do que ti- mente demonstrável é a afirmação de Karl de que, em algum nham a seu alcance. nível profundo, Faulkner precisava de Estelle. "Estelle nunca O tempo empregado escrevendo contos não fora de todo pôde ser dissociada das camadas mais profundas da imaginação desperdiçado. Faulkner era um revisor extraordinariamente te- [de Faulkner]", escreve Karl. "Sem Estelle ... ele não teria conse- naz da própria obra (em Hollywood, impressionava por sua ca- guido continuar [a escrever]." Ela era sua belle dame sans merGÍ pacidade de consertar roteiros mal-sucedidos de outros escrito- - "aquele objeto ideal que o homem adora a distância mas que res). Revisitados, reconcebidos e retrabalhados, textos publicados também ... o destrói". (p. 86) originalmente em revistas como The Saturday Eveníng Post ou Ao decidir casar-se com Estelle, ao decidir radicar-se em The Woman's Home Companíon retomaram à superfície trans- Oxford em meio ao clã dos Falkner, Faulkner aceitou um desa- figurados em The Unvanquished [Os invencidos, 1938], O po- fio gigantesco: ser patrono, provedor e paterfamílías do que, inti- voado (1940) e Desça, Moisés (1942), livros com um pé de cada 236 237
  • 119. lado da divisa entre a coletânea de contos e o romance propria- tema tão forte na vida de Faulkner quanto na sua literatura, mas mente dito. existe o que se pode chamar de lealdade enlouqueci da, ou fide- O mesmo potencial submerso já não pode ser encontra- lidade enlouquecida (de que o Sul ConfederacIo estava cheio do nos seus roteiros. Quando chegou a HolIywood em 1932, ca- de exemplos). valgando sua transitória notoriedade como autor de Sanctuary Com efeito, Faulkner passou sua meia-idade como um tra- [Santuário, 1931], Faulkner nada sabia sobre a indústria local (na balhador migrante que remetia, todo mês, seu pagamento para o verdade, ele desprezava o cinema tanto quanto desgostava de Mississippi; seus registros autobiográficos são, em grande parte, música berrante). Não tinha facilidade para criar diálogos ágeis. uma contabilidade de dólares e centavos. Nas preocupações de Além do mais, logo adquiriu uma fama de excêntrico e indigno Faulkner com o dinheiro Parini percebe, corretamente, uma ab- de confiança. Depois de chegar a um máximo de mil dólares por sorção mais profunda. "Raramente o dinheiro é apenas dinhei- semana, em 1942 seu salário caíra a trezentos. Ao longo de treze ro", escreve Parini. "A obsessão com o dinheiro que parece per- anos de carreira, trabalhou com diretores que lhe eram simpáti- seguir Faulkner por toda a vida deve ser entendida, a meu ver, cos, como Howard Hawks, travou amizade com atores célebres como uma medida de seus sentimentos cambiáveis de estabili- como Clark Gable e Humphrey Bogart, adquiriu uma atraente dacIe, valor, domínio do mundo ... uma forma de avaliar sua re- e atenciosa amante holIywoodiana; mas nada que tenha escrito putação, seu poder, sua realidade." (pp. 295-6) para o cinema merece ser resgatado. Pior ainda: os roteiros tiveram um efeito negativo sobre a A posição de escritor residente em algum tranquilo cam- sua prosa. Durante os anos da guerra, Faulkner trabalhou numa pus universitário do Sul poderia ter sido a salvação para William sucessão de roteiros de caráter exortatório, inspiracional e patrió- Faulkner, trazendo-lhe uma renda constante sem exigir muito tico. Seria um erro atribuir a esses projetos toda a culpa da re- em troca, dando-lhe tempo para o seu trabalho. Previdente, Ro- tórica excessiva que prejudica sua prosa tardia, mas ele próprio bert Frost vinha demonstrando desde 1917 que era possível abrir acabaria reconhecendo o mal que HoIIywood lhe fizera. "Com- mão da aura de bardo em troca de uma sinecura acadêmica. No preendi recentemente o quanto escrever lixo e textos ordinários entanto, carecendo de um diploma secundário, desconfiado de para o cinema corrompeu a minha escrita", admitiu em 1947.5 todas as conversas que lhe soassem muito "literárias" ou "intelec- Não há nada de incomum na história das dificuldades de tuais", Faulkner só voltaria a frequentar os jardins da academia a Faulkner para pagar suas contas. Desde o início ele se via como partir de 1946, quando foi convencido a falar para os alunos da um poete maudit, e o destino do poete maudit é ser desconsi- Universidade do Mississippi. A experiência não foi tão desagra- derado e mal pago. O surpreendente é que os fardos que se via dável quanto ele temia; aos sessenta anos, em troca de um salário obrigado a carregar - a mulher gastadeira, os parentes sem tos- mais ou menos nominal, ele entrou para a Universidade da Virgi- tão, os contratos desvantajosos com os estúdios - fossem supor- nia como escritor residente, posição que conservaria até a morte. tados com tamanha tenacidade (embora com muitas queixas em Uma das ironias da vida desse acadêmico retardatário é que paralelo), mesmo em detrimento da sua arte. A lealdade é um ele provavelmente tinha lido bem mais, embora menos siste- 238 239
  • 120. maticamente, que a maioria dos professores universitários. Em acreditam no resto do planeta, eu talvez até pudesse lançar uma Hollywood, contava o ator Anthony Quinn, embora não fosse das minhas personagens candidata à Presidência ... FIem Snopes, visto como um grande roteirista, Faulkner tinha "uma reputação quem sabe?".? tremenda como intelectual". Outra ironia é que Faulkner foi Menos impressionantes eram as intervenções de Faulkner adotado pela chamada Nova Crítica (New Criticism) como um em seu próprio país. A pressão de mudança sobre o Sul e suas mestre do tipo de prosa ideal para ser dissecado em aulas da uni- instituições segregadas vinha crescendo. Em cartas a editores de versidade. "Revelando tudo que foi meticulosa e engenhosa- jornais, Faulkner começou a se pronunciar contra os abusos do mente incluído no texto pelo autor", proclama com entusiasmo racismo e a instar os demais brancos do Sul a aceitarem a igual- Cleanth Brooks, decano da Nova Crítica. E desse modo Faulkner dade social dos negros. se transformou no favorito dos formalistas de New Haven, assim O que provocou uma reação. "Weeping Willie Faulkner" [o como já era o favorito dos existencialistas franceses, mesmo sem lacrimoso Willie Faulkner] logo foi tachado de fantoche dos li- ter uma noção muito exata do que fossem o formalismo ou o berais do Norte e simpatizante do comunismo. Embora nunca existencialismo.6 tenha chegado a correr perigo físico, contou (numa carta a um amigo sueco) que chegou a prever o tempo em que se veria obri- O Prêmio Nobel de literatura, que foi concedido a Faulk- gado a fugir do país "um pouco como os judeus precisaram fugir ner em 1949 e entregue em 1950, tornou-o famoso inclusive na da Alemanha de Hitler".8 América. Turistas passaram a vir de longe para boquiabrir-se Estava exagerando, claro. Suas opiniões sobre a questão ra- diante da sua casa em Oxford, para sua vasta irritação. Com gran- cial nunca foram radicais e, à medida que a atmosfera política ia de relutância, emergiu das sombras e começou a comportar-se ficando mais carregada, envolvendo a questão dos direitos dos como figura pública. Do Departamento de Estado chegaram-lhe estados, recaíram numa certa confusão. A segregação era um convites para viagens ao exterior como embaixador cultural, que mal, dizia ele; ainda assim, se a integração fosse imposta ao Sul aceitava sem muita convição. Nervoso diante dos microfones, e ele resistiria (num momento de exaltação, chegou a dizer que mais nervoso ainda ao enfrentar perguntas de ordem "literária", "pegaria em armas"). Ao final da década de 1950, sua posição era preparava-se para essas sessões bebendo profusamente. No en- tão anacrônica que se tornou francamente excêntrica. Segundo tanto, a partir do momento em que desenvolveu uma arenga que ele, o movimento dos direitos civis devia adotar como palavras lhe permitia fazer frente aos jornalistas, passou a sentir-se mais de ordem decência, discrição, cortesia e dignidade; os negros confortável no novo papel. Tinha pouca informação sobre polí- precisavam "aprender a merecer" a igualdade. tica externa - não lia jornais -, mas isso até convinha ao De- É muito fácil desqualificar os arroubos de Faulkner quanto partamento de Estado. Sua viagem ao Japão foi um sucesso no- à questão das relações raciais. Em sua vida pessoal, seu compor- tável de relações públicas; na França e na Itália, recebeu uma tamento quanto aos afro-americanos parece ter sido sempre atenção maciça da imprensa. Como comentou em tom sardôni- generoso e gentil, mas, como não podia deixar de ser, condes- co: "Se na América acreditassem no meu mundo tanto quanto cendente: afinal, pertencia à classe dos patrans. Em sua filosofia 24° 241
  • 121. política, era um individualista jeffersoniano; e era isso, mais que Enquanto historiador do Sul moderno, o maior triunfo de qualquer resíduo de racismo em seu sangue, que o fazia descon- Faulkner é a chamada "trilogia dos Snopes": O povoado (1942); fiar dos movimentos negros de massa. Embora seus escrúpulos A cidade (1957); e A mansão (1959), em que ele acompanha a e equívocos logo o tenham tornado irrelevante para a luta pelos tomada do poder político por uma classe ascendente de brancos direitos civis, foi corajoso da parte dele assumir uma posição cla- pobres numa revolução tão silenciosa, implacável e amoral co- ra no momento em que se manifestou. Suas declarações públi- mo uma invasão de cupins. Sua crônica da ascensão do pequeno cas o transformaram numa espécie de pá ria em sua cidade natal, empresário é ao mesmo tempo mordaz e elegíaca, além de de- e tiveram bastante a ver com sua decisão de, após a morte de sua sesperada: mordaz porque ele detesta a situação, ao mesmo tem- mãe em 1960, deixar o estado do Mississippi e mudar-se para a po em que se deixa fascinar pelo que vê; elegíaca porque adora o Virginia. (Ao mesmo tempo, é bom lembrar, a ideia de cavalgar antigo mundo que está sendo devorado diante dos seus olhos; e atrás dos cães nas famosas caçadas do condado de Albermarle desesperada por muitos motivos, entre os quais, antes de tudo, o era um poderoso atrativo: em seus últimos anos, Faulkner consi- fato de o Sul que ele tanto ama ter sido construído, como ele derava-se praticamente esgotado como escritor, e a caça à raposa sabe melhor que ninguém, com base no duplo crime da expro- se transformou na nova paixão da sua vida.) priação e da escravidão; segundo, que os Snopes não passam de outro avatar dos Falkner, ladrões e predadores da terra no passado; As intervenções de Faulkner nas questões públicas eram ine- e portanto, terceiro, que ele, William "Faulkner", não tem a me- ficazes não porque ele fosse uma nulidade em matéria de políti- nor base em que se apoiar para afirmar-se como crítico e juiz. ca, mas porque o veículo apropriado para as suas visões políticas A menos que recorra às verdades eternas. "Coragem e hon- não era o ensaio, muito menos a carta ao editor, mas o romance, ra e orgulho, e devoção e amor à justiça e à liberdade" é a litania e mais especificamente o tipo de romançe que ele inventou, com de virtudes recitada em Desça, Moisés por Ike McCaslin, basica- seus recursos retóricas inigualáveis para entrelaçar o passado e o mente um porta-voz da identidade ideal que Faulkner almeja- presente, a memória e o desejo. va - um homem que, depois de passar em revista a sua história O território em que o romancista Faulkner lançava mão dos e o mundo restrito (e que encolhia cada vez mais) à sua volta, seus melhores recursos era um Sul marcado por uma forte seme- renuncia a seu patrimônio, abjura a paternidade (pondo fim des- lhança com o Sul verdadeiro do seu tempo - ou pelo menos se modo à processão de gerações) e se transforma num simples o Sul da sua juventude -, mas que não era a totalidade do Sul. carpinteiro.9 O Sul de Faulkner é um Sul branco assombrado por presenças Coragem e honra e orgulho: a essa litania Ike poderia acres- negras. Mesmo Luz em agosto, seu romance que aborda mais centar a persistência, como faz em outro ponto da narrativa: "Per- diretamente a questão da raça e do racismo, tem no centro não sistência ... e devoção e tolerância e comedimento e fidelidade e um negro, mas um homem cujo destino é enfrentar ou ser con- amor pelas crianças ...". (p. 225) Existe uma forte veia moralista frontado pela negritude como uma interpelação dos outros, uma na obra tardia de Faulkner, um humanismo cristão reduzido ao acusação de fora para dentro. essencial a que o autor se aferrava com obstinação num mundo 242 243
  • 122. de que Deus se ausentou. E sempre que esse moralismo se mos- Como observa Karl com justeza, Faulkner é "o mais histó- tra inconvincente, como ocorre tantas vezes, geralmente é por- rico dos escritores [americanos] importantes"; nesse espírito, ele que Faulkner não conseguiu encontrar um veículo ficcional ade- trata Faulkner como um americano que responde através da sua quado para ele. As frustrações que sentiu ao compor A Fable criação às forças históricas e sociais que o cercam. (p. 666) Na [Uma fábula], escrito em 1944-53 e publicado em 1954, destina- qualidade de biógrafo literário, o que ele tenta compreender é do a seu ver a tornar-se seu magnum opus, deveram-se precisa- de que maneira um homem tão profundamente desconfiado da mente às suas dificuldades para encontrar um modo de dar cor- modernização e do que ela causou ao Sul poderia ao mesmo tem- po a seu tema de oposição à guerra. A figura exemplar em A po, em sua prática de romancista, ter sido um modernista radical. Fable é Jesus reencarnado e ressacrificado na forma do solda- O Faulkner de Karl emerge como uma figura patética mas do desconhecido; noutras passagens de sua obra tardia, é o negro dotada de grandeza, um homem que, talvez por força da ima- simples e sofredor ou, mais frequentemente, uma mulher negra gem romântica do artista maldito, mostrou-se disposto a sacrifi- que, ao suportar um presente insuportável, mantém vivo o ger- car-se para levar até o fim um destino que teria provocado a fuga me de um futuro. em qualquer pessoa racional. Mas o livro de Karl é prejudicado por uma constante psicologização redutiva. Por exemplo: a cali- Para um homem que teve uma vida sem grandes aconteci- grafia clara de Faulkner - o sonho de qualquer editor - é apre- mentos e em sua maior parte sedentária, William Faulkner mo- sentada como indício de uma personalidade anal; suas mentiras bilizou prodigiosas energias biográficas. O primeiro desses monu- inconsequentes sobre suas façanhas na RAF, como um sinal de mentos biográficos foi-lhe erguido em 1974 por Joseph Blotner, personalidade esquizoide; sua atenção para com os detalhes, co- um colega mais jovem da Universidade de Virginia por quem mo uma prova de obsessividade; seu caso com uma mulher mais Faulkner sentia uma confiança e um afeto evidentes, e cujo livro jovem, como indício claro de seus desejos incestuosos pela pró- em dois volumes, Faulkner: A Biography, traz um tratamento pria filha. completo e justo da vida aparente de seu biografado. No entan- "Muitas vezes, um romance menor pode trazer mais reve- to, mesmo a forma condensada pelo próprio Blotner, num único lações biográficas decisivas que um dos mais importantes", diz volume e em 400 mil palavras (1984), pode revelar-se excessiva- Karl. (p. 75) Se é assim - e não são muitos os biógrafos de hoje mente rica em detalhes para a maioria dos leitores. que discordariam -, temos aqui um problema de ordem geral O volumoso tomo de Frederick R. Karl, Wílliam Faulkner: quanto à biografia literária e à validade de suas chamadas per- American Writer (1989), afirma ter por finalidade "compreender cepções biográficas. Afinal, se a obra menor parece revelar mais e interpretar a vida [de Faulkner] psicológica, emocional e lite- que a maior, aquilo que ela revela não merecerá apenas ser co- rariamente". (p. xv) Há muito de admirável no livro de Karl, in- nhecido de maneira menor? Faulkner - para quem as odes de clusive audazes incursões ao labirinto das práticas composicio- John Keats eram uma obra-prima poética - talvez fosse de fa- nais de Faulkner, que envolviam trabalhar em vários projetos ao to o que julgava ser: um ser de aptidão negativa, um ser que se mesmo tempo, transferindo material de um para outro. dissolvia, que se perdia, em suas criações mais profundas. "Mi- 244 245
  • 123. nha ambição é ser um indivíduo reservado, abolido e expurgado vaneio exaltado". Embora não caia de modo algum na hagiogra- da história, deixando-a sem marca", escreveu ele a Cowley. "Mi- fia, seu livro traz um tributo eloquente ao biografado: "O que nha meta é ... que o resumo e a história da minha vida ... possam mais impressiona em Faulkner como escritor é sua mera persis- ser: produziu seus livros e morreu."lO tência, a força de vontade que o trazia de volta à mesa de traba- lho a cada dia, ano após ano [...] [Sua] energia era [...] tanto físi- Jay Parini é autor de biografias de John Steinbeck (1994) e ca quanto mental; progredia como um boi avançando pela lama, Robert Frost (1999), e de dois romances com forte conteúdo bio- puxando todo um mundo atrás de si". (pp. 261,429) gráfico: A última estação (1990), sobre os últimos dias de Liev Num livro de não especialista como esse, uma das primei- Tolstói, eA travessia de Benjamin (1997), sobre os últimos dias de ras decisões que o autor precisa tomar é se deverá refletir o con- Walter Benjamin.H senso crítico ou assumir uma linha marcadamente individual. A vida de Steinbeck segundo Parini é sólida mas sem nada Quase sempre, Parini escolhe uma versão da opção pelo consen- de notável. O livro sobre Frost é mais autorreflexivo: a biografia, so. Seu esquema é acompanhar a vida de Faulkner em ordem reflete Parini, pode ser menos a forma de historiografia que cos- cronológica, interrompendo a narrativa com curtos ensaios críti- tumamos imaginar, e mais como a composição de um romance. cos introdutórios sobre cada uma de suas obras. Nas mãos certas, De seus próprios romances biográficos, o que fala de Tolstói é esse esquema poderia ter resultado numa amostra exemplar da o mais bem-sucedido, talvez devido à grande multiplicidade de arte da crítica. Mas os ensaios de Parini não se mostram à altura relatos sobre a vida em Yasnaya Polyana para lhe servir de fonte. do padrão. Os que falam dos livros mais conhecidos de Faulkner No livro sobre Benjamin, Parini precisa gastar um tempo exces- tendem a ser os melhores; dos demais, muitos consistem em si- sivo explicando quem foi esse herói absorvido em si mesmo, e nopses não especialmente bem construídas acompanhadas de por que devemos interessar-nos por ele. um sumário do debate crítico que as obras despertaram, no qual No caso de Faulkner, Parini tenta o que nem Blotner nem o que é apresentado como discussão tende antes a ser uma tedio- Karl nos proporcionaram: uma biografia crítica, ou seja, um re- sa pesquisa acadêmica. lato razoavelmente abrangente da vida de Faulkner acompanha- Como ocorre no livro de Karl, aqui também encontramos do de uma análise de sua produção literária. E muito pode ser uma boa dose de questionável psicologismo. Parini, por exem- dito sobre o que ele nos apresenta. Embora recorra muito a Blot- plo, decide propor uma leitura bastante extravagante de Enquan- ner para os fatos, vai bem mais longe que este ao realizar entre- to agonizo - um romance curto construído em torno da jorna- vistas com a última geração de pessoas a ter conhecido Faulkner da grotesca dos irmãos Bundren para levar o corpo da mãe ao em primeira mão, algumas das quais possuem coisas bem inte- túmulo - como um ato simbólico de agressão de Faulkner con- ressantes a dizer. Tem um respeito de escritor pela linguagem de tra a própria mãe, bem como um "perverso" presente de casa- Faulkner, e manifesta claramente sua admiração. Para ele, por mento para a sua mulher. "Será que Estelle conseguirá suplantar exemplo, a prosa de "O urso" avança "com uma espécie de fero- Miss Maud [a mãe do autor] no espírito de Faulkner?", pergunta cidade inexorável, como se Faulkner a tivesse composto num de- Parini. "Perguntas como essa não admitem respostas, mas é pri- 246 247
  • 124. vilégio da biografia formulá-Ias, permitindo que se apliquem ao sobre Rowan Oak, a propriedade de 15 mil metros quadrados que texto e o tornem mais turvo." (p. 151) Talvez seja de fato privilé- Faulkner comprou em péssimo estado em 1929 e na qual viveria gio do biógrafo turvar o texto com fantasias que extrai do ar; tal- até a morte. Faulkner estava sempre disposto a gastar um dinhei- vez não. Importaria mais saber se a mãe de Faulkner, ou sua mu- ro de que não dispunha nas reformas de Rowan Oak, escreve lher, teria entendido o romance como um ataque pessoal contra Parini, porque "tinha uma visão do luxo anterior à Guerra Civil ela. E nada indica que tenha sido esse o caso. que, acima de tudo, desejava recriar em sua vida cotidiana [...] O As incursões de Parini à mente de Faulkner envolvem mui- filme ...E o vento levou foi lançado [em 1939], criando furor em ta discussão sobre as personalidades múltiplas, ou identidades todo o país. Mas Faulkner não precisava vê-lo. Era a história da dentro da identidade. Condenará Faulkneros amores adúlteros sua vida". (p. 250) Qualquer pessoa que tenha lido as palavras de Palmeiras selvagens? Resposta: enquanto "parte de sua men- de Blotner sobre o cotidiano em Rowan Oak sabe quanto o lu- te de romancista" os condena, outra parte não. E por que, no fi- gar diferia da fantasia de Tara. nal da década de 1930, Faulkner terá decidido concentrar-se em FIem Snopes, o alpinista social de olhos inexpressivos e coração "Os livros são a vida secreta do escritor, o gêmeo obscuro de gelado? "Desconfio de que isso tenha algo a ver com o exame um homem: não há como reconciliar um e os outros", diz uma de seu próprio lado agressivo", escreve Parini. Tendo obtido "um das personagens de Mosquítoes (1927).12 sucesso que superava os seus sonhos mais ambiciosos ... [Faulk- Reconciliar escritor e seus livros é um desafio que Blotner, ner] pretendia refletir sobre esse sucesso e entender melhor os muito sensatamente, prefere não enfrentar. E se Karl ou Parini, impulsos que podiam tê-lo conduzido até esse ponto". (pp. 238, cada qual a seu modo, conseguiu reunir o homem que se assi- 232-3) nava "William Faulkner" a seu gêmeo obscuro é uma questão Terá sido mesmo "a parte agressiva" de Faulkner que produ- em aberto. ziu seus grandes romances da década de 1930 - realização, aliás, O teste decisivo é o que os biógrafos de Faulkner decidem que FIem teria considerado desprezível devido ao pouco di- dizer sobre o seu alcoolismo, tema em torno do qual não se pode nheiro que renderam para o seu autor? Será que a genialidade andar na ponta dos pés. As anotações na ficha do hospital psiquiá- malévola de FIem assemelha-se de fato à relação complexa de trico de Memphis ao qual Faulkner era regularmente conduzido Faulkner com o dinheiro, em que a ingenuidade do escritor o num estado de estupor alcoólico falam, conta Blotner, de "um levou a assinar um contrato com a Warner Brothers, o mais obs- alcoólatra agudo e crônico". (p. 574) Embora, mesmo depois dos tinadamente conservador dos estúdios em matéria de risco, que cinquenta anos, Faulkner ainda conservasse uma bela aparência na prática o transformou em escravo da empresa por sete anos? cheia de energia, ela era apenas uma casca. Uma vida inteira de No fim das contas, o livro de Parini é uma mistura descon- consumo de álcool já começara a prejudicar seu funcionamen- certante: por um lado, demonstra uma admiração genuína por to mental. "É mais que um caso de alcoolismo agudo", escreveu Faulkner como escritor, e por outro insiste numa disposição ex- seu editor Saxe Commins em 1952. "A desintegração desse ho- cessiva de vulgarizá-lo. O pior exemplo vem de suas observações mem é uma tragédia." Parini acrescenta o depoimento terrível 249 248
  • 125. da filha de Faulkner: quando se embriagava, seu pai podia ficar tão violento que "alguns homens" precisavam permanecer por 16. Saul Bellow, os primeiros perto para proteger a ela e à sua mãe.!) romances Blotner não tenta entender o vício de Faulkner, limitan- do-se a fazer a crônica dos seus estragos, descrever seus padrões e citar a ficha do hospital. De acordo com a leitura de Karl, a bebida era a forma que a rebelião assumia em Faulkner, a ma- neira que ele encontrava para manter sua arte a salvo das pres- sões da família e da tradição. "Se o álcool fosse removido da sua vida, é muito provável que o escritor não existisse; e talvez nem mesmo uma pessoa bem definida." (pp. 130-2) Parini não hesi- ta em ver também uma finalidade terapêutica no alcoolismo de Faulkner. As bebedeiras do escritor eram "um tempo de descan- so para a mente criadora", diz ele. E seriam "úteis de algum mo- do. Espanavam teias de aranha, reacertavam o relógio interno, Entre os romancistas americanos da segunda metade do sé- permitiam que o inconsciente, como um poço, se enchesse len- culo xx, Saul Bellow assoma como um dos gigantes, talvez o tamente [sic]". Cada vez que emergia de uma bebedeira, "era co- maior de todos. Seu apogeu se estende do começo da década de mo se ele despertasse de um sono longo e repousante". (p. 281) 1950 (As aventuras de Augíe March) ao final da década de 1970 É da natureza dos vícios serem incompreensíveis para quem (Humboldt's Gíft), embora ainda em 2000 ele continuasse a pro- os vê de fora. E o próprio Faulkner, aqui, não nos ajuda em na- duzir notáveis textos de ficção (Ravelsteín). Em 2003, enquan- da: jamais escreveu sobre seu alcoolismo nem, ao que se saiba, to ele ainda vivia, a Library of America admitiu-o em sua versão de dentro dele (estava quase sempre sóbrio quando se sentava à do cânone clássico reeditando seus três primeiros romances - mesa de trabalho). Nenhum biógrafo conseguiu ainda explicá-Io, Danglíng Man (1944), The Víctím [A vítima, 1947] e As aventu- mas talvez a tentativa de explicar um vício, procurar as palavras ras de Augíe March (1953) - e prometendo publicar todo o resto capazes de dar conta do que ele seja ou atribuir-lhe um determi- da sua obra.' nado lugar na economia da existência de alguém, seja sempre Danglíng Man e The Víctím atraíram a atenção favorável da um empreendimento equivocado. crítica, mas eram ambas obras bastante literárias, e europeias em sua inspiração. Foi o espalhafatoso e espraiado Augíe March que (2005) conquistou um público para Bellow. O herói epônimo de Augíe March vem à luz em torno de 1915 - o ano do nascimento do próprio Bellow - numa família moradora de um bairro polonês de Chicago. O pai de Augie não 25° 251
