Escrevemos esta carta para manifestar nossa preocupação com o texto intitulado “Ciência aberta: uma visão desapaixonada”, publicado em 14 de janeiro de 2025 pelo Presidente e pela Diretora de Análise de Resultados e Soluções Digitais do CNPq.
Apreciamos a abertura da agência ao debate público sobre a transparência na ciência brasileira e reconhecemos como legítimos os desafios mencionados; dito isso, discordamos do teor geral do texto. Sendo assim, decidimos escrever esta resposta para dar seguimento ao debate junto ao CNPq e à comunidade científica brasileira.
As ressalvas feitas pelo texto do CNPq à ciência aberta se concentram em dois pontos principais:
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As taxas de publicação (APCs) extorsivas no atual modelo de acesso aberto.
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Os desafios do compartilhamento de dados, dada a falta de infraestrutura, recursos e pessoal qualificado para implementar essa prática.
Não discordamos de nenhum dos dois pontos. No entanto, o texto original trata esses entraves como maiores do que realmente são, deixando de abordar ações simples e de baixo custo para tornar mais aberto o conhecimento gerado no País.
Ponto 1: Taxas de publicação (APCs)
A discussão sobre acesso aberto foca na cobrança de APCs, que, de fato, são frequentemente proibitivas. No entanto, a faixa de preço citada pelo texto é bastante inflacionada em relação às estimativas disponíveis. Dos cerca de 21 mil periódicos de acesso aberto indexados no DOAJ, menos de 35% cobram taxas de publicação, com uma mediana de 820 dólares. Já no SciELO, esse número era de 31% em 2024, com uma média de cerca de 300 dólares.
Mais importante, porém, é o fato de o texto não abordar a possibilidade de resolver o problema do acesso pela via verde, que consiste no depósito de uma versão do artigo em um repositório aberto. Essa prática é permitida pela grande maioria das revistas científicas, pode ser feita em inúmeros repositórios gratuitos – inclusive no Brasil – e, ao contrário do que o texto sugere, não inclui necessariamente um período de embargo. Pelo contrário, a via verde abarca inclusive a publicação de preprints como uma estratégia simples e barata para garantir a ampla acessibilidade da ciência.
O artigo também não menciona que o atual modelo por assinaturas custa em torno de 500 milhões de reais por ano ao País para proporcionar o acesso de uma parcela restrita da população aos arquivos das editoras científicas por tempo limitado – uma solução mais excludente e menos sustentável do que qualquer modelo de acesso aberto.
Ponto 2: Compartilhamento de dados
Sobre este ponto, o texto traz diversos exemplos de dados cujo compartilhamento é desafiador devido a seu volume (como nos exemplos da física com o CERN e o LIGO), sua sensibilidade (como no exemplo de dados de saúde da Fiocruz) ou seu valor estratégico para o país. No entanto, muitos dados gerados pela pesquisa brasileira não enfrentam esses entraves e dar enfoque nos casos complexos pode ofuscar as soluções viáveis para os casos mais simples.
Curadoria, assessoria especializada e repositórios institucionais são desejáveis, mas não são condições necessárias para o compartilhamento de dados simples. Em particular, ressaltamos a existência de inúmeros repositórios de dados abertos e ao alcance de qualquer pesquisador gratuitamente, tanto no Brasil quanto internacionalmente.
Também causam estranhamento as afirmações sobre a necessidade de embargo de dados e de que o compartilhamento de dados fragiliza os pesquisadores. Como esta fragilização não é explicada no texto, nossa interpretação é de que a afirmação se refere à proteção de direitos autorais ou preocupações sobre reutilização de dados. Tais questões, porém, são solucionáveis por meio do uso de licenças abertas (como os modelos Creative Commons) que contemplem essas preocupações.
Além disso, como órgão público, entendemos que o CNPq deve colocar-se em defesa da abertura da pesquisa para o benefício de toda a sociedade e não de um protecionismo de dados que atende aos interesses pessoais dos pesquisadores. Com isso, cabe à agência atuar justamente para impedir que preocupações com autoria atrasem o avanço da ciência, estabelecendo políticas de incentivo e recompensa para o compartilhamento e reuso de dados.
