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Cientistas e entidades contestam entraves expostos pela presidência e diretoria do CNPq à implementação da ciência aberta

Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento publicaram carta em que contestam o texto “Ciência aberta: uma visão desapaixonada”, assinado pelo presidente do CNPq, Ricardo Galvão, e pela diretora de análise de resultados e soluções digitais da agência de fomento, Débora Menezes. Expondo contradições e supervalorização de dificuldades para implementação da prática na visão dos dois físicos, o manifesto da Rede Brasileira de Reprodutibilidade (RBR) é subscrito pela Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC Brasil), representada pela presidente Edna Montero.

Clique aqui para acessar a carta na íntegra.

Sem deixar de enaltecer a importância de trazer o tema para o debate, parte da comunidade científica demonstrou discordância com o teor do artigo publicado no site do CNPq. O primeiro ponto diz respeito às ressalvas de Galvão e Menezes sobre as Taxas de Publicação (APCs), muitas vezes proibitivas pelo alto valor, algo que pesquisadores em geral também se preocupam.  No entanto, a faixa de preço citada pelo texto é bastante inflacionada e a cobrança é feita apenas em cerca de 30% dos periódicos de acesso aberto indexados no DOAJ e SciELO.

Mais importante, porém, segundo resposta dos cientistas, é o fato de o texto não abordar a possibilidade de resolver o problema do acesso pela via verde, que consiste no depósito de uma versão do artigo em um repositório aberto. Essa prática é permitida pela grande maioria das revistas científicas, podendo ser feita em inúmeros repositórios gratuitos – inclusive no Brasil – e, ao contrário do que o texto sugere, não inclui necessariamente um período de embargo. “Pelo contrário, a via verde abarca inclusive a publicação de preprints como uma estratégia simples e barata para garantir a ampla acessibilidade da ciência”, responde a carta da comunidade científica.

O artigo da presidência e diretoria do CNPq também não menciona que o atual modelo por assinaturas custa em torno de meio bilhão de reais por ano ao País para proporcionar o acesso de uma parcela restrita da população aos arquivos das editoras científicas por tempo limitado – uma solução mais excludente e menos sustentável do que qualquer modelo de acesso aberto.

Outro ponto no qual o texto em questão se concentra diz respeito ao compartilhamento de dados, um dos pilares da ciência aberta – algo desafiador para pesquisas estratégicas para o país, a exemplo da saúde. “No entanto, muitos dados gerados pela pesquisa brasileira não enfrentam esses entraves e dar enfoque nos casos complexos pode ofuscar as soluções viáveis para os casos mais simples”, respondem os cientistas que assinam a carta. A carta contesta a afirmação de que o compartilhamento de dados fragiliza os pesquisadores, uma vez que a proteção de direitos autorais pode ser solucionável por meio do uso de licenças abertas.  Caberia à agência de fomento estabelecer políticas de incentivo e recompensa para o compartilhamento e reuso de dados, não trazer entraves supervalorizados e frágeis.

A carta ainda expõe que a ciência aberta não diz respeito a uma proposta utópica e totalizante, como dá a entender o texto. Como já definido pela Unesco, ela se refere a um “conjunto de ações que buscam permitir o acesso aberto ao conhecimento científico e a seus processos de criação, que podem e devem ser tomadas passo a passo”. Nesse sentido, não existe uma “visão apaixonada” em torno do tema, mas sim “uma visão embasada por evidências que mostram que o baixo grau de transparência da pesquisa acadêmica não tem garantido uma ciência confiável e reprodutível – o que atrasa o avanço do conhecimento e gera um desperdício de recursos potencialmente maior do que o que ocorreria caso o problema fosse enfrentado”.

Nesse sentido, várias práticas relacionadas à abertura da ciência estão ao alcance imediato do CNPq e da comunidade científica, muitas das quais a custo baixo ou nulo para a agência, tais como:

assumir o compromisso de que a produção dos pesquisadores não será avaliada pela agência com base no veículo de publicação, medida já adotada pela Capes, a fim de que pesquisadores não se submetam a taxas de publicação abusivas;

criar campos específicos no currículo Lattes para registrar práticas de ciência aberta, como o compartilhamento de dados, códigos ou preprints (atualmente, pesquisadores comprometidos com essas práticas são forçados a incluí-las como “outras produções técnicas”, o que não ajuda a destacar e legitimar tais contribuições);

exigir o compartilhamento de artigos científicos resultantes de financiamento da agência, utilizando a via verde se necessário, conforme realizado há anos por inúmeras agências como a FAPESP e o NIH;

colocar o compartilhamento de dados como padrão esperado para projetos financiados pela agência – admitindo exceções necessárias, como nos casos de dados com conteúdos sensíveis ou estratégicos e conjuntos de dados de grande volume –, o que vai ao encontro do que tem sido preconizado por financiadores e governos ao redor do mundo.

Nenhuma das medidas citadas acarreta grandes custos diretos para o CNPq e, ainda que a formação de pesquisadores e profissionais de apoio para darem suporte a práticas abertas demande recursos por parte da comunidade, “cabe à agência gerar a demanda para que esses passos sejam dados”, argumentam os pesquisadores na carta. No longo prazo, isso fortalecerá a pesquisa brasileira, colocando o País na vanguarda de um processo inevitável na ciência internacional, da mesma forma que o apoio de agências de fomento ao SciELO tornou o Brasil uma referência mundial em acesso aberto e, mais recentemente, em ciência aberta.

Tal como argumentam os cientistas na carta, cabe igualmente ao CNPq assumir sua parte de responsabilidade nos problemas de transparência enfrentados pela ciência contemporânea e criar uma agência propositiva para abordá-los. “Começar a discussão listando dificuldades não estimula a comunidade acadêmica a fazer o que já é possível. É hora de pensar nas medidas que todos – pesquisadores, instituições e agências de fomento – podem implementar para tornar nossa ciência mais aberta, um passo de cada vez”, defendem os autores da carta, colocando-se à disposição para o diálogo e construção junto ao CNPq.

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