  • 126. aparece, e sua ausência não suscita praticamente qualquer co- roubar livros, que em seguida vende a estudantes da Univer- mentário. Sua mãe, uma figura triste e apagada, é quase cega. sidade de Chicago. Mas guarda o coração mais ou menos puro, Ele tem dois irmãos, um dos quais deficiente mental. A família racionalizando aquele roubo de livros como um caso especial, subsiste, com certo grau de fraudulência, graças ao dinheiro da uma forma benigna de furto. previdência social e às contribuições de uma pensionista nasci- E encontramos também influências no sentido contrário, da na Rússia, a Avó Lausch (sem nenhum parentesco com eles), entre elas um empregador paternal que presenteia Augie com para quem o jovem Augie vai buscar livros na biblioteca ("Quan- uma coleção completa, embora levemente estragada, dos Har- tas vezes preciso lhe dizer que, se não disser romance, eu não vard Classics. Augie guarda os livros num caixote debaixo da ca- quero? .. Bozhe moy!"), e a qual lhe transmite algum verniz de ma, mergulhando neles sempre que sente o impulso. Mais adian- cultura. (p. 392) te, irá atuar como assistente de pesquisa para um rico estudioso É a Avó Lausch quem na verdade cria os irmãos March. amador. Assim, embora jamais entre para a universidade, de uma Quando a esperança que mais a anima é frustrada - de que forma ou outra suas incursões na leitura continuam. E ele lê a um deles acabe se revelando um gênio cuja carreira poderia ca- sério, até mesmo pelos padrões da Universidade de Chicago: He- ber-lhe administrar -, ela assesta sua mira na ideia de transfor- gel, Nietzsche, Marx, Weber, Tocqueville, Ranke e Burckhardt, má-Ios em bons funcionários de escritório. E se vê presa do desa- para não falar dos gregos e romanos e dos Padres da Igreja. Ne- lento quando eles crescem desagradáveis e incivis. Na verdade, é nhum romanCÍer. ainda pior: como outros meninos da área onde mora, Augie cos- Simon, um dos irmãos mais velhos de Augie, é um homem tuma praticar pequenas transgressões. Mas tem consciência de- de grande voracidade. Embora não seja propriamente um fari- mais para entregar-se a uma vida de crimes. O primeiro roubo seu, atribui às leituras de Augie o principal obstáculo a seu plano organizado de que participa deixa-o tão infeliz que ele acaba aban- de levá-Io a encontrar uma noiva rica e casar-se com ela, estudar donando sua gangue. direito à noite e tornar-se seu sucessor num negócio de venda de Refletindo retrospectivamente sobre sua infância a partir dos carvão. Em obediência a Simon, Augie passa algum tempo le- seus trinta e tantos anos, quando escreve a narrativa que estamos vando uma vida dupla, trabalhando na companhia de carvão o lendo, Augie se pergunta que efeitos terá sofrido por ter crescido dia inteiro antes de vestir-se bem para frequentar os salons dos não na "Sicília pastoral" dos poetas, mas submetido às "humi- nouveaux ríches. lhações profundas da cidade". (p. 477) Mas nem precisava se dar Sob a tutela de Simon, Augie tem a primeira oportunidade ao incômodo. As partes mais fortes do livro da sua vida vêm da de experimentar as coisas boas da vida, especialmente a calidez rememoração intensa de uma infância urbana rica em espetácu- sedosa dos hotéis caros. "Procurei não me sentir esmagado por los e em experiências sociais, juventude de um tipo que poucas toda aquela grandeza", escreve ele. crianças americanas ainda conhecem nos dias de hoje. Rapaz nos anos da Depressão, Augie continua a trafegar à Mas [...] finalmente, elas [as dependências do hotel] são o que se beira da criminalidade. Com um especialista, aprende a arte de revela tão maravilhoso - os inúmeros banheiros com a infalível 252 253
  • 127. água quente, os enormes aparelhos de ar-condicionado central e vida de Chicago. Em personagens como Carrie Meeber (Síster todo o maquinário sofisticado. Nenhuma grandeza oposta é ad- Carríe) e Clyde Griffiths (AnAmerícanTragedy [Uma tragédia mitida, e a pessoa perturbadora será aquela que não servirá pelo americana]), Dreiser apresentou-nos algumas almas descompli- uso ou se negará por não desejar usufruir. (p. 656) cadas e ansiosas do Meio-Oeste americano, nem boas nem más por natureza, atraídas como Augie para a órbita do luxo da cida- Nenhuma grandeza oposta é admitida. Augie é suficiente- de grande, cujo acesso, logo descobrem, não requer credenciais, mente lúcido e pragmático para reconhecer que qualquer um nem sangue tradicional nem senha, nada além de dinheiro. que negue o poder que se manifesta no grande hotel americano Clyde Griffiths é uma personagem errante no sentido dreise- corre o risco de se marginalizar, seja qual for a autoridade que riano: não escolhe seu destino, o que constitui sua versão ameri- invoque para apoiá-Io dentre os autores dos Harvard Classics. cana da tragédia, mas é conduzido para ele. Augie também corre Visto que não está escrevendo o resumo final de sua vida, mas o perigo de tornar-se uma personagem à deriva: um jovem de boa um relatório intermediário, Augie recusa-se a tomar posição pró aparência cujas aventuras de consumo as mulheres ricas mos- ou contra os hotéis de Chicago, pró ou contra o futuro que eles tram-se mais que dispostas a subsidiar. Mas, se o pouco que di- representam. E também alega o que, na prática, equivaleria à ferencia Augie de Clyde - o contato com o romance russo e os incompetência jurídica. "Mas como alguém pode tomar uma Harvard Classics - não lhe proporciona a capacidade de resistir decisão de ser contra e continuar contra? Quando é que a pessoa ao poder do grande hotel, o que torna a história de Augie dife- escolhe, e quando em vez disso é escolhida?". (p. 656) rente da história de outro filho qualquer do seu tempo? A postura cautelosa de Augie não é dessemelhante à de Hen- A essa pergunta Bellow só apresenta uma resposta proustia- ry Adams perante a Exposição de Chicago em 1893; e o próprio na: o jovem que começa sua história com as palavras "Sou um Adams evoca com ironia o fantasma de Edward Gibbon con- americano, nascido em Chicago [...] e falo das coisas da maneira templando as ruínas de Roma. "Em 1893, Chicago perguntou como aprendi por conta própria, em estilo livre, e vou contar a pela primeira vez", escreve Adams, "se o povo americano sabia história a meu modo", (p. 383) e termina rememorando como aonde estava indo." A resposta, ao que lhe parece, é que não sa- escreveu aquelas palavras e em seguida comparando-se a Co- biam. Ainda assim, podiam estar "seguindo ou deixando-se levar lombo - "Colombo também achou que tivesse fracassado [...] inconscientemente" rumo a um ponto a partir do qual poderiam O que não prova que a América não existisse" (p. 995) - não então articular a finalidade daquilo tudo. A posição mais sensa- fracassa, muito embora não consiga imaginar um poder capaz ta a ser assumida por qualquer observador - especialmente um de opor-se ao gigantismo cego da América, porque a própria re- observador que fosse ele próprio americano - seria simplesmen- memoração construída constitui esse poder. A literatura, afirma te posição nenhuma, meramente observar e esperae Bellow, interpreta o caos da vida e lhe dá sentido. Em sua dispo- Outra presença ao lado de Augie, assinalada por aumentos sição primeiro de deixar-se levar pelas forças da vida moderna e do teor de ruminações grandiloquentes e linguagem rarefeita, é depois de tornar a confrontar-se com elas através da sua arte "em Theodore Dreiser, o grande antecessor de Bellow no registro da estilo livre", Augie, somos levados a compreender, está mais bem 254 255
  • 128. equipado do que acredita para opor-se às seduções de um estilo Seu modelo do mundo parte de um imperativo de simpli- de vida à deriva. ficação. O mundo moderno, a seu ver, tende a sobrecarregar-nos com sua infinitude nociva. "Um excesso de tudo ... um excesso Um elemento de Dreiser que Bellow não incorpora são os de história e cultura ... um excesso de detalhes, de notícias, de mecanismos deterministas do destino. O destino de Clyde é som- exemplos, de influências ... E quem precisa interpretar isso tudo? brio; o de Augie, não. Um ou dois descuidos e Clyde termina na Eu?" (p. 902) Sua resposta a esse excesso de tudo é, primeiro, cadeira elétrica; de todos os perigos que o rodeiam, Augie por "tornar-se o que eu sou"; (p. 937) segundo, comprar terras, ca- sua vez sempre emerge são e salvo. sar-se, criar um lar, tornar-se professor, fazer carpintaria domés- Assim que se torna claro que seu herói irá levar uma vida tica e aprender a consertar seu carro. Como comenta um amigo encantada, Augie March começa a pagar por sua falta de estru- dele, "Boa sorte". (p. 905) tura dramática e, no fim das contas, de organização intelectual. Segundo ele próprio conta, Bellow se divertiu muito escre- O livro vai ficando cada vez menos envolvente à medida que vendo Augie March, e nas primeiras centenas de páginas sua avança. O método de composição cena a cena, em que cada animação criadora é palpável e contagiosa. O leitor é arrebata- uma delas principia com um tour de force de descrição do am- do pela prosa ousada, veloz e picante, pela fluência casual com biente, começa a parecer mecânico. As muitas páginas dedica- que um mot juste se sucede a outro ("Karas, de terno caro de das ao tempo que Augie passa no México envolvido num esque- jaquetão e ostentando dificuldades para barbear-se e pentear-se ma estúpido de treinar uma águia para capturar iguanas rendem suplantadas de maneira incrível"). (p. 498) Desde Mark Twain, muito pouco, apesar da riqueza de recursos composicionais ne- nenhum escritor americano tinha manejado o vernáculo com las investida. A principal aventura de Augie no tempo da guer- tamanha verve. O livro conquistou seus leitores com sua varieda- ra, torpedeado e perdido na companhia de um cientista louco a de, sua energia inesgotável, sua impaciência com os bons mo- bordo de um bote salva-vidas ao largo da costa africana, é sim- dos. Acima de tudo, dava a impressão de dizer um Sim! enfático plesmente uma trama de história em quadrinhos. à América. O que não significa que o próprio Augie seja exatamente Hoje, em retrospecto, pode-se ver que esse Sim! tinha cer- um enigma intelectual. Por convicção ele é um idealista filo- to preço: o preço da consciência crítica. Augie March, em certo sófico, até mesmo um idealista radical, para quem o mundo se sentido, apresenta-se como a história do amadurecimento da ge- constitui de um emaranhado complexo de ideias-do-mundo, mi- ração de Bellow. Mas será que Augie é um bom representan- lhões delas, tantas quantas são as mentes humanas que existem. te dessa geração? Ele conversa com estudantes de esquerda, lê Cada um de nós, acredita ele, tenta defender sua ideia singular Nietzsche e Marx, milita como sindicalista, chega até a cogitar através do recrutamento de outros seres humanos para desempe- de empregar-se como guarda-costas de Leon Trótski no Méxi- nharem algum papel nela. A regra de Augie, desenvolvida ao lon- co; entretanto, mal registra o quadro mais amplo do que ocorre go de quase metade da sua vida, é evitar ser recrutado para atuar no mundo. Quando a guerra começa, ele fica atônito: "Bum! A nas ideias de outras pessoas. guerra começou ... Caí da cadeira, eu odiava o inimigo, mal po- 256 257
  • 129. dia esperar para entrar na briga". (p. 905) A partir de que ponto armazéns, imensos cartazes, carros estacionados. Será que esse esse grau de absorção no aqui e agora se transforma em idiotia? ambiente não deforma a alma?, pergunta-se ele. "Onde ainda A edição compilada da Library of America traz quinze pá- existiria uma partícula daquilo que, em outro lugar, ou no passa- ginas de notas de James Wood, especialmente úteis no caso de do, falara em favor do homem? .. O que Goethe poderia dizer do Augie March, onde nomes e alusões se espalham como confete. panorama visto desta janela?" (p. 55) Wood localiza muitas das referências de passagem de Augie, mas Pode parecer cômico que, na Chicago de 1941, alguém pu- um bom número delas é esquecido. Quem, por exemplo, foi desse dedicar-se a reflexões grandiosas como essas, diz Joseph em posto por suas irmãs em prantos em cima de um cavalo para ir seu diário, mas em cada um de nós sempre existe um elemento estudar grego em Bogotá? (p. 477) Que embaixador de qual país do fantástico. Quando zomba dessas especulações filosóficas em terá injetado goma-laca na tubulação de água de Lima para de- tom cômico, na verdade ele está negando o que tem de melhor. ter a oxidação dos canos? (p. 658) Embora em abstrato o jovem Joseph estivesse preparado pa- ra aceitar que o homem é agressivo por natureza, quando exami- Dangling Man, que Bellow escreveu quase uma década an- nava seu próprio coração só detectava uma natureza gentil. Uma tes durante os anos da guerra, é um romance curto na forma de de suas ambições mais frívolas era fundar uma colônia utópica diário. Quem mantém o diário é um jovem morador de Chicago onde o despeito e a crueldade seriam proibidos. Eis por que um chamado Joseph, desempregado, formado em história e susten- dos desdobramentos que mais desalentam o Joseph posterior é tado pela mulher que trabalha. Joseph usa seu diário para desco- constatar-se tomado por acessos imprevisíveis de uma violência brir como se transformou em quem é, e especialmente para en- inesperada. Ele perde a cabeça com sua sobrinha adolescente e tender por quê, cerca de um ano antes, ele abandonara os ensaios a espanca, deixando os pais da moça em choque. Agride o senho- filosóficos que vinha escrevendo e começara a "pender" ou "pai- rio. Grita com uma caixa de banco. Sente que virou "uma espé- rar" ("dangle"), palavra que na gíria americana da época signifi- cie de granada humana cujo pino foi retirado". (p. 107) O que cava estar no limbo à espera de notícias da Junta de Recruta- estará acontecendo com ele? li 1I mento, mas à qual Bellow atribui um sentido mais existencial. Um amigo artista tenta convencê-Io de que a cidade mons- '.1 Tão vasta parece a lacuna entre ele como é agora e a pessoa truosa à volta deles não é o mundo real: o mundo real é o mundo II11 esforçada e inocente que fora no passado que em alguns momen- da arte e do pensamento. Em abstrato Joseph está disposto a res- tos Joseph, o autor do diário, considera-se um simples duplo do peitar essa posição e constatar seus efeitos benéficos: embora di- Joseph anterior, só usando as roupas que aquele descartara. A vidindo com outros os produtos da sua imaginação, o artista per- I' pessoa anterior era capaz de funcionar em sociedade, de manter mite que um agregado de indivíduos solitários se transforme numa ,Iilll 111 um equilíbrio entre o emprego numa agência de viagens e seus espécie de comunidade. Mas ele, Joseph, não é um artista. Sua interesses acadêmicos. No entanto, mesmo então já sentia pre- potencialidade é ser um homem bom. Mas viver como ele vive, .11 i li monições perturbadoras, sensações de alienação do mundo. Da "isolado, alienado, desconfiado", é o mesmo que estar na cadeia. sua janela, ele passa em revista a paisagem urbana - chaminés, (p. 65) De que serve ao homem ser bom numa cela de prisão? A 1:1 i.11 i ... I .1 il 258 259 I I1 ,1
  • 130. bondade precisa ser praticada na companhia dos outros; precisa Joseph estabelece uma distinção entre um indivíduo mera- ser acompanhada pelo amor. mente obcecado consigo mesmo como ele, sempre engalfinha- Num trecho especialmente vigoroso, ele atribui seus aces- do com seus pensamentos, e o artista que, mediante a faculdade sos de violência às intoleráveis contradições da vida moderna. demiúrgica da imaginação, transforma seus pequenos proble- Submetidos a uma lavagem cerebral que nos convence de que mas pessoais em questões de alcance universal. Mas o caráter cada um de nós é um indivíduo de valor inestimável contempla- dos seus engalfinhamentos particulares, na forma de pretensas do com um destino individual, de que não há limite para o que entradas de diário destinadas apenas aos seus próprios olhos, não podemos conseguir, estamos, todos nós, em busca da grandeza se sustenta. Porque em meio a essas entradas encontram-se pági- individual. E não temos como deixar de encontrá-Ia. Então co- nas - na maioria descrições de cenas da cidade, ou de pessoas meçamos a "odiar-nos imoderadamente e submeter-nos, a nós que Joseph conhece - cuja dicção elevada e inventividade me- mesmos e aos demais, a castigos imoderados. O medo de sermos tafórica denunciam-nas como produto de uma imaginação poé- deixados para trás nos persegue e nos enlouquece ... Criando um tica que não só clama por um leitor como inventa e se dirige a clima interno de trevas. E ocasionalmente sobrevém uma tem- um leitor. Joseph pode fazer de conta que deseja ser visto por nós pestade de ódio e a capacidade de ferir despeja-se como chuva como um erudito fracassado, mas sabemos, como ele deve sus- para fora de nós". (p. 63) peitar, que na verdade ele é um escritor nato. Noutras palavras, entronizando o Homem no centro do uni- Dangling Man tem longas reflexões e pouca ação. Ocupa verso, o Iluminismo, especialmente em sua fase romântica, im- um terreno pouco firme entre a novela e o ensaio pessoal ou a pôs exigências psíquicas impossíveis a cada um de nós, exigên- confissão. São várias as figuras que sobem ao palco e trocam pa- cias que extravasamos não só em pequenos acessos de violência lavras com o protagonista, mas além de Joseph em suas duas como os de Joseph, ou em aberrações morais como a tentativa manifestações mal definidas não existem outras personagens no de alcançar a grandeza através do crime (vide o Raskólnikov de Dostoiévski), mas talvez também na guerra que consome o mun- sentido próprio. Por trás da silhueta de Joseph podem-se discer- nir os funcionários modestos e humilhados de Gógol e Dostoiévs- do. E é por isso que, numa atitude paradoxal, Joseph, o autor do diário, encerra suas reflexões, pousa sua pena e se alista. O isola- ki, ruminando sua vingança; o Roquentin da A náusea de Sartre, mento redobrado - o isolamento imposto pela ideologia do in- o intelectual que sofre uma estranha crise metafísica que o tor- dividualismo, mais o isolamento do autoexame - acabou por na estranho ao mundo; e o jovem poeta solitário dos Cadernos levá-Io, pensa ele, à beira da insanidade. E talvez a guerra possa de Malte Laurids Brigge, de Rilke. Nesse seu delgado primeiro lhe ensinar o que não aprendeu com a filosofia. E ele encerra livro, Bellow ainda não desenvolveu um veículo adequado ao seu diário com uma exclamação: tipo de romance rumo ao qual avançava às cegas, o romance que pudesse proporcionar ao leitor a habitual satisfação romanes- Viva o horário regular! ca, inclusive o envolvimento no que parece ser um conflito real E a supervisão do espírito! num mundo da vida real, mas deixando o autor com um manejo Longa vida à arregimentação! (p. 140) desembaraçado do seu conhecimento da literatura e do pensa- 260 261
  • 131. mento europeus para discutir a vida contemporânea e seus mal-es- em resistir ao argumento de Allbee de que foi enganado e por- tares. Para esse passo na evolução de Bellow, precisaremos espe- tanto é credor de uma dívida. Toda essa resistência é apresenta- rar por Herzog (1964). da de dentro: não há nenhuma indicação do autor que nos ajude a decidir qual lado devemos tomar, qual dos dois é a vítima e Asa Leventhal, que pode ser ou não a vítima no romance qual é o perseguidor. Nem nos é fornecida qualquer orientação curto The Victim, é editor de uma pequena revista comercial em de ordem moral. Estará Leventhal resistindo a ser envolvido por Manhattan. No trabalho, precisa suportar as ocasionais alfineta- palavras, por força da devida prudência, ou estará se recusando das antissemitas. Sua mulher, que ele ama profundamente, está a aceitar que somos todos responsáveis por nossos semelhantes? fora da cidade. Por que eu? - eis o único grito de Leventhal. Por que esse des- Um dia, na rua, Leventhal tem a sensação de estar sendo conhecido vem me culpar e me odiar e exigir que eu lhe forneça observado. Um homem o aborda e o cumprimenta. Vagamente uma reparação? ele se lembra do nome do homem: Allbee. Por que ele está atra- Leventhal reafirma que tem as mãos limpas, mas os amigos sado, pergunta-lhe Allbee - não lembra que eles tinham um que consulta já não têm a mesma certeza. Por que ele se envol- :111 II1 encontro? Leventhal não se lembra de nada. Então por que com- veu para começo de conversa, perguntam eles, com uma perso- I:, pareceu, pergunta-lhe Allbee? (E repetidas vezes Allbee irá der- nagem tão desagradável como Allbee? Estará sendo inteiramen- rubar Leventhal com esse tipo de jiu-jitsu lógico.) te honesto consigo mesmo quanto aos seus motivos? Tendo encurralado Leventhal, Allbee começa a contar uma Leventhal rememora seu primeiro encontro com Allbee, aborrecida história do passado em que Allbee conseguira uma numa festa. Uma garota judia tinha cantado uma balada, e All- entrevista para Leventhal com seu patrão (dele, Allbee), duran- bee dissera a ela que devia tentar cantar salmos. "Essas outras [as te a qual Leventhal tinha (propositalmente, diz Allbee) adotado baladas americanas], se você não nasceu cantando, nem adian- um comportamento ofensivo, o que levara Allbee a perder o seu ta tentar." (p. 174) Será que ele, Leventhal, naquele momento emprego. marcara inconscientemente Allbee como antissemita, e decidira Leventhal tem uma lembrança apenas nebulosa dos acon- vingar-se? tecimentos, mas nega a insinuação de que aquela entrevista fi- Com a consciência pesada, Leventhal oferece a Allbee re- zesse parte de uma conspiração contra Allbee. Se ele tinha ido fúgio em seu apartamento. Mas a coabitação da dupla é um de- embora no meio da entrevista, diz, foi porque o patrão de Allbee sastre. Os hábitos de Allbee são deploráveis. Ele remexe os pa- não demonstrara o menor interesse em contratá-Io. péis pessoais de Leventhal. (Allbee: Se você não confia em mim, Mesmo assim, retruca Allbee, agora ele está desempregado, por que deixa sua escrivaninha destrancada?) Leventhal perde a não tem onde morar e precisa dormir em albergues. Que provi- paciência e bate em Allbee, mas Allbee continua a ripostar. dência Leventhal pretende tomar a respeito? 11' Allbee faz um longo discurso que (segundo ele) Leventhal E assim começa a perseguição de Allbee a Leventhal- ou deveria ser capaz de entender apesar de judeu, dizendo que to- pelo menos o que assim parece a este último. Leventhal teima dos precisamos nos arrepender e nos converter em homens no- 262 263
  • 132. vos. Leventhal duvida da sinceridade de Allbee, e declara que E então, certa noite ele esbarra em Allbee no teatro. Allbee duvida do que ele diz. Você duvida de mim porque é judeu e eu está na companhia de uma atriz decadente; e cheira a bebida. não, responde Allbee. Mas por que eu?, torna a perguntar Le- Encontrei meu lugar no trem, informa Allbee a Leventhal, mas venthal. "Por quê?", responde Allbee. "Por bons motivos; os me- não como condutor, só como passageiro. Entrei num acordo lhores do mundo ... Estou lhe dando uma oportunidade de ser com "quem quer que controle as coisas". "E qual é sua ideia de justo, Leventhal, e de fazer a coisa certa." (p. 328) quem controla as coisas?", pergunta Leventhal. (p. 379) Mas All- Chegando ~m casa certa noite, Leventhal encontra a porta bee desapareceu na multidão. trancada e Allbee na cama com uma prostituta - não só na ca- O Kirby Allbee de Bellow é uma criação inspirada, cômi- ma, mas na cama dele, Leventhal. Allbee acha graça da indigna- ca, patética, repulsiva e ameaçadora. Às vezes seu antissemitis- ção de Leventhal. "Onde mais, se não na cama? .. Talvez você mo parece quase aceitável por sua franqueza: às vezes ele próprio conheça algum outro meio, mais refinado, diferente. Mas vocês parece ter sido possuído por sua caricatura do judeu, que agora vive dentro dele, um antijudeu que fala pela sua boca. Vocês, os não vivem dizendo que são iguais a todo mundo?" (p. 362) judeus, estão se apoderando do mundo, choraminga ele. A única Quem é Allbee? Um louco? Um profeta encoberto por um coisa que nós, os pobres americanos, podemos fazer é procurar pesado disfarce? Um sádico que escolheria suas vítimas ao acaso? um canto humilde que possamos ocupar. Por que vocês nos viti- Allbee tem sua própria versão. É como se ele fosse um índio mizam tanto? Que mal fizemos a vocês? da planície, afirma, que com a chegada da ferrovia antevê o fim Existe também um certo traço do americano puro-sangue de seu antigo modo de vida. E decide aderir à nova ordem. Le- no antissemitismo de Allbee. "Sabe, um dos meus antepassados venthal, o judeu, membro da nova raça dominante, precisa con- foi o governador Winthrop", diz ele. "Não é mesmo um absurdo seguir-lhe um emprego na ferrovia do futuro. "Eu quero apear [o estado de coisas atual J? É como se os filhos de Calibã estives- do [meu] cavalo e tornar-me o condutor do trem." (p. 329) sem comandando tudo." (p. 259) Com sua mulher às vésperas de voltar para casa, Leventhal Mas acima de tudo Allbee é desprovido de vergonha, como manda Allbee procurar outras acomodações. No meio da noite, o id, e igualmente impuro. E mesmo seus momentos de sim- acorda e descobre que o apartamento está tomado pelo gás. All- patia são ofensivos. Deixe eu passar a mão pelo seu cabelo, pede bee, sem sucesso, tenta suicidar-se com gás na cozinha. ele a Leventhal- "parece a pelagem de um animal". (p. 323) Allbee desaparece da vida de Leventhal. Passam-se anos. Leventhal é um bom marido, um bom tio, um bom irmão, Aos poucos Leventhal se livra da sensação de que "saiu-se daque- um bom trabalhador em circunstâncias difíceis. É um homem la". (p. 372) Mas não precisava sentir-se culpado, reflete ele. All- esclarecido, e não costuma criar caso. Tudo que quer é fazer bee não tinha o direito de invejar seu bom emprego, seu casa- parte da melhor sociedade americana. Seu pai não se incomoda- mento feliz. Esse tipo de inveja baseia-se numa premissa falsa: va com o que os gentios pensavam dele, contanto que pagassem de que a cada um de nós foi feita alguma promessa. Mas nunca o que lhe deviam. "Era a opinião do seu pai. Mas não a dele, que nos prometeram nada desse tipo - nem Deus nem o Estado. a rejeitava e achava repulsiva." (p. 232) Ele tem uma consciência 265 264
  • 133. social. Sabe quanto é fácil, especialmente na América, recair em mos de algum modo convencidos de que Leventhal se encontra meio "aos perdidos, aos marginalizados, aos vencidos, aos apa- no limiar de uma revelação. Mas nesse momento ele é tomado gados, aos arruinados". (p. 158) É inclusive um bom vizinho- por uma grande fadiga. Tudo isso é demais para ele. afinal, nenhum dos amigos gentios de Allbee se mostrara dispos- Ao passar em revista sua carreira, Bellow sempre tendeu a to a hospedá-Ia. O que mais se podia esperar dele? menosprezar The Victim. Se Dangling Man foi seu mestrado co- A resposta é: tudo. The Victim é o mais dostoievskiano dos mo escritor, diz ele, The Victim foi seu doutoramento. "Eu ainda livros de Bellow. O enredo é adaptado de O eterno marido, de estava aprendendo, confirmando minhas credenciais, provando Dostoiévski, a história de um homem que é inesperadamente que um jovem de Chicago tinha o direito de reivindicar a aten- abordado pelo marido de uma mulher com quem tivera um caso ção do mundo."J Excesso de modéstia. The Victim está a poucos anos antes, cujas insinuações e exigências vão se tornando cada centímetros de Billy Budd na primeira fila das novelas america- vez mais insuportavelmente íntimas. Mas não é só o enredo que nas. Se tem uma fraqueza, é uma fraqueza não de execução, mas Bellow deve a Dostoiévski, ou o motivo de um duplo odioso. O de ambição. Estaria nos poderes de Bellow transformar Leven- próprio espírito de The Victim é dostoievskiano. Os elementos thal num peso-pesado intelectual, capaz de discutir com Allbee em que nossas vidas limpas e bem-arrumadas se apoiam sempre (e, por trás dele, com Dostoiévski) a universalidade do modelo podem desmoronar de um momento para o outro; exigências de- cristão da conclamação ao arrependimento. Mas ele decidiu de sumanas podem ser-nos feitas sem aviso prévio, e vindas das par- outro modo. tes mais estranhas; claro que é natural resistir (Por que eu?); mas (2°°4) se pretendemos ser salvos não temos escolha: devemos deixar tu- do de lado e acatá-Ias. Entretanto, essa mensagem essencialmen- te religiosa é posta na boca de um repelente antissemita. Será realmente surpreendente que Leventhal responda fincando pé? Mas o coração de Leventhalnão está fechado; sua resistên- cia não é completa. Existe alguma coisa em todos nós, reconhe- ce ele, que se opõe à sonolência do cotidiano. Na companhia de Allbee, em momentos isolados, ele se sente à beira de ultrapas- sar os limites de sua antiga identidade e ver o mundo com novos olhos. Alguma coisa parece estar ocorrendo na área do seu cora- ção, algum tipo de premonição, não sabe dizer se de um ataque cardíaco ou de algo mais elevado. Num certo momento ele olha para Allbee e Allbee lhe devolve o olhar, e os dois quase pode- riam ser a mesma pessoa. Noutro ponto - descrito com a prosa mais magistralmente atenuada ["understated"] de Bellow - so- 267 266