Outras discussões sobre o texto original são abordadas neste documento (e aqui), que inclui esclarecimentos adicionais para a comunidade científica brasileira sobre os temas levantados no texto original.
Considerações finais e recomendações
Ao enumerar (e enfatizar) dificuldades relacionadas à “implementação da Ciência Aberta” – sintomaticamente escrita em maiúsculas pelos autores – o texto coloca este processo como um grande desafio pertencente a um futuro distante e dependente da superação de diversos entraves. Não existe, porém, uma entidade utópica chamada “Ciência Aberta” a ser implementada. Conforme a definição da UNESCO, a ciência aberta é um conjunto de ações que buscam permitir o acesso aberto ao conhecimento científico e a seus processos de criação, que podem e devem ser tomadas passo a passo.
Nesse sentido, várias práticas relacionadas à abertura da ciência estão ao alcance imediato do CNPq e da comunidade científica, várias das quais a custo baixo ou nulo para a agência. Dentre estas ações imediatamente implementáveis, incluem-se:
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Assumir o compromisso de que a produção dos pesquisadores não será avaliada pela agência com base no veículo de publicação, como defendem iniciativas internacionais como a DORA e a CoARA. A CAPES já tem tomado medidas nesse sentido e uma declaração do CNPq na mesma direção pode desfazer os incentivos que levam pesquisadores a submeterem-se a taxas de publicação abusivas.
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Criar campos específicos no currículo Lattes para registrar práticas de ciência aberta, como o compartilhamento de dados, códigos ou preprints. Atualmente, pesquisadores comprometidos com essas práticas são forçados a incluí-las como “outras produções técnicas”, o que não ajuda a destacar e legitimar tais contribuições.
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Exigir o compartilhamento de artigos científicos resultantes de financiamento da agência, utilizando a via verde se necessário, conforme realizado há anos por inúmeras agências como a FAPESP e o NIH.
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Colocar o compartilhamento de dados como padrão esperado para projetos financiados pela agência – admitindo exceções necessárias, como nos casos de dados com conteúdos sensíveis ou estratégicos e conjuntos de dados de grande volume –, o que vai em direção ao que tem sido preconizado por financiadores e governos ao redor do mundo.
Nenhuma das medidas citadas acarreta grandes custos diretos para o CNPq e, ainda que a formação de pesquisadores e profissionais de apoio para darem suporte a práticas abertas demande recursos por parte da comunidade, cabe à agência gerar a demanda para que esses passos sejam dados. No longo prazo, isso fortalecerá a pesquisa brasileira, colocando o País na vanguarda de um processo inevitável na ciência internacional, da mesma forma que o apoio de agências de fomento ao SciELO nos tornou uma referência mundial em acesso aberto e, mais recentemente, em ciência aberta.
Por fim, não concordamos que defender tais medidas seja uma visão apaixonada ou ingênua, como sugere o título do texto. Pelo contrário, reconhecer a necessidade de uma ciência mais aberta é uma visão embasada por evidências que mostram que o baixo grau de transparência da pesquisa acadêmica não tem garantido uma ciência confiável e reprodutível – o que atrasa o avanço do conhecimento e gera um desperdício de recursos potencialmente maior do que o que ocorreria caso o problema fosse enfrentado.
Se o CNPq enxerga a ciência aberta como um processo meritório, como colocado no texto, cabe à agência assumir sua parte de responsabilidade nos problemas de transparência enfrentados pela ciência contemporânea e criar uma agência propositiva para abordá-los. Começar a discussão listando dificuldades não estimula a comunidade acadêmica a fazer o que já é possível.
É hora de pensar nas medidas que todos – pesquisadores, instituições e agências de fomento – podem implementar para tornar nossa ciência mais aberta, um passo de cada vez. A Rede Brasileira de Reprodutibilidade está à disposição do CNPq para discutir medidas concretas que podem ser tomadas nesse sentido.
Esta carta também está disponível aqui.