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Ciência Aberta: uma visão desapaixonada
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Imagem ilustrativa mostra mão humana utilizando computador para acessar tela de dados. - Foto: Imagem de Freepik
O debate sobre Ciência Aberta (CA) ancora-se, mundo a fora, em um claro viés democrático. Contudo, o tema apresenta facetas diversas: uma delas gira em torno do pressuposto de que pesquisas financiadas com recursos públicos devem ter seus dados e publicações disponibilizados publicamente. Infelizmente, o diabo mora nos detalhes: o assunto parece ser discutido quase sempre de forma bastante enviesada. Recursos para lidar com as políticas editoriais de Acesso Aberto (AA) e a importância da clareza dos pesquisadores sobre a necessidade de embargo dos seus dados são assuntos delicados. Além disso, a falta de ajuda profissional competente para auxiliar os pesquisadores a estruturar os dados da pesquisa e guardá-los pode estar abrindo um flanco que possivelmente os fragilizará num futuro muito próximo.
Nunca é demais reafirmar que estudos científicos de qualidade passam pelo rigor do método científico e por uma criteriosa avaliação por pares, culminando na publicação de um ou mais artigos numa revista especializada. Grande parte dos trabalhos científicos depende da obtenção de dados, que podem ser experimentais, observacionais, gerados por programas de computação baseados em modelos teóricos ou resultantes de simulações numéricas. Qualquer que seja o método utilizado, ele vai depender de forte financiamento, em geral, público.
Nas últimas duas décadas, uma rede de agências de fomento e de organizações filantrópicas europeias voltadas ao apoio da ciência gestou um movimento, conhecido como Plano S, com o propósito de garantir que os pesquisadores financiados com recursos públicos apenas publicassem em revistas de acesso aberto. Um dos argumentos que embasou a proposta dá conta de que, se o financiamento é público, automaticamente seus dados e publicações também deveriam ser. Esse movimento causou descontentamentos de vários atores e acabou sendo flexibilizado, gerando o consórcio cOAlition S, que propõe práticas de difusão de dados e de publicação de artigos realizadas da forma mais aberta e acessível possível [1].
O cOAlition S propôs uma mudança radical na prática de publicações, que não mais deveriam ser acessadas por meio de assinaturas, mas sim disponibilizadas abertamente. Curiosamente, esse novo paradigma foi rapidamente adotado pelas maiores editoras científicas do mundo: Wiley-Blackwell, Springer-Nature, Reed-Elsevier, Taylor & Francis, Wiley e SAGE. Por meio de acordos transformativos, elas passaram a liberar as publicações, desde que pagas pelos próprios pesquisadores proponentes, por meio das article processing charges (taxas de processamento de artigos, APCs, na sigla em inglês), que custam de 2.000 a 12.000 dólares em algumas dessas revistas [1]. Um fato interessante é o método de cálculo desses valores pelo próprio consórcio, que leva em conta o PIB dos países e coloca o Brasil nas mesmas condições que China, Singapura, Itália, Espanha, Portugal e Coreia do Sul [1].
De acordo com os dados mostrados em reportagem recente da revista Piauí [3], essas grandes editoras científicas lucram mais que a indústria petroleira. Na contramão dessa pretensa nova ordem mundial, o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) [2], criado em 2000, tem sido um bálsamo na vida dos pesquisadores brasileiros, ao tornar possível o acesso a milhares de publicações nacionais e internacionais por meio de assinaturas de periódicos cobertas pela CAPES e disponibilizadas para as instituições de ensino e pesquisa brasileiras. A CAPES tem feito um grande esforço para garantir que os cientistas brasileiros consigam continuar enviando artigos para as revistas mais prestigiosas e assinando acordos transformativos com várias editoras – mas a ganância editorial parece não ter limite. Uma demanda nas negociações da CAPES com essas editoras refere-se a quantidade de APCs (tokens) que serão disponibilizados. Se for limitada, que critérios devem ser utilizados para os distribuir no país?
Neste momento, estão consolidados os seguintes modelos de publicação: o tradicional periódico por assinatura, que restringe o acesso às publicações apenas a assinantes e não cobra APC dos pesquisadores; a via verde, quando a publicação, que também não requer pagamento de APC, é depositada num repositório institucional ou de uma sociedade científica e liberada após um período de embargo; a dourada, quando a publicação, que pressupõe pagamento de APC, é enviada para uma revista de AA ou híbrida (que combina AA com o modelo tradicional); e a diamante, modelo em que a publicação, que não requer pagamento de APC, é enviada a uma revista de AA que depende de recursos públicos para o seu financiamento – e que já conta com a adesão de grande número de revistas de algumas áreas, como a Filosofia.