  • 134. mento da fronteira do Oeste americano, e os efeitos desse fe- 17. Arthur Miller, Os desajustados chamento sobre a psique americana. Huckleberry Finn, ao fim do livro sobre ele escrito por Mark Twain, ainda tinha o recurso de partir para os territórios do Oeste de modo a escapar da civi- lização (e Nevada, na década de 1840 da infância de H uck, era um desses territórios). Já os vaqueiros de Miller, cerca de cem anos mais tarde, não têm para onde ir. Um deles, Caye (Clark Cable), tornou-se um gigolô pronto a aproveitar-se de divórcios. Outro, Perce (Montgomery Clift), vive em condições precárias com o que ganha participando de rodeios. O terceiro, Cuido (Eli Wallach), exibe o lado sombrio da homossocialidade masculina da fronteira, a saber, uma misoginia malévola. São esses os desajustados de Miller, homens que ou não conseguiram fazer a transição para o mundo moderno ou estão Os desaiustados (The Mísfits, 1961) foi realizado por um no- fazendo essa transição de maneira ignominiosa. Os três são apre- tável conjunto de criadores. O filme se baseia num roteiro ori- sentados com uma clareza e integridade raras no cinema, conse- ginal de Arthur Miller. Foi dirigido por John Huston e estrelado quência da habilidade de Miller como dramaturgo. por Marilyn Monroe e Clark Cable, nos que acabaram sendo Mas é claro que o título de Miller tem um segundo sentido seus derradeiros papéis importantes. Embora não tenha sido um oculto. Se os vaqueiros não têm lugar na América de Eisenhower, grande sucesso de bilheteria, continua a atrair, e com justiça, cer- os cavalos selvagens de Nevada têm menos ainda. Antes, eram ta atenção da crítica. dezenas de milhares; agora, reduziram-se a míseras tropas no alto O enredo é simples. Uma mulher, Roslyn, em visita a Re- das montanhas, que quase nem compensa capturar. De represen- no, Nevada, para obter um divórcio rápido, fica amiga de um tação da liberdade da fronteira, transformaram-se num anacro- grupo de vaqueiros ocasionais e parte com eles para o deserto nismo, criaturas se~ qualquer utilidade numa civilização meca- numa incursão para a captura de cavalos selvagens. Lá ela desco- nizada. O destino que lhes resta é serem cercados e caçados do bre que os cavalos não seriam usados como montaria, mas ven- ar; só não são baleados do alto porque assim sua carne iria estra- didos como carne para a fabricação de ração de animais domés- gar-se antes que os magarefes pudessem chegar até eles com seus ticos. A descoberta precipita a quebra de confiança entre ela e os caminhões refrigerados. homens, uma ruptura que o filme só remenda do modo mais ca- E Roslyn (Marilyn Monroe), claro, também é uma desajus- nhestro e inconvincente. tada, de maneiras menos fáceis de definir, maneiras que nos con- Tirando o fim, o roteiro é forte. Arthur Miller opera na pon- duzem ao cerne criativo do filme. Miller era casado com a atriz ta final de uma longa tradição literária de reflexão sobre o fecha- na época da filmagem, e desconfiamos que Roslyn tenha sido 268 269
  • 135. construída em torno de Marilyn, ou em torno do que Miller centrados e até regulamentados de sexualidade difundidos não achava que era ou podia ser a Marilyn interior. Numa das cenas só por Hollywood e pelos meios de comunicação como também mais impressionantes do filme, Miller e Huston limitam-se a pela sexologia acadêmica. Roslyn dança com uma difusa e - à criar um espaço em que Marilyn pode representar a si mesma, luz do resto do filme - triste sensualidade, para a qual nem a criar-se a si mesma na película. vocação de predador sexual de Cuido nem o comedimento gen- As ironias aqui são especialmente profundas, pois Marilyn til e antiquado de Caye seriam uma resposta adequada. Monroe em parte representava, e em parte combatia, o tipo da Outra cena impressionante ocorre mais perto do final do loura burra que lhe era prescrito pelo star system hollywoodiano. filme, quando Roslyn percebe com uma clareza brutal que os E com uma complicação suplementar: nem sempre é fácil se- homens mentiram para ela, e que no fim das contas importam-se parar o encanto difícil de definir de Roslyn de certo humor ler- mais com o feito machista em que estão empenhados - a cap- do, induzido pelo Nembutal, da atriz em crise. tura dos pobres cavalos - do que com ela, e que nenhuma sú- A cena crucial nesse sentido ocorre a uns trinta minutos plica ou suborno poderá lhe valer de nada. Desesperada e fu- do início do filme. Roslyn está dançando com Cuido, enquanto riosa, ela se afasta dos homens; grita, esbraveja e chora por eles Caye e Isabelle, uma velha amiga de Roslyn, observam. Roslyn serem tão desalmados. Para um diretor mais convencional, esse está encantadora, cheia de energia; mas todos os outros sinais momento alto - o momento em que todos os véus caem diante que ela envia, Cuido interpreta erradamente. Para ele aquela dos olhos de Roslyn e ela percebe que, como mulher, e talvez dança é uma corte sexual; mas Roslyn insiste em evitá-lo para como ser humano, está totalmente sozinha - poderia parecer além da mera timidez. Finalmente ela sai dançando da casa ao uma oportunidade para uma encenação à moda antiga: close-ups sol do fim da tarde ("Cuidado!", grita Caye, "Não tem degrau!") intensos, cortes de rosto em rosto, mostrando as expressões de e continua sua dança em torno do tronco de uma árvore, caindo raiva. Mas Huston filma a cena contrariando essas convenções. finalmente num coma semidespido. A câmera permanece do lado dos homens; Roslyn está tão dis- Caye não entende melhor que Cuido o que está haven- tante que é quase engolida pela vastidão do deserto; sua voz fa- do com Roslyn, mas sabe que precisa conter o companheiro. Os lha; suas palavras são incoerentes. O efeito é perturbador. dois homens, e Isabelle, ficam observando perplexos enquan- Mas as cenas - a longa sequência de cenas - que se gra- to Roslyn - que a essa altura temos como reconhecer a partir vam mais indelevelmente no espírito do espectador são as que da perspectiva histórica, pode perfeitamente ser a própria Mari- envolvem os cavalos. lyn, ou pelo menos a Marilyn de Arthur Miller - leva seu nú- mero até o fim. Nos créditos de qualquer filme envolvendo a participação E qual é o número de Roslyn-Marilyn? Em parte é a entre- de animais feito nos dias de hoje, pelo menos de qualquer filme ga a uma angústia de segunda mão, cuja culpa deve ser atribuí- feito no Ocidente, aparece um aviso assegurando aos espectado- da a um existencialismo de café da Rive Cauche. Mas em parte res que nenhum dano foi causado aos animais, e que o que pode tem a ver também com a resistência aos modelos altamente con- parecer sofrimento foi apenas um truque cinematográfico. Po- 27° 271
  • 136. de-se supor que essas justificativas tenham sido impostas à indús- mais um sistema de signos, continua a existir uma diferença ir- tria cinematográfica por organizações de defesa dos animais. redutível da imagem fotográfica, a saber, que ela traz em si ou Mas não em 1960. Os cavalos usados na filmagem de Os consigo o rastro de um passado histórico verdadeiro. E é por isso desajustados eram de fato cavalos selvagens; a exaustão, a dor e o que as sequências da captura dos cavalos em Os desajustados são terror que vemos na tela são reais. Os cavalos não estão represen- tão perturbadoras: por um lado, fora do campo da lente da câ- tando. Os cavalos são reais, explorados por Huston e pelas pes- mera, um bando de vaqueiros, diretores, escritores e técnicos de soas por trás de Huston por sua força, sua beleza e sua resistên- som congregados para tentar fazer os cavalos enveredarem pelo cia; pela integridade espiritual da sua reação a seu inimigo, o caminho prescrito para eles numa construção ficcional chama- homem; e por serem de fato o que pareciam ser e o que repre- da Os desajustados; por outro, diante da lente, um rebanho de sentavam na mitologia do Oeste: criaturas soltas e indómitas. cavalos selvagens que não fazem qualquer distinção entre atores, Esse ponto merece ser enfatizado porque ele nos leva bem dublês e técnicos, que não sabem ou não querem saber do ro- para perto do cerne da questão do cinema como meio de repre- teiro do famoso dramaturgo Arthur Miller em que podem ou sentação. O cinema, ou pelo menos o componente visual do cine- não ser, dependendo do ponto de vista, os desajustados a que se ma naturalista, não funciona via símbolos intermediários. Quan- refere o título, que nunca ouviram falar do fechamento da fron- do você lê, num livro, "Os dedos dele tocaram os dela", o que teira do Oeste mas naquele momento a vivenciam na própria se vê não são dedos reais tocando outra mão real, mas a ideia de carne, e da maneira mais traumatizante. Os cavalos são de ver- dedos que tocam a ideia de outros dedos. Já num filme, o que dade, os dublês são de verdade, os atores são de verdade; e todos se contempla é o registro visual de uma coisa que aconteceu con- estão, nesse momento, envolvidos numa luta terrível em que os cretamente num dado momento: dedos reais que entraram em homens desejam subjugar os cavalos para seus fins e os cavalos contato com outros dedos reais. só desejam escapar; de tempos em tempos, a loura grita ou ber- Parte do motivo pelo qual o debate em torno da pornogra- ra; tudo isso aconteceu de fato; e é isso que temos aqui, reviven- fia ainda está vivo no que se refere aos meios fotográficos, quan- do pela décima milésima vez diante dos nossos olhos. Quem ou- do praticamente morreu com respeito à palavra impressa, é que saria dizer que tudo não passa de uma história? a fotografia é lida, justificadamente, como o registro de alguma coisa que de fato aconteceu. O que está representado no celu- (2000) loide foi de fato feito em algum momento do passado por pessoas de verdade diante de uma câmera. A história em que esse mo- mento está incluído pode ser fictícia, mas o evento foi real, per- tence à história, a uma história que se revive cada vez que o fil- me é exibido. Apesar de toda a inteligência investida na teoria do cinema desde a década de 1950 para caracterizar o cinema como apenas 272 273
  • 137. livro sobre os Estados Unidos - que contém uma nota seme- 18.Philip Roth, Complô contra lhante, começando com as palavras "Complô contra a América a América é uma obra de ficção" - deve ser lido da mesma forma, ou se- ja, com sua verdade mantida em suspenso? Num certo senti- do, não, e obviamente não. O enredo de Complô contra a Amé- rica não pode ser verdadeiro porque todos sabem que muitos dos acontecimentos em torno dos quais ele se desenvolve jamais ti- veram lugar. Por exemplo, nunca houve um presidente Charles Lindbergh na Casa Branca nos anos 1941-2, atendendo a ordens secretas recebidas de Berlim. É igualmente óbvio, porém, que Roth não inventou essa longa fantasia sobre os Estados Unidos nas mãos dos nazistas como um mero exercício literário. Qual é então a relação entre sua história e o mundo real? O livro, afinal, é "sobre" o quê?2 Em 1993, acima do nome "Philip Roth", foi lançado um li- O presidente Lindbergh do livro de Roth prefere usar um vro intitulado Operação Shylock: uma confissão, que, além de estilo de oratória baseado na frase dec1aratória entrecortada. Seu ser uma incursão alucinante num território que parecia reserva- governo comanda iniciativas sinistras com nomes reconfortantes do a John Barth e aos metaficcionistas, também tratava de Israel como "Gente Simples", "Just Folks", e "Nossa Terra 42", "Ho- e de suas relações com a Diáspora judaica. Operação Shylock mestead 42" (que podem ser justamente comparados com o apresenta-se como a obra de um escritor americano chamado "Homeland Security Act" e o "Patriot Act" de anos recentes). Por Philip Roth (no interior do livro, contudo, existem duas persona- trás de Lindbergh espreita um vice-presidente ideólogo e impa- gens chamadas Philip Roth), que admite ter auxiliado em segre- ciente para pôr as mãos nas alavancas do poder. As semelhanças do os serviços de informação de Israel. Podemos decidir aceitar entre o governo Lindbergh e o governo de George W. Bush são essa confissão ao pé da letra. Por outro lado, ela pode fazer parte difíceis de ignorar. Será então esse romance de Roth falando dos de uma criação ficcional mais ampla: Operação Shylock - uma EUA sob o domínio fascista um livro "sobre" os EUA sob o segundo confissão: um romance. Qual seria a leitura mais fiel? A "Nota ao dos Bush? leitor" que encerra o livro parece prometer uma resposta. A no- Na época em que o livro foi lançado, Roth fez o possível ta começa dizendo: "Este livro é uma obra de ficção", e termina para desencorajar essa leitura. "Parte dos leitores irá querer consi- dizendo: "Esta confissão é falsa". Estamos, noutras palavras, em derar meu livro um roman à def sobre o momento atual dos Es- pleno paradoxo do Mentiroso Cretense.1 tados Unidos", escreveu ele na New York Times Book Review. Se Roth pretende e não pretende que seu livro sobre Israel "Mas isso seria um erro ... Meu interesse [pelos anos 1940-2] não é seja lido como uma mentira, uma invenção, será que seu novo apenas simulado - estou de fato interessado nesses dois anos."3 275 274
  • 138. A advertência soa inequívoca, e de fato é. Ainda assim, um Para qualquer leitor mais sensato, Complô contra a Améri- romancista experiente como Roth sabe que as histórias que co- ca só pode ser "sobre" o governo de George W. Bush de maneira meçamos a escrever muitas vezes começam a escrever-se sozi- muito periférica. Um grau extremo de paranoia seria necessário nhas; a partir de então sua veracidade ou falsidade nos escapa para transformá-lo num roman à def falando do início do sécu- das mãos, e as declarações de intenção do autor perdem qual- lo XXI. Entretanto, uma das coisas de que trata Complô contra a quer peso. Além disso, depois que um livro é lançado no mundo América é, justamente, a paranoia. Na história de Roth, a cons- ele se torna propriedade dos seus leitores, que, à menor oportu- piração de cima para baixo, em termos mais imediatos, uma tra- nidade, irão certamente distorcer seu significado de acordo com ma contra os judeus americanos, em última instância, um com- suas próprias preconcepções e seus próprios desejos. Novamen- pIá contra a república norte-americana, funciona de maneira tão te, Roth sabe disso: no mesmo artigo publicado no New York Ti- insidiosa que num primeiro momento as pessoas sensatas não mes ele nos lembra que, embora Franz Kafka não tenha escrito conseguem percebê-Ia. Qualquer um que fale de trama ou cons- seus romances como alegorias políticas, os europeus orientais piração é desqualificado e tachado de louco. dominados por governos comunistas liam-nos dessa maneira, e chegaram mesmo a utilizá-los com fins políticos. A história fictícia de Roth começa em 1940, quando, a rebo- Finalmente, podemos notar que essa não é a primeira vez que de uma campanha para manter os Estados Unidos fora da que Roth nos convida a pensar sobre uma guinada rumo ao fascis- guerra recém-irrompida na Europa, o aviador Charles Lind- mo conduzida de cima para baixo. Em Pastoral americana (1997), bergh derrota Franklin Delano Roosevelt nas eleições presiden- o pai do herói, ao assistir às audiências de Watergate na televisão, ciais. Muita gente fica horrorizada com a eleição de um conhe- observa a respeito do círculo que rodeava Richard Nixon: cido simpatizante do nazismo para presidente. Mas, em face do seu sucesso em manter os EUA prósperos e em paz, a oposição Esses patriotas de meia tigela ... por eles, pegavam este país e aos poucos se enfraquece. Roosevelt se retira para lamber suas transformavam numa Alemanha nazista. Conhecem o livro ft feridas. As primeiras leis visando os judeus são aprovadas, e nem Can't Happen Here? É um livro maravilhoso, esqueci quem es- provocam protestos. creveu, mas a ideia não podia ser mais atual. Essas pessoas nos A pouca resistência que se manifesta cristaliza-se em torno levaram até a beira de uma coisa terrível.4 de um núcleo pouco provável. Semana após semana, o jornalis- Ia Walter Winchell usa seu programa de rádio para fustigar Lind- O livro a que ele se refere mal é legível nos dias de hoje. lt bergh. Fora da comunidade judaica, porém, encontra pouco Can't Happen Here [Não pode acontecer aqui, 1935], em que apoio. O New Ydrk Times critica suas investi das por seu "gosto Sinclair Lewis imagina uma tomada do governo americano por discutível", e aplaude os anunciantes quando estes o retiram do uma mistura instável de forças populistas e de extrema-direita. ar. Winchell reage denunciando os proprietários do Times co- Como modelo para o seu presidente fascista, Lewis não usava mo "quislings judeus ultra-civilizados". Destituído do seu único Lindbergh, mas o demagogo populista Huey Long. acesso aos meios de comunicação, Winchell candidata-se à indi- 276 277
  • 139. cação do Partido Democrata para 1944. Num comício na terra trar-se no ceme da intenção do seu autor: que a história que de Lindbergh, porém, acaba assassinado. Durante o funeral, aprendemos nos livros escolares é uma versão censurada e do- Fiorello La Guardia faz um discurso que lembra o de Marco An- mesticada do que realmente ocorreu. A verdadeira história é o tônio, carregado de ironia cortante, ao lado do caixão. Em res- imprevisível, "o imprevisto implacável". "O terror do imprevis- posta, Lindbergh embarca em seu aeroplano, levanta voo e nun- to é o que a ciência da história oculta." E, na medida em que nos ca mais se tem notícias suas. (pp. 240, 242) transmite a crônica da irrupção do imprevisto na vida de uma Depois do desaparecimento de Lindbergh, as coisas ainda criança, Complâ contra a América é um livro de história, mas pioram antes de começarem a melhorar. Seu vice-presidente e de um tipo fantástico, dotado de uma verdade própria: o tipo de sucessor, Burton K. Wheeler, é um extremista, e sob o seu gover- verdade que Aristóteles tinha em mente quando disse que a poe- no ocorre um breve reino de terror. Revoltas eclodem nas ruas; sia é mais verdadeira que a história - mais verdadeira devido a judeus, escritórios e lojas de judeus são atacados. Anne Morrow seu poder de condensar e representar a multiplicidade pelo que Lindbergh, logo ela, levanta a voz em protesto, é imediatamente é típico. (pp. 7,113,114) capturada pelo FBI e posta sob custódia. Fala-se de começar uma O pai de Philip, Herman Roth - cujo avatar da vida real já guerra contra o Canadá, que vem dando abrigo aos judeus per- teve seus louvores cantados pelo filho em Patrimony [Patrimô- seguidos pelo poderoso vizinho do sul. nio, 1991] -, é um homem de qualidades impecáveis, dotado de Mas logo o país corrige seus rumos. A resistência reúne fi- uma lealdade mais intensa, ou talvez mais romântica, aos ideais guras políticas como La Guardia e Dorothy Thompson, mulher da democracia americana que qualquer outra personagem do de Sinclair Lewis e espírito que animou a composição de li livro. Herman faz o possível para manter sua família a salvo da Can't Happen Here, aos americanos decentes de todas as ori- tempestade que se anuncia; mas, a fim de evitar que sejam relo- gens. Numa eleição presidencial extraordinária realizada em no- cados de sua Newark natal para o interior do país (a finalidade vembro de 1942, Roosevelt recupera o cargo, e o Japão imedia- tamente bombardeia Pearl Harbor. Assim, exatamente com um real do programa Nossa Terra 42 - a segregação dos judeus), ele ano de atraso, a nau da história - da história americana, aliás precisa deixar seu trabalho de corretor de seguros e aceitar um - retoma a seu curso traçado. emprego noturno carregando caixotes no mercado; e mesmo ali não está a salvo das ameaças do agente McCorkle e do FBI. A década de 1940 nos é mostrada pelos olhos de um certo O espetáculo da impotência de seu pai diante do Estado de- Philip Roth, nascido em 1933, menino cuja disposição estável e sencadeia um colapso psíquico profundo em Philip. A crise co- feliz se deve ao fato de ser "o filho americano de pais americanos meça com pequenos delitos, prossegue manifestando-se sob a numa escola americana numa cidade americana numa América forma de alienação ("Ela é outra pessoa", diz ele para si mesmo, em paz com o mundo". À medida que o programa de Lindbergh observando a sua mãe, "todo mundo é outra pessoa.") e culmina começa a entrar em ação, porém, o jovem Philip é obrigado a quando ele foge de casa e procura refúgio num orfanato católi- absorver, passo a passo, uma lição que pode justamente encon- co. Ele exprime com toda a clareza o significado de fugir de ca- 279 278
  • 140. sa. "Eu não queria ter nada a ver com a história. Eu queria ser só em que medida se pode dizer que o verdadeiro Philip Roth traz um menino, na menor escala possível." (pp. 194,232) as marcas da infância devastada do jovem Philip poderia aju- A crise de Philip é tratada com leveza - apesar da ameaça dar-nos então a responder àquela pergunta: do que realmente sinistra que paira no ar, o tom do livro é cômico. A fuga do me- trata esse livro, essa obra de ficção? nino manifesta antes o pânico que sua rejeição à família ou ao Quaisquer marcas que Philip traga adquirem uma aparên- seu legado. Um dos alter egos de Roth, Nathan Zuckerman, já cia cada vez mais estranha à medida que as examinamos. Oskar insinuou no passado que o Roth filho obediente e cumpridor dos Matzerath, em O tambor, de Günter Grass, traz dentro de si ou deveres é um impostor, e que o verdadeiro Roth é o rebelde dis- em si, bem mais obviamente que Philip Roth, a prova de que simulado e escabroso que primeiro se manifestou em O comple- nada queria ter a ver com a história. Oskar afirma seu direito à xo de Portnoy (1969). Complâ contra a América, na verdade, con- infância não se escondendo da história, o que seria impossível, testa as palavras de Zuckerman, apresentando-nos um pedigree nem mesmo num orfanato, mas parando de crescer, o que - de para o Roth mais filial e "cidadão".5 certa forma - até pode ser feito. Mas a história com que Oskar Ainda assim, Lindbergh, e o que Lindbergh representa - a colide, a história do Terceiro Reich, não é um "imprevisto" abs- licença para a manifestação desenfreada de tudo que existe de trato: ela de fato aconteceu, como ficou atestado na memória mais feio na psique americana -, força Philip a crescer depres- comum e registrado em milhares de livros e milhões de fotogra- sa demais, a perder cedo demais suas ilusões infantis. Em prazo fias. Já a história que deixa cicatrizes em Philip, por outro lado, mais longo, que efeito esse despertar abrupto da infância tem só aconteceu na cabeça de Philip Roth e só se encontra registra- sobre Philip? Num certo sentido, a pergunta não cabe. Como da em Complâ contra a América. Explicar Complâ contra a Amé- o romance de Roth termina em 1942, não chegamos a ver Philip rica e seu mundo imaginário, portanto, é bem menos fácil e ób- para além dos nove anos de idade. Mas, se o autor Philip Roth vio que explicar O tambor. pretendia escrever sobre uma criança fictícia que só existe nas Mas quanto, afinal, é imaginário o mundo descrito no li- páginas de um romance, não teria dado a esse menino o nome vro de Roth? Uma presidência Lindbergh pode ser imaginária, de Philip Roth, nascido no mesmo ano que ele e de pais com mas o antissemitismo do verdadeiro Lindbergh não era. E Lind- nomes idênticos aos dos seus. De alguma forma, o jovem Philip bergh não estava sozinho. Dava voz a um antissemitismo ameri- Roth sobre cuja infância lemos no livro teve sua vida continua- cano que tinha uma longa pré-história no cristianismo católico e da pela vida do Philip Roth que, seis décadas mais tarde, não só protestante, cultivado em inúmeras comunidades de imigrantes narra a história do menino como ainda a escreve. europeus e alimentado ainda pelo fanatismo contra os negros De alguma forma, então, estamos diante não só da história com o qual era, pela lógica irracional do racismo, cerradamente de um representativo menino judeu americano da geração que entrelaçado (entre todos os "indesejáveis históricos" da América, chegou à consciência na década de 1940 - embora essa década sugere Roth, não podia haver grupos mais díspares que os negros nos seja apresentada aqui numa versão pervertida - mas tam- e os judeus).6 Um eleitorado volátil e caprichoso cativado antes bém da história do Philip Roth histórico e real. Tentar decifrar pela aparência que pela substância - perigo antevisto por Toc- 280 281 1
  • 141. queville muito tempo antes - tanto poderia em 1940 ter-se dei- parece um complexo de perseguição pode ser, na verdade, um xado seduzir pelo aviador heroico com uma mensagem simples mecanismo de sobrevivência. (p. 193) quanto pelo candidato à reeleição. Nesse sentido, a fantasia de A julgar por qualquer padrão objetivo, Sandy emerge dos um governo Lindbergh é apenas uma concretização, uma rea- anos Lindbergh tão coberto de cicatrizes quanto seu irmão mais lização para fins poéticos, de certo potencial da vida política novo, e talvez ainda mais, pois é obrigado a viver como um estra- amencana. nho no lar dos pais que o reprovam. Se esses anos tivessem de Tendo em mente essa leitura de Lindbergh, podemos retor- fato acontecido, o irmão historicamente mais velho de Philip nar à questão das cicatrizes que o filho da década de 1940 apre- Roth - que é tão verdadeiro quanto Philip, e viveu a mesma senta no futuro. E aqui, em vez de vasculharmos a vida e o ca- história - também traria suas marcas. No entanto, o governo de ráter do verdadeiro Philip Roth, empreendimento questionável Lindbergh não aconteceu, e não existem marcas desse período em quaisquer circunstâncias, pode ser útil voltarmo-nos para ou- como tal. Qual será então a natureza das cicatrizes que os dois tro menino da família Roth, o irmão mais velho de Philip, San- irmãos, o escritor e o não escritor, trazem em decorrência de dy, aquele que não foge da história (e tampouco escreve um livro uma história que é chamada poeticamente (no sentido dado por sobre a sua infância). Philip, apaixonadamente patriota, colecio- Aristóteles) de governo Lindbergh? Ou será apenas o irmão es- na ícones (selos) de americanos exemplares. Sandy, possuidor de critor quem traz uma cicatriz? Ou na verdade não existirá cica- dotes artísticos, prefere desenhar os seus heróis. Ambos colecio- triz alguma? nam imagens do aviador Lindbergh que adoram; como judeus, Embora o jovem Philip vá, é claro, crescer e transformar-se porém, os dois se veem diante de uma crise quando Lindbergh num escritor famoso, Complâ contra a América não é um livro revela sua verdadeira coloração política. Philip não quer se des- sobre a incubação da alma do escritor. Em nenhum momen- fazer de seus selos de Lindbergh; Sandy esconde seus retratos de to Roth invoca a imagem do artista ferido pela vida cuja dor se Lindbergh debaixo da cama. transforma na fonte da sua arte. A única explicação que parece Sob a influência de um rabino colaboracionista com quem fazer sentido para a cicatriz dos anos Lindbergh é a própria con- a irmã da mãe deles é casada, mas contrariando a vontade de dição judaica - uma condição judaica, entretanto, de etiolo- seus pais, Sandy alista-se voluntariamente no programa Gente gia peculiar: a condição judaica como a ideia que alguém de Simples, que leva jovens judeus para passar o verão fora das gran- fora, e alguém hostil, além do mais, faz do que seja ser judeu, des cidades e os hospeda na casa de típicas (isto é, simpatizantes uma ideia imposta cedo demais ao menino que começa a cres- de Lindbergh) famílias não judias em áreas rurais. Sandy passa o cer, e por meios que, embora possam não ser propriamente ex- verão numa propriedade rural do Kentucky e volta para casa for- tremos, podem facilmente - e a década de 1940, a época por te e bronzeado, incapaz de entender por que seus pais, a quem excelência do imprevisto, nos trouxe provas abundantes - tor- define com desprezo de "judeus do gueto" atacados por um "com- nar-se extremos. plexo de perseguição", mostram-se tão nervosos por causa de O que o complô contra a América causa ao jovem Philip Hitler. E leva um ano inteiro para entender que aquilo que lhe entre seus sete e nove anos de idade é terrível. Impõe ao meni- 282 283
  • 142. no - embora menos, deve-se dizer, em primeira mão do que tamente não precisavam de nenhuma outra língua - já tinham através dos noticiários cinematográficos e jornais radiofánicos, a sua, sua língua materna, cuja expressividadevernácula maneja- vam sem esforço [...] O que eram era aquilo de que não conse- além das conversas inquietas entre os pais que ele escuta aqui e ali - uma visão do mundo baseada no ódio e na desconfiança, guiam livrar-se - aquilo de que nem mesmo teriam modo de um mundo dividido entre "eles" e "nós". Faz com que ele deixe começar a livrar-se.O fato de serem judeus vinha de serem quem de ser um americano judeu e se transforme em judeu america- eram, tanto quanto o fato de serem americanos. [...] (p. 220) no ou, aos olhos dos seus inimigos, simplesmente um judeu na América. Ao despertá-Io cedo demais para a "realidade", o com- A descrição que Roth nos apresenta do judaísmo de pes- soas como os seus pais é totalmente afirmativa. Não há sinal aqui pIá o despoja da sua infância. Ou, diriam os sionistas, o complá o despoja das suas ilusões. Um judeu não pode esperar outro lar do que ele sugere noutras passagens: que, para alguns judeus, a no planeta que não a pátria judaica. religião reduzida a um código de ética mais algumas práticas sociais pode ser vista como árida demais, e que para darem um sentido mais completo às suas vidas podem mergulhar histerica- O que é ser judeu na América? Um judeu tem lugar na América? Pode a América ser o verdadeiro lar de um judeu? mente em algum culto (a mulher de Mickey Sabbath em O tea- tro de Sabbath) ou na violência revolucionária (Meredith Levov Herman e Bess Roth, os pais de Philip, nasceram nos Estados em Pastoral americana). Unidos no início do século xx, de pais imigrantes. Amam o país A condição judaica de Herman Roth e dos seus semelhan- em que nasceram e trabalham muito para abrir caminho nele. Philip presta um tributo à geração de seus pais que não deixa de tes pode ser desprovida de uma dimensão metafísica, mas corpo- ter suas nuances de elegia: rifica uma química que nem os sionistas nem os arquitetos do programa Nossa Terra 42 conseguem compreender. A condição Era o trabalho que identificava e distinguia nossos vizinhos para de judeu americano é um composto, e não uma mistura sim- mim, mais que a religião. Ninguém [...] tinha barba ou se vestiaao ples. Não é possível subtrair simplesmente um dos seus elemen- estilo antiquado do Velho Mundo ou usava solidéu [...] Os adul- tos ("judeu" ou "americano") e ficar com o outro. Ser americano tos não eram mais judeus praticantes de maneira manifesta e re- _ falar a língua americana, participar do modo de vida america- conhecível [...] [O único] desconhecido que usava uma barba... no, estar impregnado da cultura americana - não requer que o indivíduo deixe de ser judeu nem acarreta uma perda do ju- [e] aparecia de alguns em alguns meses depois que anoitecia para daísmo; no sentido oposto, ser relocado arbitrariamente de uma pedir, em inglês precário, uma contribuição para a criação de uma comunidade judaica a uma "americana" (isto é, de gentios) não pátria nacional judaica na Palestina ... parecia incapaz de admi- tir que já tínhamos uma pátria havia três gerações [...] (p. 34) faz de ninguém mais americano do que era. O mesmo se aplica [ ...] ou se aplicava aos judeus da Europa. Roth cita com aprovação Esses judeus não precisavam de termos amplos de referência, a observação mordaz de Aharon Appelfeld: "Sempre gostei dos de profissãode fé ou de credo doutrinário para serem judeus, e cer- judeus assimilados, porque é neles que o caráter judeu, e tam- 285 284
  • 143. bém, talvez, o destino judaico, apresenta-se concentrado com volta para Newark numa cadeira de rodas, medalha no peito e maior força".? uma raiva surda contra tudo e contra todos. Com determinação Depois da eleição de Lindbergh, Herman leva sua família sinistra, Alvin ingressa numa vida de crimes, livrando-se do pas- numa viagem a Washington, onde espera que o contato com os sado militante antifascista que passa a considerar um tolo capri- monumentos duradouros da democracia americana consiga eli- cho juvenil. Com cicatrizes mais profundas que as dos dois ir- minar o travo desagradável dos acontecimentos recentes. Em mãos, Alvin está no livro para nos recordar, mais sobriamente, o vez disso, a família aprende que sabor vem adquirindo a vida pú- que a história real pode fazer em matéria de destruição das vi- blica na América mais ampla. São expulsos do seu quarto de ho- das humanas. tel sob um falso pretexto, e submetidos a ameaças antissemitas de outros turistas. O triunfo de Lindbergh foi claramente enten- Embora a mente através da qual os acontecimentos de 1940-2 dido pelos americanos médios como um sinal de abertura da tem- nos são apresentados seja uma mente de criança, o relato que porada de caça. lemos não é nunca faux-naíf A voz que nos fala é a da criança já Um homem desconhecido se associa à família Roth. Afirma crescida, mas submetida à visão que tinha quando mais nova e, ser guia profissional e não aceita ser dispensado. Quem será ele, em contra partida, emprestando a essa identidade mais jovem uma na verdade? Em seu novo estado de paranoia, o casal Roth sus- percepção concentrada de si mesma que criança alguma possui. peita de que seja um agente do FEl, e decidem testá-Io. Mas ele Não há nenhum sinal particular de que essa voz adulta che- passa em todas as provas. A verdade, bem mais simples, é que ele é gue a nós da primeira década do século XXI (mal se encontra no exatamente o que diz ser: um guia turístico, e dos bons, ainda livro alguma perspectiva do futuro além de 1945), mas diante dos por cima. Mas na nova América nada era simples. Uma viagem vestígios autobiográficos podemos considerar que pertence ao destinada a confirmar aos meninos o legado comum a todos se Philip Roth histórico ou a seu alter ego ficcional "Philip Roth", transforma numa verdadeira aula de exclusão. Philip: "Paraíso de cujo repertório o conhecimento trazido pela retrospectiva é patriótico, o Jardim do Éden americano se estendia à nossa fren- deliberadamente excluído e que consegue deixar passar todas as te, e ali nos encolhemos uns contra os outros, a família expul- oportunidades de mostrar-se inteligente à custa da criança. Se sa". Nos termos mais crus, é isto que o complô do título de Roth se puder falar do afeto de um homem adulto pela criança que pretende e, no nível do imaginário, consegue: expulsar os judeus ele próprio foi, o afeto respeitoso que o escritor demonstra pelo da América. Juden raus. Eis o que Philip não consegue esquecer. jovem Philip é um dos aspectos mais atraentes do livro. A modu- (p. 60) lação entre o frescor de uma visão jovem e a percepção adul- E para finalmente pôr em perspectiva qualquer cicatriz me- ta é conduzida com tamanha habilidade que perdemos a noção tafórica: não devemos nos esquecer do terceiro filho da família de quem está falando em nossos ouvidos num dado momento, Roth: Alvin, o agregado de 21 anos, órfão no sentido próprio da a criança ou o homem feito. Só raramente a mão de Roth falha, palavra, que foge de casa para se alistar no exército canadense por exemplo, quando o menino Philip vê sua tia Evelyn como e lutar contra os nazistas, perde uma perna de forma inglória e realmente é: "Seu belo rosto, com seus traços grandes e a ma- 286 287
  • 144. quiagem aplicada em camadas grossas, de repente me pareceu seu filho, fossem despachados para o Kentucky. Para seu desalen- absurdo - o rosto carnal de [uma] mania insaciável". (p. 217) to, a tia atende a seu pedido. Meses depois de ter chegado à cida- Submeter-se à visão de mundo de uma criança significa que de de Danville, a mãe de Seldon é atraída para uma armadilha Roth precisa abster-se de toda uma gama de recursos estilísticos, e assassinada por milicianos antissemitas, e Seldon precisa ser em especial o gume mais afiado da ironia e as perorações e ras- devolvido a N ewark, agora órfão. Assim, Philip se vê diante da gos de eloquência desesperada que distinguem romances como culpa não só de ter enviado a sra. Wishnow para a morte como O animal agonizante (2001) e o grande O teatro de Sabbath ainda do castigo do convívio diário compulsório com Seldon. (1995), eloquência desencadeada pela resistência bruta do mun- Na noite do desaparecimento de sua mãe, Seldon telefo- do à vontade humana ou pela perspectiva da extinção que se na para Newark (não conhece ninguém no Kentucky), e a sra. avizinha. Por outro lado, põe Roth fora do alcance de William Roth, lançando mão de todos os seus recursos de firmeza mater- Faulkner, a influência de cuja prosa carregada às vezes o pre- na, desincumbe-se de nada menos que a tarefa de conservar a judica nos anos recentes, especialmente em A mancha huma- sanidade daquele menino nervoso. A conversa entre os dois pelo na (2000). interurbano contém alguns dos diálogos mais dilacerantes (sabe- Roth só ganhou em estatura como escritor à medida que foi mos que a mãe de Seldon morreu, mas nem Seldon nem a sra. envelhecendo. No seu melhor, ele é hoje um romancista de al- Roth sabem disso, embora ela tema o pior) e ainda assim mais cance autenticamente trágico; no seu ápice, é capaz de atingir engraçados que Roth jamais escreveu. alturas shakespeareanas. Pelo padrão estabelecido por O teatro de Sabbath, Complô contra a América não é uma de suas obras Um romance histórico, por definição, transcorre num pas- maiores. O que ela oferece a seus leitores, no lugar da tragédia, sado histórico real. O passado em que Complô contra a América é um páthos dilacerante que se salva do sentimentalismo pelo se desenrola não é real. Desse modo, o Complô, em termos de humor aguçado, um desempenho de alto risco e no fio da nava- gênero, não é propriamente um romance histórico mas um ro- lha que Roth executa sem um escorregão. mance distópico, embora fora do comum, pois normalmente os A personagem que apresenta o páthos mais tocante não é o romances distópicos transcorrem no futuro, um futuro rumo ao jovem Philip - muito embora quando sai pela noite agarrado a qual o presente parece tender. O 1984 de George Orwell é um ro- seu álbum de selos, determinado a voltar a ser um simples garo- mance distópico exemplar, escrito da perspectiva de um 1948 em to, Philip seja uma figura bastante patética -, mas seu vizinho que a ameaça do controle total parecia assustadoramente forte. e sombra, Seldon Wishnow. Como Philip, Seldon é um meni- No típico romance distópico, existe uma conveniente la- no inteligente, impressionável e obediente. Também sofre de um cuna entre o presente e o futuro - conveniente porque libera azar fatal, sendo uma vítima de nascença, e Philip não quer na-o o autor da obrigação de demonstrar passo a passo como o pre- da com ele (Seldon, claro, adora Philip). Em seus esforços para sente se transforma nesse futuro. E ele só precisa nos apresentar livrar-se da maldição de Seldon, Philip sugere à tia Evelyn, que duas linhas de sutura: os imaginários anos Lindbergh devem ser trabalha no escritório de relocação, que os Wishnow, a viúva e cosidos de um lado à história real da qual divergem a partir de 288 289
  • 145. ,:t ~, ':( meados de 1940, e na outra ponta à história real em que desem- bocam, no final de 1942. À luz dos padrões mais estritos a cirur- gia de Roth é um fracasso, e só poderia mesmo fracassar. Mes- Na vida real, Charles Lindbergh reagiu a Pearl Harbor jun- mo sob o controle de um governo obstinadamente isolacionista, tando-se ao esforço de guerra e participando, como piloto, de a história americana não teria como avançar independentemen- raids de bombardeio contra os japoneses. Morreu em 1974. O te da história mundial. A América, ausentando-se do palco inter- que acontecerá com o Lindbergh da ficção depois de outubro de nacional por dois anos, teria inevitavelmente afetado o curso da 1942, quando decola num voo solo e nunca mais é visto? Nenhuma resposta sólida nos é fornecida, só rumores. De guerra e assim mudado o mundo. acordo com um deles, Lindbergh teria sido forçado a pousar em Se, por sua natureza, a história alternativa de Roth não solo canadense por aviões britânicos. Segundo os alemães, teria tem como passar no teste da realidade, passará pelo teste me- sido sequestrado pelo com pIá judaico internacional. Os britâ- nos exigente da plausibilidade? Será plausível, por exemplo, que nicos afirmam que ele teria pousado com seu avião nas águas o Congresso americano não se incomodasse com o espetáculo do Atlântico, sendo recolhido por um submarino alemão que o do avanço das forças japonesas pela Indonésia, Índia e Austrá- conduzira ao Reich. Anne Morrow Lindbergh divulga uma his- lia, criando assim as bases de uma vasta Esfera de Prosperidade tória segundo a qual o filho do casal não teria sido assassinado Mútua governada a partir de Tóquio? Será plausível que aquilo depois do sequestro de 1932, mas levado para a Alemanha, onde que as Forças Armadas americanas levaram quatro anos de his- era usado como refém para garantir que seus pais cumprissem as tória real para conseguir (1942-5) pudesse ter sido realizado nos ordens de seus controladores alemães; e que o próprio Charles três anos da história revista (1943-5)? Lindbergh tivera seu avião derrubado por agentes alemães por- Perguntas como essas seriam menos relevantes se Roth se que deixara de ser considerado merecedor de confiança. Diante tivesse entreguado a uma fábula especulativa do tipo "e se ...?". dessas versões mutuamente excludentes, tudo que nós, os leito- Mas o desafio que ele se propõe a enfrentar é mais rigoroso. Roth res dessa história fictícia, podemos dizer é que ficamos sem saber escreve um romance realista sobre eventos imaginários. Da pre- o que terá havido com Lindbergh e, o que é mais grave, sem sa- missa da eleição de um fascista para a Casa Branca, tudo mais ber por que a presidência ou a conspiração de Lindbergh preci- precisa decorrer segundo a lógica da plausibilidade. E é por isso sava acabar no momento em que acaba, dado que a resistência a que, a fim de explicar a inação americana, Roth precisa dar-se ao ela ainda não ultrapassara o estágio da mera oratória. trabalho de criar todo um emaranhado de acordos secretos entre O espírito que reina de certa distância sobre as últimas pá- a Alemanha nazista e o Japão imperial de um lado e, de outro, ginas de Complô contra a América, que soam um tanto apressa- o fantoche de ambos instalado na Casa Branca. É por isso que das, é o de Jorge Luis Borges. Mas Borges teria utilizado melhor ele precisa reformar a cronologia da guerra. Confrontado ao pa- a camada sólida de pesquisa histórica com base na qual Roth drão de plausibilidade a que ele próprio se submete, porém, esse edificou seu livro. Enquanto Lindbergh desaparece em pleno ar, pano de fundo histórico mostra-se mais que precário. sem deixar nada para trás, também seu presidente desaparece, 29° 291
  • 146. deixando apenas rastros na mente do garoto que, ao crescer, irá tornar-se o escritor Philip Roth. Com exceção do livro que temos 19. Nadine Gordimer nas mãos, não existe nenhum outro legado do governo Lindbergh. Esses dois anos fantasmagóricos e paralelos da história america- na - e, como o mundo é indivisível, da história do mundo - poderiam perfeitamente não ter ocorrido. O que Borges sabia é que os caminhos da história são mais complexos e mais misteriosos do que isso. Se tivesse havido um presidente Lindbergh, nossas vidas hoje seriam diferentes e pro- vavelmente bem piores, embora não tenhamos como saber ao certo exatamente de que modo. (2°°4) Num conto escrito por Nadine Gordimer na década de 1980, um casal britânico da classe trabalhadora hospeda como pensionista um rapaz tranquilo e estudioso do Oriente Médio. Ele trava relações íntimas com a filha do casal, engravida a moça e propõe-lhe casamento. Os pais consentem com alguma hesi- tação. Mas, antes que ele possa casar-se com a jovem, anuncia o pensionista, ela precisa viajar desacompanhada até seu país na- tal para conhecer a família dele. Quando a leva ao aeroporto para se despedir, ele enfia uma bomba em sua mala. O avião explode; todos os passageiros morrem, inclusive sua suposta futura noiva iludida e o filho que ela levava no ventre! Não se vê no conto indicação alguma de que Gordimer cul- tive qualquer interesse pela motivação que o pensionista pudesse ter para um gesto tão desumano, na verdade diabólico, e de ma- neira mais geral pelas forças que atuam sobre os jovens muçul- manos e os levam a cometer atos de terror. Dez anos mais tarde, como para penitenciar-se por essa falta de curiosidade, ela revi- sita a situação nuclear do conto - o árabe que, por motivos pró- 292 293
  • 147. prios, corteja e se casa com uma mulher ocidental - e descobre real. Ele prefere o pai dela e os colegas banqueiros do sogro, de nela a semente de uma linha de desenvolvimento muito mais cujos valores grosseiros e vazio moral Julie se envergonha, e que original e interessante. O romance O engate (2001) é o fruto des- por sua vez nada querem ter a ver com o estrangeiro sem tostão sa reexploração.2 com quem ela se meteu. Julie Summers é uma sul-africana branca de família rica. É Abdu pressiona Julie para que mobilize a família em favor jovem, tem um bom emprego, tudo corre bem na sua vida. Um de sua luta para tornar-se um imigrante legalizado. Mas começa dia seu carro enguiça no centro da cidade. O mecânico que o tarde demais: logo as autoridades da imigração avisam-no de que conserta é bonito, de olhos negros, estrangeiro. Ficam amigos; vai ser deportado. mais adiante, começam um caso amoroso. A essa altura ele julga que Julie irá abandoná-Io, como ele Logo descobrimos que Abdu, como ele diz chamar-se, é mais próprio abandonaria qualquer pessoa cuja utilidade para ele ti- um "ilegal" entre as centenas de milhares de estrangeiros que vesse expirado. Em vez disso, ela sai e compra duas passagens de vivem na África do Sul sem documentos, trabalhando à margem avião, que exibe para ele sem dizer nada. O gesto o deixa como- da economia formal. A maioria desses ilegais vem de outros paí- vido. Por um momento ele a vê em todo seu mistério, uma cria- ses africanos, mas Abdu vem de um país não identificado do tura autônoma dotada de esperanças e desejos próprios. E então Oriente Médio, um país desprovido de petróleo ou qualquer ou- as velhas barreiras tornam a se erguer: se aquela mulher se afer- tro recurso natural. A África do Sul é uma das várias rotas que ra a ele, deve ser porque sexualmente não consegue largá-Io ou Abdu já tentara para fugir da pobreza e do atraso: passara perío- porque se entregou a algum complicado jogo moral, do tipo que dos na Alemanha e na Grã-Bretanha, respondendo por trabalhos só os ricos desocupados têm tempo de disputar. que faziam os locais torcerem o nariz. A decisão tomada por Julie, de acompanhá-Io de volta a seu Pela terra em que nasceu Abdu só sente desprezo. Não é país, cria-lhe um problema de ordem prática. Ele não pode apre- nem mesmo um país digno desse nome, diz ele, só um trecho de sentar à sua família uma mulher que não se diferencie de uma deserto demarcado por linhas que algum europeu morto tinha meretriz. Primeiro precisa casar-se com ela. E então eles se casam traçado num mapa muito tempo atrás. Sua ambição mais ardo- às pressas num cartório. rosa era tornar-se um imigrante legal, de preferência em alguma Por que Julie dá o passo momentoso e aparentemente in- democracia rica do Ocidente. sensato de abandonar uma vida nada insatisfatória, num meio O sexo entre Abdu e Julie é maravilhoso; quanto ao resto, nada desinteressante, para fugir para um recanto esquecido do têm muito pouco em comum. Ela lê Dostoiévski; ele lê os jor- mundo com um homem que, e não tem como deixar de saber nais. Ela vê as pessoas por um enquadramento de raça e de classe; disso, não a ama, e que chega a acender e apagar o próprio sorri- ele as vê como legais ou ilegais. Ele não gosta do círculo de ami- so como um modo de controlá-Ia? gos dela, membros descontentes da nova íntellígentsía sul-africa- Um dos motivos é o sexo, com o significado que Julie, e na pós-apartheid, tanto negros quanto brancos, cujo estilo de vida Gordimer por trás dela, atribui ao sexo. As palavras podem men- ele reprova e os quais considera ingênuos e ignorantes do mundo tir, mas o sexo sempre diz a verdade. Como o sexo com Abdu 295 294
  • 148. continua a ser intensamente satisfatório, deve haver algum po- ra a capital, onde aplica seu tempo em percorrer as embaixadas tencial profundamente oculto para aquela relação. Além disso, e perseguir contatos em busca do difícil visto para o Ocidente. os sentimentos de Julie por Abdu ainda têm algo de maternal e Para Hamlet, ver-se obrigado à deferência diante de um bu- protetor. Por baixo da superfície do seu duro menosprezo de ma- rocrata é um dos insultos da vida cotidiana que envenenam a von- cho, ela o acha pungentemente infantil e vulnerável, e não seria tade de viver. Nos tempos modernos, ninguém se vê submetido capaz de abandoná-Io. a maior insolência de ofício que um cidadão do Terceiro Mundo Acima de tudo, porém, Julie está cansada da África do Sul que requeira um visto. Ibrahim, entretanto, está disposto a en- de um modo que, embora possa ser difícil achar crível em al- golir toda a insolência que precisar, contanto que possa manter acesa a chama da Residência Permanente. Os Residentes Perma- guém tão jovem, é muito fácil de acreditar numa pessoa da ge- ração de Gordimer - cansada do profundo desgaste diário que nentes são os donos do mundo. De posse dos seus papéis mági- uin país com uma história centenária de espoliação e violência, cos, todas as portas se abrem para eles. além dos desalentadores contrastes entre a pobreza e a prosperi- O que Ibrahim tem a oferecer em troca de uma vida nova é dade, impõe a uma consciência moral. Melancolicamente, Julie muito pouco: um diploma duvidoso de uma obscura universida- de árabe, um domínio vacilante do inglês, uma ânsia profun- cita para Abdu (que é indiferente à poesia) os versos de William da de abandonar a identidade com que nasceu, uma disposição Plomer: "Vamos para outro país/ Nem o seu nem o meu/ E co- estratégica a aceitar o Ocidente nos termos da avaliação que este meçar de novo." ["Let us go to another country/ Not yours or faz de si mesmo e, agora, uma esposa-troféu, do "tipo certo de minei And start again."]. (p. 88) Se James Baldwin já não se tives- estrangeira". (p. 140) se apropriado dele, Another country [Outro país] seria um ótimo Enquanto espera notícias do alto, Ibrahim passa os dias nos título para o livro de Gordimer, captando a inquietação que mo- cafés com seus amigos, falando de política. Seus amigos são re- ve seu duo de protagonistas - começar uma vida nova - muito presentativos do jovem nacionalismo árabe. Querem o mundo melhor do que O engate. moderno e seus aparelhos, mas não querem ser esmagados por ele. Querem livrar-se dos governos corruptos, pela revolução se E assim Julie e Abdu chegam ao desprezado país de origem for o caso, contanto que a revolução possa acomodar a moral e a de Abdu, e o verdadeiro nome do sequestrador de Julie é revela- religião tradicionais. do: Ibrahim ibn Musa, cujos três irmãos são, respectivamente, aju- Ibrahim mantém um ceticismo silencioso. Envolver-se na dante de açougueiro, garçom e empregado doméstico. Ibrahim política do Oriente Médio irá condená-Io, a seu ver, a uma resi- chega ao lar não coberto de glória, como o filho que construiu dência permanente na pobreza e no atraso. Suas aspirações são uma vida de sucesso no estrangeiro, mas como um deportado, de outro tipo; elas o animam de um modo que ele não consegue um rejeitado. articular, mantendo-o apartado dos seus semelhantes. Tendo instalado a mulher aos cuidados da mãe na desolada A Austrália o recusa, depois o Canadá e a Suécia. Mas ao cidadezinha do interior onde vive sua família, Ibrahim parte pa- cabo de um ano inteiro de petições os Estados Unidos lhe con- 296 297