No Brasil, algumas iniciativas merecem destaque, por tentarem lidar com ou, ao menos, minimizar a falta de recursos para pagamentos de APCs. Uma delas partiu da Sociedade Brasileira de Computação, que tem trabalhado para consolidar a sua plataforma SOL/SbcOpenLib [4]. Inicialmente lançada em 2017 como uma plataforma exclusiva para a publicação de anais de eventos, a SOL passou gradativamente a incluir publicação de livros e também de periódicos. Sempre cabe mencionar o exitoso exemplo da plataforma brasileira SciELO, acrônimo de Scientific Electronic Library Online [5], lançada em 1997 e atualmente financiada pela FAPESP, CAPES e CNPq, que fornece AA a um grande número de periódicos nacionais e internacionais, mas necessita ainda de apoio da comunidade científica e mudanças estruturais para uma inclusão mais sistemática de várias áreas do conhecimento ainda não contempladas – algo que depende da junção de esforços, como os supra-mencionados, para avançar com maior efetividade. Essas plataformas funcionam como repositórios de publicações de AA, assim como outros inúmeros repositórios de dissertações e teses nas universidades brasileiras, objeto de grande esforço por parte do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) no sentido de dotá-los da interoperabilidade necessária para que esse conjunto de publicações se torne mais facilmente acessível.
Outra faceta espinhosa da CA refere-se à disponibilização ampla de metadados e de dados científicos em repositórios próprios para esse tipo de conteúdo. Enquanto vários laboratórios europeus vêm avançando nessa discussão há anos e têm políticas claras de embargo (10 anos no CERN, por exemplo e inumeras restrições envolvendo os detectores de ondas gravitacionais LIGO,Virgo e KAGRA) e estruturando seus repositórios, a maioria dos cientistas brasileiros encontra-se ainda a mercê de discursos dissonantes. É fundamental que o modelo de depósito seja assistido por uma equipe multidisciplinar, e alguns casos exitosos já são encontrados no Brasil, como o Arca Dados, da Fiocruz, e um repositório menor no CBPF.
A doutora Vanessa Jorge, da Fiocruz, explica que, para se chegar ao modelo de gestão atual do Arca Dados, foi formada uma equipe de curadoria digital que preenche a informação dos metadados, os formata e documenta adequadamente, garante que os dados sejam preservados e possibilita o download por outros pesquisadores que se interessem pelo reuso dos mesmos. A governança dos dados tem se dado desde a instalação do repositório, com assessoria jurídica de três advogados, avaliação constante da curadoria e downloads por terceiros identificados e com declaração sobre a utilização.
Pois bem: como esperar que, de uma hora para outra, a maioria absoluta de pesquisadores brasileiros que trabalha mas universidades públicas tenha acesso a repositórios decentes como o da Fiocruz? Terão os cientistas brasileiros que passar a entender de classificação de metadados e preparar planos de gestão de dados? Nada disso se dá sem planejamento, treinamento e recursos adequados. Talvez, escritórios com profissionais de biblioteconomia, de ciência de dados e de tecnologia da informação devam ser estruturados nas universidades – um desafio adicional a instituições já bastante penalizadas pela escassez orçamentária. Talvez o Brasil precise investir numa nuvem soberana para alocar os dados científicos e estabelecer uma estratégia de estado para sua proteção. Com o advento da inteligência artificial, que se alimenta de dados, até que ponto nossos dados devem ser compartilhados de forma indiscriminada, sem que os pesquisadores tenham clareza da sua segurança e futura utilização?
Há ainda dois aspectos ligados à Ciência Aberta que têm merecido a atenção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): a divulgação transparente dos dados sobre a ciência brasileira, que o CNPq tem se esforçado para tornar públicos numa série de painéis [6]; e as avaliações de projetos e de pesquisadores, que devem passar por análises envolvendo aspectos qualitativos em detrimento da utilização apenas de dados bibliométricos.
Em suma, a ideia por trás da implementação da Ciência Aberta no Brasil e no mundo é, sem dúvida, meritória, mas é fundamental que esse assunto seja discutido com base nas reais condições de trabalho dos pesquisadores brasileiros; que os custos envolvidos na sua implementação sejam devidamente avaliados; e que sua regulamentação seja adequadamente estabelecida em nível federal. O fato de que as pesquisas nas diferentes áreas de conhecimento são feitas de forma diversa não deve ser negligenciado. Por exemplo, enquanto, para pesquisadores envolvidos com o desenvolvimento de vacinas a publicização de ‘resultados incorretos’ pode fazer algum sentido, o mesmo pode não ser adequado em outras áreas. Enfim, é necessário também considerar que, dentro do novo cenário da Economia do Conhecimento, a disponibilização ampla de alguns dados, mesmo que obtidos em pesquisas publicamente financiadas, pode ser contrária aos interesses soberanos do país.
Referências Citadas:
[1] Mudança radical na comunicação científica -
acessado em 18/11/2024.
[2] Portal de Periódicos da Capes -
acessado em 18/11/2024.
[3] A ciência recalcula sua rota -
acessado em 18/11/2024.
[4] Plataforma SOL/ SbcOpenLib - https://sol.sbc.org.br/index.php/indice
acessada em 19/11/2024
[5] Gestão transparente dos dados da ciência brasileira -
acessado em 18/11/2024.