  • 149. cedem dois vistos. Ibrahim é tomado de júbilo. Ele e Julie irão tava habituada. Mas logo ela se submete e acaba por se transfor- viver na Califórnia ("É onde todo mundo quer viver"); ele irá mar numa boa nora, desicumbindo-se das tarefas domésticas ingressar no mundo da informática, ou então, com a ajuda do pa- mais humildes, contribuindo com a comunidade com aulas gra- drasto de Julie, para o negócio dos cassinos. (p. 238) E não con- tuitas de inglês, encetando o estudo do Alcorão e, de maneira segue acreditar quando Julie lhe comunica que não pretende ir geral, adaptando-se àquele novo ritmo de vida. com ele. Prefere ficar com a família dele, diz ela; encontrou seu O que não é mero jogo de cena, nem um simples exerCÍ- outro país, e não é a América, é aqui. cio de turismo cultural. Sem a menor ambiguidade, é-nos dado a entender que, no decorrer do ano que passa na casa da família de Os amigos de Ibrahim querem um Islã novo e melhor, que incorpore alguns aspectos bem definidos do Ocidente. A famí- lia de Ibrahim tem a mesma visão, embora de uma forma mais I I ~ I :li Ibrahim, Julie sofre uma transformação fundamental, de nature- za pelo menos espiritual, senão religiosa. Começa a compreen- der o que pode significar fazer parte de uma família; e também I pé no chão. O que querem são carros grandes, telenovelas, celu- começa a compreender como a vida pode ser tão profundamente lares, eletrodomésticos. Quanto ao resto do Ocidente, preferem impregnada pelo código islâmico a ponto de o comportamento I manter-se a distância. O Ocidente é um "mundo de falsos deu- cotidiano e a observância religiosa mal se distinguem. ses". (p. 189) Não conseguem entender por que Ibrahim resol- E nada disso ocorre porque a família de Ibrahim seja espe- veu ir para lá. Uma das explicações mais plausíveis para a democracia do I I cialmente exemplar. Embora a mãe de Ibrahim, que se transfor- ma num modelo para Julie e aos poucos se afeiçoa à esposa es- tipo ocidental, não obstante todo um século de movimentos e levantes de inspiração democrática, não ter conseguido firmar raízes no Oriente Médio é que os nacionalistas árabes sempre I 'I I .;i! trangeira do filho, leve uma vida profundamente espiritual, os outros membros da família são indivíduos em nada excepcionais do seu lugar e do seu tempo. Tampouco a transformação ocorre quiseram determinar quais elementos da cornucópia do Ociden- porque ela se entregue ao Islã. Seu desenvolvimento espiritual te eles se dispunham a admitir, escolhendo a ciência e a tecno- se dá por efeito daquilo que só se pode descrever como o espírito logia e/ou os sistemas educacionais e/ou as instituições de governo do lugar. A poucos quarteirões da casa da família começa o de- sem jamais se prontificarem a absorver também seus fundamen- serto. Julie adquire o hábito de acordar pouco antes do amanhe- tos filosóficos - os falsos deuses do racionalismo, do ceticismo e cer e sentar-se à beira do deserto, deixando-se penetrar por ele. do materialismo. Se, nesse aspecto, os amigos de Ibrahim estão 1 Ibrahim não quer saber do compromisso entre sua mulher prestes a cair na mesma armadilha que seus pais e avós, enquan- e o deserto, que considera uma tola brincadeira romântica. A pró- to Ibrahim persegue simplesmente uma ilusão, qual é a posição pria Julie conhece bem a romantização ocidental do deserto, o de Julie nisso tudo? que para ela é a "farsa" de pessoas como T. E. Lawrence e Hes- Mergulhada numa família do Oriente Médio, Julie num pri- ter Stanhope. Para ela o deserto tem outro significado, que só meiro momento desanima diante da posição inferior que ocupa ! consegue definir dizendo que" está sempre ali". É difícil dei- ali por ser mulher, sem falar na falta dos confortos aos quais es- xar de inferir que, em seu confronto solitário e diário com o de- 298 299
  • 150. J a que pertence fica mais claro depois que um enredo secundá- I serto, essa jovem mulher, que já deu as costas aos modos do Oci- ~ dente materialista em quase todas as formas mais importantes, rio envolvendo um tio ginecologista de Julie, falsamente acu- sado de conduta antiprofissional - enredo secundário que só está aprendendo a enfrentar a própria morte. (pp. 198,229) I 1 apresenta uma conexão muito tênue com a história de Julie e il: Em outro romance de Gordimer, fuly's People (1981), trans- l' Ibrahim - é encerrado. :J Há outros modos em que O engate é menos que perfeito i corrido num futuro que por sorte nunca chegou a acontecer, a 'I em sua arte narrativa. O enredo principal, por exemplo, baseia-se África do Sul está mergulhada numa guerra civil. Um casal bran- co cujo mundo foi virado de cabeça para baixo procura refúgio numa área isolada do interior, sob a proteção de um antigo cria- I i õ€" iI; numa premissa implausível. Ibrahim não tinha a necessidade objetiva de humilhar-se para obter um visto. Sua mulher, com uma formação acadêmica dispendiosa e alguma experiência nos do negro. Sua visão do mundo sofre uma revisão que os deixa ;a bem mais humildes. Como ocorre em O engate, é a mulher e negócios, dona de investimentos feitos em seu nome e tendo a I não o homem quem tem a sensibilidade e a maleabilidade ne- mãe casada com um americano rico, poderia num piscar de olhos cessárias para crescer a partir da experiência. obter a abençoada condição de residente nos Estados Unidos, ! trazendo Ibrahim sob a asa marital. Se Gordimer escolhe seguir I O engate tem uma dimensão interior, espiritual, ausente em fuly's People. Mas sua motivação política é comparável, não uma linha de enredo implausível, só pode ser porque é impe- rativo que sua heroína termine no Oriente Médio árabe, e não só na maneira como explora a mente do migrante impelido pela economia, ou o tipo de migrante que é assim impelido, mas em I 'I "'iÉ na Califórnia. i sua crítica e, em última instância, em sua recusa dos falsos deu- ~ Apesar dessas imperfeições, contudo, O engate ainda é um t ses do Ocidente - capitaneados pelo deus do capital e do mer- livro profundamente interessante, tanto pelo que sugere quanto cado, a cujos caprichos a África do Sul de Julie se entregou sem à trajetória que a obra de Gordimer vem seguindo quanto pelos reservas e que estendeu seu domínio inclusive ao desprezado dois tipos que ela examina em suas páginas: o jovem confuso e areal de onde vem Ibrahim (o pai de Ibrahim ganha um salário conflitado, sem qualquer curiosidade quanto à história e à cultu- modesto como testa de ferro numa operação internacional de ra que o formaram e, mesmo cego para elas, ligado à mãe em sua lavagem de dinheiro). vida psíquica mais profunda, desprezando os desejos do próprio 1 corpo, imaginando-se capaz de reinventar-se através da mudança Em sua inspiração, O engate é claramente devedor do con- to "A adúltera", de Albert Camus, em que a protagonista, uma I para outro continente; e a jovem sem qualidades excepcionais franco-argelina, escapa ao marido toda noite para expor-se ao que confia nos seus impulsos e acaba se encontrando através da deserto e experimentar o êxtase místico, tanto físico quanto espi- humildade. Não apenas um livro interessante, na verdade, mas ritual, que ele induz.3 Apesar de sua extensão, O engate é mais um livro surpreendente: difícil imaginar uma apresentação mais uma novela que um romance, de alcance mais estreito que compassiva e mais Íntima das vidas dos muçulmanos comuns do outros produtos da fase mais importante de Gordimer, como O que encontramos aqui, e produzida além do mais pela mão de amante da natureza (1974) e A filha de Burger (1979). O gênero uma escritora judia. 301 300 -~;
  • 151. r ,): * ,~ I de um sistema reprodutivo funcional. Recusando esse papel, ela i i '" decide abortar o filho que leva no ventre, a criança que poderia Se houve um princípio único a animar a obra de Gordimer ter acolhido a alma desabrigada. entre os anos 1960 e a democratização da África do Sul nos anos 1990, foi a busca da justiça. As pessoas bondosas que ela apresen- ta são incapazes de viver num estado de injustiça, ou auferir ga- I ~ Noutro dos contos da série "Karma", um casal de sul-afri- canas lésbicas, brancas e liberais, com uma história dolorosa de militância contra o apartheid, decide ter um filho. Mas aí nhos graças a ele; aqueles que submete às suas interrogações mais frias são os que encontram maneiras de calar suas consciências e acomodar-se ao mundo tal como ele é. A justiça por que Gordimer anseia é mais ampla que uma I lhes ocorre que nunca poderão ter certeza se o esperma que obterão no banco não terá vindo de algum torturador le tempo. Com medo de que a criatura que tragam ao mundo daque- possa reencarnar o espírito da antiga África do Sul, elas recuam I ordem social justa e um tratamento político justo. De maneira da sua decisão. mais difícil de definir, ela almeja também que as relações sejam Nessas duas histórias, a alma bate à porta apenas para ter justas no âmbito privado. Pode-se dizer, assim, que a justiça de I sua entrada barrada; para o bem dela, as mulheres que guardam Gordimer tem uma qualidade ideal. O que não se pode dizer é I I a passagem decidem não a admitir no mundo tal qual ele é no que tivesse uma dimensão espiritual. A imersão de Julie Summers presente. Noutro conto da série, porém, a alma desconcertada em si mesma, sua comunhão com a inumanidade do deserto, I recebe a concessão não só da encarnação como de uma dupla indica assim um novo ponto de partida na obra de Gordimer. encarnação, numa sul-africana encerrada no limbo pelas leis de Dois anos depois de O engate, Gordimer publicou uma co- classificação racial do antigo Estado dominado pelo apartheid, letânea de contos, Loot, em que o aspecto espiritual do seu pen- com uma identidade genética que a identifica como "branca" e samento é levado ainda mais longe, embora não, é bom assina- uma identidade social que a identifica como "de cor". lar, mais fundo. A pérola da coletânea é um ciclo de contos de A série "Karma" combina crítica histórica, especialmente 99 páginas intitulado "Karma", em que, com mais que um me- da nova ordem mundial, com observações impiedosas, algumas ro aceno a Italo Calvino, Gordimer acompanha as aventuras de uma alma à medida que reencarna ou deixa de reencarnar em cósmicas em sua perspectiva (E isto também passará, parece di- várias vidas humanas. zer Gordimer) e outras ainda de ordem metaficcional: participar A mais poderosa dessas narrativas trata da camareira de um de uma vida após a outra, reflete a alma, é muito parecido com hotel de Moscou que se apaixona por um empresário italiano de a condição do romancista, que habita uma personagem atrás da outra. visita e se deixa levar para Milão. Lá, cansando-se dela, o execu- tivo a casa com um primo distante, açougueiro e criador de ga- O outro texto substancial de Loot foi escrito na veia de Gor- do. Numa visita ao lugar onde este cria seus animais, ela reco- dimer que consideramos mais familiar: um relato ao mundo so- nhece pela primeira vez o que representa para aqueles europeus bre o estado das coisas na África, na forma de um conto intitula- do Ocidente: um animal, uma reprodutora, uma fêmea dotada do "Mission statement" [Relatório de missão]. 3°2 3°3
  • 152. Roberta Blayne é inglesa, divorciada, com quarenta e pou- do a história de como, uma vez por semana, mandava um em- cos anos, mulher contida e sensata. Trabalha para um organis- pregado africano ir buscar uma caixa de uísque no depósito da mo de assistência internacional que, por quase todos os padrões, sede da empresa, uma viagem que levava vários dias a pé. Q em- seria considerado muito esclarecido: sua atuação é pautada pela pregado voltava com a caixa na cabeça, "e que cabeças eles [os visão de que a África não é "ontologicamente incurável", em- africanos] têm ... chatas e grossas como uma tora de madeira", bora a cura ainda não tenha sido descoberta. Com essa opinião dizia o avô, provocando as gargalhadas dos amigos. (p. 42) concorda Roberta, que representa o pessimismo discreto quanto N um momento comovente, Roberta, aninhada nos braços à melhoria do mundo presente em todo o livro.4 de Chabruma, prorrompe em prantos devido a esse legado de No país africano não identificado de língua inglesa para o desprezo racista, resistindo a custo ao impulso de abraçar e aca- qual é enviada, Roberta conhece um alto funcionário do go- riciar a maltratada e ofendida cabeça do amante. Como escrito- verno, Gladstone Shadrack Chabruma, um homem casado, tão ra, é nessas epifanias que Gordimer se revela mais poderosa: nes- contido e reservado quanto ela, com quem trava um prolonga- ses gestos ou configurações dos corpos em que a verdade de uma do caso amoroso. Para todos os efeitos, os dois se transformam situação emerge crua e completamente. num casal. Chabruma tenta consolar o pranto de Roberta. Essa fala Quando se aproxima o final da missão de Roberta, Chabru- racista era "a tradição deles", diz; ela não precisa sentir-se culpa- ma lhe propõe que ela permaneça no país. Ele se casará com ela: da por isso. (p. 65) Mas isso a deixa num impasse: se for sentir-se como sua segunda esposa, a esposa para ocasiões oficiais, ela po- liberada do fardo do passado porque a história é apenas a histó- derá dar apoio ao avanço da carreira dele ao mesmo tempo em ria, como poderá rejeitar o arg~mento de Chabruma de que os que progride na sua própria. É uma solução tipicamente africa- costumes são apenas os costumes, e que sua tradição lhe permi- na: a primeira esposa de Chabruma, mulher sem qualquer edu- te duas esposas? O conto se encerra com Roberta em profundo cação formal, definida por uma colega de Roberta como "uma desconforto. Se aceitar a proposta de Chabruma, não será ape- mulher caseira de um tipo novo, [uma] camponesa urbana", há nas por um desejo de penitenciar-se do passado? E se recusar - de se ajustar à situação. (p. 53) não será apenas pelo orgulho de mulher ocidental que exige o Como acontece tantas vezes nas obras de Gordimer, esse tratamento que lhe é devido? conto opera na interseção entre o público e o privado. Embora Loot contém ainda muitos contos ligeiros e menos me- Roberta tenha nascido e sido criada na Inglaterra, descobrimos moráveis, em comparação com as coletâneas anteriores como que tem um esqueleto africano no armário. Na verdade, não exis- Livíngstone's Companíons (1972), Somethíng Qut There (1980) te ninguém na Inglaterra, é o que somos levados a perceber - ou A Soldíer's Embrace (1984). Um dos seus contos mais curtos, pelo menos ninguém de uma certa classe social -, a salvo da "The Diamond Mine", merece no entanto ser assinalado. É uma sombra do envolvimento imperial daquele país com a África. No narrativa maravilhosamente competente e confiante sobre o des- caso de Roberta, um avô seu foi diretor de uma mina naquela pertar sexual de uma menina, e nos lembra como Gordimer sem- mesma província, avô de quem ela se lembra vagamente contan- pre escreveu bem sobre o sexo. 3°4 3°5
  • 153. ':' * * soas de cuja luta ela prestava seu testemunho histórico, o nome de Zola, para não falar do nome de Proust, não traziam qualquer Desde o início da sua carreira, Gordimer se viu às voltas ressonância - que ela era europeia demais para importar para com a questão do lugar, presente e futuro, que ela própria ocupa as pessoas que mais importavam para ela. Seus ensaios desse pe- na história. E a questão ainda se bifurca: primeiro, qual será o ríodo mostram-na esforçando-se inconclusivamente em torno da veredicto da história sobre o projeto europeu de colonização da pergunta do que significava escrever para um povo - escrever África subsaariana, em que ela teve participação deliberada? E, em favor dele e em nome dele, além de ser lida por ele.6 segundo, que papel histórico se encontra disponível para uma Com o fim do apartheid e o afrouxamento dos imperativos escritora como ela, nascida numa comunidade colonial tardia? ideológicos que nos tempos desse regime pairavam sobre todos O arcabouço ético de toda a sua obra foi definido na década os assuntos culturais, Gordimer se viu liberada dessa autoflage- de 1950, quando leu pela primeira vez Jean-Paul Sartre e Albert lação. As obras de ficção que publicou no novo século mostram Camus, este último nascido na Argélia. Sob a influência dessas uma bem-vinda disposição a percorrer novas avenidas e um no- leituras, ela assumiu o papel de testemunha do destino da Áfri- vo sentido do mundo. Se a escrita tende a parecer um tanto me- ca do Sul. "A função do escritor", escreveu Sartre, "é agir de tal nos encorpada e um pouco mais rascunhada em comparação maneira que ninguém possa ignorar o mundo, nem dizer que com os textos do seu período mais importante, se a devoção à não tem culpa do que está acontecendo."5 Os contos e romances textura do real que caracteriza seus melhores textos hoje é ape- que Gordimer escreveu nas três décadas seguintes são povoados nas intermitente, se de certa forma ela se contenta em indicar de personagens, muitas delas sul-africanos brancos, que vivem com um gesto o que quer dizer, em vez de descrever sua inten- plenamente a má-fé sartreana, fingindo para si mesmos que não ção com palavras exatas, isso ocorre, é o que sentimos, porque sabem o que se passa à sua volta; a tarefa que ela se impôs foi ela acha que já mostrou a que veio, e não precisa tornar a realizar obrigá-Ios a enfrentar a evidência da realidade a fim de demolir esses trabalhos hercúleos. suas mentiras. No cerne do romance do realismo está o tema da desilusão. (2°°3) Ao final de Dom Quixote, Alonso Quixana, que partira decidi- do a reformar os males do mundo, volta para casa tristemente consciente não só de que não é um herói, mas de que no mundo tal como se tornou não há mais lugar para heróis. Como desnuda- dora de ilusões convenientes e desmascaradora da má-fé colo- nial, Gordimer é uma herdeira da tradição de realismo que Cer- vantes inaugura. E conseguiu produzir muito satisfatoriamente de acordo com essa tradição até o final da década de 1970, quan- do foi levada a perceber que, para os sul-africanos negros, as pes- 3°6 3°7
  • 154. J I .~ :li< toiévski. O arcabouço moral de O amor 110Stempos do cólera, 20. Gabriel García Márquez, obra de considerável alcance emocional mas ainda assim uma Memórias de minhas putas tristes I comédia, só que da variedade outonal, simplesmente não é vasto i .~ o suficiente para contê-Ia. Em sua determinação de tratar Amé- I ]if: rica como uma personagem secundária, mais uma na extensa linhagem das amantes de Florentino, e de deixar inexploradas as I ~ ~ consequências para Florentino do mal que lhe fez, García Már- quez ingressa num território moralmente perturbado r. E, na ver- dade, dá sinais de insegurança quanto ao modo de tratar a história dela. Normalmente seu estilo verbal é ágil, animado, inventivo e ,í unicamente reconhecível, mas nas cenas das tardes de domingo entre Florentino e América podemos captar ecos arcanos da Lo- I lita de Nabokov: Florentino despe a garota "uma peça de roupa de cada vez, com pequenas brincadeiras de criança: primeiro os o romance O amor 110Stempos do cólera (1985), de Gabriel sapatinhos para o ursinho bebê [...] depois essas calcinhas flori- García Márquez, termina com Florentino Ariza, finalmente reu- das para o coelhinho, e um beijinho no delicioso passarinho do nido à mulher que amou de longe a vida inteira, navegando para seu papai".' cima e para baixo pelo rio Magdalena a bordo de um vapor que Florentino foi solteiro a vida inteira, é poeta amador, escri- ostenta a bandeira amarela do cólera. O casal tem 76 e 72 anos, tor de cartas de amor para pessoas com problemas ligados à pa- respectivamente. lavra, frequentador devoto de concertos, um tanto avarento em Para poder dedicar uma atenção integral à sua amada Fer- seus hábitos, e tímido com as mulheres. Ainda assim, a despeito mina, Florentino precisa pôr fim à sua ligação então corrente, de sua timidez e de sua falta de atrativos físicos, meio século de um caso com uma protegida sua de catorze anos de idade, que romances sub-reptícios lhe rende 622 conquistas, sobre as quais ele inicia nos mistérios do sexo em encontros de domingo à tar- mantém anotações numa série de cadernos. de no seu apartamento de solteiro (e ela se revela uma aluna que Em todos esses aspectos, Florentino se assemelha muito ao aprende depressa). E termina o caso com ela numa sorveteria. narrador anônimo da mais recente novela de García Márquez. Confusa e desesperada, a menina comete um suicídio discreto, Como seu predecessor, esse homem mantém um rol das suas levando seu segredo consigo para o túmulo. Florentino derrama conquistas como guia para um livro que planeja escrever. Na uma lágrima sem testemunhas e sente pontadas intermitentes de verdade, tem um título pronto desde já: Memoria de Mis Putas dor por sua perda, mas é só. Tristes, memórias (ou memorial) das minhas putas tristes, tradu- América Vicufía, a menina seduzi da e abandonada por um zido para o inglês por Edith Grossman como Memories of My homem mais velho, é uma personagem saída diretamente de Dos- Melal1choly Whores. Sua lista chega a 514 quando ele desiste de 3°8 3°9
  • 155. seguir contando. Mais adiante, com uma idade avançada, ele ma com uma mulher a quem não tenha pagado: mesmo quando encontra o verdadeiro amor, na pessoa não de uma mulher da a mulher não queria dinheiro ele a obrigava a aceitar, transfor- sua geração, mas de uma garota de catorze anos.2 mando-a em mais uma das suas putas. A única relação duradou- Os paralelos entre os dois livros, publicados com duas déca- ra que mantém é com a sua empregada doméstica, que monta das de intervalo, são notáveis demais para serem ignorados. Su- ritual mente uma vez por mês enquanto ela lava roupa, sempre gerem que, em Memórias de minhas putas tristes, García Már- en sentido contrario, um eufemismo que Grossman traduz como quez possa estar tentando abordar de novo a história artística e "por trás", tornando possível para ela alegar, já na velhice, que moralmente insatisfatória de Florentino e América em O amor ainda era uma virgo intacta. (p. 13) nos tempos do cólera. Em seu nonagésimo aniversário, ele decide dar-se um pre- sente especial: sexo com uma garota virgem. Uma cafetina cha- o herói, narrador e autor putativo de Memórias de minhas mada Rosa, com quem faz negócios há muito tempo, o conduz putas tristes, nasceu na cidade portuária de Barranquilla, na Co- a um quarto do seu bordel onde uma garota de 14 anos está dei- lômbia, em torno de 1870. Seus pais pertencem à burguesia cul- tada à espera dele, nua e drogada. ta; quase um século mais tarde, ele ainda vive na decadente re- f sidência da família. Costumava ganhar a vida como jornalista e professor de espanhol e latim; agora subsiste graças a uma pen- são e à coluna que escreve toda semana para o jornal da cidade. I ~c I, Ela era morena e quente. Fora submetida a um tratamento com- pleto de higiene e embelezamento que não descuidara sequer da penugem incipiente do seu púbis. Seus cabelos tinham sido en- A narrativa que ele nos transmite, cobrindo o tempestuoso nonagésimo primeiro ano da sua vida, pertence a certa subespé- I ~ caracolados, e ela usava esmalte incolor nas unhas das mãos e dos pés, mas sua pele da cor do melaço parecia-lhe áspera e maltra- tada. Seus seios recém-nascidos ainda lembravam os de um me- cie de memórias: as confissões. Tipificadas pelas Confissões de Santo Agostinho, as confissões nos falam de uma vida desper- nino, mas davam a sensação de uma iminência de rebentar com diçada que culmina numa crise interior e numa experiência de uma energia secreta pronta a explodir. A melhor parte do seu conversão, seguida de um renascimento espiritual para uma exis- corpo eram os pés grandes e silenciosos, com seus dedos longos e tência nova e mais rica. Na tradição cristã, as confissões têm uma sensíveis como os dedos da mão. A despeito do ventilador, ela pronunciada finalidade didática. Olhai o meu exemplo, dizem estava ensopada de uma transpiração fosforescente [...] Era im- elas; eis como, através da ação misteriosa do Espírito Santo, até possível imaginar como seria seu rosto por baixo de tanta pintura uma criatura tão miserável quanto eu pode ser salva. [...] mas os adornos e cosméticos não tinham como esconder seu Os primeiros noventa anos da vida do nosso herói foram sem caráter: o nariz altaneiro, as sobrancelhas grossas, os lábios inten- dúvida desperdiçados. Não só ele gasta toda a sua herança e em- sos. E pensei: um jovem touro miúra. (pp. 25-6) prega maIos seus talentos como sua vida emocional também é extremamente árida. Jamais se casou (esteve noivo muitos anos A primeira reação do velho experiente à visão da menina é i atrás, mas largou a noiva no último minuto). Nunca foi para a ca- inesperada: terror e confusão, um impulso de bater em retirada. I 310 311
  • 156. No entanto, ele se deita ao lado dela na cama e, sem muito en- ele, "nmTI outro homem". É o amor que move o mundo, come- tusiasmo, tenta explorar entre as suas pernas. Ela se afasta no ça ele a perceber - não tanto o amor consumado quanto o amor sono. Desprovido de desejo, ele começa a cantar para ela: "An- em suas inúmeras formas não correspondidas. Sua coluna no jos rodeiam a cama de Delgadina". E logo ele se descobre tam- jornal se transforma numa ode aos poderes do amor, e seu públi- bém rezando por ela. E em seguida adormece. Quando desper- co leitor responde com adulação. (p. 65) ta, às cinco da manhã, a garota está deitada com os braços abertos Durante o dia - embora ele nunca a veja -, Delgadina, em cruz, "senhora absoluta da sua virgindade". Deus a abençoe, como uma autêntica heroína de conto de fadas, vai para a fábri- pensa ele, e se retira. (pp. 28, 29-3°) ca onde trabalha abrindo casas para botões. Toda noite ela retor- A intermediária telefona para ele, queixando-se da sua pusi- na a seu quarto no bordel, agora adornado por seu amante com lanimidade e oferecendo-lhe uma segunda oportunidade de pro- quadros e livros (ele tem vagas ambições de cultivar o seu espíri- var sua macheza. Ele declina. "Não posso mais", diz ele, e sente to), para dormir castamente ao lado dele. Ele lê histórias em voz um alívio imediato, "finalmente livre de uma escravidão" - es- alta para ela; de vez em quando ela deixa escapar algumas pa- cravidão ao sexo, no sentido estrito - "que me manteve cativo lavras no sono. Mas no geral ele não gosta da voz dela, que soa desde os treze anos de idade." (p. 45) como a voz de uma estranha falando de dentro dela. Ele a prefe- Mas Rosa insiste até que ele cede e regressa ao bordeI. No- re inconsciente. vamente a garota está dormindo, novamente ele se limita a en- Na noite do aniversário dela, uma consumação erótica sans xugar a transpiração do seu corpo e a cantar: "Delgadina, Delga- pénétration ocorre entre os dois. dina, serás a minha amada". (E seu canto não deixa de ter um tom um tanto sombrio: no conto de fadas onde aparece, Delga- Beijei todo o seu corpo até perder o fôlego ... Enquanto a beijava, dina é uma princesa que se vê obrigada a fugir aos avanços amo- a temperatura de seu corpo ia subindo, e ela exalava uma fragrân- rosos do próprio pai.) (p. 56) cia indômita e selvagem. Ela me respondia com novas vibrações Ele volta para casa no meio de uma violenta tempestade. ao longo de cada centímetro da pele, e em cada um deles eu en- Um gato que adquirira pouco antes parece ter-se transformado contrava um calor diferente, um sabor único, um outro gemido, numa presença satânica. A chuva entra pelos buracos do telha- e todo o seu corpo ressoava por dentro com um arpejo, é seus ma- do, um cano de água quente se rompe, o vento espatifa várias milos se abriram e floresceram sem que eu os tocasse. vidraças. Enquanto se esforça por salvar os livros que tanto ama, ele percebe a figura fantasmagórica de Delgadina a seu lado, a E então sobrevém o infortúnio. Um dos clientes do bordel ajudá-Ia. Agora ele está convencido de que encontrou o amor verdadeiro, "o primeiro amor da minha vida, aos noventa anos é apunhalado, a polícia invade o local, um escândalo ameaça de idade". (p. 6o) E uma revolução moral ocorre dentro dele. irromper, Delgadina precisa ser levada embora. E seu amante, Confronta-se com a desolação, a mesquinharia e a obsessividade mesmo percorrendo toda a cidade atrás dela, não consegue mais da sua vida passada, e termina por repudiá-Ia. E se transforma, diz encontrá-Ia. Quando ela finalmente reaparece no bordeI, parece 312 313
  • 157. anos mais velha e já não tem seu ar de inocência. Ele é tomado seus olhos se abrem. De maneira que há certo grau de incompa- tibilidade intrínseca entre a narrativa de conversão e o roman- por um ciúme furioso e vai embora. Passam-se meses e a ira dele se atenua. Uma antiga namora- ce moderno, da maneira como foi aperfeiçoado no século XVIII, da dá-lhe um bom conselho: "Não vá morrer sem conhecer o com sua ênfase antes no caráter que na alma e seu programa de encantamento de foder com amor". Seu nonagésimo primeiro mostrar passo a passo, sem saltos inesperados ou intervenções aniversário chega e passa. Ele faz as pazes com Rosa. Os dois sobrenaturais, como aquele que costumava ser chamado de he- concordam em deixar ambos seus bens materiais em herança rói ou heroína, mas agora é mais propriamente chamado de per- para a moça que, afirma Rosa, nesse meio-tempo teria ficado sonagem central, percorre o seu caminho do começo ao fim. Embora continue ostentando o rótulo de "realista mágico" completamente apaixonada por ele. O coração repleto de ale- gria, o pressuroso pretendente passa a viver a expectativa de "fi- que lhe foi aplicado, García Márquez opera na tradição do rea- nalmente, uma vida de verdade". (pp. 100, llS) lismo psicológico, com sua premissa de que as operações da psi- As confissões dessa alma renasci da podem de fato ter sido que individual têm uma lógica que pode ser acompanhada. Ele escritas, como diz ele, para aliviar sua consciência, mas a men- próprio já observou que o dito realismo mágico é uma simples sagem que transmitem não é, de modo algum, a de que abjure- questão de contar histórias difíceis de acreditar com uma expres- mos dos desejos da carne. O deus que ele ignorou a vida inteira são impassível, truque que teria aprendido com sua avó em Car- é de fato o deus por cuja graça os perversos são salvos, mas ao tagena; ademais, diz ele, muito do que os leitores de fora acham tão difícil de acreditar em suas histórias é muitas vezes lugar-co- mesmo tempo um deus do amor, que pode instigar um velho mum na América Latina. Achemos ou não aceitável essa alega- pecador à busca de um "amor louco" por uma virgem - "meu desejo naquele dia era tão urgente que parecia uma mensag~m ção, o fato é que a mistura do fantástico com o real - ou, para de Deus" - e em seguida insuflar o espanto e o terror em seu ser mais preciso, a elisão do "ou então" que separa a "fantasia" da coração quando ele pousa os olhos em sua presa pela primeira "realidade" -, que causou tamanha sensação quando Cem anos vez. Por artes de sua interveniência divina, o velho é instantanea- de solidão foi publicado em 1967, tornou-se lugar-comum no ro- mente transformado de frequentador de putas em adorador de mance para muito além das fronteiras da América Latina. Será o uma virgem, venerando o corpo da menina adormecida como gato de Memórias de minhas putas tristes um simples gato ou um um crente mais simples pode venerar uma imagem ou um íco- visitante do mundo inferior? Delgadina vem de fato em auxílio ne, cuidando dele, trazendo-lhe flores, prestando-lhe tributo, can- do amante na noite da tempestade, ou será que ele, transido pelo tando para ela, rezando em sua presença. (pp. 3, ll) amor, apenas imagina essa visita? Essa bela adormecida é mes- mo uma simples jovem trabalhadora que procura faturar alguns Há sempre algo de imotivado nas experiências de conver- pesos por fora, ou será uma criatura de outro domínio, onde prin- são: é da sua essência que o pecador esteja tão cego de desejo ou cesas dançam a noite inteira, fadas madrinhas concedem pode- orgulho que a lógica psíquica que conduz ao ponto de virada em res super-humanos e donzelas são adormecidas por feiticeiras? sua vida só se torne visível para ele em retrospecto, depois que Pedir respostas inequívocas para perguntas como essas é equivo- 315 314
  • 158. car-se acerca da natureza do narrador de histórias. Roman Jakob- primeiro caso e pré-colombianos no segundo. (Como a descri- son gostava de lembrar a fórmula usada pelos contadores de his- ção que seu amante nos faz dela deixa claro, Delgadina possui tórias de Majorca como preâmbulo para suas narrativas: Foi assim certa qualidade feroz de uma deusa virgem arcaica: "o nariz al- e também não foi,3 taneiro, as sobrancelhas grossas, os lábios intensos [...] um jovem O mais difícil de aceitar pelos leitores de inclinação secu- touro miúra".) lar, pois não tem base psicológica aparente, é que o mero espetá- A partir do momento em que aceitamos uma continuidade culo de uma jovem nua possa causar tamanha reviravolta espi- entre a paixão do desejo sexual e a paixão da veneração, aqui- ritual num velho depravado. Toda essa disponibilidade do velho lo que se origina como um desejo "mau", do tipo praticado por para ser convertido podia fazer mais sentido psicológico caso su- Florentino Ariza com sua protegida, pode sem mudar a sua es- puséssemos que ele possui uma existência que se estende para sência transfigurar-se num desejo "bom" do tipo sentido pelo um passado anterior ao início da narrativa de suas memórias, amante de Delgadina, constituindo assim o germe de uma vida para o interior do conjunto das obras ficcionais anteriores de Gar- nova para ele. Memórias de minhas putas tristes faz mais sentido, cía Márquez, especialmente no interior de O amor nos tempos em outras palavras, como uma espécie de suplemento a O amor do cólera. nos tempos do cólera, em que o responsável pelo abuso da con- Avaliado pelos padrões mais rigorosos, Memórias de minhas fiança da menina virgem se transforma em seu fiel adorador. putas tristes não é uma grande obra. E não se pode dizer que essa ligeireza se deva à sua brevidade. Crônica de uma morte Quando Rosa ouve sua empregada de catorze anos ser cha- anunciada (1981), por exemplo, embora tenha mais ou menos mada de Delgadina (de "Ia delgadez", delicada, elegante), ela se a mesma extensão, é um acréscimo significativo ao cânone de espanta e tenta ensinar a seu cliente o verdadeiro nome da me- García Márquez: uma narrativa cerrada e arrebatadora,'e ao mes- nina. Mas ele não quer ouvir, da mesma forma como prefere que mo tempo uma vertiginosa aula magna sobre a maneira como a própria mocinha não fale. Quando, depois da sua longa ausên- múltiplas narrativas - múltiplas verdades - podem ser cons- cia do bordel, Delgadina reaparece usando pintura e joias que truídas para dar conta dos mesmos acontecimentos. Não obstan- nunca exibira, ele fica indignado: traiu não só a ele como à sua te, a finalidade das Memórias é corajosa: falar em defesa do dese- própria natureza. Nos dois incidentes nós o vemos desejando que jo dos mais velhos por meninas menores de idade, ou seja, falar a moça tenha uma identidade imutável, a identidade de prince- em defesa da pedofilia, ou pelo menos mostrar que a pedofilia sa vugem. não precisa ser um fim de linha nem para aquele que ama nem A inflexibilidade do velho, sua insistência para que sua ama- para a criatura amada. A estratégia conceitual que García Már- da assuma apenas a forma com que a idealiza, tem um poderoso quez emprega para tanto é derrubar o muro entre a paixão eróti- precedente na literatura de língua espanhola. Obedecendo à re- ca e a paixão de veneração, tal como se manifesta especialmente gra de que todo cavaleiro errante precisa ter uma dama a quem nos cultos à Virgem tão vigorosos no sul da Europa e na Améri- possa dedicar seus feitos de armas, o velho que se faz chamar de ca Latina, com seus fortes fundamentos arcaicos, pré-cristãos no Dom Quixote declara-se criado de Dona Dulcineia de Toboso. 316 317
  • 159. I111 li! Quixote parece um sujeito bizarro à primeira vista, mas a ,11 Dona Dulcineia tem alguma tênue relação com uma jovem cam- li! ponesa da aldeia de Toboso em quem Quixote pusera os olhos maioria dos que entram em contato com ele acaba meio con- no passado, mas essencialmente é uma figura de fantasia que ele vertida a seu modo de pensar, e portanto meio quixotescos eles 1 inventa, tal como inventa a si próprio. próprios. Se há uma lição que ele nos transmite é que no interes- O livro de Cervantes começa como uma paródia cômica do se de um mundo melhor e mais animado pode não ser má ideia 'I I romance cavaleiresco, mas transforma-se em coisa muito mais cultivarmos em nós uma certa capacidade de dissociação, não ne- interessante: um estudo do poder misterioso que tem o ideal de cessariamente sob controle consciente, muito embora isso possa resistir ao desencanto em seus confrontos com o real. O retorno levar os outros a concluírem que sofremos de delírio intermitente. I1I de Quixote à sanidade ao final do livro, seu abandono do mundo II Os diálogos entre Quixote e o duque e a duquesa na segun- ideal que tentara habitar com tanta valentia em favor do mun- da metade do livro de Cervantes exploram em profundidade o do real dos seus detratores, atinge todos à sua volta, e o leitor que significa empregar nossas energias em viver uma vida ideal II1 também, com uma tristeza profunda. Será isso o que realmente e portanto talvez irreal (fantástica, fictícia). A duquesa formula a 1,1; queremos? Desistir do mundo da imaginação e conformar-nos pergunta-chave com graça mas com firmeza: não é verdade que com o tédio da vida num rincão distante de Castela? Dulcineia "não existe no mundo mas é uma dama imaginária e II O leitor do Dom Quixote nunca sabe ao certo se o herói de que foi Vossa Graça [ou seja, Dom Quixote] quem a engendrou Cervantes é um louco entregue a seu delírio ou se, ao contrário, e deu-lhe vida em seu espírito?". representa um papel em plena consciência - vivendo sua vida "Deus sabe se Dulcineia existe ou não no mundo", respon- como se fosse uma ficção. Ou, ainda, se a sua mente não se al- de Quixote, "ou se é imaginária ou não imaginária; não existe terna, em saltos imprevisíveis, entre esses dois estados, de delírio um modo certo de verificar essas coisas até as últimas consequên- II1 e consciência. Há momentos em que Quixote parece sem dú- cias. [Mas] nem engendrei nem dei vida à minha dama ..." (Dom vida afirmar que dedicar-se a uma vida de serviço pode fazer de Quixote, p. 672) I!I qualquer um uma pessoa melhor, seja ou não ilusório esse servi- A cautela exemplar da resposta de Quixote é um bom indí- ço. "Desde que me converti em cavaleiro errante", diz ele, "fui cio de que conhecia mais que de passagem o longo debate sobre valente, bem-comportado, liberal, polido, generoso, cortês, ousa- 1111 '''!II a natureza do ser, desde os pré-socráticos até são Tomás de Aqui- do, gentil, paciente, [e] muito resistente." Embora possamos cul- no. Mesmo admitindo a possibilidade de ironia do autor, Dom tivar algumas reservas quanto a ele ter sido tão valente, bem-com- portado etc., quanto diz, não temos como ignorar a afirmativa Quixote parece de fato sugerir que, se aceitarmos a superiori- muito sofisticada que faz aqui sobre o poder que um sonho po- dade moral de um mundo em que as pessoas agem em nome de de ter de servir de âncora para toda a nossa vida moral, ou negar ideais a um mundo em que as pessoas agem em nome do inte- que, a partir do dia em que Alonso Quixana assumiu sua iden- resse, questões ontológicas desconfortáveis como a pergunta da tidade de cavaleiro, o mundo transformou-se num lugar melhor, duquesa podem perfeitamente ser deixadas de lado, ou até varri- ou, se não melhor, pelo menos mais interessante, mais animado.4 das para baixo do tapete. 318 319
  • 160. o espírito de Cervantes está fundamente entranhado na lite- camente o original e acrescentou-lhe uma epígrafe de Sócrates ratura de língua espanhola. Não é difícil ver na transformação da para assinalar sua dívida.5 jovem operária sem nome na virgem Delgadina o mesmo proces- No caso das Memórias, a dívida para com Yasunari Kawaba- so de idealização graças ao qual a jovem camponesa de Toboso ta é bastante conspícua. Em 1982, Carcía Márquez escreveu um é transformada em Dona Dulcineia, ou na preferência do herói conto, "A bela adormecida e o aeroplano", em que aludia espe- cificamente a Kawabata. Sentado na primeira classe de um jato de Carcía Márquez por que o objeto de seu amor permaneça inconsciente e sem palavras, o mesmo desgosto pelo mundo real que cruza o Atlântico, ao lado de uma jovem de extraordinária beleza que dorme durante todo o voo, o narrador Carcía Már- em toda sua teimosa complexidade que conserva Dom Quixote a quez lembra-se de um romance de Kawabata sobre homens mais uma distância segura de sua dama. Assim como Dom Quixote velhos que pagam um bom dinheiro para passar a noite com jo- pode afirmar ter-se tornado uma pessoa melhor através do servi- vens drogadas e adormecidas. Como obra de ficção, o conto da ço a uma dama que nem sabe da sua existência, o velho das Me- "Bela Adormecida" é insuficientemente desenvolvido, pouco mórias pode alegar ter chegado ao limiar de uma vida "finalmen- mais que um esboço. Talvez seja por isso que Carcía Márquez se te real" ao aprender a amar uma jovem que, na realidade, ele não sinta liberado para reutilizar sua situação básica - o admirador conhece e certamente tampouco conhece a ele. (O momento envelhecido ao lado da moça que dorme - em Memórias de mais essencialmente cervantesco das Memórias ocorre quando minhas putas tristes.6 seu autor consegue ver a bicicleta em que sua amada vai - ou Na "Casa das Belas Adormecidas" (1981), de Kawabata, um dizem que vai - para o trabalho, e no fato de uma bicicleta da homem à beira da velhice, Yoshio Eguchi, recorre a uma cafe- vida real encontrar "provas tangíveis" de que a jovem com o no- tina que fornece jovens drogadas para homens com gostos espe- me de conto de fadas - cuja cama ele compartilha noite após ciais. Por um período de tempo, passa noites com várias dessas noite - "existia na vida real".) (pp. 115, 71) garotas. As regras da casa proíbem a penetração sexual, mas são praticamente supérfluas, pois a maior parte da clientela é idosa Em sua autobiografia Viver para contar, Carcía Márquez é impotente, mas Eguchi - como ele se diz chamar - não é conta como compôs sua primeira obra de ficção mais longa, a nem uma coisa nem outra. Brinca com a ideia de desrespeitar as novela La hojarasca (1955 - publicada no Brasil como O enter- regras, de estuprar uma das meninas, engravidá-Ia ou até mesmo ro do diabo). Tendo - achava ele - finalizado o original, ele o asfixiá-Ia, como forma de afirmar sua masculinidade e seu repú- mostrou a seu amigo Custavo Ibarra, que para seu desalento dio a um mundo que trata os velhos como crianças. Ao mesmo mostrou-lhe que a situação dramática - a luta para enterrar um tempo, também é atraído pela ideia de tomar uma overdose de homem contra a resistência das autoridades civis e clericais - drogas e morrer nos braços de uma virgem. fora copiada da Antígona de Sófocles. Carcía Márquez releu A novela de Kawabata é um estudo das atividades de eros na Antígona "com uma estranha mistura de orgulho por ter coinci- mente de um sensualista do tipo intensivo e autocrítico, profun- dido em boa-fé com um escritor tão grande, e tristeza pela vergo- damente - talvez morbidamente - sensível a odores, fragrân- nha pública do plágio". Antes de publicar seu livro, reviu drasti- cias e nuances do tato, absorvido pela singularidade física das 321 320
  • 161. mulheres com quem trava intimidades, tendendo a ruminar ima- largados como os de um manequim, podem ser dispostos confor- gens do seu passado sexual, sem medo de confrontar a possibi- me os desejos do freguês, tenham sobre ele tamanho poder que lidade de que sua atração por mulheres jovens possa encobrir o façam voltar mais e mais vezes àquela casa. seu desejo pelas próprias filhas, ou que sua obsessão com os seios A pergunta que cabe em relação a todas as belas adormeci- femininos possa ter origem em memórias da primeira infância. das é, claro, o que acontecerá quando elas acordarem. No livro Acima de tudo, o quarto solitário contendo apenas uma ca- de Kawabata, simbolicamente falando, não há despertar; a sexta ma e um corpo vivo a ser usado ou abusado, dentro de certos li- e última das garotas de Eguchi morre a seu lado, envenenada mites, como ele quiser, sem testemunhas e portanto sem qual- pela droga que a fez cair no sono. No de GarcÍa Márquez, por quer risco de ver-se exposto à vergonha, constitui um teatro em outro lado, Delgadina parece absorver pela pele todas as aten- que Eguchi consegue ver-se como de fato é: velho, feio e próxi- ções que lhe são dispensadas com tanta minúcia, e estar a ponto mo da morte. Suas noites com as meninas sem nome são reple- de despertar, pronta para retribuir a paixão de seu adorador. tas de tristeza em lugar da alegria, de remorso e angústia em lu- A versão que GarcÍa Márquez nos dá do conto da bela ador- gar do prazer físico. mecida é assim muito mais solar que a de Kawabata. De fato, na forma abrupta como termina ela parece fechar deliberadamen- A feia senilidade dos homens tristes que procuravam aquela casa te os olhos para a questão do futuro de qualquer velho com um não estava muitos anos distante para o próprio Eguchi. A imen- amor mais jovem, depois que a amada adquire permissão para surável extensão do sexo, sua profundeza sem fundo - que pro- deixar seu pedestal de deusa. Cervantes leva seu herói a visitar a porção dela Eguchi tinha conhecido em seus sessenta e sete anos? aldeia de Toboso e apresentar-se de joelhos perante uma jovem E em torno dos velhos, carne nova, carne jovem, carne linda nas- escolhida quase ao acaso para incorporar Dulcineia. Em tro- I ce o tempo todo. Não seria o desejo dos tristes velhos pelo sonho ca, ele é contemplado com um chorrilho de pungentes insultos inacabado, o remorso por dias perdidos sem sequer terem sido camponeses perfumados a cebola crua, e deixa o local confuso e desfrutados, o que se escondia naquela casa?7 desconcertado. Não fica claro se a pequena fábula de redenção escrita por GarcÍa Márquez imita Kawabata menos do que responde a GarcÍa Márquez é sólida o suficiente para suportar uma conclu- ele. Seu herói é muito diferente em temperamento de Eguchi, são desse tipo. GarcÍa Márquez talvez pudesse levar igualmente menos complexo em seu sensualismo, menos introvertido, me- em conta a história do Mercador, a sátira sobre um casamento nos explorador, e menos poeta também. Mas é pelo que ocorre intergeneracional nos Contos de Canterbury de Chaucer, espe- na cama das respectivas casas de encontros que a verdadeira dis- cialmente seu flagrante do casal surpreendido pela luz da aurora tância entre GarcÍa Márquez e Kawabata pode ser medida. Na depois dos entreveros da noite de núpcias, o velho marido senta- cama com Delgadina, o velho de GarcÍa Márquez encontra um do na cama com seu gorro, a papada flácida tremendo sob o quei- novo júbilo que o eleva. Já para Eguchi, sempre é um mistério xo, a jovem esposa a seu lado tomada pela irritação e pela repulsa. infinitamente frustrante que os corpos inconscientes de mulher, cujo uso pode ser comprado por hora e cujos membros flácidos, (200S) 322 323
  • 162. [O fio da navalha, 1944], o romance que fez sua fama nos Esta- 21. V. S. Naipaul, Meia vida dos Unidos. The Razor's Edge tem como herói um americano que, de- pois de preparar-se adquirindo um bronzeado intenso e envergan- do trajes indianos, visita o guru Shri Ganesha e, sob sua orienta- ção, tem uma experiência de êxtase espiritual, "uma experiência da mesma ordem da que os místicos vêm tendo por todo o mun- do através dos séculos". Com as bênçãos de Shri Ganesha, esse proto-hippie retoma ao Illinois, onde planeja praticar "a calma, a paciência, a compaixão, o desprendimento e o comedimento" ao mesmo tempo em que ganha a vida como motorista de táxi. "Ê um erro achar que os homens santos da Índia levam vidas inúteis", diz ele. "Eles são uma luz que brilha nas trevas."2 A história do encontro entre Venkataraman, o santo, e Mau- Ao longo da década de 1930, o escritor inglês W. Somerset gham, o escritor, e de sua feliz colaboração, em que Venkatara- Maugham (1874-1965) cultivou um interesse pela espiritualida- man apresentou a Maugham uma versão vendável da espiri- de indiana. Visitou Madras e foi levado até um ashram para co- tualidade indiana e Maugham rendeu a Venkataraman uma boa nhecer um homem que, nascido Venkataraman, retirara-se para publicidade e uma enorme clientela, é o germe do romance de uma vida de silêncio, automortificação e oração, e agora era co- V. S. Naipaul, Meia vida (2001).3 nhecido simplesmente como o Maharishi. Enquanto esperava No romance, Naipaul preocupa-se menos com a questão de sua audiência, Maugham desmaiou, talvez devido ao calor. Quan- determinar se Venkataraman e outros fornecedores comparáveis do voltou a si, descobriu que não conseguia falar (e cabe dizer de sabedoria aforística são farsantes - o que ele considera óbvio aqui que Maugham foi gago a vida inteira). O Maharishi o con- - que com o fenômeno mais geral da prática religiosa baseada solou declarando que "O silêncio também é conversa".' no sacrifício. Por que as pessoas - particularmente na Índia - A notícia do desmaio, conta Maugham, espalhou-se pela resolvem dedicar suas vidas ao jejum, ao celibato e ao silêncio? Índia. Graças aos poderes do Maharishi, dizia o rumor, um pere- E por que são reverenciadas por isso? Quais consequências hu- grino do Ocidente tinha sido trasladado por algum tempo ao manas decorrem do seu exemplo de santidade? reino do infinito. Embora Maugham não tenha recordação de Para compreender o prestígio do sacrifício, sugere Naipaul, qualquer visita ao infinito, o encontro deixou-lhe marcas claras, precisamos enquadrar historicamente o ascetismo hindu. Houve que ele descreve em A Writer's Notebook [Diário de um escritor, tempo em que os templos hinduístas sustentavam toda uma cas- 1949] e novamente num dos ensaios de Points ofView [Pontos de ta sacerdotal. E depois, em consequência das invasões estrangeiras, vista, 1958]; e também incluiu o episódio em The Razor's Edge primeiro muçulmanas e finalmente britânicas, os templos foram 324 325
  • 163. perdendo receita. Os sacerdotes se viram aprisionados em um ci- Gandhi proclama que o sistema de castas está errado. Mas clo vicioso: a pobreza levava à perda de energia e do desejo, que como um brâmane poderia opor-se ao sistema de castas? Respos- levava à passividade, que levava a uma pobreza mais profunda. A ta: casando-se com alguém de casta inferior. Chandran escolhe casta parecia em declínio terminal. No entanto, em vez de aban- uma jovem feia e de pele escura da sua turma, pertencente a donarem os templos e procurarem alguma outra fonte de susten- uma casta supostamente atrasada, e a corteja sem muito jeito. to, os sacerdotes conceberam uma engenhosa transformação de Em pouquíssimo tempo, lançando mão de mentiras e ameaças, valores: a vida sem comer, e a negação dos apetites em geral, pas- a moça o obriga a cumprir suas promessas e casar-se com ela. sou a ser propalada como uma coisa admirável em si, merecedo- Caindo em desgraça na família, Chandran é posto para tra- ra de veneração e, portanto, de tributo. balhar na coletoria de impostos do marajá. No serviço, permi- E esse, em suma, é o relato estritamente materialista de Nai- tem-se atos sub-reptícios que prefere definir como desobediência paul sobre como o ethos brâmane de sacrifício e fatalismo, um civil, embora seus verdadeiros motivos sejam simplesmente fú- ethos que despreza o empreendimento individual e o trabalho, teis e mal-intencionados. Quando as confusões que arma são ex- tornou-se importante na Índia. postas e ele se vê ameaçado com as penas da lei, tem uma inspi- Na recriação da história de Venkataraman por Naipaul, um ração de gênio: refugia-se num templo, onde se protege do que brâmane do século XIX chamado Chandran tem a ousadia de prefere definir como perseguição fazendo um voto de silêncio, o romper com o sistema dos templos. Economiza trocados, viaja que o transforma num herói local. Muita gente acorre para assis- até a cidade grande mais próxima - a capital de um dos estados tir a seu silêncio e trazer-lhe oferendas. nominalmente independentes do interior da Índia britânica - e E é nesse lamaçal de mentira e hipocrisia que o ingênuo oci- se emprega como escrevente no palácio do marajá. Depois dele, dental William Somerset Maugham vem enfiar os pés, tentando seu filho dá prosseguimento à ascensão da família nas fileiras do encontrar a resposta mais profunda que só a Índia poderá nos serviço público. Tudo parece bem encaminhado: os Chandran dar. "O senhor é feliz?", pergunta Maugham ao beatífico Chan- encontraram um nicho seguro onde a família pode prosperar dis- dran. Usando lápis e papel, Chandran responde: "No meu silên- cretamente sem precisar mais mortificar seus corpos. cio, sinto-me livre. E isto é felicidade". (p. 30) Quanta sabedo- Mas o neto (e aqui já estam os na década de 1930) é uma ria!, pensa Maugham. A comédia é rica: a principal liberdade de espécie de rebelde. Os ecos de Gandhi e de seu movimento na- que goza Chandran é ter-se livrado da lei. cionalista se multiplicam. O Mahatma convoca um boicote às Maugham publica um livro sobre sua visita, e em pouco universidades. O neto (a partir de agora chamado simplesmente tempo Chandran torna-se famoso em toda a Índia - famoso por- de Chandran) decide obedecer a seu comando queimando seus que um estrangeiro escrevera a seu respeito. (E Chandran não livros de Shelley e Hardy no pátio da faculdade (afinal, não gos- se limita a ser famoso na Índia: vem integrar uma lista cada vez ta mesmo de literatura), e depois espera que uma tempestade maior de personagens secundárias - e ocorrem-nos Rosencrantz desabe sobre sua cabeça. Mas ninguém, ao que parece, dá im- c Guildenstern, ou a mulher de Rochester em Tane Eyre - que portância a seu gesto. acabam despojadas de seu invólucro literário de origem e rece- 326 327
  • 164. l:C * * bem papéis bem maiores em outras obras.) Outros visitantes do exterior seguem os passos de Maugham. Para eles, Chandran repete a história de uma carreira brilhante no serviço público Em honra de seu patrono inglês, Chandran dá a seu primo- sacrificada em favor de uma vida de oração e sacrifício. E em gênito o nome de William Somerset Chandran. Como o jovem pouco tempo ele próprio acaba acreditando nas suas mentiras. Willie vem de um casamento misto (entre pessoas de castas dife- Seguindo os passos de seus antepassados brâmanes, encontra um rentes), é considerado prudente que seja mandado para uma es- modo de repudiar o mundo e ainda assim prosperar. E não vê nis- cola cristã. Previsivelmente, William aprende com os missioná- so ironia alguma. Pelo contrário, fica admirado: deve estar sendo rios canadenses que lecionam em sua escola que deve aspirar a conduzido por um poder mais alto. tornar-se missionário, e também canadense. Em suas redações Como o artista da fome de Kafka, Chandran ganha a vida das aulas de inglês, imagina-se como um menino canadense nor- fazendo o que, secretamente, acha fácil: negar seus apetites (em- mal, com mãe e pai e um carro da família. Seus professores o pre- bora seus apetites não sejam exíguos a ponto de impedi-Ia de miam com notas altas, embora seu pai fique magoado ao ver-se gerar dois filhos em sua mulher atrasada). No conto de Kafka, na composição em que o filho descreve sua vida. apesar dos protestos em contrário do próprio artista da fome, há No devido tempo, entretanto, Willie descobre qual a verda- certo heroísmo no jejum, um mini-heroísmo bem adequado aos deira intenção dos missionários: obter novos conversos ao cristia- tempos pós-heroicos. Em Chandran não há heroísmo algum: o nismo, destruir a religião pagã. Sentindo-se logrado, ele para de que lhe permite aceitar tão pouco é sua autêntica pobreza de frequentar a escola. espírito. Cobrando antigos favores, Chandran escreve a Maugham e Em seu primeiro e mais crítico livro sobre a Índia, An Area lhe pede que use sua influência em favor do menino. Recebe af Darkness [Uma área de escuridão, 1964], N aipaul descreve em resposta uma carta datilografada: "Prezado Chandran, foi Gandhi como um homem profundamente influenciado pela éti- muito agradável receber sua carta. Tenho boas memórias do seu ca cristã, capaz, ao cabo dos vinte anos que vive na África do Sul, país, e é bom receber notícias dos amigos indianos. Muito since- de ver a Índia com o olhar crítico de um forasteiro e, nesse sen- ramente seu ...". (p. 47) Outros amigos estrangeiros mostram-se tido, "o menos indiano dos líderes indianos". Mas a Índia força igualmente evasivos. Finalmente, alguém na Câmara dos Lor- Gandhi a mudar, diz Naipaul: transformando-o num mahatma, des dá-lhe uma resposta e Willie, aos vinte anos de idade, é man- um ícone, ela se dá ao luxo de ignorar sua mensagem social.4 dado para a antiga metrópole com uma bolsa de estudos. Chandran gosta de ver-se como um seguidor de Gandhi. O ano é 1956. Londres está rebentando nas costuras de tan- Porém, sugere implicitamente Naipaul, a pergunta que Chan- tos imigrantes do Caribe. Em pouco tempo, motins raciais irrom- dran se faz continuamente não é a gandhiana "Como preciso pem na cidade e jovens brancos em pretensos trajes edwardianos agir?", mas a hinduísta "Do que preciso desistir?". Ele prefere percorrem as ruas atrás de negros que possam espancar. Willie desistir a agir no mundo, porque desistir não lhe custa nada. esconde-se no alojamento da sua escola. Esconder-se não é uma 328 329
  • 165. Tanto pai quanto filho acreditam que os outros jamais con- experiência inédita para ele: é o que fazia na Índia quando ocor- riam os motins de casta. seguirão enganá-Ios. Mas, se detectam mentiras e ilusões à toda volta, é só porque são incapazes de imaginar alguma pessoa dife- O que Willie aprende em Londres é, principalmente, sobre o sexo. A namorada de um colega jamaicano fica com pena dele rente deles próprios. Sua perspicácia baseia-se apenas num refle- e o alivia de sua virgindade. E em seguida lhe faz uma provei- xo defensivo de desconfiança. A regra que seguem é sempre es- colher a interpretação menos caridosa. São a autoabsorção e a tosa explanação intercultural. Como os casamentos na Índia são arranjados, diz ela, os indianos não acham que precisem satisfa- estreiteza de espírito, mais do que a inexperiência, que se encon- zer sexualmente as mulheres. Mas na Inglaterra as coisas são di- tram na origem dos fracassos amorosos de Willie. ferentes, e ele devia esforçar-se bem mais. Quanto ao pai de Willie, uma boa medida de sua mesqui- Willie consulta um livro chamado A fisiologia do sexo e fi- nharia constitucional é a maneira como reage aos livros. Quando estudante, não "entendia" as aulas a que assistia, e especialmente ca sabendo que o homem médio é capaz de manter uma ereção não "entendia" a literatura. (p. 10) A educação a que é submeti- por dez a quinze minutos. Desestimulado, abandona o livro e do, especialmente a literatura francesa ensinada de cor, é certa- recusa-se a prosseguir na leitura. Como é que ele, um incompe- mente irrelevante para sua vida diária. Ainda assim, existe nele tente, e ainda por cima tendo começado tarde na vida, vindo de um impulso profundo a não entender, e a não aprender. No um país onde não se fala de sexo e não existe nada que equivalha sentido mais estrito, trata-se de um indivíduo ineducável. Sua a uma arte da sedução, irá arranjar uma namorada? fogueira dos clássicos não é uma resposta saudavelmente crítica Como é que posso aprender mais sobre o sexo?, pergunta a uma educação colonial sufocante. Não o liberta para algum ele a seu amigo jamaicano. O sexo é uma coisa brutal, responde tipo diferente e melhor de formação, pois ele não tem ideia do o amigo; você precisaria ter começado mais jovem. Na Jamaica, que possa ser uma boa formação. Na verdade, ele não tem ideia acumulamos experiência violando as garotas à força. nenhuma. Willie reúne a coragem necessária para abordar uma mu- lher das ruas. Suas relações são humilhantes e sem alegria. "Foda E Willie tem a cabeça igualmente oca. Ao chegar à Ingla- terra, logo percebe o quanto é ignorante. Mas, numa reação re- como um inglês", ordena ela quando ele começa a demorar mui- flexa típica, encontra alguém a quem declarar culpado por isso, to. (p. 113) Chandran, o sadhu charlatão, e seu filho, o amante inepto: no caso a sua mãe; não tem curiosidade sobre o mundo porque é filho de uma mulher atrasada. A herança genética é caráter e podem parecer matéria de comédia, mas não nas mãos de Nai- destino. paul. Naipaul sempre foi um mestre da prosa analítica, e a prosa de Meia vida é limpa e fria como uma lâmina. Os Chandran do A vida universitária lhe revela que a etiqueta britânica, tan- sexo masculino são seres humanos imperfeitos cuja incomple- to quanto a etiqueta indiana, é extravagante e irracional. Mas essa percepção não marca o início do autoconhecimento. Eu sei tude antes assusta do que diverte; a mulher atrasada e a irmã, que cresce e se transforma numa arrogante simpatizante de esquer- como são a Índia e a Inglaterra, pensa ele, enquanto os ingleses só sabem como é a Inglaterra, portanto posso declarar o que quiser da, são pouco melhores. 331 33°
  • 166. * ,;, ~:c sobre meu país e a minha origem. Inventa-se um novo passado, menos embaraçoso, transformando sua mãe em membro de uma antiga comunidade cristã e seu pai no filho de um cortesão. O Embora entediado por seus estudos, Willie tem um talen- ato de reinventar-se o deixa mais animado, e lhe confere uma to claro como escritor. Estimulado por um amigo inglês a quem sensação de poder. mostra alguns contos que escreveu na escola, ele lê Hemingway Por que esse pai e esse filho sem atrativos são como são? O e, usando "Os assassinos" como seu modelo básico e trasladando que revelam - o que, nas mãos de Naipaul, têm a intenção de situações de filmes de Hollywood para cenários indianos descri- revelar - sobre a sociedade que os produziu? A palavra-chave tos em termos vagos, juntando histórias de Londres com histó- aqui é sacrifício. Willie se apressa em identificar a falta de alegria rias indianas de que se lembra, ele se entrega a uma verdadeira no cerne do tipo de gandhismo seguido por seu pai porque sabe fúria de composição. Para sua surpresa, descobre que consegue em primeira mão o que significa ser objeto de desistência. Uma ser mais fiel aos seus sentimentos quando usa situações muito das histórias que Willie escreve em seu tempo de estudante fala estranhas à sua experiência e personagens totalmente diversas de um brâmane que sacrifica ritualmente crianças "atrasadas" dele do que quando compõe "parábolas cuidadosas e semivela- em troca de riqueza, e acaba sacrificando seus próprios dois fi- das" do tipo que escrevia na escola. (p. 82) lhos. E é essa história, intitulada "Uma vida de sacrifício", com No passado, Naipaul muitas vezes garimpou sua própria bio- sua acusação mal velada contra ele, que faz Chandran pai - grafia para criar suas obras de ficção. Em certos respeitos, o escri- um homem que ganha a vida graças ao que chama de sacrifí- tor-aprendiz W. S. Chandran baseia-se no escritor-aprendiz V. S. cio - mandar seu filho para o estrangeiro. "Esse menino irá Naipaul. Chandran pode ter lido muito menos que Naipaul na envenenar o que me resta de vida. Preciso mandá-Io para longe mesma idade (Naipaul podia invocar como modelos literários daqui." (p. 42) Evelyn Waugh, Aldous Huxley e, por seu tom caracteristicamen- O que Willie detecta é que sacrificar seus desejos significa, te inglês, "sempre distante, insurpreendível, imensamente cul- na prática, não amar as pessoas que você deveria amar. Chan- to", Somerset Maugham).5 Por outro lado, ambos encontram dran reage a essa descoberta levando mais longe ainda o sacrifí- inspiração literária em Hollywood; e na descoberta de Willie cio sem amor do seu filho. Por trás da invenção de Chandran de - de que é mais fiel a si mesmo quando parece mais distante de que sacrificou a carreira em troca de uma vida de automortifi- si - é difícil não ouvir seu autor rebatendo anacronicamente a cação, há uma tradição hindu corporificada, se não no próprio ortodoxia de que todo escritor precisa escrever a partir de sua Gandhi (que Willie e sua mãe desprezam), pelo menos naqui- posição de nacionalidade, raça e sexo. lo em que os indianos como Chandran transformaram Gandhi Por semanas a fio, Willie se dedica a compor suas obras de ao to rná-l o o santo padroeiro do país; corporificada de maneira ficção. Mas, como o que escreve o conduz inexoravelmente a mais geral numa filosofia fatalista que ensina que quanto me- perguntas que não quer enfrentar, ele começa a hesitar, e depois nos melhor, que todo esforço para progredir é, no fim das con- desiste. Nunca mais em sua vida - pelo menos na vida que nos tas, inútil. é apresentada em Meia vida - ele voltará a pegar a pena. 332 333
  • 167. Emerge da tormenta criadora com os originais de 26 con- literária que Naipaul aperfeiçoou ao longo dos anos, em que a tos, que envia a um editor compassivo. O livro, quando é lança- reportagem histórica e a análise social fluem entrando e saindo do, mal atrai qualquer atenção e, àquela altura, de qualquer mo- de uma ficção de colorido autobiográfico e de memórias de via- do, já envergonhava seu autor. Mas ele recebe a carta de uma gem - um modo misto que pode acabar sendo seu principal admiradora com nome português. "Nos seus contos, pela pri- legado às letras de língua inglesa. meira vez, encontrei momentos que lembram os momentos da O quadro que formamos de Moçambique nos últimos anos minha vida", escreve ela. (p. 116) Sabendo como os seus contos do domínio português (Willie passa lá os anos entre 1959 e 1977) tinham sido criados, Willie acha difícil acreditar no que ela diz. é vivo e surpreendente. Ana é moçambicana de nascença, de fa- Ainda assim os dois combinam um encontro, e se apaixonam. O mília portuguesa africanizada. Na escala social, isso a coloca abai- nome dela é Ana, e ela é herdeira de uma propriedade em Mo- xo dos portugueses nascidos na Europa, mas acima dos mestiços, çambique. Num impulso, Willie acompanha Ana para a África que se situam por sua vez acima dos negros. Para Willie, vindo e passa dezoito anos lá sustentado por ela. A segunda metade de de uma Índia presa ao sistema de castas, essas gradaçães sociais Meia vida é ocupada pela história desses anos. Por mais pro- minuciosas baseadas no sangue não são, claro, nada estranhas. fundamente interessante que seja, essa segunda metade não traz O círculo em que Ana e Willie evoluem é constituído por nada que se compare, em profundidade de análise, à história dos proprietários de terras e administradores rurais; a vida social con- Chandran pai e filho. siste em visitas aos vizinhos e viagens à cidade para a compra de mantimentos. Willie (que nesse respeito em nada difere do seu A Índia de Naipaul é abstrata e sua Londres, um rascunho, autor) disseca o modo de vida colonial sem a condescendência mas a Moçambique que ele nos descreve é apresentada de ma- que se poderia esperar de um liberal bien-pensant do Ociden- neira convincente. A Moçambique dos tempos coloniais não te. Na verdade ele aprova a sociedade local, especialmente pelas produziu escritor nenhum de alguma estatura. O escritor mo- oportunidades de variedade sexual que ela lhe fornece. Mesmo çambicano mais conhecido dos dias de hoje, Mia Couto, pertence quando as forças guerrilheiras fecham o cerco e o fim se apro- à geração pós-independência, e de qualquer maneira é influen- xima, seus amigos colonos continuam a "aproveitar o presente, ciado demais pela voga do realismo mágico para merecer con- enchendo as velhas salas de conversa e risadas, como pessoas fiança como cronista do passado do seu país. Assim, Naipaul po- que não se importassem, como pessoas que soubessem conviver deria parecer livre para inventar uma Moçambique própria, de com a história". "Nunca admirei os portugueses tanto quanto fantasia, dos tempos anteriores à guerra. Mas não é o que ele faz. J àquela altura", reflete ele mais adiante. "Gostaria que me fos- Seu compromisso é com o real, com a história real da maneira se possível conviver da mesma forma fácil com o meu passado." como ocorreu com pessoas reais; e assim a segunda parte de Meia (PP·187-8) vida tem um forte sabor jornalístico, com Willie Chandran usa- A liberdade de nadar contra a corrente aqui exibida é coe- do como meio para vinhetas representando a vida colonial. Essa rente com a atitude de Naipaul em relação ao seu próprio passa- parte do romance adere na verdade a um modo de composição do colonial, ou seja, que o fato de descender de humildes cam- 334 335
  • 168. * * * poneses indianos presos ao trabalho nas plantations não precisa fixar ninguém num nicho futuro em que a condição psíquica permanente é a de vítima. Quando Naipaul examina com olhos As aventuras que Willie Chandran vive na África acabam de historiador o imperialismo, o colonialismo e a escravidão, vai sendo basicamente sexuais. Suas relações com Ana não perma- além apenas das variantes ocidentais. Assim, vê a Índia mais pro- necem apaixonadas por muito tempo. Logo ele começa a fre- fundamente marcada por sua sujeição aos mogóis muçulmanos quentar prostitutas africanas, muitas das quais, pelos padrões que pelo domínio do Império Britânico. Os europeus não foram ocidentais, ainda são crianças. Da prostituição infantil ele passa os únicos estrangeiros que se instalaram na África. O litoral leste a um caso com uma amiga de Ana de nome Graça, e Graça lhe africano absorveu tanto árabes e indianos quanto europeus, e os mostra quanto o sexo pode ser brutal. "Como teria sido terrí- africanizou. vel", pensa ele mais tarde, "se ... eu tivesse morrido sem conhe- Uma das vertentes da complexa autoconcepção e auto- cer essa profundidade de satisfação, essa outra pessoa que acabo criação de Naipaul é como um participante da reconquista da de descobrir dentro de mim mesmo." Com uma compaixão fora Grã-Bretanha pelos povos que o Império antes dominava. "Em do normal, ele dirige seus pensamentos para seus pais na Índia, 1950 em Londres", escreve ele em O enigma da chegada, "eu me para "meu pobre pai e minha pobre mãe que não conheceram encontrei no início daquele grande movimento de povos que nada que se comparasse a este momento". (pp. 190, 191) viria a ocorrer na segunda metade do século XX - um movi- Ainda resta a Willie mais um degrau em sua escalada se- mento e uma mistura cultural maiores que os do povoamento xual. Com uma delicada obliquidade, Ana lhe dá a entender dos Estados Unidos." (p. 141) O próprio livro O enigma da che- que Graça é mentalmente instável. E de fato, quando as tropas gada é a história de um homem que chega à Inglaterra de uma portuguesas se retiram e os guerrilheiros invadem, Graça recai ex-colônia para conhecer melhor o país e, finalmente, instala-se num comportamento maníaco de autodegradação. Willie co- na área rural de Wiltshire, um dos chamados home counties, os meça a entender por que as religiões condenam o extremismo condados mais próximos a Londres praticamente absorvidos pe- sexual e, de qualquer maneira, cansou-se da sua aventura colo- lo crescimento da capital. nial. Tem 41 anos de idade; metade de sua vida já passou; despe- Os migrantes do tipo aqui descrito por Naipaul tiveram na de-se de Ana e vai morar com sua irmã nas neves da Alemanha; colônia uma educação comicamente antiquada em relação aos o livro acaba. padrões da metrópole. No entanto, foi justamente essa forma- ção que os tornou guardiães de uma cultura que decaíra na "pátria-mãe". "Os indianos são os únicos ingleses que sobrevive- Meia vida é a história da trajetória de um homem entre um ram", disse Malcolm Muggeridge numa frase famosa.6 A postu- início sem amor e um final solitário que pode não ser realmen- ra muitas vezes professoral que Naipaul adota em seus livros é te um final, só um período de repouso e recuperação. As expe- mais vitoriana do que qualquer britânico nativo teria coragem riências que determinam seu progresso são de natureza sexual. As de assumir. mulheres com quem as compartilha aparecem como objetos de 336 337
  • 169. desejo, repugnância ou fascínio - às vezes os três ao mesmo da - representado, ainda que de forma apenas parodística, pelo tempo - relatados com um olhar de lucidez impiedosa. seu pai - que vê na negação do desejo o caminho para a ilu- Na parte do livro passada em Londres visitamos, pela tercei- minação. Por mais impessoais que sejam, é através de seus en- ra ou quarta vez na obra de Naipaul, desde Os mímicas (1967), o contros sexuais com as mulheres africanas que Willie consegue quarto do segundo piso com uma lâmpada nua e o colchão es- exorcizar os fantasmas de Londres. Mas o que essas mulheres afri- tendido sobre jornais no chão onde um rapaz experimenta o sexo canas teriam de tão diferente? Observando um bando de meni- pela primeira vez. A cada vez a cena é retrabalhada; aos poucos, nas que dança de forma provocadora diante de seus fregueses, ele tornou-se mais bestial e mais desesperada. É como se Naipaul se vislumbra a resposta: elas representam alguma coisa que vai além recusasse a livrar-se da cena até finalmente conseguir espremer das suas existências individuais, algum inescrutável "espírito mais dela um último sentido que ela se recusa a fornecer. profundo". "Comecei a formar a ideia de que no coração africa- Na África, quando toma nos braços sua primeira menina no existia alguma coisa que se fechara para o resto de nós, e mui- prostituída, os fantasmas do seu passado londrino erguem-se à to além da política." (p. 173) sua frente. Mas, no momento em que está a ponto de desistir, Naipaul conhece bem a África. Morou e trabalhou na Áfri- "uma extraordinária expressão de comando, agressividade e von- ca Oriental: o conto "Home again", em Um caminho no mun- tade assoma nos olhos [da menina], seu corpo todo é tomado pela do (1994), baseia-no tempo que passou lá. In a Free State (1971) e tensão, e me vi apertado por suas mãos e pernas fortes. Numa Uma curva no rio (1979) são ambos "sobre" a África. No geral, a fração de segundo - como a decisão quase imediata que tomei visão que Naipaul apresenta da África permanece notavelmente olhando pela mira de uma arma - eu pensei: 'É para isso que constante e até, pode-se mesmo dizer, rígida. A África é um lu- Álvaro [o amigo que o trouxe ao bordeI] vive', e recuperei os sen- gar onÍrico e ameaçador que resiste à compreensão, que corrói tidos". Depois dessa experiência, "comecei a viver com uma no- a razão e os produtos tecnológicos desta última. Joseph Conrad, va ideia do sexo ... Era como se tivesse adquirido "iIma nova ideia o homem dos confins do Ocidente que se transformou num clás- de mim mesmo". (p. 175) sico da literatura inglesa, foi um dos mestres de Naipaul pela vida No momento com a garota, Willie evoca a outra improvável inteira. Para o bem ou para o mal, a África de Naipaul, com suas paixão que desenvolve na África: as armas. Fazer pontaria e puxar imagens de máquinas industriais oxidadas e enredadas por cipós o gatilho transforma-se, para ele, na prova existencial da verdade selvagens, vem de Coração das trevas. da vontade, num nível além do alcance do controle racional. As mulheres africanas com quem dorme provam a verdade do seu Meia vida não dá a impressão de ter sido trabalhado com desejo de um modo que igualmente não admite disfarce. muito cuidado, e as insuficiências técnicas que disso resultam não É ao identificar o enlace sexual como a suprema área de tes- são negligenciáveis. O plano de Naipaul é apresentar-nos toda a tes para a verdade sobre quem é que Naipaul chega mais perto história como se fosse contada por Willie. Mesmo a história de de articular a natureza da jornada espiritual que Willie Chandran Chandran pere deveria basear-se no que Willie ouviu da sua bo- vem percorrendo, e de medir a sua distância de um modo de vi- ca. Mas o plano só é levado a efeito até certo ponto. Apesar da 338 339
  • 170. f 'I ---- frieza entre pai e filho, o pai dá a Willie acesso a seus sentimen- podia recorrer apenas à sua infância na minúscula Port of Spain, tos mais secretos, inclusive a repugnância física que sente pela e não contava com nenhuma memória histórica mais ampla (e mulher. Em alguns momentos, a suposta condução da narrativa nisso Trinidad deixou-o na mão e, por trás de Trinidad, a Índia); por Willie é totalmente abandonada em favor das intervenções em suma, parecia não ter assunto. Só depois de décadas de esfor- de um narrador onisciente à moda antiga. ços literários é que finalmente chegou à compreensão proustia- E ainda há outras fraquezas. As cenas da vida literária em na de que sempre soubera qual era seu assunto principal, e esse Londres parecem saídas de um roman à elef satírico cuja chave assunto era ele próprio - ele e seus esforços, como cidadão das estará fora do alcance da grande maioria dos leitores. O amor colônias educado numa cultura que não lhe pertencia (pelo que juvenil de Willie por Ana passa perto de cair no cliché. E, o que lhe diziam) e sem uma história (pelo que lhe diziam), para en- é mais impressionante de tudo, a história de Willie se encerra contrar um caminho no mundo. não só sem uma resolução, mas sem qualquer vislumbre de co- Willie não é Naipaul, e o contorno da vida de Willie só cor- mo poderá vir a ser. Sua Meia vida parece a metade inicial ar- responde aqui e ali à de seu criador. Ainda assim, nas passagens rancada de um livro que poderia chamar-se Uma vida inteira. em que examina o sacrifício e no que uma herança profunda- Mas esse tipo de restrição não afeta Naipaul. A seu ver, o mente impregnada de sacrifício se transforma quando ela própria romance como veículo para as energias criativas chegou a seu é sacrificada, Meia vida adquire os acentos urgentes e inconfun- apogeu no século XIX; escrever romances impecavelmente tra- díveis da verdade pessoalJ Será possível que o imenso feito de balhados em nossos dias é entregar-se na verdade a uma arte de autoconstrução que Naipaul empreendeu durante a terceira e a antiquários. Dados seus sucessos na criação pioneira de uma for- quarta décadas de sua vida lhe pareça em retrospecto ter cobra- ma alternativa, fluida e semificcional, essa sua opinião merece do um preço alto demais em sacrifício do corpo e de seus apetites, ser levada a sério. um preço que equivaleria a nada menos que a metade de uma Ainda assim, chegamos ao fim de Meia vida com a sensação vida humana? de que não é Willie Chandran, mas o próprio Naipaul, quem não sabe o que virá em seguida. E, de fato, o que pode fazer um Na pessoa de Chandran senior, Naipaul diagnostica o sacri- refugiado de 41 anos de idade que nunca trabalhou e só conse- fício como o caminho da fraqueza pelo qual enveredam os espí- guiu produzir uma única coisa na vida, um livro de contos pu- ritos sem amor, uma forma essencialmente mágica de conquistar blicado décadas antes? Quem é Willie Chandran, afinal? E por a vitória na dialética natural entre um eu desejante e o mundo que Naipaul, um escritor prolífico e famoso, investe suas ener- real que lhe resiste simplesmente suprimindo o desejo. Na histó- gias numa anti-identidade cuja única marca de distinção é ter da- ria da vida do jovem Chandran, Naipaul acompanha as conse- do as costas ao que podia ter sido uma carreira literária? quéncias infelizes de crescer numa tal cultura de sacrifício. Um dos traços mais constantes na maneira como Naipaul É instrutivo ler a história de Willie Chandran lado a lado conta a história de sua própria vida é que foi por pura força de com a história que Anita Desai nos conta em seu romance O je- vontade que se tornou escritor. Não era muito dado à fantasia; jum e a festa (2000), de um jovem que é transplantado em cir- 34° 341
  • 171. cunstâncias similares da sua terra natal indiana para um país on- trar o mesmo tipo de fome em plena América, "onde tanto é da- de reina o apetite.8 do às pessoas, onde existe ao mesmo tempo licença e fartura". 1111 como Willie, o Arun de Anita Desai foi criado sob as Quando ele chegara lá, tinha exultado com o anonimato: "sem ordens de um pai cujos padrões jamais consegue satisfazer. Tal passado, sem família ... sem país". Mas afinal não escapara à fa- como Willie, Arun obtém uma bolsa de estudos e se descobre mília, só encontrara uma "reprodução em plástico" da mesma. mais ou menos sem rumo numa cidade estrangeira, no caso Bos- O que ele tinha na Índia era "desprovido de encanto e beleza, ton, onde encontra alojamento fora do eampus na casa de uma contorcido, frágil e condenado". O que encontrou em lugar disso família americana de nome Patton. Seu anfitrião, descobre ele, na América era "limpo, reluzente, cintilante, sem gosto, sabor ou é um carnívoro contumaz que adora grelhar bifes imensos em substância", e igualmente desprovido de amor. (pp. 214, 172, 185) sua churrasqueira ao ar livre. As refeições logo se transformam O excesso impressionante de comida que Arun encontra na em rituais de constrangimento: as regras da sua casta lhe proí- América, e os hábitos dietéticos totalmente desequilibrados da bem o consumo de carne e, embora o tabu não fosse observado família Patton, têm uma relação clara, embora enviesada, com o em sua casa, Arun sempre achou a carne repulsiva. Seus hábitos festim ou banquete do título de Desai. Mas e o jejum? dietéticos logo se transformam num pretexto para uma rixa per- Arun é jovem e inseguro demais para repudiar o modo de manente entre os membros da família Patton. A sra. Patton se de- vida que os Pattons exemplificam. Aplicadamente, tenta emular clara convertida ao vegetarianismo, e produz para Arun sua ver- os feitos atléticos de Rod Patton. Mas logo fica claro para ele que são de uma dieta sem carne: sanduíches de alface e tomate, flocos "um rapaz miúdo, subdesenvolvido e asmático das planícies gan- de cereal com leite. Mergulhado no sofrimento, ele come, obe- géticas, criado à base de legumes com eurry e lentilhas cozidas" diente: "Como poderia dizer [a ela] ... que seu sistema digestivo jamais poderá competir com um exemplar dos bem nutridos não tinha como transformar [aquela comida] em nutrição?". Ela machos americanos. Uma das maneiras de remediar esse esta- o convence até a cozinhar, e com um entusiasmo fingido engo- do de coisas seria trocar a dieta indiana por uma americana, dei- le a pasta nada apetitosa que o menino triste - o qual na Índia xar de ser um praticante do jejum e sentar-se também à mesa do nunca vira sequer o interior de uma cozinha, tendo sempre sido festim. Mas esse não é um passo que ele se julgue capaz de dar. servido pelos criados ou pelas irmãs - acaba preparando. (p. 185) Arun continua vegetariano por motivos que não são nem religio- O sr. Patton e seu filho Rod refugiam-se perplexos nas pro- sos nem éticos, e certamente nada têm de sociais. Por tempera- ximidades da churrasqueira, enquanto a filha da família se es- mento ou talvez simplesmente por sua conformação fisiológica, conde no quarto, devorando tabletes de chocolate que depois se ele não é carnívoro. A carne e (quando a sra. Patton enverga seu força a vomitar, odiando-se o tempo todo. Na garota bulímica maiô de banho) o excesso de carnes lhe provocam repulsa, não Arun vê uma semelhança impressionante com sua irmã mais ve- porque seus tabus dietéticos sejam ofendidos ou porque ele seja lha e epiléptica que, incapaz de encontrar palavras para protes- um puritano moralista, mas porque em seu ser ele é um asceta, tar por "sua existência singular e suas fomes" serem ignoradas, assim como no ser dela sua irmã epiléptica é uma devota religio- recorre a espumar pela boca. Como é estranho, pensa ele, encon- sa. O páthos do rapaz - aquilo que seria difícil chamar de tragé- 342 343
  • 172. dia, já que Desai trabalha com uma paleta deliberadamente co- é uma ilusão. Num nível mais mundano, certos tabus dietéticos medida - é que ele mal consegue encontrar as palavras para talvez precisassem ser abolidos: num momento que o historiador descrever seu sofrimento, muito menos articular seu significado Ashis Nandy define como "de um derrotismo terrível", Viveka- mais amplo, a saber, que o mundo moderno, inclusive a Índia nanda chegou a defender que os hinduístas recorressem aos "três em seu aspecto moderno, mostra-se cada vez menos hospitaleiro B's" para a sua salvação: o Bhagvad-Gita, os bíceps e os bifes.9 ao temperamento dos praticantes do jejum. (p. 191) A discordância entre Arun e seu pai em torno do tabu bra- Mesmo na Índia, o vegetarianismo de Arun era uma fonte mânico que veda o consumo de carne, assim, é mais que um de desentendimentos. Seu pai queria que ele praticasse esportes simples desentendimento de família. Os dois representam visões másculos e, de maneira mais geral, fosse bem-sucedido na vida, opostas quanto ao preço que os hindus - e os indianos - de- entendendo por tal que desejaria que ele fosse menos fatalista e vem estar prontos a pagar - aquilo de que precisam abrir mão mais empreendedor, menos passivo e mais ativo, menos femi- - para se transformarem em atores do mundo moderno. Em nino e mais masculino, menos indiano e mais ocidental. Tendo sua rejeição confusa e nada heroica da fatia de carne que o sr. tentado sem sucesso nutrir a força de Arun alimentando-o com Patton joga com força no seu prato, em sua relutância em negar carne, ele interpreta a repulsa do rapaz por esse alimento como o que parece um sacrifício aos estrangeiros, e de maneira mais um atavismo repreensível, um retorno ao "modo de vida dos an- geral em sua incapacidade de considerar o festim do Novo Mun- tepassados, homenzinhos miúdos e fracos que nunca chegaram do o tipo de comida que possa alimentá-Io, Arun não só preserva a nada na vida". (p. 33) um mínimo de integridade pessoal como ainda complica e lan- Curiosamente ou não, Arun e seu pai encarnam assim os ça dúvidas sobre uma receita como a de Willie Chandran para dois lados, o tradicional e o progressista, de um debate acerca do progredir no mundo. Num nível pré-cultural, o nível do próprio caráter nacional que remonta na Índia a meados do século XIX, corpo, ele resiste às pressões da assimilação: esse corpo indiano debate desencadeado pelos reformadores hindus Swami Daya- "subdesenvolvido" não é um corpo americano, e nunca se trans- nand Saraswati (1824-83) e Swami Vivekananda (1863-19°2). Tan- formará num deles. to Saraswati quanto Vivekananda julgavam que os hindus do seu tempo tinham perdido contato com os valores masculinos e mar- (2001) ciais de seus antepassados; ambos advogavam um retorno aos valores "arianos", retorno que, se necessário, deveria incluir a in- corporação dos traços da cultura de seus dominadores coloniais que mais evidentemente respondiam pelo poder dos britânicos. Na esfera da religião, o hinduísmo devia ser organizado nos mol- des de uma igreja cristã, com linhas claras de governança inter- na. No nível filosófico, talvez fosse necessário aceitar que a his- tória é antes linear do que cíclica, e portanto que o progresso não 344 345
  • 173. Notas J I I 1 I L ITALO SVEVO [pp. 17-32] 1 1. Livia Veneziani Svevo, A Memoir of Italo Svevo, trad. Isabel QuigIy, Evanston, North-western University Press, 2001. 2. P. N. Furbank, ltalo Svevo: The Man and the Writer, Londres, Secker, 1966, p. 172. 1 3. Halo Svevo, Zeno's Conscience, traduzido por e com uma apresentação de William Weaver (Nova York, Knopf, 2001; Londres, Penguin, 2001), p. 404. Fiz pequenas mudanças na tradução de Weaver. [Ed. bras.: A consciência de Zeno, trad. Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.] 4. Svevo, As a Man Grows Older, trad. Beryl de Zoete, Nova York, Review Books, 2001, p. 172. [A frase da tradutora em inglês é "in search of a refuge from such an infamous embrace", N. T.] [Ed. bras.: Senilidade, trad. Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002.] 5. Svevo, Emilio's Camival, trad. Beth Archer Brombert, New Haven, Yale LJniversity Press, 2001, pp. 16, 117, 170. 6. Citado em John Gatt-Rutter, Italo Svevo, Oxford, Oxford University Press, 1988, p. 163. 7. Id., ibid., pp. 281, 297· 8. "The Story of the Nice Old Man and the Pretty Girl", trad. L. Colli- son-Morley, in Svevo, Short Sentimental Journey and Other Stories, Londres, Secker & Warburg, 1967, p. 81, vol. 4 da edição uniformizada. 347
  • 174. 9· Citado em Gatt-Rutter, p. 307. 15. The Robber, trad. Susan Bernofsky, University of Nebraska Press, 2000; 10. Na tradução de Weaver, o trecho diz: "Unlike other sicknesses, life ... Jakob von Gunten, trad. Christopher Middleton (ver nota 4 deste capítulo). doesn't tolerate therapies". ("À diferença de outras moléstias, a vida ... não com- 16. Susan Bernofsky, "Gelungene Einfalle", in Utz, Wiinnende ..., pp. 123-4- porta terapias", p. 435.) Weaver usa sistematicamente "therapy" para a "cura" [Eis a tradução de Bernofsky para o inglês: "He sat in the aforementioned gar- do italiano de Svevo que [como em português] tanto pode se referir ao proces- den, entwined by lia nas, embutterflied by melodies, and rapt in the rapscallity so de tratamento como a seu resultado, ficar curado. Mas há muitos casos, co- of his love for the fairest young aristocrat ever to spring down from the heavens of mo aqui, em que "cure" transmite a intenção de Svevo com mais exatidão do parental shelter into the public eye so as, with her channs, to give the heart of a que "therapy", ou como no trecho em que Zeno promete a si mesmo que irá Robberafatalstab.". N. T.] recuperar-se da "cura" do dr. S. 17. Id., ibid., p. 117. 11.Gatt-Rutter, p. 238. 18. Walser, Gesammelte Werke, org. Jochen Greven, Frankfurt, Suhrkarnp, 1978, vol. x, p. 323. 19. Kerr (org.), Über Robert Walser, p. 12, vol. 11. 2. ROBERT WALSER [pp. 33-5oJ 20. O original está em Frõhlic e Hamm (orgs.), Robert Walser: Leben und Werk, p. 279. 1. Por exemplo, uma das fotos da polícia é reproduzida em Elio Frõhlich e Peter Hamm (orgs.), Robert Walser: Leben und Werk, Frankfurt, Insel, 1980. 2. Citado em Katharina Kerr (org.), Cher Robert Walser, Frankfurt, Suhr- 3. ROBERT MUSIL, O JOVEM TORLESS [pp. 51-61J kamp, 1978, p. 13, vol. 2. 3· George C. Avery, Inquiry and Testament, Filadélfia, University ofPennsyl- 1. Musil, Diaries 1899-1941, org. Mark Mirsky, trad. Philip Payne, Nova vania Press, 1968, p. 6. York, Basic Books, 1998, p. 209. 4· Jakob von Gunten, trad. Christopher Middleton, Nova York, New York 2. Brecht citado em Werner Mittenzwei, Exil in der Schweiz, Leipzig, Rae- Review Books, 1999, p. 3. Iam, 1978, p. 19; Musil citado em Ignazio Silone, "Begegnungen mit Musil", in Karl Dinklage (org.), Robert Musil: Studien zu seinem Werk, Reinbek: Rowohlt, 5· "Robert Walser", in Michael W. Jennings, Howard Eiland, Gary Smith 197°, p. 355· (orgs.), Selected Writings, trad. Rodney Livingstone et a!., Cambridge [Mass.], 3. Citado em Karl Dinklage, "Musil's Definition des Mannes ohne Eigens- Harvard University Press, 1999, p. 259, vol. 11. chaften", in Robert Musil: Studien zu seinem Werk, p. Il4- 6. Citado em Avery, Inquiry ..., p. 11. 4. Citado em David S. Luft, Robert Musil and the Crisis ofEuropean Cul- 7· Citado em K-M. Hinz, T. Horst (orgs.), Robert Walser, Frankfurt, Suhr- ture 1880-1942, Berkeley, University of California Press, 1980, p. 108. kamp, 1991, p. 57. 5· Diaries 1899-1941,p. 465. 8. Citado em Werner Morlang, "The Singular Bliss ofthe Pencil Method", 6. The Confusions ofYoung Tor!ess, trad. Shaun Whiteside, Londres, Pen- Review of Contemporary Fiction 1211, 1992, p. 96. gUIl1,2001, p. 157. 9· Citado em Mark Harman (org.), Robert Walser Rediscovered, Hanover e 7. The Man without Qualities, trad. Sophie Wilkins, Nova York, Knopf, Londres, University Press ofNew England, 1985, p. 206. 1996; Londres, Picador, 1997, p. 826, vol. 2. [Ed. bras.: O homem sem qualida- 10. Citado em Idris Parry, Hand to Mouth, Manchester, Carcanet, 1981, des, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.] P·35· 8. Diaries 1899-1941, p. 384. 11.Citado em Peter Utz (org.), Wiinnende Fremde, Berna, Peter Lang, 1994, p. 64; em Kerr (org.), Über Robert Walser, vol. 2, p. 22. 12. Citado em Utz, Wiinnende ..., p. 74. 4. WALTER BENJAMIN, PASSAGENS [pp. 62-89J 13· Citado em Agnes Cardinal, The Figure ofParadox in the Work ofRobert Walser, Stuttgart, Heinz, 1982, p. 39. 1. Walter Benjamin, The Arcades Pro;ect, trad. Howard Eiland e Kevin 14· Citado em Morlang, "The Singular Bliss ...", p. 96. McLaughlin, Cambridge (Mass.], Harvard University Press, 1999, p. 948. 348 349
  • 175. 2. Id., Selected Writings. Volume 1: 1913-1926, org. Marcus BuIlock e Mi- 2. Jerzy Ficowski, Regions af the Great Heresy: Bruno Schulz, A Biographi- chael W. Jennings, trad. Rodney Livingstone, Stanley Corngold, Edmund cal Portrait, traduzido e editado por Theodosia Robertson, Nova York, W. W. Jephcott, Harry Zohn, Cambridge [Mass.], Harvard University Press, 1996, p. Norton, 2002, p. 105. 446. Doravante referido como VI. 3. Carta a Romana Halpern, agosto de 1938, em Jerzy Ficowski (org.), Col- 3· Id., Selected Writings. Volume 2: 1927-1934, org. Michael W. Jennings, lected Warks ofBruno Schulz, Londres, Picador, 1998, p. 442. Howard Eiland e Gary Smith, trad. Rodney Livingstone et aI., Cambridge 4. Drohobycz, Drohobycz and Other Staries, trad. Alicia Nitecki, Nova York, [Mass.], Harvard University Press, 1999, p. 47. Doravante referido como V2. Penguin, 2002. 4· Citado em Susan Buck-Morss, The Dialectics afSeeing: Walter Benjamin 5. The Street of Crocodiles, trad. Celina Wieniewska, introdução de Jerzy and the Arcades Project, Cambridge [Mass.], MIT, 1997, p. 21. Ficowski, Nova York, Penguin, 1977. 5· Carta a Martin Buber, in Walter Benjamin, Correspondence 1910-1940, 6. Bruno Schulz, Drawings and Documents from the Collectíon of the org. Gershom Scholem e Theodor W. Adorno, trad. Manfred Jacobson e Evelyn Adam Mickiewicz Líbrary Museum, Varsóvia, 1992. Jacobson, Chicago, University of Chicago Press, 1994, p. 313. 6. Citado em Buck-M6rss, p. 383. 7· Walter Benjamin, Gesammelte Scriften, sete volumes, org. Rolf Tiede- 6. JOSEPH ROTI-I, os CONTOS [pp. 106-121] mann e Herman Schweppenhauser, Frankfurt, Suhrkamp, 1972-89, voI. 3, p. 52; V2, p. 559. L Citado em William M. Johnston, The Austrian Mind: An Intellectual and 8. "The work of art...", in Illuminations, org. Hannah Arendt, trad. Harry Social History, 1848-1938, Berkeley eLos Angeles, University of California Press, Zohn, Nova York, Schocken, 1969; Londres, Jonathan Cape, 1970, p. 238. 1972, p. 238. 9· "On Some Motifs in Baudelaire", in Illuminations, p. 190. 2. Citado em Sidney Rosenfeld, Joseph Roth, University of South Carolina 10. Citado em Momme Brodersen, Walter Benjamin: A Biography, trad. Press, 2001, p. 45. Malcolm R. Green e Ingrida Ligers, Londres e Nova York, Verso, 1996, p. 239. 11. Citado em Buck-Morss, p. 220. 3. Citado em Helmuth Nürnberger, Joseph Roth, Hamburgo, Rowohlt, 1981, p. 38. 12. Carta de 1931, citada em Gerhard Richter, Walter Benjamin and the 4. Id., ibid., p. 15· Corpus af Autabiagraphy, Detroit, Wayne State University Press, 2000, p. 31. 5. Id., ibid., p. 104- 13· Citado em Rainer Rochlitz, The Disenchantment of Art: The Phílasa- 6. Id., ibid., p. 70, 74. phy afWalter Benjamin, trad. Jane Marie Todd, Nova York, Guilford Press, 1996, p. 133· 7. Id., ibid., p. 119· 14· AP, p. 460; The Origin af German Tragic Drama, trad. John Osborne, 8. The Collected Stories of Joseph Rath, trad. Michael Hofmann, Nova Londres, New Left Books, 1998, p. 34- York, W. W. Norton, 2001. Publicado no Reino Unido como Collected Shorter 15· Citado em Buck-Morss, p. 228. Fiction ofJoseph Roth, Londres, Granta, 2001. 16. Id., ibid., p. 291. 9. Citado em David Bronstein (org.), Joseph Roth und die Tradítion, Agor 17· Ver VI, p. 360, nota 38. VerIag, 1975, p. 128. 18. Illuminatians, p. 3. 7. SÁNDOR MÁRAI [pp. 122-143] 5· BRUNO SCHULZ [pp. 9°-105] L Sándor Márai, As brasas, trad. Rosa Freire d'Aguiar da versão italiana de L Bruno Schulz, carta a Andrzej Plesniewicz, citado em Czeslaw Z. Pro- Marinela d'Alessandro, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 36. copcyk (org.), Bruno Schulz: New Documents and lnterpretations, Nova York, 2. Land, Land!. ..: Erinnerungen, tradução do húngaro para o alemão por Peter Lang, 1999, p. 101. Hans Skirecki, Munique, Piper, 2001, p. 114. 35° 351
  • 176. 3· Confissões de um burguês, tradução do húngaro de Paulo Sehiller, São uma superação do ódio, conseguiu brotar em mim. E quem sou eu para ter a Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 329. pretensão de 'perdoar'!". Citado em Maurice Friedman, "Paul Celan and Mar- 4- O legado de Eszter, tradução do húngaro de Paulo Sehiller, São Paulo, tin Buber", Religion and Líterature 2911(1997), p. 46. Companhia das Letras, 2001. 10. sPP, p. 245; Clottal Stop: 101 Poems, trad. Nikolai Popov & Heather 5· Citado em László Rónay, "Biographische Chronologie", in Sándor Má- McHugh, Hanover e Londres, Wesleyan University Press, 2000, p. 19. rai, Land, Land!. .. , Berlim, Oberbaum, 2000. 11.Citado em Felstiner, p. 287. 6. Der Wind Kommt vom Westen: Amerikanische Reisebílder, tradução do 12. Poetry as Experience, trad. Andrea Tarnowski, Stanford, Stanford Uni- húngaro para o alemão por Artur Saternus, Langen Müller, 1964- versity Press, 1999, pp. 38, 122. O livro de Laeoue-Labarthe foi publicado origi- 7· Diário 1968-75, in Tagebücher: Auszüge, Berlim, Oberbaum, 2001, pp. 25-6. nalmente em 1986. 8. Confissões de um burguês, pp. 343, 372- 13. Paul Celan, Breathtum, Los Angeles, Sun & Moon Press, 1995; Thread- 9· Tradução do húngaro para o inglês por Albert Tezla, Budapeste, Corvi- suns, Los Angeles, Sun & Moon Press, 2000, ambas trad. Pierre Joris. na/Central European University Press, 1996. 10. Die Zeit, 14 de setembro de 2000. 11. Conversations in Bolzano, Londres, Viking, 2004; Casanova in Bolzano, 9. GÜNTER GRASS E O WILHELM GUSTLOFF [pp. 165-179] Nova York, Knopf, 2004- Tradução do húngaro para o inglês por George Szirtes. L Cünter Grass, Crabwalk, trad. Krishna Wilson, Nova York, Harcourt, 2003, p. 25. [Ed. brasileira: Passo de carangue;o, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 8. PAUL CELAN E SEUS TRADUTORES [pp. 144-164] 2002.] 2. Cat and Mouse and Other Writings, org. A. Leslie WiIIson, trad. Ralph L Paul Celan, Nelly Sachs: Correspondence, trad. Christopher Clark, River- Mannheim, Nova York, Continuum, 1994, p. 23· dale-on-Hudson, Sheep Meadow Press, 1995, p. 17. 2. John Felstiner, Paul Celan: Poet, Survivor, Jew, Nova York, W. W. Nor- 3. The Rat, trad. Rudolph Mannheim, Londres, Secker, 1987, p. 63. [Ed. ton, 1995, pp. 253, 181. brasileira: A ratazana, Rio de Janeiro, Record, 2002.] 3· Selected Poems and Prose ofPaul Celan, trad. John Felstiner, Nova York, 4. The Call of the Toad, trad. Ralph Mannheim, Nova York, Harcourt Bra- W. W. Norton, 2000, p. 329. Doravante referido como SPP. [Após o texto origi- ce,1992. nal, apresentado em itálico, minha versão livre para o português. N. T.] 4· Hans-Georg Gadamer, "Epilogue", in Gadamer on Celan, traduzido e organizado por Richard Heinemann e Bruce Krajewski, Albany, State Univer- 10. W. G. SEBALD, AFTER NATURE [pp. 180-192] sity of New York Press, 1997, p. 1{2. 5· Introdução, Poems ofPaul Celan, Londres, Anvil Press, 1988, p. 18. L The Emigrants, trad. Michael Hulse, Nova York, New Directions, 1996; 6. Hans Egon Holthusen, citado em Felstiner, p. 79. Londres, Vintage, 2002. [Ed. brasileira: Os emigrantes, São Paulo, Companhia 7· Paul Celan, Collected Prose, trad. Rosemary Waldrop, Riverdale, Sheep das Letras, 2009.] Meadow Press, 1986, p. 16. 2. Vertigo, trad. Michael Hulse, Nova York, New Directions, 2000; Lon- 8. Theodor Adorno, "Cultural Criticism and Society", in Prisms, trad. Sa- dres, Vintage, 2000. [Ed. brasileira: Vertigem, São Paulo, Companhia das Le- muel e Shierry Weber, Londres, Spearman, 1967, p. 34. [Ed. brasileira: Prismas, tras, 2008.] São Paulo, Ática, 1997.] 3. Unheimliche Heimat: Essays zur õsterreichischen Líteratur, Salzburgo & 9· Felstiner, p. 161.Aqui, vale uma palavra de advertência. Temos apenas o Viena, Residenz, 2002. relato de Celan para esse encontro. O que Celan conta não condiz com o que 4. The Rings of Satum, trad. Michael Hulse, Nova York, New Directions, Buber escrevera sete anos antes: "Eles [os nossos perseguidores] afastaram-se 1998; Londres: Vintage, 2002, p. 5. [Ed. brasileira: Os anéis de Satumo, São tão radicalmente da esfera humana ... que nem mesmo o ódio, muito menos Paulo, Companhia das Letras, 2010.] 352 353
  • 177. 5· Austerlitz, trad. Anthea BeIl, Nova York, Random House, 2001; Londres, nas indicações que nos fornecem ou deixam de fornecer quanto à obra que se Penguin, 2002. [Ed. brasileira: Austerlitz, São Paulo, Companhia das Letras, seguiria a elas. 2008.] 2. Citado em James Knowlson, Damned to Fame: The Life of Samuel Be- 6. t<orYears Now, Londres, Short Books, 200l. ekett, Nova York, Simon & Schuster, 1996; Londres, Bloomsbury, 1996, p. 60l. 7· After Nature, trad. Michael Hamburger, Nova York, Random House, [No original: "The long craoked straight is laborious but not without excite- 2002; Londres, Penguin, 2004. ment. While still 'young' I began to seek consolation in the thought that then if ever, i. e. now, the true words at last, fram the mind in ruins. To this illusion 8. On the Natural History of Destruetion, trad. Anthea BeIl, Nova York, Random HOllse, 2003. I continue to cling". N. T.] 11. HUGO GLAUS, POETA [pp. 193-197] 14- WALT WHITMAN [pp. 214-23°] l. Walt Whitman: Memoranda during the War, org. Peter CovieIlo, Oxford l. "Entrevista", in Hugo Claus, Gediehten 1948-2004, Amsterdam, Besige University Press, 2004, pp. 167-8. Bij, 2004, vol. 2, pp. 501-3. 2. Citado em Paul Zweig, Walt Whitman: The Making of the Poet, Nova 2. "Chicago", in Id., ibid., vol. I, p. 269. York, Basic Books, 1984, p. 339. 3. Memoranda, p. XXXVIII. 4- Leaves of Grass: Reader's Edition, org. Harald W. Blodgett e ScuIley 12. GRAHAM GREENE, O CONDENADO [BRIGHTON ROGK] [pp. 198-208] Bradley, Nova York, New York University Press, 1965, p. 751. Doravante referi- do comoLoG. l. Brighton Roek, Nova York, Penguin, 2004; Londres, Vintage, 2004, p. 26l. 5. Justin Kaplan, Walt Whitman: A Life, Nova York, Simon & Schuster, 1980, pp. 3H, 316. 2. Marie-François AIlain, The Other Man: Conversations with Graham 6. Citado em Kaplan, p. 47. Greene, Nova York, Simon and Schuster, 1983, p. 125. 7. Leaves of Grass: ISO/h Anniversary Edition, org. e posfácio de David S. 3· "Henry James: The Private Universe" (1936), in Colleeted Essays, Har- Reynolds, Nova York, Oxford University Press, 2005, p. 10l. mondsworth, Penguin, 1970, p. 34. 8. David S. Reynolds, Walt Whitman, Nova York, Oxford University Press, 4- "François Mauriac" (1945), in Colleeted Essays, p. 9l. 2005, p. H8. 5· Em 1926 "convenci-me da provável existência de algo que chamamos 9. Jerame Loving, Walt Whitman: The Song of Himself, Berkeley eLos Deus", escreveu Greene. A Sort ofLife, Londres, Bodley Head, 1971, p. 165. Angeles, University of California Press, 1999, pp. 297,299, 376. 6. Resenha de The Heart of the Matter, in Colleeted Essays, Londres, Secker 10. Reynolds, Walt Whitman, p. 10l. & Warburg, 1968, p. 441, vol. 4. H. Introdução aos Memoranda, pp. XXXVI-XXXVII. 12. Jonathan Ned Katz, The lnvention ofHeterosexuality, Nova York, Dutton, 1995, pp. 43-7· 13· SAMUEL BEGKETT, OS CONTOS [pp. 2°9-213] 13. Citado em Kaplan, p. 133. 14. Memoranda, p. 126. l. Passo por cima de toda a ficção curta anterior: os contos que compõem 15. Whitman, citado em Kaplan, p. 337. More Prieks than Kieks ("Mais espinhos que diversão"), escritos entre 1931 e 16. Loving, p. 259; Kaplan, p. 329. 1933, e o punhado de outros textos curtos de ficção do mesmo período. Pode-se 17- Zweig, p. 343· dizer acerca dessas obras, com razoável justiça, que não mereceriam ser preser- 18. Reynolds (org.), p. 17; LoG, p. 52. vadas caso não tivessem sido escritas por Beckett. Seu interesse reside apenas 19. Reynolds, Walt Whitman, p. H7. 354 355
  • 178. 15· WILLIAM FAULKNER E SEUS BIÓGRAFOS [pp. 231-25°] 2. Roth, The Plot against America, Nova York, Houghton Mimin, 2004, p. 365. [Ed. brasileira: Complô contra a América, São Paulo, Companhia das Le- 1. Citado em Joseph Blotner, Faulkner: A Biography, edição em volume tras, 20°9.] único, Nova York, Random House, 1984, p. 570. 3. Número datado de 19 de setembro de 2004, p. 11. 2. Frederick R. Karl, Wílliam Faulkner: American Writer, Londres, Faber, 4- Roth, American Pastoral, Nova Yark, Houghton Mimin, 1997, p. 287. 1989, p. 523. [Ed. brasileira: Pastoral americana, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.] 3· Jay Parini, One Matchless Time: A Lífe ofWílliam Faulkner, Nova York, 5. Roth, The Facts: A Novelist's Autobiography (1988), Londres, Cape, 1989, HarperCollins, 2004, pp. 20, 79, 141, 145; ver também Karl, p. 213. P·169· 4· Citado em B1otner, p. 106. 6. Roth, The Human Stain (2000), Nova Yark, Vintage, 2001, p. 132- [Ed. 5· Citado em Karl, p. 757. brasileira: A marca humana, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.] 6. Quinn citado em Parini, p. 271; Brooks citado em Parini, p. 292. 7. Roth, Operation Shylock, p. 113· 7· Citado em Blotner, p. 611. [FIem Snopes é personagem da "trilogia dos Snopes" de !:"aulkner, de que o ensaio fala mais adiante, pequeno empresário arrivista do "Novo Sul". N. T.] 19. NADINE GORDIMER [pp. 293-307] 8. Citado em Blotner, p. 599. 9· Go Down, Moses, Harmondswarth, Penguin, 1960, p. 227. 1. "Some are Born to Sweet Delight", in Jump and Other Stories, Londres, 10. Citado em B1otner, p. 501. Bloomsbury, 1991, pp. 67-88. 11. John Steinbeck: uma biografia, Rio de Janeiro, Recard, 1998; Robert 2. The Pickup, Nova Yark, Penguin, 2001. [Ed. brasileira: O engate, São Frost: a Lífe, Nova York, Holt, 1999; A última estação: os momentos finais de Paulo, Companhia das Letras, 20°4.] Tolstói, Rio de Janeiro, Recard, 2009; A travessia de Benjamin, Rio de Janeiro, 3. Albert Carnus, "The Adulterous Woman", in Exile and the Kingdom Record, 1999. (1957), trad. Justin O'Brien,Harmondswarth, Penguin, 1962, pp. 9-29. 12. Mosquitoes, Londres, Chatto & Windus, 1964, p. 209. 4. Loot and Other Stories, Nova York, Farrar, Strauss, Giroux, 2003, p. 32. 13· Commins citado em Karl, p. 844; June Faulkner citada em Parini, 5. What is Literature?, trad. Bernard Frechtman, Londres, Methuen, 1967, p. 251. P·14· 6. Cf. "A Writer's Freedom" (1975), "Living in the Interregnum" (1982) e "The essential gesture" (1984), in The Essential Gesture, org. Stephen Cling- 16. SAUL BELLOW, OS PRIMEIROS ROMANCES [pp. 251-267] man, Cidade do Cabo, David Philip, 1988; "References: The Codes of Cultu- re" (1989), in Líving in Hope and History: Notes from Our Century, Londres, 1. Saul Bellow, Novels 1944-53, Nova Yark, Library of America, 2003. B1oornsbury, 1999. 2. The Educatíon of Henry Adams, Nova Yark, Modern Library, 1931, p. 343· 3· Entrevista de 1979, em Gloria L. Cronin e Ben Siegel (orgs.), Conversa- 20. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS tions with Saul Bellow, Jackson, University ofMississippi Press, 1994, p. 161. TRISTES [pp. 3°8-323] 1. Gabriel García Márquez, Love in the Times ofCholera, trad. Edith Gross- 18. PHILIP ROTH, COMPLÓ CONTRA A AMÉRICA [pp. 274-292] man, Nova York, Penguin, 1988, p. 295. [Ed. brasileira: Amor nos tempos do cólera, Rio de Janeiro, Recard, 1985.] 1. Philip Roth, Operation Shylock: A Confession, Londres, Cape, 1993, p. 2. Gabriel García Márquez, MemoTÍes of My Melancholy Whores, trad. 399· [Ed. brasileira: Operação Shylock, São Paulo, Companhia das Letras, Edith Grossman, Nova Yark, Knopf, 2005. [Ed. brasileira: Memórias de minhas 1994·] putas tristes, Rio de Janeiro, Record, 2005.] 356 357
  • 179. 3· Roman Jakobson, "Linguistics and Poetics", in Essays on the Language of Literature, org. Seymour Chatman e Samuel R. Levin, Boston; Houghton Mifflin, 1967, p. 316. 4- Miguel de Cervantes, Don Quixote, trad. Edith Grossman, Londres, Secker & Warburg, 2004, p. 430. [Ed. brasileira: O engenhoso fidalgo dom Qui- xote de La Mancha, São Paulo, 34,2002 (vol. 1); 2008 (vol. 2).J 5· Gabriel García M,írquez, Living to Tell the Tale, trad. Edith Grossman, Nova York, Knopf, 2003, p. 395. [EeI. brasileira: Viver para contar, Rio ele Janei- ro, Record, 2003.] 6. García Márquez, Strange Pilgrims: Twelve Stories, trad. Edith Grossman, Londres, Cape, 1993, pp. 54-61. [Ed. brasileira: Doze contos peregrinos, Rio de Janeiro, Recorel, 2008.] 7· Yasunari Kawabata, The House of the Sleeping Beauties and Other Sto- ries, tradução para o inglês de Edward G. Seidensticker, Londres, Quaelriga Press, 1969, p. 39. [Ed. brasileira: A casa das belas adonnecidas, São Paulo, Estação Liberdade, 2004.] 21. V. S. NAIPAUL, MEIA VIDA [pp. 324-345] L W. Somerset Maugham, Points ofView, Londres, Heinemann, 1958, p. 58. 2. The Razor's Edge, Londres, Heinemann, 1944, pp. 267, 271, 272. [Ed. brasileira: O fio da navalha, Rio de Janeiro, Globo, 2002.] 3· Half a Life: a Novel, Nova York, Knopf, 2001; Londres, Picador, 2002. [Ed. brasileira: Meia vida, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.] 4· An Area ofDarkness, Londres, Deutsch, 1964, p. 77. 5· Naipaul, The Enigma of Arrival, Nova York, Vintage, 1987; Londres, Pi- caelor, 2002, p. 135. [Ed. brasileira: O enigma da chegada, São Paulo, Compa- nhia das Letras, 2001.J 6. Citaelo em Ashis Nandy, The Intimate Enemy, Delhi, Oxford University Press, 1983, p. 74- 7· As entrevistas notavelmente francas reunidas em Conversations with V. S. Naipaul, organizado por Feroza Jussawalla, Jackson, University ofMississip- pi Press, 1997, sugerem que a história de Willie Chandran em Londres tem um forte componente autobiográfico. Ver especialmente a entrevista de 1994 com Stephen Schiff. 8. Anita Desai, Fasting, Feasting, Boston, Houghton Mifflin, 2000, Londres, Vintage, 2000. [Ed. portuguesa: O jejum e a festa, Lisboa, Gradiva, 1999.J 9· Nanely, The Intimate Enemy, p. 47. 358